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resumo  As inúmeras possibilidades e proble- mas colocados pela etnogra�a à reexão epistemo- lógica na antropologia fazem dela uma importante categoria de pensamento, por meio do qual se revela o sentido do ofício (“fazer”) dos antropólogos. As- sim, a etnogra�a pode ser vista como um gênero de performance cujo signi�cado ultrapassa as frontei- ras das culturas nativas, alcançando o campo cul- tural do antropólogo. Performance, neste estudo, representa um modo de auto-reexividade social em que o antropólogo, através da narrativa, busca ampliar o “campo” da antropologia. Apontar alguns momentos desse processo de reexividade etnográ- �ca é o objetivo deste texto, sendo a obra de Marcel Mauss (1872-1950), um exemplo privilegiado. palavras-chave Etnogra�a. Performance. Narrativa. Marcel Mauss. “Agora somos todos nativos...” Cliord Geertz O ofício de antropólogo Por muito tempo, a etnogra�a correspon- deu à descrição dos costumes de um povo ou tratado sobre as gentes. Apesar desses costu- mes, de gentes e povos representarem diferen- tes formas de experiências culturais, em geral diferentes da cultura do etnógrafo, nutria-se a ilusão de que tais descrições eram isentas de  juízos de valor. O que muda com a institucio- nalização da antropologia como ciência social nos séculos XIX/XX é que as descrições sobre as experiências humanas e culturais, de povos e gentes diferentes, passam a considerar a pessoa do antropólogo. Se até esse momento a �gura antropologia moderna G ILMAR  R OCHA do etnógrafo era distinta da do antropólogo, no início do século XX elas se fundem em uma única personagem. O resultado foi o surgimen- to do antropólogo social ou cultural como o conhecemos hoje. Um pro�ssional com forma- ção acadêmica e que tem no trabalho de campo um método de pesquisa, a “etnogra�a”, sendo a legitimidade desta conquistada por meio da observação-participante. Desde então, etnogra- �a tornou-se sinônimo de trabalho de campo, embora estas sejam atividades distintas. Os antropólogos são unânimes quanto à inexistência de receitas para se fazer trabalho de campo. Mesmo que tenham sido produzidos ma- nuais de etnogra�a, tais como o Guia Prático de  Antropologia , publicado em 1874, e o Manual de Etnogra�a , de Marcel Mauss, originalmente pu- blicado em 1947, o trabalho de campo consiste em uma experiência profundamente marcada pela singularidade sócio-histórica. Isto não signi- �ca a ausência de rigor metodológico e analítico do antropólogo, ao contrário, a etnogra�a garan- te novas possibilidades teóricas ao “campo epis- temológico” da disciplina, exatamente porque aí reside o que DaMatta (1978) denominou anthro-  pological blues , ou seja, o lado extraordinário, me- nos rotineiro, porém, mais humano do trabalho de campo. Por este motivo é possível considerar a etnogra�a como um gênero de performance , ou seja, uma forma de ação simbólica densa e pro- fundamente rica em reexões epistemológicas. Nas últimas décadas, a etnogra�a tornou-se “objeto” privilegiado de reexões nos meios an- tropológicos nacionais e internacionais 1 . Mesmo 1. Para um balanço crítico sobre a produção etnográ�ca contemporânea, ver Marcus e Cushman (2003). cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006

ROCHA, Gilmar. Etnografia e Antropologia Moderna-gilmar Rocha

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  • resumo As inmeras possibilidades e proble-mas colocados pela etnograa reexo epistemo-lgica na antropologia fazem dela uma importante categoria de pensamento, por meio do qual se revela o sentido do ofcio (fazer) dos antroplogos. As-sim, a etnograa pode ser vista como um gnero de performance cujo signicado ultrapassa as frontei-ras das culturas nativas, alcanando o campo cul-tural do antroplogo. Performance, neste estudo, representa um modo de auto-reexividade social em que o antroplogo, atravs da narrativa, busca ampliar o campo da antropologia. Apontar alguns momentos desse processo de reexividade etnogr-ca o objetivo deste texto, sendo a obra de Marcel Mauss (1872-1950), um exemplo privilegiado.

    palavras-chave Etnograa. Performance. Narrativa. Marcel Mauss.

    Agora somos todos nativos...Cliord Geertz

    O ofcio de antroplogo

    Por muito tempo, a etnograa correspon-deu descrio dos costumes de um povo ou tratado sobre as gentes. Apesar desses costu-mes, de gentes e povos representarem diferen-tes formas de experincias culturais, em geral diferentes da cultura do etngrafo, nutria-se a iluso de que tais descries eram isentas de juzos de valor. O que muda com a institucio-nalizao da antropologia como cincia social nos sculos XIX/XX que as descries sobre as experincias humanas e culturais, de povos e gentes diferentes, passam a considerar a pessoa do antroplogo. Se at esse momento a gura

    antropologia moderna

    GILMAR ROCHA

    do etngrafo era distinta da do antroplogo, no incio do sculo XX elas se fundem em uma nica personagem. O resultado foi o surgimen-to do antroplogo social ou cultural como o conhecemos hoje. Um prossional com forma-o acadmica e que tem no trabalho de campo um mtodo de pesquisa, a etnograa, sendo a legitimidade desta conquistada por meio da observao-participante. Desde ento, etnogra-a tornou-se sinnimo de trabalho de campo, embora estas sejam atividades distintas.

    Os antroplogos so unnimes quanto inexistncia de receitas para se fazer trabalho de campo. Mesmo que tenham sido produzidos ma-nuais de etnograa, tais como o Guia Prtico de Antropologia, publicado em 1874, e o Manual de Etnograa, de Marcel Mauss, originalmente pu-blicado em 1947, o trabalho de campo consiste em uma experincia profundamente marcada pela singularidade scio-histrica. Isto no signi-ca a ausncia de rigor metodolgico e analtico do antroplogo, ao contrrio, a etnograa garan-te novas possibilidades tericas ao campo epis-temolgico da disciplina, exatamente porque a reside o que DaMatta (1978) denominou anthro-pological blues, ou seja, o lado extraordinrio, me-nos rotineiro, porm, mais humano do trabalho de campo. Por este motivo possvel considerar a etnograa como um gnero de performance, ou seja, uma forma de ao simblica densa e pro-fundamente rica em reexes epistemolgicas.

    Nas ltimas dcadas, a etnograa tornou-se objeto privilegiado de reexes nos meios an-tropolgicos nacionais e internacionais1. Mesmo

    1. Para um balano crtico sobre a produo etnogrca contempornea, ver Marcus e Cushman (2003).

    cadernos de campo, So Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006

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    que esta seja uma questo predominante no con-texto norte-americano, como sugere Trajano Filho (1988), o estatuto da etnograa sempre mereceu a ateno dos antroplogos ao longo da histria da disciplina no sculo XX. O entendimento da etno-graa como uma categoria de pensamento no ex-clui sua dimenso performativa o que, em termos geertzianos, designa o fazer do antroplogo. Por este prisma, pensamento e ao, razo e afetivida-de no esto separados na experincia etnogrca. Portanto, como categoria de pensamento e ao performativa que a etnograa adquire relevncia sociolgica e epistemolgica na compreenso do ofcio do antroplogo e na construo do campo da antropologia2.

    Cultura e misso da antropologia em tempo de guerra

    A dcada de 20 um marco na histria da antropologia social e cultural. Pode-se conside-r-la como o perodo clssico da antropologia

    2. A categoria etnograa tem sido utilizada com sen-tidos variados ao longo da histria da antropologia moderna. Ora ser vista como mtodo qualitativo de-senvolvido no trabalho de campo, ora estar relacio-nada escrita do antroplogo o texto monogrco propriamente dito ora, ainda, a nfase recaindo so-bre os discursos, as formas de dilogos, estabelecidos entre nativos e antroplogos no encontro etnogrco. Aqui, a compreenso da etnograa como categoria de pensamento com qualidades performativas tem como pressuposto: 1) o fato de que a etnograa boa para pensar a constituio do campo antropolgico; 2) ampliar o entendimento da etnograa como proces-so epistemolgico que vai do campo ao texto; 3) por m, sem perder de vista todas as implicaes tericas relacionadas s dimenses metodolgica, ritualstica, cognitiva nesse processo, a aproximao com a per-formance visa destacar o carter reexivo da narrativa etnogrca como um modelo de ao, cuja fonte de inspirao so as anlises de Austin (1990) sobre os atos performativos da linguagem, os modelos de e para realidade na interpretao de Geertz (1978) e o comportamento restaurado de Schechner, ver Silva (2005).

    moderna. Algumas das obras mais signicati-vas que marcaram a histria da disciplina, ser-vindo, muitas vezes, como paradigmas do saber antropolgico, surgem neste momento. Alm de Argonautas do Pacco Ocidental (1922), de Bronislaw Malinowski, alguns outros clssicos da etnograa modernista vieram a pblico: na Inglaterra, a verso resumida de e Golden Bough (1922), de Sir James George Frazer, e e Andaman Islanders (1922), de Radclie-Brown; na Frana, La Mentalit primitive (1922), de Lucien Lvy-Bruhl, e Essai sur le don (1925), de Marcel Mauss; nos Estados Unidos, o trabalho de Franz Boas Anthropology and Modern Life (1928) e Coming of Age in Samoa (1928), de Margaret Mead. Isto para carmos com alguns dos principais textos representativos de cada uma dessas antropologias nacionais3.

    No perodo entre-guerras, o mundo ociden-tal viveria uma profunda crise de conscincia, que seria acompanhada da intensicao dos estudos sobre as sociedades primitivas, conside-radas como modos de vida autnticos. Parte da motivao em direo ao mundo primiti-vo seria fornecida por uma certa concepo antropolgica de campo, visto ento como uma espcie de laboratrio natural logo, um lugar livre das impurezas da civilizao

    3. A antropologia produzida at o momento da Primei-ra Guerra Mundial seria marcada pelas perspectivas do evolucionismo social e do difusionismo cultural. Neste momento, predominava ainda a representao do etngrafo amador (missionrios, militares, via-jantes etc.), quando no a do antroplogo de gabi-nete, sendo, nesse caso, o nome de Sir James George Frazer o mais lembrado. Mas desde ns do sculo XIX, experincias como a famosa Expedio ao Es-treito de Torres (Oceania) em 1888/89, que contou com a participao de eminentes antroplogos como W. H. R. Rivers e C. G. Seligmann a convite de Alfred C. Haddon, representaram signicativa con-tribuio para a institucionalizao da antropologia social e cultural moderna. Para Grimshaw (2001), esta expedio celebra o nascimento da Antropologia Moderna.

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    - e, ao mesmo tempo, o local de uma experi-ncia privilegiada para a iniciao do antrop-logo prossional e do desenvolvimento terico da antropologia.

    Sem perder de vista as especicidades das antropologias nacionais, o quadro cultural dos anos 20-40 exigiu dos antroplogos da poca a necessidade de realizao de uma dupla ta-refa. De um lado, a antropologia, ao imaginar o m ou desaparecimento das culturas primi-tivas frente marcha inelutvel do processo civilizatrio ocidental, colocava ao antroplo-go a misso salvacionista de resguardar es-ses patrimnios culturais (e porque no dizer naturais) da humanidade, garantindo sua sobrevivncia mesmo que por meios ccionais, como narrativa etnogrca. Por outro lado, essas mesmas sociedades ameaadas de desapa-recimento exerceram grande fascnio no meio intelectual, artstico e antropolgico, favore-cendo assim o desenvolvimento de uma crti-ca cultural na medida em que estas sociedades apresentavam alternativas culturais frente aos problemas introduzidos pela marcha da civili-zao ocidental. Antroplogos como Ruth Be-nedict expressariam de maneira dramtica este quadro de crtica cultural em termos da tenso indivduo/sociedade caracterstica da sensibi-lidade modernista da poca4. Assim, a impor-tncia deste fascnio pelo primitivo reside no fato de este ter provocado a necessidade de se repensar o signicado da cultura, abrindo a an-tropologia para o campo do relativismo cultu-ral e, por conseguinte, engendrando a crtica ao etnocentrismo.

    A partir de ento, o fazer etnogrco e o conceito de cultura ganham ateno especial dos antroplogos, estimulando cada vez mais novas pesquisas e discusses tericas. O resul-tado imediato foi a produo de textos exem-plares, tais como O Superorgnico (1919), de

    4. A este respeito ver Handler (1990).

    Alfred Kroeber, e o ensaio de Edward Sapir, Cultura autntica e espria, publicado em 1924, contribuindo para a renovao do sig-nicado de cultura a ponto de, na avaliao de Stocking Jr. (1983), este ltimo represen-tar uma espcie de documento de fundao da sensibilidade etnogrca nos anos 20. Com efeito, uma das grandes contribuies de Sapir para a antropologia cultural deste momento foi a de deslocar o conceito de cultura do campo factual das tradies, costumes etc., empurra-do-o para o plano da cognio5.

    Por outro lado, tambm a aproximao da antropologia com certas experincias artsticas, como o movimento surrealista, contribuiu para aprofundar a crtica cultural dos antroplogos aos males produzidos pela civilizao, ainda que no tenha sido possvel fugir completamente encenao do extico. A Misso Dakar-Dji-bouti, realizada na frica entre 1931-1933, liderada por Marcel Griaule, e da qual parti-cipou Michel Leiris , sem dvida, o melhor exemplo do que Cliord (1998) classicou de surrealismo etnogrco: um movimento cul-tural que, alm de produzir estudos profundos sobre sociedades africanas como os Dogons, tambm possibilitou a realizao de uma gran-de reexo sobre a prpria sociedade francesa em geral, e a antropologia em particular. Logo depois seria criado o Muse de lHomme (1938), um centro cultural cujo ttulo condensa o esp-rito maussiano do fato social total. Mais do que um lugar de exposio dos artefatos culturais exticos, o Museu do Homem era tambm o centro de pesquisas e lugar de reunio da arte com a antropologia. Na verdade, este se tornou

    5. Sapir pensa a cultura como um sistema de comu-nicao no qual a linguagem classica e organiza as experincias sensveis fazendo a mediao entre a cul-tura e o pensamento cognitivo. A partir do conceito de cultura se criticava o estilo de vida desenvolvido pela civilizao ocidental em sintonia com as crticas de Freud, por exemplo.

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    um dos principais smbolos da antropologia moderna em tempos de guerra, cuja misso era a de salvaguardar a cultura do homem, amea-ada de extino.

    A instituio do campo

    O antroplogo, ao deslocar-se de sua socieda-de para uma outra distante, buscava apreender, sem a interferncia de terceiros (viajantes, mis-sionrios, militares e outros), a realidade concreta ou, no dizer de Mauss, buscava fazer como eles [os historiadores]: observar o que dado. Ora, o dado Roma, Atenas, o francs mdio, o melansio dessa ou daquela ilha, e no a prece, ou o direito em si (1974: 181). Para estudar o concreto (no sentido da realidade social), preci-so estar l, preciso ir ver de perto o nativo. Desde ento, a viagem tornou-se algo mais do que uma aventura ou experincia extica; tor-nou-se uma estratgia fundamental no processo de institucionalizao do trabalho de campo e, portanto, de disciplinarizao da antropologia6.

    Sem dvida o clssico Argonautas do Pacco Ocidental, de Malinowski, constitui o modelo exemplar do texto etnogrco. Desde sua pu-blicao tem servido de paradigma metodol-gico do trabalho de campo, no sendo exagero dizer que a experincia etnogrca do trabalho de campo tornou-se, desde ento, sinnimo de observao participante e, via de regra, os textos etnogrcos posteriores passaram a se-guir o seu modelo realista.

    bem verdade que o trabalho de campo visto, salienta Copans, como uma experincia

    6. Para uma anlise do papel das viagens na instituio do campo antropolgico ver Cliord (1997). Apesar de Lvi-Strauss ter anunciado o m das viagens, sem dvida a viagem etnogrca do antroplogo prossional consiste num momento especial do tra-balho de campo, haja vista sua qualidade performa-tiva. A propsito, este exatamente o caso de Tristes Trpicos.

    aureolada com os prestgios do exotismo (1981: 59), assumindo assim, muitas vezes, as feies de um mito7. No se nega a importncia do traba-lho de campo, seu carter extraordinrio e, sem dvida, a experincia extica que ele encerra. Contudo, o signicado mtico da aventura mali-nowskiana est longe de ser plenamente realizado e ritualizado pela maioria dos antroplogos8.

    Se, inicialmente, o trabalho de campo re-presentou uma oportunidade de ultrapassar os limites tericos e metodolgicos impostos pela antropologia de gabinete - na medida em que abriu a possibilidade de se estudar in loco a vida, os costumes, os mitos, os ritos, as formas de estru-turao e organizao das sociedades primitivas - com o tempo, este se tornou uma quase exigncia na produo de conhecimento e desenvolvimen-to da prpria disciplina, alm de designar uma espcie de rito de passagem (em especial, de iniciao) ao aspirante a antroplogo9.

    7. Tambm James Cliord chama ateno para o mito do trabalho de campo: A observao participante obri-ga seus praticantes a experimentar, tanto em termos fsicos quanto intelectuais, as vicissitudes da traduo. Ela requer um rduo aprendizado lingstico, algum grau de envolvimento direto e conversao e, freqen-temente, um desarranjo das expectativas pessoais e cul-turais. claro que h um mito do trabalho de campo. A experincia real, cercada como pelas contingncias, raramente sobrevive a esse ideal; mas como meio de produzir conhecimento a partir de um intenso envol-vimento intersubjetivo, a prtica da etnograa mantm um certo status exemplar. Alm disso, se o trabalho de campo foi durante algum tempo identicado a uma ci-ncia totalizante, a Antropologia, tais associaes no so necessariamente permanentes. Os atuais estilos de descrio cultural so historicamente limitados e esto vivendo importantes metamorfoses (1998: 20).

    8. Para Kuper (1978) a experincia de Malinowski pode ser vista como mito de fundao.

    9. O trabalho de campo pode ser visto como uma esp-cie de instituio, no sentido atribudo por Douglas (1998): trata-se de uma conveno que, como tal, se autopolicia, dene regras de comportamento, estabe-lece sistemas de pensamento e se legitima em torno de algum princpio fundante.

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    Geralmente durante o trabalho de campo os antroplogos so temporariamente retirados do convvio de seus familiares e amigos para vive-rem uma outra experincia social extraordinria, tal como acontece a muitos novios nas socie-dades primitivas. O resultado , aps o antro-plogo ter experimentado situaes limites de convvio social com o outro, uma mudana de sua posio social, acompanhada de uma pro-funda operao cognitiva. Ao nal do processo a prpria percepo, os sentidos, os valores, enm, o ponto de vista do antroplogo que se modica. Pode-se vislumbrar um verdadeiro processo de educao dos sentidos cujo resul-tado a formao de uma renada sensibilida-de antropolgica. As consideraes de Roberto Cardoso de Oliveira (2000) sobre o processo de domesticao do olhar, do ouvir e do escre-ver - espcies de faculdades do entendimento sociocultural inerentes ao campo das cincias sociais e humanas - no ofcio do etngrafo, do bem o tom do ethos antropolgico10.

    Na verdade, no somente a identidade do nativo que est sendo construda no trabalho de campo, mas tambm a persona do antrop-logo. Parafraseando Condominas, Pulman diz que o momento mais importante de nossa vida prossional corresponde ao tempo de trabalho no campo: ao mesmo tempo nosso laboratrio e nosso rito de passagem, o campo transforma cada um de ns em um verdadeiro antroplo-go (1988: 22). Essa tambm a concluso de Boon (1993: 24), para quem

    A identidade contempornea do antroplogo prossional baseia-se, em minha opinio cor-retamente, no trabalho de campo ideal e na prtica. Isto no quer dizer que a histria da disciplina comece com o trabalho de campo nem que os antroplogos tenham que faz-lo,

    10. A noo de ethos, na denio de Bateson (1990), remete a um sistema cultural de normalizao e orga-nizao dos instintos e emoes dos indivduos.

    mas to somente que o trabalho de campo o eptome do que fazem os antroplogos quando escrevem.

    A partir de tais observaes, pode-se ar-mar, ento, que a modelagem da persona do antroplogo, em grande medida, est relacio-nada com sua experincia de campo. no campo que o antroplogo forma sua identi-dade, sentencia Kilani (1994). Por vezes a construo da identidade social do nativo e do antroplogo adquire contornos de uma relao totmica em que os nomes Malino-wski, Evans-Pritchard, Firth e Turner esto intimamente associados s culturas Trobriand, Nuer, Tikopia e Ndembu, respectivamente. De acordo com Kilani (1994:49):

    A monograa constri a imagem unicada de um antroplogo em simbiose com uma cultura das gentes. As gentes so elas mesmas con-guradas nos limites do texto etnogrco, assim como a diversidade das formas sociais e cultu-rais estabilizada atravs de uma representao padro. Em suma, a monograa surge nesse sentido como um tipo de cone. Ela conjuga, segundo os termos de Atikinson, um autor e um campo (uma cultura, uma sociedade) de uma representao concreta: o campo como o autor so com efeito reconhecidos pode se dizer ento no e atravs do mesmo processo de leitura da monograa. por meio das mo-nograas, dos homens e das mulheres daquelas culturas, dos campos, que os autores so identicados e classicados. este um tipo de classicao totmica (...) a base textual que nos permite identicar emblematicamente Evans-Pritchard aos Nuers, Margaret Mead aos Samoanos, Marcel Griaule aos Dogons... e in-versamente.

    Por outro lado, no s as experincias vividas pelo antroplogo em campo so fundamentais

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    para sua formao, mas tambm o aprendiza-do de certos valores da cultura cientca. O universo cientco comporta um conjunto de regras, valores e procedimentos ticos aos quais o pesquisador deve, at certo ponto, submeter-se. Este processo exige que o iniciado partilhe de um sistema de crenas como, por exemplo, racionalidade, ruptura epistemolgica, objeti-vidade etc., que devem ser por ele aprendidas e experimentadas11.

    De fato, tanto a compreenso e interpre-tao de outras culturas, quanto o desenvolvi-mento terico e metodolgico da antropologia deve muito s experincias do trabalho de cam-po. Apesar das recentes crticas epistemolgicas etnograa, mesmo as posies mais radicais no supem sua eliminao no campo da an-tropologia, mas reconhecem a necessidade de se repensar e reetir sobre seu ideal cienticis-ta. Com isso, muito das questes que envol-vem a experincia etnogrca do antroplogo moderno so colocadas sob suspeita.

    A favor do mtodo

    A canonizao da etnograa, a partir do trabalho de campo de Malinowski entre os Trobriandeses (Pacco Ocidental), no im-pediu que outras modalidades de experincias etnogrcas fossem elaboradas ou que fossem sugeridas por outras interpretaes em anos recentes (ps-60). No deixaram de provocar certo incmodo na comunidade antropolgica, por exemplo: Naven, de Gregory Bateson, nos anos 30; e City of Women, de Ruth Landes,

    11. Complementando a nota anterior, o conceito de ha-bitus, tal qual utilizado por Bourdieu (1983) em sua sociologia da cincia, representa a outra metade desse processo de educao dos sentidos. Assim, amplian-do o sentido dessa sensibilidade etnogrca, podemos ver em todo este processo uma espcie de educao sentimental, na qual o principal aprendiz antrop-logo, sugere Geertz (1978).

    nos anos 40; Tristes Tropiques, de Lvi-Strauss nos anos 50; e e Teachings of Don Juan, de Carlos Castaeda nos anos 60. Antes de repre-sentarem desvios frente s convenes disci-plinares estes trabalhos so indicadores do que alguns antroplogos chamam de experincia indisciplinada da etnograa12. Tais trabalhos abriram espao para que a etnograa deixasse de ser vista nica e exclusivamente como estra-tgia metodolgica do trabalho de campo. Ou-tras estratgias metodolgicas desenvolvidas na construo textual do objeto antropolgico, ento, passaram a ser teorizadas13.

    Isto ca claro quando se tm em conside-rao as observaes de um antroplogo como Geertz acerca da reexividade epistemolgica inerente ao trabalho de campo14. Em prefcio datado de 1968, no recm editado Islam Obser-ved, Geertz (2004:12), destacava a importncia do trabalho de campo no processo de interpre-tao de uma cultura, diz ele:

    O trabalho de um antroplogo, a despeito do tema declarado, tende a ser uma expresso de sua experincia de pesquisa, ou, mais precisa-mente, do que a experincia de pesquisa faz a ele. Isso certamente vale no meu caso. O traba-lho de campo tem sido para mim intelectual-mente (mas no s intelectualmente) formativo, fonte no s de hipteses isoladas, mas de pa-

    12. A idia de experincia indisciplinada , na verdade, o reconhecimento daquilo que Fayereband denun-ciava em Contra o mtodo (1989). Por outro lado, esta idia no contradiz o seu processo histrico de disciplinarizao conforme sugere a interpretao de Oliveira (1988).

    13. Mais do que uma questo de mtodo, etnograa e trabalho de campo so experincias de natureza epistemolgica e ontolgica, como o sugerem al-guns lsofos e antroplogos, dentre eles: Merleau-Ponty (1989), Kilani (1994), Casal (1996), Cliord (1998).

    14. Essas observaes relativas a Geertz me foram sugeri-das pelo parecerista do artigo, a quem agradeo.

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    dres inteiros de interpretao social e cultural. O conjunto do que eu vi (ou penso ter visto) na histria, eu o vi (ou penso ter visto) antes nos es-treitos limites de cidades e aldeias camponesas.

    Sem perder de vista os padres antropo-lgicos de interpretao social e cultural, pas-sados exatos vinte anos, Geertz (1997:14) trouxe a pblico em 1988, Works and Lives e Anthropologist as Autor, trabalho no qual o antroplogo chama a ateno para a ec-cia simblica da retrica etnogrca. visvel, neste caso, a mudana de foco do antroplogo, do campo ao texto:

    A habilidade dos antroplogos em nos fazer to-mar a srio o que dizem tem menos a ver com seu aspecto factual ou seu ar de elegncia conceptu-al, que com sua capacidade para nos convencer de que o que dizem o resultado de termos po-dido penetrar (ou, se prefere, de termos sido pe-netrados por) outra forma de vida, de havermos, de um outro modo, realmente ter estado l. E na persuaso de que tendo este milagre invisvel ocorrido, houve interveno da escrita.

    Ou seja, as monograas antropolgicas re-velam tanto a viso de mundo do autor (o seu estilo literrio) quanto viso dos nativos que este estuda. Mas, apesar das crticas ao carter autoral e ccional dos textos etnogrcos, a importncia do trabalho de campo pode ser corroborada pelo que nos diz Mariza Peirano. Aps argumentar A favor da etnograa, conclui a antroploga (1995: 57):

    Novas anlises e reanlises viro comprovar a fe-cundidade terica do trabalho etnogrco. Elas certamente iro reforar a convico central dos antroplogos: a de que a prtica etnogrca artesanal, microscpica e detalhista traduz, como poucas outras, o reconhecimento do as-pecto temporal das explicaes. Longe de repre-

    sentar a fraqueza da antropologia, portanto, a etnograa dramatiza, com especial nfase, a vi-so weberiana da eterna juventude das cincias sociais.

    preciso considerar, no entanto, que o mtodo etnogrco do trabalho de campo no aponta somente para o estilo literrio, o aspecto artesanal e microscpico ou o carter tempor-rio das explicaes antropolgicas, fazendo-nos ver a eterna juventude da antropologia. Na verdade, trata-se de uma prtica incorporada ao fazer da antropologia que denota seu trao distintivo e especco frente s outras cincias sociais. O trabalho de campo no exclusivi-dade da antropologia mas uma de suas tarefas bsicas, seno a principal. Pode-se dizer que a experincia etnogrca constitui-se no trao identitrio da disciplina.

    Os antroplogos concordam, hoje, com o carter experimental da etnograa. Nessa perspectiva torna-se inegvel a contribuio da etnograa para o prprio desenvolvimento epis-temolgico da disciplina ao se relativizar rgidos padres e modelos tericos e metodolgicos. O mtodo do trabalho de campo em antropologia , nesse caso, exemplar. Nele, o encontro etno-grco do sujeito e do objeto do conhecimento transpe os limites do trabalho de campo para o prprio campo da antropologia, exigindo assim uma dupla hermenutica enquanto exerccio profundo de auto-reexividade15.

    A viso realista da etnograa como estrat-gia metodolgica de trabalho de campo cede

    15. Segundo Boaventura Santos, com a crise dos para-digmas da cincia moderna imps-se a necessidade de uma reexo hermenutica que procura romper o crculo vicioso do objeto-sujeito-objeto, ampliando o campo da compreenso, da comensurabilidade e, portanto, da intersubjetividade e, por essa via, vai ga-nhando para o dilogo eu/ns-tu/vs o que agora no mais que uma relao mecnica eu/ns-eles/coisas (1989: 16). A tradicional relao epistemolgica eu-coisa desloca-se para relao hermenutica eu-tu.

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    lugar a uma viso hermenutica na qual o re-conhecimento da experincia indisciplinada do ofcio do antroplogo e as retricas do texto antropolgico colocam a etnograa no campo das reexes epistemolgicas. Quando a etnograa passa a integrar o campo do co-nhecimento epistemolgico, transformando-se em uma estimulante categoria de pensamento sobre a experincia e a escrita antropolgica, abre-se espao para falar em etnograa do pensamento antropolgico. Em outras pala-vras, sem perder de vista que a construo do texto antropolgico comea no campo (Ki-lani 1994: 46), a etnograa deixa de ser vista somente como uma estratgia metodolgica e passa a signicar um empreendimento textual situado em contextos histricos e culturais es-peccos.

    Performance etnogrca

    Para alguns antroplogos a escrita etnogrca dramatiza uma estratgia especca de autorida-de que se revela, basicamente, em certos modos de representao. Sem entrar na especicidade de cada um deles, vale registrar o fato de que os processos experiencial, interpretativo, dia-lgico e polifnico so encontrados, de forma discordante, em cada etnograa, mas a apresen-tao coerente pressupe um modo controlador de autoridade, como dir o historiador James Cliord (1998: 58). Vimos que tambm Geertz pe em destaque a importncia da experincia e da escrita na denio da prpria etnograa e, portanto, dessas estratgias de construo da autoridade etnogrca. Anal, a etnograa est, inextricavelmente, presa ao campo da escrita. Na verdade, trata-se de uma escrita que guar-da a memria da experincia etnogrca, agora traduzida para uma forma textual.

    Se, como pensa Geertz, o etngrafo ins-creve o discurso social, anotando-o, objeti-cando-o e autorizando-o a existir textual e

    culturalmente, isto , se o etngrafo xa o dis-curso social no modo de uma escrita narrativa como registro de consultas sobre o que o ho-mem falou (1978: 41), ento a etnograa , ela mesma, uma forma de inscrio do discurso antropolgico moderno, pois atravs da ex-perincia e da escrita etnogrca que a cincia antropolgica se modela cultural e historica-mente. Assim, etnograa tambm, alm do registro textual de uma fala nativa, um modo cultural de escrita antropolgica.

    Com efeito, o que a escrita etnogrca xa no somente o dito no uxo do discurso so-cial, o que o homem falou, mas, sobretudo, um modo de pensamento social etnogrco. As et-nograas, ao representarem sistemas simblicos de crenas, ritos, mitos e religies, no apenas descrevem ou falam sobre o modo de pensamen-to dos nativos. A maneira como estes sistemas so descritos revelam, por sua vez, o modo como este pensamento foi organizado textual e nar-rativamente. A escrita etnogrca, portanto, ao expor a cultura do outro, informa-nos tambm sobre a estrutura e a organizao narrativa do tex-to, revelando assim parte da cultura do prprio antroplogo. Em ltima instncia, quem fala o antroplogo, embora sua fala no seja a nica16.

    Pode-se armar ento que etnograas so narrativas, expresses de certo tipo de experincia

    16. Relativizando as teorias que vem na escrita um modo de domesticao do pensamento ou limitao da experincia compartilhada pela oralidade, a exem-plo do poder da fala nos rituais mgicos, tambm a escrita promove uma operao simblica de ampliar o mundo das experincias e do pensamento social. Se, por um lado, a escrita individualiza o mundo da experincia, por outro lado universaliza quando lhes possibilita viajarem por meio dos textos no tempo e no espao. Haja vista o quanto nossas sociedades trabalham com a idia do mundo fechado dos anal-fabetos. Da, a crtica dirigida antropologia inter-pretativa de Geertz, reside no fato de que nesta, mais do que a fala do nativo, o que se ouve a voz de Geertz por sobre os ombros dos balineses.

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    e, portanto, formas de ao e representao que podem ser vistas como performances na medi-da em que revelam um processo de reexividade hermenutica sobre as maneiras como os homens interpretam, sentem, experimentam e vivem suas culturas, sobretudo quando a cultura em questo a do prprio antroplogo17.

    As narrativas etnogrcas expressam muitas vezes conitos de experincias entre emoo e razo, no totalmente domesticados pelas con-venes disciplinares. Nem por isso estas expe-rincias deixam de ser guiadas por estruturas narrativas. Como prope Bruner, as estruturas narrativas servem como guias interpretativos; elas nos dizem o que constitui dados, dene os tpicos de estudo, e ressalta o sentido da cons-truo na situao de campo quando transforma o estranho em familiar (1986: 147). No entan-to, estas estruturas narrativas devem ser vistas mais como estruturas performativas, nos ter-mos de Sahlins (1990), do que como estruturas prescritivas, nos padres radclie-brownianos. Com isso abre-se a possibilidade de pensar a narrativa etnogrca no s em termos de uma etnograa da performance, mas tambm de uma performance da etnograa.

    Sabe-se que os anos 70 marcam o encontro da antropologia com a arte da performance no campo das cincias sociais. Mas a luz dos des-dobramentos sociolgicos da fenomenologia de Schutz, da etnometodologia de Garnkel, da dramaturgia social de Goman assim como dos movimentos artsticos modernos - como o Surrealismo, o Dadasmo, o Futurismo e demais manifestaes contraculturais na msica, na dana, no teatro e os movimentos da living art, body art e outros - que se pode compreender o

    17. como gnero discursivo por meio do qual se trocam experincias, se mesclam sentidos e tradies diferen-tes (oral/escrito; nativo/antroplogo) maneira de uma atividade artesanal que a narrativa, no sentido benjaminiano, se mostra referencial neste texto. Ver Benjamin (1994).

    desenvolvimento de uma teoria da performance na chamada antropologia ps-moderna. Na ver-dade, esse percurso no nos leva a uma situao estvel e denida sobre a relao antropologia/performance. No signica isto que as etnogra-as produzidas antes dos anos 70 no sejam nar-rativas performticas. O fato que a chamada ps-modernidade tornou a relao etnograa/performance um problema visvel.

    Uma antropologia da performance nos pos-sibilita assim uma dupla interpretao: de um lado, com a descrio de uma performance cul-tural qualquer como espetculo, evento ou ritu-al, e, do outro lado, com o estudo performativo de toda e qualquer etnograa na medida em que as etnograas, envolvendo as experincias do campo ao texto, dramatizam uma ao re-exiva. Embora a etnograa da performance e a performance da etnograa sejam perspectivas distintas, uma mesma obra permite que se arti-cule as duas. Na verdade, a etnograa no fala somente de uma nica cultura18.

    Enquanto um tipo de experincia e narra-tiva, a etnograa auto-referencial, pois repre-senta uma forma de ordenar o mundo tanto do eu quanto do outro. Ao integrarem narrativas etnogrcas, os conceitos antropol-gicos de cultura, mito, campo etc., organizam de maneira coerente a cultura e do signicado s experincias humanas. Nesse sentido, ca-se

    18. Basicamente, existem duas linhas de investigaes antropolgicas sobre a performance: de um lado, a linha de investigao da performance na linguagem, cuja base encontra-se nos trabalhos de Wittgenstein, Austin e Searle, culminando nas contribuies antro-polgicas de Bauman e outros sobre a etnograa da fala. Do outro lado, a antropologia da performan-ce de Victor W. Turner, que se converte em um dos melhores exemplos de performance cultural da antro-pologia ps-moderna, a qual Langdon (1999) bati-za de enfoque da performance como drama social. Nesse caso, o teatro tem servido de fonte primordial de inspirao antropologia da performance, ver Silva (2005).

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    muito prximo da idia de inveno da cultu-ra de Roy Wagner (1981). Num movimento dialtico de controle (s vezes inconsciente) do campo etnogrco e da inveno cultural, os antroplogos tornam inteligveis as prticas e experincias dos outros, na medida em que objeticam nativos e culturas. Mas, ao m desse processo, segundo Wagner, o que de fato ocorre que o que o pesquisador de campo inventa, portanto, seu prprio entendimen-to; as analogias criadas por ele so extenses de suas prprias noes e as referncias de cultura so transformadas pelas suas experincias das situaes de campo (1981: 12). Inventando outras culturas, os antroplogos constroem para si mesmos o sentido de cultura, anal,

    o estudo da cultura , de fato, nossa cultura; operada atravs de nossas formas, criada em nos-sos termos, seguindo nossas palavras e conceitos para seus signicados, e nos recriando atravs de nossos esforos (1981: 16).

    De resto, pode-se dizer que as etnograas so invenes, ces (no sentido de ctio, construes) modeladas por certo tipo de es-crita e de experincia, autorizando-nos assim a pensar em estilos de antropologia ou modos de representao etnogrca19.

    Os textos etnogrcos expressam valores, idias, sensibilidades, enm, estruturas de signi-cados e pensamentos, s vezes muito mais rela-cionados aos antroplogos do que aos nativos em cena. Conclui-se que a etnograa no se restringe a uma estratgia de trabalho de campo com ns descrio das culturas nativas em termos de performances textuais. Esta tambm dramatiza muito das experincias dos antroplogos. A et-nograa, ento, performatiza um modo de ao

    19. No Brasil, o antroplogo Roberto Cardoso de Olivei-ra (1995) tem se destacado na anlise dos estilos de antropologia produzidos no centro e na periferia do sistema mundial.

    reexiva na qual, por meio da escrita transfor-mada em narrativa, personagens so acionados, verdades relativizadas, sentimentos ritualizados, enm, culturas so inventadas. Em suma, pode-se dizer que a etnograa constitui uma importan-te categoria de pensamento na antropologia20.

    A magia de Mauss

    A obra de Marcel Mauss (1872-1950) apa-rece como um exemplo oportuno e fecundo para se pensar o alargamento da noo de et-nograa na antropologia moderna. Neste arti-go ser possvel oferecer apenas algumas notas introdutrias sobre, o que se poderia dizer, sua performance etnogrca.

    Inicialmente, pode-se perguntar qual a ra-zo de se tomar como exemplo para a reexo desenvolvida nesse texto um antroplogo que nunca realizou trabalho de campo no sen-tido estrito do termo. no mnimo curioso Mauss ter proposto um Manual de etnograa (1993), trabalho este interrompido pela eclo-so da guerra nos anos 40, mas publicado em 1947 pelo esforo de um de seus alunos. Esta obra constitui a verso estenografada das suas instrues de etnograa descritiva, desenvol-vida no Institute dEthnologie da Universidade de Paris, entre os anos de 1926-1939. Con-tudo, o fato de Mauss no ter nunca pratica-do a observao etnogrca, adverte Denise Paulme em prefcio ao Manual, no signica que no tenha produzido obra de etnograa. A exemplo do que dizem algumas leituras sobre Lvi-Strauss, s quais vem na sua experincia nova-yorkina seu verdadeiro trabalho de cam-po, pode-se dizer que tambm a nica e ver-dadeira etnograa de Mauss foi a sua prpria

    20. Concordo com Gonalves (2004) em relao a noo de patrimnio, que tambm a etnograa, pensada como categoria de pensamento, designa um modo de ao reexiva e de performance que deve ser vivido e sentido no cotidiano.

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    sociedade e, em particular, sobre o campo da antropologia21.

    No por acaso os primeiros escritos de Mauss tm como preocupao principal a construo do campo da sociologia, numa poca em que a fronteira entre esta e a antropologia ainda no estava bem denida. No se trata somente de uma herana do tio, Durkheim, mas sim um projeto de etnologia (no sentido de uma antro-pologia comparada e, metodologicamente, pra-ticada por Mauss em sua obra), voltada para a superao da distncia entre o primitivo e o ci-vilizado, como sugere a leitura de Merleau-Pon-ty (1989). Advm desta proposta a nfase nos estudos sobre representaes coletivas e sistemas de classicaes desenvolvidos desde os primei-ros trabalhos, apontando para a complexidade e sosticao do pensamento simblico nas so-ciedades primitivas. Estes estudos revelam tam-bm outra preocupao fundamental de Mauss: a de identicar e analisar algumas das principais categorias do pensamento humano22.

    21. Mauss faz exatamente aquilo que os etngrafos fazem quando vo a campo, transformando o extico em familiar. Inversamente, ele estranha e transforma o familiar em extico, em algo que merece ser investi-gado e conhecido. A julgar pela observao de um de seus alunos, Dumont (1985), so os homens concretos (como o francs mdio ou o melansio desta ou da-quela ilha) em sua prpria sociedade, com suas aes e representaes em torno do corpo, da religio, da ali-mentao etc., que servem de parmetro para Mauss desenvolver suas instrues de etnograa descritiva.

    22. Um sobrevo na obra de Mauss nos revela sua preo-cupao com as representaes coletivas. J em 1899, juntamente com Henri Hubert, publica o Ensaio so-bre a natureza e funo do sacrifcio. Em 1901/1902 vm tona os estudos sobre o campo da sociologia e O ofcio do etngrafo. Logo em seguida, Mauss d incio srie de estudos sobre representaes co-letivas com o Esboo de uma teoria geral da magia (1902/1903). No mesmo ano, aparece Algumas For-mas Primitivas de Classicao, escrito em parceria com Durkheim e, no seguinte, a vez do Ensaio sobre as variaes sazoneiras das sociedades esqui-ms. Dando um salto para os anos 20, aparecem

    Embora ausente da lista de Geertz, o nome de Mauss pode ser incorporado ao dos fun-dadores de discursividade na antropologia moderna, isto , aos estudiosos que ao mesmo tempo tem estabelecido suas obras com certa determinao e construdo teatros de lingua-gem a partir dos quais toda uma srie de outros atuam, de maneira mais ou menos convin-cente, e, sem dvida, seguiro atuando ainda por um longo perodo de tempo (1997: 31). Numa linha de interpretao radical e provoca-tiva, Alain Caill v no Ensaio sobre a ddiva: as linhas mestras no apenas de um paradigma sociolgico entre outros, mas do nico para-digma sociolgico que se possa conceber e de-fender (1998: 11). Mesmo que Caill declare ser o esprito de Mauss tomado por um ver-dadeiro horror sistematizao, no conjunto a obra de Mauss parece formar um sistema bastante coerente e integrado, embora goze de um carter aparentemente anrquico23.

    A compreenso da obra de Mauss no est separada de sua trajetria biogrca, o que, na interpretao de Fournier (1993), signica analisar como o sbio e o militante socialista participam do texto. A exemplo do prprio Ensaio, de 1925, Mauss fez de sua vida uma

    os estudos sobre A expresso obrigatria dos senti-mentos (1921); a Mentalidade primitiva (1923); As relaes reais e prticas entre a psicologia e a so-ciologia (1924). E, em 25, surge o clssico Ensaio sobre a Ddiva. Nesta dcada surgem ainda outros trabalhos na linha das representaes coletivas sobre a morte (1926) e sobre o gracejo (1926), perodo que tambm inicia suas Instrues de etnograa des-critiva, interrompidas pela Segunda Guerra. Antes, porm, surgem os ltimos trabalhos que se tornariam referncias na antropologia: As tcnicas corporais (1934) e Uma categoria do esprito humano a no-o de pessoa, a noo de Eu (1938).

    23. Fournier (s/d) declara que a obra de Mauss multi-forme, difcil e cheia de ambigidades. Alm do j citado trabalho de Fournier, estou tomando como referncia: Lvi-Strauss (1974); Oliveira (1979); Du-mont (1985); Founier (1993; 2003).

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    forma de ddiva sociolgica e poltica, sugere o bigrafo canadense. Nessa perspectiva, as razes do Ensaio sobre a ddiva j se encontram no Ensaio sobre a natureza e a funo do sacrifcio, publicado em 1899 em colaborao com Hen-ri Hubert. Complementar a essa interpretao, gostaria de propor uma outra fonte de leitura, a partir do Esboo de uma teoria geral da magia, publicado em 1903, tambm em colaborao com Henri Hubert, no qual o destaque vai para a dimenso ritual do fazer. Tal nfase leva-nos a armar que a raiz do Manual de etnograa en-contra-se na teoria da magia de 1903/0424.

    Seguindo a sugesto de Giumbelli (1997) e estendendo-a ao conjunto da obra de Mauss, Esboo a uma teoria geral da magia aparece como um texto seminal a partir do qual a obra de Mauss vai sendo construda. como se ele colocasse em prtica a idia que ajudava escla-recer, realizando assim, ao longo de sua obra, trabalho semelhante ao de um mago. Como os xams nas sociedades primitivas que fornecem um mito, uma linguagem a partir da qual os doentes, os iniciados, podem organizar suas an-siedades, suas dores, Mauss era visto por mui-tos de seus alunos como uma espcie de guru (sbio espiritual e intelectual), algum que lhes fornecia (no sentido da ddiva) um sistema de referncia por meio do qual podiam se orien-tar. Segundo Dumont, graas a Mauss, tudo, mesmo o gesto mais insignicante, adquiria um sentido para ns (1985: 181). Talvez isto ajude a explicar um pouco seu poder de sedu-o sobre os alunos. Mas a razo principal pela qual o carisma de Mauss se mostra ecaz no reside somente na personalidade extraordinria do humanista que sabia tudo, diziam seus

    24. Uma leitura de Mauss, de trs para frente, comeando pelos ltimos trabalhos at atingir os estudos iniciais sobre magia, revela no s uma continuidade, mas tambm outras dimenses at ento domesticadas pela viso tradicional e holista, no caso, o individua-lismo e a teoria da ao social.

    alunos, mas, sobretudo, em decorrncia da po-sio que ocupou no campo da antropologia. Como apontou acerca dos agentes da magia (mgicos, feiticeiros, xams), cuja eccia sim-blica deriva dos sistemas de crenas e das posi-es liminares que estes ocupam na sociedade, Mauss tambm parecia assumir uma posio at certo ponto liminar frente dominante so-ciologia de Durkheim quanto ao amplo, aberto e ainda indenido campo da antropologia25.

    dentro deste quadro que podemos enten-der a performance etnogrca de Mauss luz da sua teoria da magia. A compreenso da magia como sistema ritual de crenas (representaes) e prticas (aes) simblicas, cuja eccia con-siste na produo de sentido, est na base da prpria antropologia de Mauss. O que interessa a Mauss , antes, o ato de fazer do que o feito, o ato de dizer do que o dito, o ato de rezar do que a reza, o ato de curar do que a cura. Para ele, vale lembrar, importa observar o que dado e o que dado o que o romano, o ateniense, os franceses fazem quando fazem suas rezas, suas leis etc. Tambm o mgico algum que se faz, pois no h mgico honorrio e inativo. Para ser mgico, necessrio fazer magia... (1974:

    25. Do ponto de vista da sociologia da biograa todo intelectual tpico de sua poca concentra as caracte-rsticas de seu grupo, diz Fournier: Marcel Mauss abrange o que poderamos denominar uma biogra-a coletiva, pois inclui tanto uma apresentao dos membros da equipe de Lanne sociologique, como um estudo das instituies de ensino superior Esco-la Prtica de Estudos Superiores, Collge de France e ainda uma anlise do desenvolvimento de disciplinas cientcas (histria das religies, antropologia, socio-logia) (2003: 3-4). Mas toda biograa traz implcito o risco da hagiograa: a canonizao do Mauss pio-neiro e/ou pai fundador. Ainda, segundo Fournier (1993), Mauss ocupou durante muito tempo uma posio marginal no sistema universitrio francs, o que o colocou ao lado da pesquisa e no do ensino. Este fato, alm de ter relevncia sociolgica para a compreenso da obra de Mauss, parece reforar a di-menso performativa de sua etnologia.

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    116), diz o prprio Mauss. Ele entende a magia como uma idia prtica na qual as aes e as representaes, a performance ritual e o sistema de crenas, no esto separados, mas, ao contr-rio, formam um nico processo simblico tra-duzido em termos de arte de fazer. A magia portadora de uma signicativa qualidade perfor-mativa que parece inscrita nos rituais da prece, das trocas simblicas, do fazer etnograa26.

    Quando ultrapassa o campo estabelecido da sociologia das representaes coletivas, Mauss parece interessado em projetar uma teoria da ao social. Sem romper com as representaes sociais, Mauss pensa as categorias do enten-dimento humano como idias de natureza prtica, construdas historicamente. O estudo sobre A noo de pessoa, a noo de Eu, de 1938, , sem dvida, o melhor exemplo disto. Procurando superar o etnocentrismo dos soci-logos europeus, Mauss d ateno especial s categorias (teorias) nativas. Para ele, as catego-rias fazem a mediao entre o pensamento e a realidade, aproximando-se da proposta de uma antropologia da experincia27. Da a importn-cia que o Manual de etnograa adquire na obra de Mauss. Mesmo que na viso de Dumont as instrues apresentem um carter to geral que assumem um ar de lugar-comum, tais instru-es - por se voltarem para o mundo concreto do fazer cotidiano, das tcnicas corporais, das trocas cerimoniais etc., enm, da investigao exaustiva e microscpica no estilo de uma des-crio densa - so de capital importncia para se entender a proposta de Mauss.

    26. Reforando a antropologia da performance no campo da fala, os inmeros estudos de Malinowski, Lvi-Strauss e Evans-Pritchard enfatizam o poder das pala-vras (oralidade) nos rituais mgicos. Mesmo a escrita tem a sua magia. Vale ressaltar que Mauss d grande ateno s palavras, salienta Fournier (1993).

    27. Basta lembrar a importncia da categoria mana nos sistemas de trocas simblicas. Sobre a proposta da antropologia da experincia, ver Turner e Bruner (1986).

    Se em antropologia social, diz Geertz, o que os praticantes fazem etnograa (1978: 15), ento Mauss no foge regra. Como nas performances verbais dos rituais mgicos, a es-crita de Mauss no s fala da magia, mas pe em prtica um sistema mgico ao fazer socio-logia ou antropologia. As anlises de Dumont (1985) e Oliveira (1979) convergem para este ponto: o primeiro destaca o fato de a Sociolo-gia e a Antropologia na Frana terem atingido seu estgio experimental com Mauss; o se-gundo, arma que o fazer Sociologia me-lhor diramos, Antropologia parece-me ser o seu melhor ensinamento (1979: 23). Mas, en-gana-se quem v no Manual de etnograa uma receita para se fazer antropologia. Resultado de um processo que se desenvolve a partir de suas preocupaes com o campo sociolgico, o Manual funciona como uma espcie de car-tograa do pensamento ou mapa cognitivo sobre o estado da arte da antropologia po-ca de Mauss. Na verdade, o Manual no um manual de etnograa, trata-se antes de uma (meta)etnograa do campo da antropologia, ainda em desenvolvimento. Mauss , talvez, o melhor exemplo de que a etnograa comea e termina em casa e de que o campo, como pensa Cliord, parafraseando Certeau, nunca dado ontologicamente. discursivamente mapeado e praticado corporalmente (1997: 54). Dumont sabia disso, e viu no mestre o signicado profundo da etnograa, algum que, misturando carisma e sabedoria, magia e ddiva, recebera do cu a graa especial de ser um homem de campo sem sair de sua pol-trona (1985: 183). Em suma, Mauss, como Benedict em O Crisntemo e a Espada, desloca a noo convencional de que o campo um lar longe do lar, e, por meio de seu Manual, amplia o sentido do campo etnogrco na medida em que explicita a natureza perform-tica da etnograa.

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    Uma categoria heurstica

    A etnograa, tal como entendida no pensa-mento antropolgico moderno, tem uma hist-ria: o seu signicado no foi sempre o mesmo. Longe de pretender ter abordado todos os pro-blemas colocados pela etnograa ao campo da antropologia e de sua inscrio no conjunto da obra de Mauss, e acreditando como Geertz no nal de Uma descrio densa por uma teo-ria interpretativa da cultura que no h con-cluses a serem apresentadas; h apenas uma discusso a ser sustentada (1978: 39), duas ou trs idias podem ser destacadas neste nal.

    Conferir etnograa a qualidade de cate-goria de pensamento na Antropologia Social e Cultural Moderna signica pens-la como uma categoria heurstica na medida em que permi-te analisar algumas das principais performances narrativas da disciplina antropolgica. Em ou-tras palavras, a etnograa , ela mesma, uma chave metodolgica para se penetrar no cora-o do pensamento e da prtica antropolgica. Se aceito esse pressuposto um mundo de pos-sibilidades, problemas e descobertas, obtidas por meio do trabalho reexivo, abre-se nossa frente denunciando sua qualidade performati-va, inovadora e cognitiva. Como nos lembra Mariza Peirano, a teoria e a histria da antro-pologia se confundem com o fazer etnogr-co, anal, a pesquisa etnogrca o meio pelo qual a teoria antropolgica se desenvolve e se sostica quando desaa os conceitos estabele-cidos pelo senso comum no confronto entre a teoria que o pesquisador leva para o campo e a observao da realidade nativa com a qual se defronta (1995: 135-136). quando tambm passamos a compreender melhor a prpria his-tria da disciplina28.

    28. Peirano lembra ainda a importncia que a compa-rao adquire em todo este processo, relativizando o prprio relativismo ingnuo e/ou ideolgico que parece contaminar os detratores da etnograa.

    Com efeito, a etnograa no representa a soluo de todos os problemas da antropologia, mas tambm no consiste na causa de todos os seus males. preciso estar atento para se evitar cair nas armadilhas do que Eunice Durham, avaliando a produo antropolgica no espao urbano no Brasil, chamou de deslize semn-tico, isto , quando alguns conceitos como classe, ideologia, pessoa, ethos, identi-dade etc, sofrem um processo de despolitiza-o, perdendo sua vinculao terica e poder de crtica cultural. A etnograa no est imune a este risco. No entanto, creio que parte dos motivos que sugerem o perigo de deslize se-mntico (eminentemente relativista), deve-se sua prpria qualidade performativa29. Anal, a etnograa, como um gnero de performan-ce narrativa, realiza a mediao entre o campo e a escrita, a teoria e a prtica, o pensamento antropolgico e a experincia individual do etngrafo. De certa forma, ela fornece os os narrativos que permitem fazer a unio dos ex-tremos no campo antropolgico, embora esta se d de forma reexiva, incompleta e dramati-camente densa.

    The ethnography as category of thought in modern anthropology

    abstract e innumerous possibilities and issues, put forward by ethnography to epistemo-logical reection in anthropology, makes it an im-portant category of thought, capable of revealing the meaning of anthropologists works, i.e., their making. erefore, ethnography can be seen as a genre of performance whose meaning surpasses the frontiers of native culture reaching the cultural eld

    29. Tambm Almeida (2004) chama ateno para a ob-jeticao da etnograa em tempos atuais na medida em que este processo de reicao denuncia antes os usos subjetivistas ao qual est exposta do que a sua objetividade metodolgica.

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    of the anthropologist. Performance, in this study, represents a mode of social auto-reexivity in which the anthropologist, by making use of narrative, searches to enlarge the eld of anthropology. e goal of this text is to point out a few moments in this process of ethnographic reexivity, pointing out the writings of Marcel Mauss (1872-1950) as a privileged example.

    keywords Ethnography. Performance. Nar-rative. Marcel Mauss

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    autor Gilmar Rocha Professor do Departamento de Cincias Sociais / PUC - Minas Doutor em Cincias Humanas (Antropologia Cultural) / UFRJ

    Recebido em 06/03/2006

    Aceito para publicao em 14/07/06

    cadernos de campo, So Paulo, n. 14/15, p. 99-114, 2006