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BURKE, Peter. Unidade e variedade na história cultural. ________. Variedades de história cultural. Trad. Aldo Porto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 231-267. [233] Atravessamos hoje um período da chamada “virada cultural” no estudo da humanidade e sociedade. “Estudos culturais” florescem agora em muitas instituições educacionais, sobretudo no mundo de língua inglesa. 1 Muitos estudiosos que há mais ou menos uma década se descreviam como críticos literários, historiadores da arte ou historiadores da ciência hoje preferem definir-se como historiadores culturais, trabalhando em “cultura visual”, “a cultura da ciência” e assim por diante. “Cientistas” políticos e historiadores políticos pesquisam “cultura política”, enquanto economistas e historiadores econômicos desviaram a atenção da produção para o consumo, e assim para desejos e necessidades moldados em termos culturais. Na verdade, na Grã-Bretanha contemporânea e em outras partes, a “cultura” se tornou um termo cotidiano que as pessoas comuns utilizam quando falam de sua comunidade ou estilo de vida. 2 Apesar disso, a história cultural ainda não está estabelecida de maneira muito sólida, pelo menos no sentido institucional. Pensando bem, não é fácil responder à pergunta: o que é cultura? Parece ser tão difícil definir o termo quanto prescindir dele. Como vimos no Capítulo 1, muitas variedades de “história cultural” vêm sendo praticadas em diferentes partes do mundo desde fins do século XVIII, quando se cunhou originalmente o termo na Alemanha (p. 14). Nos últimos anos, a história cultural se fragmentou ainda mais que antes. A disciplina da história está de dividindo em cada vez mais subdisciplinas, e [234] a maioria dos estudiosos prefere contribuir para a história de “setores” como ciência, arte, literatura, educação ou a própria historiografia, em vez de escrever sobre culturas totais. De qualquer modo, a natureza, ou pelo menos a definição de história cultural, é cada vez mais questionada. O momento parece propício para fazer um balanço e tentar estabelecer um equilíbrio. Começo aqui com um breve relato da história cultural tradicional, passo para a chamada “nova” 1 Hall (1980); Turner (1990); Storey (1996). 2 Baumann (1996), 4, 34.

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BURKE, Peter. Unidade e variedade na história cultural. ________. Variedades de história cultural. Trad. Aldo Porto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 231-267.

[233]

Atravessamos hoje um período da chamada “virada cultural” no estudo da humanidade e sociedade. “Estudos culturais” florescem agora em muitas instituições educacionais, sobretudo no mundo de língua inglesa.1 Muitos estudiosos que há mais ou menos uma década se descreviam como críticos literários, historiadores da arte ou historiadores da ciência hoje preferem definir-se como historiadores culturais, trabalhando em “cultura visual”, “a cultura da ciência” e assim por diante. “Cientistas” políticos e historiadores políticos pesquisam “cultura política”, enquanto economistas e historiadores econômicos desviaram a atenção da produção para o consumo, e assim para desejos e necessidades moldados em termos culturais. Na verdade, na Grã-Bretanha contemporânea e em outras partes, a “cultura” se tornou um termo cotidiano que as pessoas comuns utilizam quando falam de sua comunidade ou estilo de vida.2

Apesar disso, a história cultural ainda não está estabelecida de maneira muito sólida, pelo menos no sentido institucional. Pensando bem, não é fácil responder à pergunta: o que é cultura? Parece ser tão difícil definir o termo quanto prescindir dele. Como vimos no Capítulo 1, muitas variedades de “história cultural” vêm sendo praticadas em diferentes partes do mundo desde fins do século XVIII, quando se cunhou originalmente o termo na Alemanha (p. 14). Nos últimos anos, a história cultural se fragmentou ainda mais que antes. A disciplina da história está de dividindo em cada vez mais subdisciplinas, e [234] a maioria dos estudiosos prefere contribuir para a história de “setores” como ciência, arte, literatura, educação ou a própria historiografia, em vez de escrever sobre culturas totais. De qualquer modo, a natureza, ou pelo menos a definição de história cultural, é cada vez mais questionada.

O momento parece propício para fazer um balanço e tentar estabelecer um equilíbrio. Começo aqui com um breve relato da história cultural tradicional, passo para a chamada “nova” história cultural, definida em contraste com a tradição, e termino discutindo o que se faz hoje, se devemos optar pela nova, retornar à antiga ou tentar fazer algum tipo de síntese. Devo dizer de uma vez por todas que não reivindico qualquer competência na totalidade desse enorme “campo”. Como outros historiadores, minha tendência é trabalhar em um determinado período (séculos XVI e XVII) e em uma região específica (Europa Ocidental, sobretudo a Itália), como terão mostrado os estudos de caso detalhados nos primeiros capítulos. Neste final, contudo, vou transpor esses limites disciplinares espaciais e temporais, na tentativa de ver a história cultural (apesar de suas divisões internas) como um todo.

HISTÓRIA CULTURAL CLÁSSICA E SUAS CRÍTICAS

Em meados do século XIX, quanto Matthew Arnold fazia suas palestras sobre “Cultura e anarquia”, e Jacob Burckhardt escria sua Kultur der Renaissance in Italien, a idéia de cultura parecia praticamente prescindir de explicações. A situação não era muito diferente em 1926, quando Johan Huizinga fez sua famosa palestra, em Utrecht, sobre “A tarefa da história cultural”.

Para os três historiadores, “cultura” significava arte, literatura e idéias “suaves e leves”, como a descreveu Arnold, ou, na formulação mais precisa, embora mais prosaica, de Huizinga, “figuras, motivos, [235] temas, símbolos, sentimentos”.3 A literatura, idéias, 1 Hall (1980); Turner (1990); Storey (1996).2 Baumann (1996), 4, 34.3 Huizinga (1929); cf. Gilbert (1990), 46-80.

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símbolos, sentimentos, e assim por diante, eram em essência os encontrados na tradição ocidental, dos gregos em diante, entre as elites com acesso à educação formal. Em suma, cultura era algo que as sociedades tinham (ou, mais exatamente, que alguns grupos em algumas sociedades tinham), embora faltasse a outros.

Trata-se da concepção de cultura de “teatro de ópera”, como foi rotulada por um antropólogo americano.4 Essa concepção é subjacente ao que se pode chamar de variedade “clássica” da histórica cultural, no duplo sentido de que enfatiza os clássicos, ou o cânone, de grandes obras e também fundamenta muitos clássicos históricos, em particular Reinassance (1860), de Jacob Burckhardt, e Waning of the Middle Ages (1919), Johan Huizinga. O estudo de Huizinga é de muitas maneiras uma tentativa tanto de imitar quando de superar o de Buckhardt. A diferença entre essas obras e estudos especializados de história da arte, literatura, filosofia, música e outros é sua generalidade, o interesse por todas as artes e a relação de umas com as outras e com o “espírito do tempo”.

Os estudos de Burckhardt e Huizinga – para não mencionar outras destacadas obras dos mesmos autores – são livros maravilhosos de grandes historiadores. Os dois escritores têm o dom de evocar o passado e também mostrar relações entre diferentes atividades. Apesar disso, eu diria que sua abordagem não pode ou não deve ser o modelo para a história cultural de hoje, porque não consegue lidar de maneira satisfatória com algumas dificuldades. Os próprio Burckhardt e Huizinga, ao contrário, de seus seguidores, tinham pelo menos vez por outra consciência dessas dificuldades, embora na maior parte do tempo o que praticassem fosse a abordagem clássica. Essa tradição clássica da história cultural expõe-se a pelo menos cinco objeções sérias.

1) [236] Paira no ar, no sentido de ignorar a sociedade (ou pelo menos dar pouca ênfase a ela) – a infra-estrutura econômica, a estrutura política e social e assim por diante. O próprio Burckhardt admitiu na velhice que seu livro não dedicara a devida atenção aos fundamentos econômicos do Renascimento, e Huizinga discutia a tardia preocupação medieval com a morte sem relacioná-la às pestes que assolaram a Europa de 1348 em diante. Essa crítica foi enfatizada pelos primeiros estudiosos a criticar o modelo clássico, os marxistas, ou mais exatamente aquela fração dos marxistas que levavam a cultura a sério.

Nas décadas de 1940 e 1950, três refugiados da Europa central na Inglaterra, Frederick Antal, Francis Klingender e Arnold Hauser, apresentaram uma história cultural alternativa, uma “história social” da arte e literatura.5 Nas décadas de 1950 e 1960, os estudos sobre cultura e sociedade de Raymond Williams, Edward Thompson e outros continuaram ou refizeram essa tradição.6 Thompson, por exemplo, criticou a localização da cultura popular no que chamou de “ar rarefeito” dos sentidos, atitudes e valores, e tentou situá-la “em seu próprio contexto material”, “um ambiente funcional de exploração e resistência à exploração”.7

A história cultural alternativa apresentada nessa tradição teve muito a dizer sobre a relação do que Marx chamou de “superestrutura” cultural com sua “base” econômica, embora Thompson e Williams fossem ou se tornassem desfavoráveis a essa metáfora.8

Também demonstraram preocupação com o que sociólogos como Max Weber chamaram de “mensageiros” da cultura. Consideravam a cultura um sistema de mensagens em que é importante identificar “quem diz o que a quem”. Uma visão, a propósito, que não se limitava nem se limita aos marxistas.

4 Wagner (1975), 21.5 Antal (1947); Klingender (1947); Hauser (1951).6 Williams (1958, 1961); Thompson (1963).7 Thompson (1991), 7.8 Williams (1977).

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[237] Na antropologia social, por exemplo, os defensores do que se conhece como “teoria padrão” da cultura, uma abordagem morfológica não diferente da (digamos) de Huizinga, foram criticados pelos defensores de uma teoria da cultura funcional. Um dos líderes da escola funcional, Bronislaw Malinowski, tomou o exemplo de um bastão que se poderia usar para escavar, impulsionar, andar ou lutar. “Em cada caso desses usos específicos, o bastão é encaixado em um contexto cultural diferente; isto é, empregado para diferentes usos, cercado por diferentes idéias, dotado de diferente valor cultural e, como regra geral, designado por um diferente nome.”9

2) Uma segunda crítica importante à história cultural é sua dependência do postulado de unidade ou consenso cultural. Alguns escritores tradicionais gostavam de usar o termo hegeliano “espírito do tempo”, Zeitgeist, mas, mesmo quando não se usava essa expressão, a suposição essencial permanecia. Assim Burckhardt escreveu sobre “a cultura do Renascimento”, enquanto Huizinga certa vez aconselhou os historiadores a procurarem “a qualidade que une todos os produtos culturais de um período e os torna homogêneos”.10

De maneira semelhante, Paul Hazard intitulou The Crisis of the European Mind (1935) seu estudo sobre os intelectuais e fins do século XVII, e Perry Miller chamou sua historia das idéias acadêmicas harvardianas ou aproximadas de The New England Mind (1939). Arnold Toynbee tomou a idéia de unidade em termos ainda mais literais quando organizou seu comparativo Study of History (1934-61) em torno de 26 “civilizações” distintas. A mesma idéia ou suposição fundamenta (na verdade, escora) os maciços volumes de Declínio do Ocidente (1918-22), de Oswald Spengler.

O problema é que esse postulado de unidade cultural é extremamente difícil de justificar. Mais uma vez, foram os marxistas que tomaram a liderança em criticá-lo. Thompson, [238] por exemplo, observou que “o próprio termo ‘cultura’, com sua confortável evocação de consenso, pode servir para desviar a atenção das contradições sociais e culturais”.11 Empregou-se o mesmo argumento contra os antropólogos que trabalhavam na tradição de Émile Durkheim. De modo bastante irônico, críticas semelhantes foram dirigidas a Ernst Gombrich contra o historiador marxista Arnold Hause, assim como contra Burckhardt, Huizinga e o historiador de arte Erwin Panofsky pelo que ele chama de suposição hegeliana de um “espírito do tempo” (p. 36), brilhantemente ilustrada no elegante ensaio de Panofsky, Gothic Architecture and Scholasticism (1951).12

O problema é que esse consenso ou homogeneidade cultural é muito difícil de solucionar. O movimento que chamamos de Renascimento, por exemplo, ocorreu na cultura de elite, e não é provável que tenha sensibilizado a maioria camponesa da população. Mesmo na elite, havia nessa época divisões culturais. A arte gótica tradicional, assim como o novo estilo renascentista, continuou a atrair patronos. Antal chegou mesmo a afirmar que a arte ricamente detalhada e decorativa de Gentile de Fabriano expressava a visão de mundo da nobreza feudal, enquanto a mais simples e realista de Masaccio manifestava a da burguesia florentina. Esse contraste entre dois estilos e duas classes é muito simples, mas a questão da existência de distinções na cultura das classes superiores na Florença do século XV merece ser levada a sério.

De maneira semelhante, a cultura popular no início da Europa moderna, por exemplo, não apenas variava de uma região para outra, mas também assumia diferentes formas em cidades e aldeias, ou entre mulheres e homens. Mesmo a cultura de um indivíduo talvez esteja longe de ser homogênea. As classes superiores na Europa moderna podem ser

9 Malinowski (1931); cf. Singer (1968).10 Huizinga (1929), 76.11 Thompson (1991), 6.12 Gombrich (1969).

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descritas como “biculturais”, no sentido de que participavam plena[239]mente da cultura popular, além de ter uma cultura própria que as pessoas comuns não partilhavam.13 Mais uma vez, no Japão do século XIX, alguns homens de classe superior, pelo menos, começaram a viver o que se chamou de “vida dupla”, ao mesmo tempo ocidental e tradicional, consumindo dois tipos de comida, usando dois tipos de roupas, lendo dois tipos de livros e assim por diante.14

3) Uma idéia essencial na história da cultura clássica, extraída de Igreja, é a de “tradição”, sendo a idéia básica de transmitir objetos, práticas e valores de geração para geração. O oposto complementar da tradição era a idéia de “recepção”, a recepção da lei romana, por exemplo, ou a do Renascimento fora da Itália. Em todos os casos, a suposição generalizada era de que o que se recebia era o mesmo que fora dado: uma “herança” o “legado” cultural (como nos títulos de uma outrora famosa série de estudos O legado da Grécia, O legado de Roma, e assim por diante).

Essa suposição foi solapada pelo alemão Aby Warburg e seus seguidores (pioneiros na década de 1920 dos “estudos culturais” interdisciplinares, ou Kulturwissenschaft), em uma série de notáveis monografias sobre a tradição clássica na Idade Média e no Renascimento. Observaram, por exemplo, que os deuses pagãos só “sobreviveram” até os tempos medievais ao preço de algumas admiráveis transformações: Mercúrio, por exemplo, era às vezes representado como um anjo e com mais freqüência como um bispo.15 Warburg interessou-se, em particular, por elementos da tradição que chamou de “esquemas” ou “fórmulas”, sejam visuais ou verbais, que persistiam com o passar dos séculos, embora seus usos e aplicações variassem.16. A identificação de estereótipos, fórmulas, lugares-comuns e temas recorrentes em textos, imagens e apresentações e o estu[240]do de sua transformação se tornaram parte importante da prática da história cultural, como testemunha a recente obra sobre memória e viagem discutida anteriormente (Capítulos 3 e 6).

A tradição, como disse um especialista em Índia antiga, está sujeita a um conflito interno entre os princípios transmitidos de uma geração a outra e as situações modificadas às quais devem ser aplicados.17 Colocar a questão de outra maneira, seguir a tradição ao pé da letra, provavelmente significa divergir de seu espírito. Não surpreende que – como no caso dos discípulos de Confúcio (digamos), ou Lutero, os seguidores tantas vezes divirjam dos fundadores. A fachada de tradição talvez mascare a inovação.18 Como já vimos, pode-se levantar essa questão sobre a própria historiografia. Ranke não era nem um pouco mais rankiano, ou Burckhardt burckhardtiano, do que Marx marxista.

A idéia de tradição foi submetida a uma crítica ainda mais devastadora por Eric Hobsbawn, que afirma que várias práticas que consideramos muito antigas foram, na verdade, inventadas há não muito tempo, muitas delas (no caso da Europa) entre 1870 e 1914, em resposta à mudança social e às necessidades de Estados nacionais cada vez mais centralizados.19 Pode-se sugerir que a distinção entre tradições inventadas e “genuínas” de Hobsbawn é demasiado aguda. Certa medida de adaptação consciente ou inconsciente às novas circunstâncias é uma característica constante da transmissão de tradição, como demonstra, de maneira mais drástica que a maioria, o exemplo da África ocidental de Goody (p. 87). Apesar disso, o desafio de Hobsbawn aos historiadores culturais exige uma resposta.

13 Burke (1978), 23-64.14 Witte (1928); Seidensticker (1983).15 Warburg (1932); Seznec (1940).16 Warburg (1932), vol. 1, 3-58, 195-200.17 Heesterman (1985), 10-25.18 Schwartz (1959).19 Hobsbawn e Ranger (1983), 263-307.

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Em vista dessas ambigüidades, pode-se perguntar se os historiadores não se sairiam melhor se abandonassem por completo a idéia de tradição. Em minha opinião, é praticamente impossível escrever história cultural sem tradição, contudo está [241] mais do que na hora de se abandonar o que se pode chamar de noção tradicional de tradição, modificando-a para levar em consideração a adaptação, assim como o reconhecimento, e recorrendo às idéias da teoria da “recepção”, discutidas abaixo.

4) Uma quarta crítica à história cultural clássica é que a idéia de cultura implícita, nessa abordagem, é estreita demais. Em primeiro lugar, equipara cultura com alta cultura. Na última geração, em particular, os historiadores fizeram muito para restabelecer o equilíbrio e recuperar a história da cultura das pessoas comuns. Contudo, mesmo os estudos sobre cultura popular tratam muitas vezes a cultura como uma série de “obras”, como exemplos de “canção folclórica”, “arte popular” e assim por diante. Por outro lado, os antropólogos têm tradicionalmente usado o termo “cultura” de forma muito mais generalizada, para referir-se a atitudes e valores de uma determinada sociedade e sua expressão e personificação em “representações coletivas” (como dizia Durkheim) ou “práticas”, termo que passou a ser associado a teóricos mais recentes, como Pierre Bourdieu e Michel de Certeau. Ex-críticos literários, como Raymond Williams e Richard Hoggart, que fundaram os “estudos culturais” britânicos, se deslocaram na mesma direção, dos textos literários para textos populares e de textos populares para estilos de vida.

5) Também se pode criticar a tradição clássica da história cultural com base em que ela não é mais apropriada ou adequada para nossa época. Embora o passado não mude, a história precisa ser reescrita a cada geração, para que o passado continue a ser inteligível para um presente modificado. A história cultural foi escrita pelas elites européias a respeito de si mesmas. Hoje, por outro lado, o apelo da história cultural é mais amplo e diversificado, em termos geográficos e sociais. Em alguns países, associa-se esse apelo cada vez maior ao surgimento de cursos multidisciplinares sob a égide de “estudos culturais”.

A história cultural clássica enfatizava um cânone de grandes obras na tradição européia, mas os historiadores culturais de fins do século XX trabalham em uma era de descanonização. A [242] crítica bem divulgada do chamado “cânone” de grandes livros nos Estados Unidos e s “guerras decorrentes” são apenas parte do que se rotulou “multiculturalismo”.20 Ocidentais cultos, assim como intelectuais do Terceiro Mundo, sentem-se cada vez menos à vontade com a idéia de uma única “grande tradição”, com um monopólio de legitimidade cultural. Não nos é mais possível identificar “cultura” com nossas próprias tradições.

Vivemos em uma era de generalizado desconforto, se não de rejeição, à chamada “grande narrativa” do desenvolvimento cultural ocidental – os gregos, os romanos, o Renascimento, as Descobertas, a Revolução Científica, o Iluminismo e assim por diante, uma narrativa que pode ser usada para legitimar direitos à superioridade por parte das elites ocidentais.21 Há desconforto semelhante com a idéia de um cânone literário, intelectual ou artístico, ou pelo menos com a seleção específica de textos ou imagens que eram apresentados como “os” Grandes Livros, Mestres Clássicos ou Antigos. Hoje, o processo de “canonização” e os conflitos sociais subjacentes se tornaram objeto de estudo de historiadores culturais, porém mais pela luz que projeta sobre idéias e suposições dos canonizadores do que dos canonizados.22

O que deve ser feito? Para declarar minha própria opinião sobre uma questão cujo consenso parece, na melhor das hipóteses, remoto, e na pior, impossível, não devemos abandonar o estudo do Renascimento e de outros movimentos na “alta” cultura do

20 Bakhtin (1993).21 Lyotard (1979); Bouwsma (1990), 348-65.22 Gorak (1991); Javitch (1991).

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Ocidente, que ainda tem muito a oferecer a muitas pessoas hoje, apesar da distância cultural cada vez maior entre as idéias e afirmações de fins do século XX e as dos públicos originais. Na verdade, eu gostaria de opinar que os cursos de “estudos culturais” se enriqueceriam muito se abrissem espaço para movimentos desse tipo junto com a cultura popular [243] da época. Contudo, os historiadores deveriam escrever sobre movimentos de uma maneira que reconheça o valor de outras tradições culturais em vez de encará-los como barbarismo ou ausência de cultura.

HISTÓRIA ANTROPOLÓGICA

Os leitores talvez estejam se perguntando se a moral das críticas relacionadas acima é o abandono total de toda a história cultural. Talvez por isso o movimento de estudos culturais – apesar do exemplo de um de seus líderes, Raymond Williams – tenha dedicado tão pouca atenção à história (outro motivo pode ser a posição marginal da história cultural na Grã-Bretanha). Mas também se pode afirmar que a história cultural se tornou ainda mais necessária do que nunca em nossa era de fragmentação, especialização e relativismo. Provavelmente, é por isso que especialistas em outras disciplinas, da crítica literária à sociologia, se têm voltado nessa direção. Parece que estamos passando por uma redescoberta da importância dos símbolos na história, assim como pelo que costumava ser chamado de “antropologia simbólica”.

Outra reação às críticas pode ser a prática de um diferente tipo de história cultural. Como vimos, muitos historiadores e críticos marxistas tentaram fazer isso. Já se mencionou a obra de Hauser, Antal, Thompson, Hobsbawn e Williams, e não seria difícil alongar a lista para incluir Georg Lukács, Lucien Goldmann e outros. Pode-se descrever a obra desses indivíduos como um estilo alternativo de história cultural. Mas continua a existir estranheza em relação à idéia de uma tradição de história cultural marxista. Seguir Marx era em geral afirmar que a cultura era simplesmente a “superestrutura”, a cobertura de açúcar no bolo da história. Os marxistas interessados na história da cultura ficavam em uma posição marginal que os deixava expostos a ataques dos dois lados, dos colegas marxistas e dos colegas historiadores da cultura. A acolhida a The Making of the English [244] Working Class, de Edward Thompson, exemplifica esse ponto com suficiente clareza.

Um novo estilo de história cultural, quer o chamemos de segundo ou terceiro estilo, surgiu de fato na última geração, graças, em parte, a ex-marxistas, ou pelo menos a estudiosos que outrora consideraram atraentes alguns aspectos do marxismo. Essa abordagem é às vezes chamada de “nova história cultural”.23 Como a novidade é um bem logo diminuído, talvez fosse mais sensato descrever o novo estilo de outra maneira. Uma possibilidade é falar em variedade de história “antropológica”, pois muitos de seus praticantes (o presente autor entre eles) confessariam que aprenderam demais com os antropólogos. Também aprenderam muito com os críticos literários, como os “novos historicistas” dos Estados Unidos, que adaptaram seus métodos de “leitura rigorosa” ao estudo de textos não-literários, como documentos oficiais, e na verdade ao estudo de “textos” entres aspas, dos rituais às imagens.24 Pensando bem, alguns antropólogos aprenderam com os críticos literários, e vice-versa. A semiótica, estudo dos sinais de todos os tipos, de poemas e pinturas a comida e roupas, foi projeto conjunto de estudiosos de língua e literatura, como Roman Jakobson e Roland Barthes, e antropólogos como Claude Lévi-Straus. Seu interesse por estruturas de sentido imutáveis e “profundas” diminuiu o apelo (para falar em termos mais brandos) para historiadores, sobretudo a princípio, mas no decorrer da última geração, aproximadamente, a contribuição da semiótica para a renovação da história cultural (a idéia de uma sala ou uma refeição como

23 Hunt (1989); cf. Chartier (1988).24 Greenblatt (1998a, 1988b).

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sistema de símbolos, a consciência de oposições e inversões, e assim por diante) foi se tornando cada vez mais visível.

Apesar das complexas origens do movimento, “história antropológica” talvez seja um rótulo conveniente para ela. É bastante claro que essa história – como todo estilo de história – é produto de nossa época, neste caso de uma época de choques culturais, multiculturalis[245]mos e assim por diante. Por isso mesmo tem algo a oferecer ao estudo do presente, assim como do passado, considerando-se as recentes tendências da perspectiva a longo prazo.

Aby Warburg e Johan Huizinga já haviam se interessado pela antropologia no início do século, mas hoje sua influência entre os historiadores é muito mais penetrante do que na sua época. Um grupo substancial de estudiosos atuais considera o passado como um país estrangeiro e, como fazem os antropólogos, julgam sua tarefa interpretar a língua das culturas “deles”, em termos literais e metafóricos. Foi o antropólogo britânico Edward Evans-Pritchard que concebeu sua disciplina como uma espécie de tradução de conceitos da cultura que era estudada para os da cultura de quem estudava.25 Para empregar a distinção hoje famosa feita pelo antropólogo lingüista Kenneth Pike, é necessário mover-se para a frente e para trás entre o vocabulário “êmico” (pertencente a uma unidade significativa que funciona em contraste com outras unidades em uma língua ou outro sistema de comportamento) dos nativos de uma cultura, os íntimos, e os conceitos “éticos”, daqueles que a estudam.

A história cultural também é uma tradução cultural da linguagem do passado para a do presente, dos conceitos da época estudada para os de historiadores e seus leitores. Seu objetivo é tornar a “alteridade” do passado ao mesmo tempo visível e inteligível.26 Isso não significa que os historiadores devem tratar o passado como completamente estranho. Os perigos de tratar outras culturas dessa forma já foram mostrados com muita clareza em debates sobre “orientalismo”, em outras palavras, a visão (ou visões) ocidental do Oriente (ou orientais).27

Em vez de pensar em termos de uma oposição binária entre Eu e o Outro, como fizeram tantas vezes os participantes de encontros cul[246]turais, talvez seja mais esclarecedor tentar pensar em termos de níveis de distância cultural. Poderíamos tentar adquirir uma visão dupla, ver as pessoas no passado como diferentes de nós (para evitar a atribuição anacrônica de nossos valores a elas), mas ao mesmo tempo como iguais a nós em sua humanidade fundamental.

As diferenças entre o modelo antropológico de história cultural corrente e seus antecessores, clássicos e marxistas, poderiam ser resumidas em quatro observações.

A. Em primeiro lugar, abandonou-se o tradicional contraste entre sociedades com cultura e sem cultura. O declínio do Império Romano, por exemplo, não deve ser considerado a derrota da “cultura” pelo “barbarismo”, mas um choque de culturas. Os ostrogodos, visigodos, vândalos e outros grupos tinham suas próprias culturas (valores, tradições, práticas, representações e assim por diante). Por mais paradoxal que possa parecer a expressão houve uma “civilização dos bárbaros”. A suposição baseada nesse terceiro modelo é um relativismo cultural tão estranho para os marxistas quanto teria sido para Burckhardt e Huizinga. Como os antropólogos, os novos historiadores culturais falam em “culturas” no plural. Não pressupõem que todas as culturas sejam iguais em todos os aspectos, mas se abstêm de juízos de valor sobre a superioridade de algumas em relação a outras, julgamentos feitos inevitavelmente do ponto do vista da própria cultura do historiador, e que atuam como tantos obstáculos à compreensão.

25 Beidelman (1971); Lowenthal (1985); Pálson (1993).26 Darnton (1984), 4; Pallares-Burke (1996).27 Said (1978).

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B. Em segundo lugar, tem-se redefinido cultura, no sentido malinowskiano, como se abrangesse “artefatos herdados, bens, processos técnicos, idéias, hábitos e valores”, ou geertziano, como “as dimensões simbólicas da ação social”.28 Em outras palavras, estendeu-se o sentido em torno do termo para abranger uma variedade muito mais ampla de atividades do que antes – não apenas a arte, mas a cultura material, [247] não apenas o escrito, mas o oral, não apenas o drama, mas o ritual, não apenas a filosofia, mas as mentalidades das pessoas comuns. A vida cotidiana ou a “cultura cotidiana’ é fundamental para essa abordagem, sobretudo as “regras” ou convenções subjacentes à vida cotidiana, o que Bourdieu chama de “teoria da prática” e o semiólogo Jury Lotman, “poética do comportamento cotidiano”.29 É claro que o processo de aprender como ser um monge medieval, uma nobre do Renascimento e um camponês do século XIX envolvia mais do que regras internalizadas. Como sugere Bourdieu, o processo de aprendizagem inclui um padrão mais flexível de respostas a situações que – como os filósofos escolásticos – ele chama de “habitus”.30 Portanto, talvez fosse mais correto usar o termo “princípio” em vez de “regra”.

Nesse sentido mais amplo, invoca-se agora a cultura para compreender as mudanças econômicas ou políticas que antes se analisavam de maneira mais estreita, interna. Um historiador do declínio do desempenho econômico britânico entre 1850 e 1980, por exemplo, o explicou “pelo domínio do espírito industrial”, associado ao afidalgamento de industriais e por fim à revolução (ou, como a chama o autor, “contra-revolução”) de valores.31 De sua parte, os historiadores políticos utilizam cada vez mais a idéia de “cultura política” para referir-se a atitudes, valores e práticas transmitidos como parte do processo de “socializar” crianças e admitidos como certos daí em diante.

Um impressionante exemplo nessa direção é o falecido F. S. L. Lyons, um historiador político que intitulou seu último livro Culture and Anarchy in Ireland 189-1939. o objetivo da forçada referência a Mathew Arnold foi a convicção de Lyons de que só se pode entender a política irlandesa naquele período levando em conta “o fato de que pelo menos quatro culturas, durante os últimos três séculos, se [148] vêm empurrando umas às outras na ilha”. A dominante cultura inglesa coexistia e se chocava com as culturas galesa, protestante de Ulster e anglo-irlandesa.32

C. Em terceiro lugar, à idéia de “tradição”, essencial à antiga história cultural, juntou-se um grupo de opções. Uma delas é o conceito de “reprodução” cultural, lançado na década de 1970 pelos teóricos Louis Althusser e Pierre Bourdieu.33 Uma vantagem desse conceito é sugerir que as tradições persistem automaticamente, por inércia. Ao contrário, como nos lembra a história da educação, é necessário um grande esforço para transmiti-los de geração a geração. A desvantagem do termo é que a idéia de “reprodução” sugere uma copia exata ou mesmo mecânica, uma sugestão que a história da educação está longe de confirmar.34 A idéia de reprodução, como a idéia de tradição, necessita de um contrapeso, como a idéia de recepção.

Os chamados “teóricos da recepção”, entre os quais incluo o jesuíta antropólogo-historiador Michel de Certeau, substituíram a tradicional suposição de recepção passiva pela nova adaptação criativa. Afirmam que “a característica essencial da transmissão cultural é que tudo o que se transmite muda”35. Adaptando a doutrina de alguns padres da igreja, que recomendavam aos cristãos que “saqueassem” a cultura pagã da mesma maneira que os

28 Malinowski (1931), 621; Geertz (1973), 30.29 Bourdieu (1972); Lotman (1984); Frykman e Löfgren (1996).30 Bourdieu (1972), 78-87.31 Wiener (1981).32 Lyons (1979).33 Althusser (1971); Bourdieu e Passeron (1970).34 Williams (1981), 181-205.35 Dresden (1975), 119ff.

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israelitas saquearam os tesouros dos egípcios, esses teóricos enfatizam não a transmissão mas a “apropriação”. Como os filósofos escolásticos medievais, afirmam que “tudo é recebido, e recebido segundo a maneira do recebedor” (“Quidquid recipitu, ad modum recipientis recipitur”).36 A posição deles pressupõe uma crítica à semiótica, ou mais exatamente uma historicização da semiótica, pois nega a possibilidade de encontrar sentidos fixos nos artefatos culturais.

[249] Em suma, a ênfase se transferiu do doador para o receptor, com base em que o que é recebido é sempre diferente do que foi originalmente transmitido, porque os receptores, de maneira consciente ou inconsciente, interpretam e adaptam as idéias, costumes, imagens e tudo que lhes é oferecido. A história cultural do Japão, por exemplo, oferece muitos exemplos do que se costumava chamar de “imitação”, primeiro da China e mais recentemente do Ocidente. Essa imitação muitas vezes é tão criativa que um termo mais adequado para isso poderia ser “tradução cultural”. Assim, o budismo Ch’na foi traduzido para Zen, e o romance ocidental domesticado por Ntsume Soseki, que afirmava ter escrito uma de suas histórias “à maneira de um haicai”.

Pode-se ligar a idéia de recepção à dos esquemas, definida mais como uma estrutura mental do que no sentido dado por Warbur, de um topos visual ou verbal. Um esquema pode moldar as atitudes para com o novo, como no caso dos viajantes britânicos estudados no Capítulo 6. O esquema, nesse sentido, às vezes é descrito como uma “grade”, uma tela ou filtro, que permite a entrada de novos elementos mas exclui outros, assegurando desse modo que as mensagens recebidas sejam em alguns aspectos diferentes da mensagens originalmente enviadas.37

D. A quarta e última questão é o inverso das suposições sobre a relação entre cultura e sociedade implícita na crítica marxista da história cultura clássica. Tanto os historiadores culturais clássicos quanto os teóricos culturais clássicos têm reagido contra a idéia da “superestrutura”. Muitos deles acreditam que a cultura consegue resistir às pressões sociais, ou mesmo que molda a realidade social. Daí o interesse cada vez maior pela história das “representações”, e em particular pela história da “construção”, “invenção” ou “constituição” do que costumava, em geral, ser considerado “fatos” sociais, como classe social, nação ou gênero. Vários livros recentes trazem a palavra [250] “inventar” no título, seja relacionada à invenção da Argentina, da Escócia, dos povos, ou – como vimos – da tradição.38

Associada ao interesse pela invenção está a história da imaginação coletiva, l’imaginaire social, uma nova ênfase, embora não um novo tópico, que se cristalizou na França, em parte como resposta à celebre crítica da Michel Foucault aos historiadores pelo que ele chamou de idéia “empobrecida” do real que excluía o que era imaginado. Essa abordagem foi na verdade lançada por dois estudos da Idade Média que surgiram mais ou menos na mesma época, um tratando deste mundo e o outro do seguinte – The Three Orders (1979), de Georges Duby, e Birth of Purgatory (1981), de Jacques Le Goff. A história da imaginação desenvolveu-se a partir da história das mentalidades, que discuti em ensaio de minha autoria intitulado “Forças e Fraquezas da História das Mentalidades”, em History of European Ideas 7.* Contudo, seus praticantes dedicam mais atenção às fontes visuais, e também à influência dos esquemas tradicionais sobre a percepção.

Historiadores já apresentavam estudos sobre e percepção na década de 1950: imagens do Novo Mundo, por exemplo, como uma “terra virgem”, ou do Brasil como um paraíso terrestre, ou o sul do Pacífico como o país natal de selvagens nobre e ignóbeis.39 Na verdade, Burckhardt e Huizinga já estavam conscientes de que essa percepção tinha uma história. 36 Jauss (1974); Certeau (1980); cf. Ricoeur (1981), 182-93.37 Foucault (1971), 11; Ginzburg (1976).38 Hobsbawn e Ranger (1983); Morgan (1988); Pittock (1991); Shumway (1991).* Burke (1986), pp. 439-51. (N. do E.)39 Smith (1950); Buarque de Holanda (1959); Smith (1960).

Casandra, 02/04/04,
[Do lat. ignobile.] Adj. 2 g. 1. Que não tem nobreza; baixo, desprezível, vil, abjeto: & [Pl.: ignóbeis. ]
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Burckhardt escreveu sobre o surgimento da visão do Estado como “obra de arte”, em outras palavras, como resultado de planejamento, e Huizinga se interessou pela influência dos romances de cavalaria na percepção da realidade social e política.40 Na época deles, contudo, consideravam-se estudos desse tipo desimportantes para as preocupações dos historiadores.

[251] Hoje, por outro lado, o que antes era marginal se tornou essencial, e muitos dos tópicos tradicionais têm sido reestudados desse ponto de vista. Benedict Anderson, por exemplo, reescreveu a história da consciência nacional em termos do que chama de “comunidades imaginadas”, observando a influência da ficção, como no caso do filipino José Rizal e seu romance Noli me tangere (1887).41 A continuação do debate sobre o significado da Revolução Francesa, em particular, gira hoje em torno do lugar que ela ocupa na “imaginação política” francesa.42 Também se tem estudado a história da feitiçaria e demonologia, como a história da imaginação coletiva, desde o mito dos “sabás” à projeção de temores e desejos secretos em bodes expiatórios individuais.43 Em suma, a fronteira entre “cultura” e “sociedade” foi redefinida, e o império da cultura e da liberdade individual expandido.

OS PROBLEMAS

Em que medida a nova história cultural é bem sucedida? Em minha opinião, as abordagens descritas acima têm sido necessárias. Não são apenas uma nova moda, ma respostas a fraquezas palpáveis de paradigmas anteriores. Isto não quer dizer que todos os historiadores culturais devam segui-las – é sem dúvida melhor que vários estilos de historiadores coexistam do que apenas um conquiste o monopólio. De qualquer modo, as reações contra o saber convencional têm sido levadas longe demais. Por exemplo, a ênfase corrente na construção ou invenção da cultura exagera tanto a liberdade humana quanto a visão mais antiga de cultura como “reflexão” da sociedade reduzia essa liberdade. A invenção jamais está livre de coerções. A invenção [252] ou sonho de um grupo pode ser a prisão de outro. Na verdade, há momentos revolucionários em que a liberdade de inventar está no nível máximo e tudo parece possível, mas esses momentos são seguidos de uma “cristalização” cultural.

Como ocorre muitas vezes na história das disciplinas, para não mencionar na vida em geral, a tentativa de solucionar alguns problemas suscitou outros pelo menos igualmente intratáveis. Para destacar as dificuldades contínuas, talvez seja útil salientar alguns dos pontos fracos de dois exemplos recentes muito famosos dessas novas abordagens. Esses livros estão entre as mais brilhantes obras de história cultural publicadas nas últimas duas ou três décadas. Por isso mesmo, como nos casos de Burckhardt e Huizinga, vale e pena examinar suas fraquezas.

Em The Embarrassement of Riches (1987), um estudo da República Holandesa no século XVII, Simon Schama recorre aos nomes de Émile Durkheim, Maurice Halbwachs e Mary Douglas, e como esses antropólogos Schama se concentra nos valores sociais e sua personificação cotidiana. A República Holandesa era uma nova nação, e ele se dedica à formação – não à invenção – de uma nova identidade, expressa no sentido dos holandeses que se encaram como um segundo Israel, um povo eleito que se libertara do julgo do faraó espanhol. Sugere em seguida que a vida cotidiana era influenciada, ou mesmo moldada, por essa nova identidade. Segundo Schama, isso é o que explica o senso singularmente agudo de privacidade e domesticidade na Holanda, assim como a limpeza esmerada das casas holandesas, comentada por tantos viajantes estrangeiros. Eles mostravam ao mundo, e em

40 Burckhardt (1860), cap. 1; Huizinga (1919).41 Anderson (1983), 26-29.42 Furet (1984).43 Cohn (1975); Ginzburg (1990); Muchembled (1990); Clark (1996).

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especial à Holanda espanhola ou do sul, que eram diferentes. Pela primeira vez a limpeza obsessiva das donas-de-casa holandesas é apresentada mais como parte da história holandesa do que citada de passagem, como no passado, por historiadores em direção a assuntos mais sérios.

O ponto fraco desse livro, partilhado pela obra de Burckhardt e Huizinga, assim como pela tradição antropológica durkheimiana, é sua ênfase na unidade cultural. Schama rejeita visões que consideram [253] a cultura como “afloramento de classe social”. Ao contrário de muitos novos historiadores culturais, ele não passou por uma fase de comunhão com o marxismo. Concentra-se no que os holandeses tinham em comum e pouco tem a dizer sobre os contrastes e conflitos culturais entre regiões ou entre grupos religiosos e sociais. Interpreta a obsessão com limpeza mais como um símbolo da condição holandesa do que como uma tentativa das citadinas da classe média de diferenciar-se dos camponeses ou de seus vizinhos urbanos mais pobres. Ainda assim, como mostra com abundante clareza uma obra recente de uma equipe de historiadores holandeses, os contrastes e conflitos entre os ricos e os pobres, urbanos e rurais e, não menos significativo, católicos e protestantes foram importantes na historia das chamadas “Províncias Unidas” no século XVII.44 A presença de um partido “Orange” na duas culturas não é a única semelhança entre os holandeses do norte no século XVII e os irlandeses do norte no XX.

O livro igualmente celebre de Carl Schorske trata da Viena em fins do século XIX, a Viena de Arthur Schnitzler, Otto Wagner, Karl Lueger, Sigmund Freud, Gustav Klimt, Hugo von Hofmannsthal e Arnold Schoenberg. Suas muitas intuições sobre a obra de todos esses homens, nas diferentes artes que praticavam, e o meio social deles terão de ser aqui ignorados para concentrarmos a atenção em um único problema geral: a tensão entre unidade e variedade. Schorske tem muita consciência da importância das subculturas, na capital imperial poliglota, de diferentes grupos de intelectuais e da fragmentação da cultura, “com que cada campo proclama independência do todo, cada parte, por sua vez, desagregando-se em partes”.45 De maneira semelhante, seu próprio estudo é dividido em sete diferentes ensaios sobre diferentes aspectos da cultura da Viena de fin du siècle – literatura, arquitetura, política, psicanálise, pintura e música.

[254] A fragmentação foi sem a menor dúvida uma escolha deliberada do autor. É pelo menos simbolicamente adequada a um estudo do modernismo.46 Também responde à preocupação do autor “em respeitar o desenvolvimento histórico de cada ramo constituinte da cultura moderna (pensamento social, literatura, arquitetura etc.), em vez de esconder a realidade pluralizada por trás de definições homogeneizadas”.47 A rejeição a afirmações fáceis sobre Zeitgeist e a disposição de levar o desenvolvimento interno a sério é uma das muitas virtudes desse estudo.

Schorske também se interessa pela “coesão” dos diferentes “elementos culturais”, descritos em vários capítulos do livro, e sua relação com uma experiência política partilhada, “a crise de uma polidez liberal”. Na verdade, seu livro traz o subtítulo “política e cultura”. Por meio disso, ele tenta manter o equilíbrio entre explicações “internalistas” e “externalistas” da mudança cultural. Na prática, contudo, a política recebe um capítulo só seu, como a pintura e a música. Embora se indiquem ligações, elas nem sempre são explicitadas, pelo menos extensamente. O parágrafo final discute apenas Schoenberg e Kokoschka. O autor preferiu não escrever um capítulo final que tentasse entrelaçar os fios. Tal opção merece ser respeitada, seja ditada pela modéstia, pela honestidade ou pelo desejo de deixar os leitores livres para tirar suas próprias conclusões. Ao mesmo tempo, essa renúncia é, em certo

44 Schama (1987); Boekhorst et al. (1992).45 Schorske (1981), xxvii, xix.46 Cf. Roth (1994a); Roth (1994b), 3-4.47 Schorske (1981), xix-xx.

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aspecto, uma fuga à responsabilidade. A raison d’être de um historiador cultural é sem a menor dúvida revelar as ligações entre diferentes atividades. Se essa tarefa for impossível, bem se poderia deixar a arquitetura aos historiadors da arquitetura, a psicanálise aos historiadores da psicanálise, e assim por diante.

O problema essencial para os historiadores culturais hoje, pelo menos no meu entender, é de que modo resistir à fragmentação sem retornar à suposição enganadora da homogeneidade de determina sociedade ou período. Em outras palavras, revelar uma unidade [255] subjacente (ou pelo menos ligações subjacentes) sem negar a diversidade do passado. Por isso talvez seja útil chamar a atenção para um corpo de obras recentes e destacadas sobre a história de encontros culturais.

O MODELO DE ENCONTRO

Nos últimos anos, os historiadores culturais têm se interessado cada vez mais por encontros, e também por “choques”, “conflitos”, “competições” e “invasões” culturais, sem esquecer ou minimizar os aspectos destrutivos desses contatos.48 De sua parte, os historiadores da descoberta ou colonialismo começaram a examinar as conseqüências culturais, além das sociais e políticas da expansão européia.

Seria, é claro, insensato tratar esses encontros como se ocorressem entre duas culturas,recuando a uma linguagem de homogeneidade cultural e tratando as culturas como entidades objetivamente ligadas (os indivíduos às vezes têm um forte senso de limites, mas na prática as fronteiras são ultrapassadas repetidas vezes). A questão a ser aqui enfatizada é o interesse relativamente novo pela maneira como as partes envolvidas percebiam, entendiam ou, na verdade, não entendiam umas às outras. Mais de uma monografia recente enfatizou a tradução errônea e a “identidade mal interpretada” entre conceitos em dois sistemas culturais, uma compreensão equivocada que bem poderia ter favorecido o processo de coexistência. Um diálogo de surdos continua sendo uma espécie de diálogo.49 Por exemplo, na África e em outras partes, missionários cristãos muitas vezes acreditavam haver “convertido” a população local, pois na visão dele a aceitação do ciumento Deus dos cristãos envolvia necessariamente a rejeição de outras religiões. Por outro lado, como indicaram vários africanistas, [256] alguns convertidos talvez estivessem interessados em apropriar-se de determinadas técnicas espirituais para incorporá-las ao sistema religioso local (p. 222). É difícil dizer quem manipulava quem, mas é pelo menos claro que as diferentes partes do encontro operavam com diferentes definições da situação.50

Em alguns livros admiráveis, antropólogos sociais tentaram reconstituir a “visão dos vencidos”, da maneira como os caribenhos percebiam Colombo, os astecas, Cortéz, e os incas, Pizarro.51 O exemplo que originou a maioria dos debates diz respeito ao encontro dos havaianos com o capitão Cook e seus marinheiros. O historiador da arte Bernard Smith estudou as percepções européias do encontro seguindo as diretrizes das histórias dos esquemas de Aby Warburg. O antropólogo Marshall Sahlins depois tentou reconstruir as visões dos havaianos. Observou que Cook chegou na fase do ano em que os havaianos esperavam seu deus Lono, e afirmou que sua chegada foi percebida como uma epifania do deus, assimilando assim o extraordinário evento novo, a chegada de estranhos, na ordem cultural. Contestou-se a afirmação, e o debate persiste.52 De maneira semelhante, os sinólogos ocidentais, há muito interessados em conhecer as maneiras como os missionários e diplomatas 48 Axtell 91985); Bitterl (1986); Lewis (1995).49 Lockhart (1994), 219; MacGaffey (1994), 259-60.50 Smith 91960); Prins (1980); MacGaffey (1986), 191-216; cf. Hilton (1985).51 Portilla (1959); Wachtel (1971); Hulme (1987); Clendinnen (1992).52 Smith (1960); Sahlins (1985); Obeyesekere (1992); Sahlins (1995).

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europeus percebiam os chineses, começaram a pensar seriamente sobre a maneira como os chineses percebiam os ocidentais.53 Já se afirmou, por exemplo, que na China a Virgem Maria foi assimilada à deusa da misericórdia nativa, Kuan Yin, enquanto no México a assimilaram como a deusa Tonantzin, originando assim a híbrida Madona de Guadalupe.54

Embora eu seja um historiador da Europa europeu, como deixam amplamente claro os capítulos anteriores, citei esses exemplos da [257] Ásia, África, América e Austrália por dois motivos. Primeiro, uma das mais empolgantes pesquisas correntes em história cultural se realiza nas fronteiras – fronteiras do assunto, fronteiras européias. Segundo, esse trabalho nas fronteiras talvez sirva como inspiração para o resto de nós. Se nenhuma cultura é uma ilha, nem mesmo o Haiti ou a Grã-Bretanha, deve ser possível empregar o modelo de encontro para estudar a história de nossa própria cultura, ou culturas, que devemos considerar variadas em vez de homogêneas, múltiplas em vez de singulares. Portanto, os encontros e interações precisam juntar-se às práticas e representações que Chartier descreveu como os principais objetos da nova história cultural. Afinal, como observou recentemente Edward Said: “A história de todas as culturas é a história do empréstimo cultural”.55

A história dos impérios oferece claros exemplos de interação cultural. O historiador Arnaldo Momigliano escreveu um livro sobre os limites da helenização, a interação entre gregos, romanos, celtas, judeus e persas dentro e fora do Império Romano.56 Quando os chamados “bárbaros” invadiram aquele império, realizou-se um processo de interação cultural que incluiu não apenas a romanização dos invasores mas também o inverso, a “goticização” dos romanos. Em fins do período medieval ou início do moderno, pode-se examinar dessa maneira a fronteira entre o Império Otomano e o cristianismo.

Realizou-se, por exemplo, um estudo da interação religiosa – ou, segundo as palavras do autor, “transferências” – em nível não-oficial, como as peregrinações dos muçulmanos aos santuários de santos cristãos e vice-versa. Historiadores da arte estudaram a cultura material comum à fronteira, por exemplo, o uso da cimitarra turca por tropas polonesas. Historiadores da literatura já compararam os heróis épicos dos dois lados da fronteira, o grego Digenis Acritas, por exemplo, e o turco Dede Korkut. Em suma, a zona de fronteira, muçulma[258]na ou cristã, tinha muitas coisas em comum, em contraposição aos centros rivais de Istambul e Viena.57

Pode-se fazer uma afirmação semelhante sobre a Espanha medieval. Da época de Américo Castro, na década de 1940, em diante, alguns historiadores enfatizaram a simbiose ou convivencia de judeus, cristãos e muçulmanos espanhóis, as trocas culturais entre eles. Por exemplo, os eruditos judeus eram fluentes em poesia árabe. Como na fronteira européia oriental, os guerreiros dos dois lados usavam equipamento semelhante, e parece que tinham também valores semelhantes. A cultura material dos “moçárabes” (cristãos sob o domínio muçulmano) e os “mudéjares” (muçulmanos sob o domínio cristão) combinava elementos das duas tradições. Algumas igrejas católicas (como algumas sinagogas) foram construídas no estilo muçulmano, com arcos em forma de ferradura, telhas e decoração geométrica nas portas e tetos. Em geral, é impossível dizer se a cerâmica e outros artefatos no estilo “hispano-mourisco” foram feitos por ou para cristãos ou muçulmanos, pois o repertório de temas é comum.58

Também ocorreram trocas nos domínios da língua e literatura. Muitas pessoa eram bilíngües. Algumas escreviam espanhol em caracteres árabes, e outras árabe em alfabeto latino. Algumas pessoas usavam dois nomes, um espanhol outro árabe, o que sugere que

53 Gernet (1982); Spence (1990).54 Boxer (1975), cap. 4; Lafaye (1974).55 Said (1993), 261.56 Momigliano (1975).57 Hasluck (1929); Angyal (1957); Mankowski (1959); Inalcik (1973), 186-202.58 Terrasse (1932, 1958).

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tinham duas identidades. Romances de cavalaria escritos em estilo semelhante eram populares nos dois lados das fronteiras religiosas (Capítulo 9). Alguns poemas passavam do espanhol para o árabe num único verso. “Que faray Mamma? Meu l’habib est’ad yana!” (“Que farei, mãe? Meu amante está à porta!”). Os exemplos mais espetaculares de simbiose vêm das práticas de religião popular. Como ocorria a fronteira otomano-habsburguesa, santuários como o de San Ginés, atraíam devoção tanto de muçulmanos quanto de cristãos.59

[259] A história cultural de outras nações poderia ser escrita em termos de encontros entre regiões, como o norte e o sul da Itália, França ou mesmo a Inglaterra. No caso da América do Norte colonial, David Fischer identificou quatro culturas regionais, ou “modos de pensar e costumes”, transportados por quatro grupos de imigrantes, os anglicanos do leste para Massachusetts, os sulistas para a Virgínia, os dos condados centrais da Inglaterra para Delaware e os de fronteiras para o “interior” do país. Os estilos de linguagem e construção, assim como as atitudes políticas e religiosas, continuaram distintos durante séculos.60

Este exemplo sugere a possibilidade de um empreendimento ainda mais ambicioso: estudar a história cultural como um processo de interação entre diferentes subculturas, entre homens e mulheres, urbanos e rurais, católicos e protestantes, muçulmanos e hindus, e assim por diante. Cada grupo se define em contraste com os outros, mas cria seu próprio estilo cultural – como no caso de jovens britânicos na década de 1970, por exemplo – pela apropriação de itens dos acervos comuns, juntando-os em um sistema com um novo sentido.61

O conceito sociológico de “subcultura”, que pressupõe diversidade em uma estrutura comum, e o conceito de “contracultura”, que envolve uma tentativa de inverter os valores da cultura dominante, merecem ser levados mais a sério do que o são por historiadores culturais.62 Trabalhar com o conceito de subcultura tem a vantagem de tornar determinados problemas mais explícitos do que antes. A subcultura inclui todos os aspectos da vida de seus membros, ou só alguns domínios? É possível pertencer a mais de uma subcultura em determinada época? Havia mais coisas em comum entre dois judeus, um dos quais era italiano, ou dois italiano, um dos quais era [260] judeu?63 A relação entre a cultura principal e a subcultura é de complementaridade ou conflito?

As classes sociais,como as religiões, poderiam ser analisadas como subcultura. O falecido Edward Thompson era um severo crítico da visão de cultura como uma comunidade que privilegiava sentidos partilhados sobre conflitos de sentido. De modo bastante irônico, ele mesmo foi criticado pelo modelo comunitário de cultura operária que se acha subjacente a seu famoso Making of the English Work Class. Poderíamos tentar ir além desse modelo comunitário com a ajuda de Pierre Bourdieu, cuja etnografia da França contemporânea salientou até que ponto a burguesia e a classe trabalhadora definiram cada uma a si mesma pelo contraste com a outra.64 De maneira semelhante, em um livro que é ou deve ser exemplar para os historiadores, dois etnólogos suecos puseram a formação da classe média sueca no contexto da luta de seus membros para diferenciar-se tanto da nobreza quando da classe trabalhadora, em domínios culturais como atitudes em relação a tempo e espaço, sujeira e limpeza.65 A solidariedade dentro de um grupo é em geral mais forte no momento do mais acirrado conflito com forasteiros. Dessa maneira, historiadores culturais poderiam contribuir para a reintegração da história em uma era de superespecialização em que ela tem se desintegrado em fragmentos disciplinares nacionais e regionais.66

59 Castro (1948); Stern (1953); Galmés de Fuentes (1967); MacKay (1976); Mann et al. (1992).60 Fischer (1989).61 Hegdige (1979).62 Yinger (1960); Clarke (1974); Clarke et al. (1975).63 Bonfil (1990).64 Thompson (1963); Bourdieu (1979).65 Frykman e Löfgren (1979).66 Cf. Kammen (1984); Bender (1986).

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AS CONSEQÜÊNCIAS

No caso de encontros culturais, a percepção do novo em termos do antigo, descrita na última seção, em geral se revela impossível de sustentar por um prazo mais longo. As novas experiências primeiro [261] ameaçam e depois solapam as antigas categorias. A “ordem cultural” tradicional – como a denomina o antropólogo Marshall Sahlins – às vezes se fragmenta sob a pressão da tentativa de assimilá-la.67 O estágio seguinte varia de cultura para cultura, ao longo de um espectro que se estende da assimilação à rejeição via adaptação e resistência, como a resistência ao protestantismo no mundo mediterrâneo discutido por Fernand Braudel.68 A razão por que os membros de algumas culturas deveriam interessar-se em particular pela novidade ou pelo exótico é uma questão tão fascinante quando difícil de responder. A afirmação de que as culturas mais bem integradas são relativamente fechadas, enquanto as mais abertas e receptivas têm menos integração, corre risco de circularidade, mas tem pelo menos a virtude de apresentar o problema do ponto de vista do receptor.69 Os parágrafos que se seguem se concentrarão na receptividade à custa de resistência.

As conseqüências dos encontros entre duas culturas foram estudadas pela primeira vez de maneira sistemática por estudiosos de sociedades do Novo Mundo, onde os encontros haviam sido particularmente drásticos. No início do século XX, antropólogos americanos, entre eles o imigrante Fraz Boas, descreveram as mudanças nas culturas indígenas americanas como resultantes do contato com a cultura branca em termos do que denominaram “aculturação”, a adoção de elementos da cultura dominante. Um discípulo de Boas, Melville Herskovits, definiu a aculturação como um fenômeno mais abrangente do que a difusão, e tentou explicar por que alguns traços mais que outros, foram incorporados à cultura receptora.70 Essa ênfase na seleção ou triagem de traços se revelou esclarecedora. No Peru, por exemplo, já se observou que os índios adotaram elementos culturais da “cultura doadora” para os quais não existiam equivalentes locais. [262] Também se tem afirmado que, após alguns anos, a adoção de novos elementos declina. À fase de apropriação segue-se a da “cristalização” cultural.71

A essa altura, os estudiosos da cultura, a começar por especialistas em história da religião no antigo mundo mediterrâneo, muitas vezes falaram em “sincretismo”. Herskovits se interessava sobretudo pelo sincretismo religioso, como por exemplo a identificação entre deuses africanos tradicionais e os santos católicos no Haiti, Cuba, Brasil e em outros lugares. Outro discípulo de Boas, Gilberto Freyre, interpretou a história do Brasil colonial em termos do que chamou de “sociedade híbrida”, ou “fusão” de diferentes tradições culturais.72 Pelo menos um historiador do Renascimento, Edgar Wind, empregou o termo “hibridização” para descrever a interação de culturas pagãs e cristãs. Sua posição era de rejeitar uma análise de mão única da secularização da cultura renascentista, alegando que a “hibridização funciona em mão dupla”. Por exemplo, podia-se fazer “uma Virgem ou Madalena parecer uma Vênus”, mas, por outro lado, “a arte renascentista produzia imagens de Vênus que se assemelhavam a uma Virgem ou Madalena”.73

De maneira semelhante, o sociólogo cubano Fernando Ortiz afirmou que se devia substituir o termo “aculturação” por “transculturação”, baseando-se em que duas culturas

67 Sahlins (1981), 136-56.68 Braudel (1949), parte 2, cap. 6, seção 1.69 Ottenberg (1959); Schenider 91985).70 Herskovits (1938); cf. Dupront (1966).71 Foster (1960), 227-34; Glick (1979), 282-4.72.Freyre (1933); Herskovits (1937, 1938).73 Wind (1958), 29.

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eram modificadas em conseqüência de seus encontros, e não apenas a chamada “doadora”. Ortiz foi um dos primeiros a sugerir que deveríamos falar da descoberta americana de Colombo.74 Um bom exemplo desse tipo de aculturação, em que os conquistadores são conquistados, é o dos “creoles”, homens e mulheres de origem européia mas que nasceram nas Américas e se tornaram, com o passar do tempo, cada vez mais americanos em cultura e consciência.75

[263] A assimilação de santos cristãos em deuses e deusas não-cristãos como o Xangô africano ocidental, o Kuan Yin chinês e o Nahuatl Tonantzin tem sua analogias na Europa. Como observou Erasmo, um processo semelhante ocorrera no início dos tempos cristãos, quando santos como são Jorge foram assimilados em deuses e heróis como Perseu. “Acomodação” era o termo tradicional usado para descrever esse processo no século XVI (como no princípio da Igreja), quando os missionários jesuítas na China e Índia, por exemplo, tentaram traduzir o cristianismo em termos culturais locais, apresentando-o como compatível com muitos dos valores dos mandarins e brâmanes.

A preocupação com esse problema é natural em uma época como a nossa, marcada por encontros cada vez mais freqüentes e intensos de todos os tipos. Emprega-se uma grande variedade de termos em diferentes lugares e diferentes disciplinas para descrever os processos culturais de empréstimo, apropriação, torça, recepção, transferência, transposição, resistência, sincretismo, aculturação, enculturação, inculturaçao, interculturação, transculturação, hibridização (mestizaje), creolização e interação e interpenetração de culturas. Em seguida ao redespertar de interesse pela arte mudéjar mencionada acima (ela própria relacionada a uma consciência cada vez maior hoje do mundo muçulmano), alguns espanhóis agora se referem a um processo de “mudejarismo” em sua história cultural.76 Alguns desses novos termos talvez soem exóticos, e mesmo bárbaros. Sua variedade presta eloqüente testemunho à fragmentação do mundo acadêmico atual. Também revela uma nova concepção de cultura como bricolagem, em que o processo de apropriação e assimilação não é secundário, mas essencial.

Permanecem os problemas conceituais, assim como os empíricos. Utiliza-se a idéia de “sincretismo”, por exemplo, para descrever uma grande variedade de situações, de “mixagem” a síntese cultural. O [264] uso generalizado muito vago do termos suscita, ou mais exatamente, obscurece, muitos problemas.77

Entre esses problemas está o das intenções dos agentes, de suas interpretações do que fazem, o ponto de vista “êmico” (p. 245). Por exemplo, no caso da interação entre cristianismo e religiões africanas, temos de examinar vários cenários. Os governantes africanos, como vimos, podem muito bem considerar que estão incorporando novos elementos a sua religião tradicional. No caso do “sincretismo” dos escravos africanos na Américas – a identificação entre santa Bárbara e Xangô, por exemplo –, eles bem podem ter empregado as táticas defensivas de se conformar externamente com o cristianismo, embora conservando suas crenças tradicionais. No caso da religião no Brasil contemporâneo, por outro lado, “pluralismo” talvez fosse um termo melhor que sincretismo, pois as mesmas pessoas podem participar das práticas de mais de um culto religioso, assim como pacientes podem procurar a cura em mais de um sistema de medicina.

Para retornar à linguagem “tradicional”, os indivíduos talvez tenham acesso a mais de uma tradição e optem por uma em vez de outra segundo a situação, ou se apropriem e elementos das duas para fazer alguma coisa por conta própria. Do ponto de vista “êmico”, o que o historiador precisa examinar é a lógica subjacente a essas apropriações e combinações, os motivos locais dessas opções. Por isso alguns historiadores têm estudado as respostas de

74 Ortiz (1940), introdução.75 Brading (1991); Alberro (1992).76 Burns (1977); Goytisolo (1986).77 Apter (1991).

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indivíduos aos encontros entre culturas, em especial aqueles que mudaram de comportamento – que os chamemos de “convertidos”, da perspectiva de sua nova cultura, ou “renegados”, do ponto de vista da antiga. A questão é estudar esses indivíduos – cristãos que viraram muçulmanos no Império Otomano, ou ingleses que viraram índios na América do Norte- como casos extremos e especialmente visíveis de resposta à situação do encontro e concentrar-se nas maneiras como eles reconstruíram sua identidade.78 As complexidades da situação são [265] bem exemplificadas pelo estudo de um grupo de negros brasileiros, descendentes de escravos, que retornaram à África Ocidental porque a consideravam sua pátria, e descobriram que os habitantes locais os consideravam americanos.79

Por outro lado, vistas de fora, essas pessoas são exemplos do processo geral de “sincretismo”. Já se sugeriu que limitamos o emprego desse termo à “coexistência temporária” de elementos de diferentes culturas, distinguindo-o de uma verdadeira “síntese”.80

Mas qual a duração desse “temporário”? podemos afirmar que a síntese ou integração triunfa necessariamente a longo prazo? Em nossa época, é difícil não depararmos com movimentos de anti-sincretismo ou desintegração, campanhas pela recuperação de tradições “autenticas” ou “puras”.81

O conceito de “hibridismo” cultural e os termos a ele associados são igualmente problemáticos.82 É muito fácil escorregar (como Freyre, por exemplo, muitas vezes fez) entre discussões de miscigenação metafórica e literal, seja apregoando os louvores da fertilização cruzada ou condenando as formas “bastardas” ou “mestiças” de cultura que surgem por si mesmas desse processo. Deve o termo “hibridização” ser descritivo ou explanatório? As novas formas surgem por si mesmas no decorrer de um encontro cultural ou são obra de indivíduos criativos?

Os lingüistas oferecem outro meio de abordar as conseqüências dos encontros culturais.83 O encontro de duas culturas, como de linguagens, poderia ser descrito em termos do surgimento primeiro do pidgin, uma forma de língua reduzida essencial para fins de comunicação intercultural, e depois do creole. A “creolização” descreve a [266] situação em que um pidgin desenvolve uma estrutura mais complexa no momento em que as pessoas começam a usá-lo como sua primeira língua e para propósitos gerais. Os lingüistas afirmam que o que antes era considerado apenas erro, como inglês “malfalado” ou latim “de cozinha”, devia ser visto côo uma variedade de língua com suas próprias regras. Também se pode fazer uma afirmação semelhante sobre (digamos) a linguagem da arquitetura na fronteira entre culturas.

Em alguns contextos, a melhor analogia lingüística pode ser uma “língua mista”, como a media lengua do Equador, em que se combina o vocabulário espanhol com a sintaxe quíchua, ou o latim “macarrônico” discutido no Capítulo 9. Durante o Renascimento, por exemplo,os ornamentos de estilo arquitetônico (o clássico) eram às vezes sobrepostos às estruturas de outro (o gótico). Em outros contextos, uma analogia melhor talvez seja a dos bilíngües,que “se desviam” entre uma língua e outra de acordo com a situação. Como vimos no caso de alguns japoneses do século XIX, as pessoas conseguem ser biculturais, viver uma vida dupla, transferir-se de um código cultural para outro.

Retomemos a situação de hoje. Alguns observadores ficam impressionados com a homogeneização da cultura mundial, o “efeito Coca-Cola”, embora muitas vezes não levem em conta a criatividade da recepção e a transposição dos sentidos discutidas antes neste capítulo. Outros vêem mixagem ou ouvem pidgin em toda parte. Alguns acreditam poder

78 Axtell (1985); Scraffia (1993).79 Carneiro da Cunha (1985).80 Pye (1993).81 Stewart (1994).82 Young (1995).83 Glick (1979), 277-82; Hannerz (1992), 264-6.

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discernir uma nova ordem, a “creolização do mundo”.84 Um dos grandes estudantes da cultura em nosso século, o erudito russo Mikhail Bakhtin, costumava enfatizar o que chamava de “heteroglossia”, em outras palavras, a variedade e conflito de línguas e pontos de vista dos quais, segundo sugeriu, se desenvolveram novas formas de linguagem e novas formas de literatura (em particular o romance).85

[267] Retornamos ao problema fundamental de unidade e variedade, não apenas na história cultural, mas na própria cultura. É necessário evitar duas supersimplificações opostas: a visão de cultura homogênea, cega às diferenças e conflitos, e a visão de cultura essencialmente fragmentada, o que deixa de levar em conta os meios pelos quais todos criamos nossas misturas, sincretismos e sínteses individuais ou de grupo. A interação de subculturas às vezes produz uma unidade de opostos aparente. Feche os olhos e ouça por um momento um sul-africano falando. Não é fácil dizer se o locutor é negro ou branco. Não vale a pena perguntar se as culturas negra e branca da África do Sul compartilham outras características, apesar de seus contraste, graças a séculos de interação?

Para alguém de fora, historiador ou antropólogo, a resposta é sem a menor dúvida “sim”. As semelhanças podem exceder em peso as diferenças. Para os de dentro, contudo, as diferenças talvez sejam mais importantes que as semelhanças. É provável que essa questão sobre diferenças em perspectiva seja válida para muitos encontros culturais. Portanto, deduz-se que uma história cultural centrada em encontros não deve ser escrita segundo um ponto de vista apenas. Nas palavras de Mikhail Bakhtin, essa história tem de ser “polifônica”. Em outras palavras, tem de conter em si mesma várias línguas e pontos de vista, incluindo os dos vitoriosos e vencidos, homens e mulheres, os de dentro e os de fora, de contemporâneos e historiadores.

84 Hannerz (1992); cf. Friedman (1994), 195-232.85 Bakhtin (1981).