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VASSALO, Lígia. Introdução. In.: Revista Tempo Brasileiro. Out/dez 1998. p. 3-8. INTRODUÇÃO DA LÍRICA Lígia Vassalo No princípio era a música e ela se fez poesia e habitou entre nós. Os povos nascem cantando é uma conhecida afirmação sobre os albores poéticos, aplicável não só às manifestações discursivas de cunho épico, enaltecedoras de um herói nacional (como nos poemas homéricos e nas canções de gesta), mas também às expressões de feição subjetiva. O início da poesia (épica ou lírica) vincula estreitamente a estrutura verbal e o acompanhamento musical. Verifica-se tal ocorrência nos dois momentos inauguradores da arte ocidental. Assim, na Grécia antiga, o instrumento musical que ritmava a dicção de textos subjetivos a lira passou a identificar um determinado tipo de poesia, a partir daí denominada lírica. E, na Idade Média, a cantiga trovadoresca era acoplada ao som da viola ou do alaúde. O caráter instrumental desapareceu no alvorecer do mundo moderno (como aliás já havia desaparecido na passagem da influência grega para a poesia romana). Isto se dá com a eclosão do Doce Estilo Novo, fenômeno poético italiano nascido durante a Baixa Idade Média. E desde então a melodia foi substituída pelo reforço nos traços musicais do verso, compreendendo- se aí ritmo, rima, aliteração e todos os aspectos fônicos do texto poético versificado. A tradicional divisão tripartite dos gêneros literários, classificação didática à qual, a rigor, pouquíssimas obras se submetem e que já está presente desde os livros III e X da República de Platão, remete à distinção de Anatol Rosenfeld, para quem há que se diferençar o significado substantivo do gênero e seu traço estilístico adjetivo. Tal conceituação é fértil na medida em que permite intercambiar e combinar gêneros e traços estilísticos, aproximando-se mais, deste modo, dos textos concretos, que raramente encarnam o gênero puro. Assim, caberia à Lírica a expressão de “emoções e disposições psíquicas, muitas

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  • VASSALO, Lgia. Introduo. In.: Revista Tempo Brasileiro. Out/dez 1998.

    p. 3-8.

    INTRODUO

    DA LRICA

    Lgia Vassalo

    No princpio era a msica e ela se fez poesia e habitou entre ns.

    Os povos nascem cantando uma conhecida afirmao sobre os albores poticos,

    aplicvel no s s manifestaes discursivas de cunho pico, enaltecedoras de um heri

    nacional (como nos poemas homricos e nas canes de gesta), mas tambm s expresses de

    feio subjetiva. O incio da poesia (pica ou lrica) vincula estreitamente a estrutura verbal e o

    acompanhamento musical. Verifica-se tal ocorrncia nos dois momentos inauguradores da arte

    ocidental. Assim, na Grcia antiga, o instrumento musical que ritmava a dico de textos

    subjetivos a lira passou a identificar um determinado tipo de poesia, a partir da

    denominada lrica. E, na Idade Mdia, a cantiga trovadoresca era acoplada ao som da viola ou do

    alade.

    O carter instrumental desapareceu no alvorecer do mundo moderno (como alis j

    havia desaparecido na passagem da influncia grega para a poesia romana). Isto se d com a

    ecloso do Doce Estilo Novo, fenmeno potico italiano nascido durante a Baixa Idade Mdia. E

    desde ento a melodia foi substituda pelo reforo nos traos musicais do verso, compreendendo-

    se a ritmo, rima, aliterao e todos os aspectos fnicos do texto potico versificado.

    A tradicional diviso tripartite dos gneros literrios, classificao didtica qual, a

    rigor, pouqussimas obras se submetem e que j est presente desde os livros III e X da

    Repblica de Plato, remete distino de Anatol Rosenfeld, para quem h que se diferenar o

    significado substantivo do gnero e seu trao estilstico adjetivo. Tal conceituao frtil na

    medida em que permite intercambiar e combinar gneros e traos estilsticos, aproximando-se

    mais, deste modo, dos textos concretos, que raramente encarnam o gnero puro.

    Assim, caberia Lrica a expresso de emoes e disposies psquicas, muitas

  • vezes tambm de concepes, reflexes e vises enquanto intensamente vividas e experimen-

    tadas / plasmada / nas vivncias intensas de um Eu no encontro com o mundo, sem que se

    interponham eventos distendidos no tempo (Rosenfeld 1965:10) e sem configurar nitidamente

    qualquer personagem. Da decorrem a relativa brevidade do poema lrico (pois a emoo tem

    flego curto e, se o texto se alongar, incorre em conexes lgicas, em total desacordo com o

    cunho lrico) e sua diversidade formal, associadas a vrios traos estilsticos, como a extrema

    intensidade expressiva, a fuso entre o Eu que canta e o mundo sujeito e objeto , o uso do

    ritmo e da musicalidade, a noo de um momento eterno, atemporal, margem e acima do fluir

    do tempo, a falta de logicidade. Formalmente, esta alogicidade, inimiga de uma organizao

    literria mais ampla, mostra-se atravs de poemas de pequena extenso, cujos nomes s vezes

    evocam as origens musicais: cano, balada, ode, elegia, hino, epigrama, soneto, entre outras

    subdivises de um gnero que tambm pode-se apresentar em prosa, como na obra de Rimbaud,

    ou explorar visualmente o espao em branco do papel, como em Caligramas, de Guillaume

    Apollinaire, na poesia concreta e na poesia prxis.

    O poema lrico padro, por sua expresso de uma subjetividade, individual ou

    coletiva, traduzida pela primazia da primeira pessoa do discurso, se enquadraria na funo

    emotiva da linguagem, conforme Jakobson. Permanente na Lrica a expresso da subjetividade.

    Como esta depende tcnica e tematicamente do contexto social a que se prende o artista

    individual, tal expresso se mover conforme os cnones e dogmas do perodo histrico em que

    vive o poeta, reservando-lhe uma isenta torre de marfim ou engajando-o nas questes sociais do

    momento.

    Por estes motivos, talvez o gnero lrico seja quantitativamente o mais praticado,

    visto que prescinde de montagem, pblico ou ouvinte, podendo-se circunscrever a lamentos

    dirigidos natureza. tambm aquele que dispe de maior liberdade e variedade mtrica.

    vasta produo corresponde paradoxalmente um pequeno nmero de teorizaes. Aristteles

    passa ao largo, a Idade Mdia se dedica sobretudo codificao formal. O grupo francs da

    Pliade (s. XVI), ao estabelecer o primado artstico da Antigidade greco-latina, erige as

    composies desse perodo como modelos clssicos e racionais a serem seguidos, em privilgio

    que s vai ser rompido com o advento do Romantismo. Mas no se deve confundir preceitos de

    estilo de poca com pressupostos tericos. Desta maneira, partindo-se da prpria definio de

    poesia lrica formalizada por Rosenfeld, pode-se atribuir trs mbitos de ao a este gnero

    literrio: o emocional, o social, o racional.

  • A lrica emocional aparentemente sobrepuja os outros tipos, por sua difuso e pela

    associao com o romantismo, supervalorizando os diferentes e fugazes estados de esprito,

    mormente os de tnica amorosa ou ertica. Mas a tambm se incluem as poesias populares e

    folclricas, ao lado daquelas outras que apresentam feies satricas. No o tema, porm o tom,

    o que permite considerar um poema como emocional, trao reforado pela musicalidade.

    Um exemplo de teorizao sobre este tipo de lrica pode ser encontrado nos

    Conceitos Fundamentais da Potica, de Staiger, onde o autor define os trs gneros literrios

    para confrontao, atribuindo ao lrico a identificao entre o Eu e o objeto e, portanto, a

    ausncia de um defrontar-se objetivo com o mundo. O gnero assim caracterizado se prende

    recordao como disposio anmica passageira, que s no se desfaz devido musicalidade e

    repetio, reforadas pela parataxe como forma capaz de exprimir alogicamente contradies as

    mais dspares que se fundem num todo harmonioso, representado por um certo estado de esprito

    revelador de um momento determinado, tornado atemporal por se transformar em presente

    permanente. O lrico o ltimo fundamento perscrutvel do fenmeno potico, a plenitude da

    profundidade e intimidade, de onde procede, para elevar-se altura das demais modalidades

    poticas. Por isso Staiger conceitua a partir da progresso lrico-pico-dramtico, tambm

    demonstrvel nas relaes slaba-palavra-frase ou sentir-mostrar-provar. Estas seqncias no

    devem ser interpretadas do ponto de vista histrico, porque um gnero potico no pode

    prescindir do outro. Mas leia-se na slaba o elemento propriamente lrico da lngua, o balbucio,

    corolrio do sentir que lhe prprio. Assim Staiger analisa o fenmeno com base na ontologia,

    porm, a partir dos exemplos dados no livro, tal conceituao melhor se aplica s obras

    romnticas e s da antigidade clssica.

    ngulo diverso advogado por Adorno, ao focalizar a lrica como um fenmeno

    social. Este autor faz uma crtica da cultura quando considera que a lrica moderna protesta

    contra a coisificao do homem, pois reflete o conflito entre indivduo e sociedade. Ela traduz

    um momento de ruptura (situado a partir de Baudelaire), a qual resgatada pela pura

    subjetividade. Por isso, medida que cresce o predomnio da sociedade sobre o sujeito, faz-se

    mais precria a situao da lrica, j que ela deixa falar o que a ideologia oculta. O contedo

    social da lrica justamente no ser social, acentuar individual, em protesto contra uma

    situao que se coloca de modo hostil ao indivduo. A expresso lrica, algo plenamente

    individual, no se contrape sociedade. por exigncia social que sua palavra virginal. Da

  • seu carter de imediatez e a falta de materialidade. A generalidade ou totalidade da lrica

    transcende a relao Eu/sociedade, tendo a linguagem por mediador desta motivao social. A

    formao lrica sempre expresso da subjetividade a, que a linguagem empresta objetividade.

    O sujeito lrico encarna o todo atravs da subjetividade potica, como sujeito autnomo, dono de

    sua prpria livre expresso. A interpretao social da lrica deve ser imanente, independente da

    posio social ou da situao de interesses das obras de seus autores. A expresso do individual

    reflete a crise do indivduo, participando de uma corrente coletiva graas a sua experincia

    histrica.

    Por outro lado, pode-se atribuir lrica um trao abertamente social, quando ela

    manifesta seu repdio a situaes provocadas pelo referente na sociedade, sem que o eu potico

    se desprenda da subjetividade ou perca sua alogicidade. Incluem-se a todas as modalidades de

    poesia engajada, como por exemplo o condoreirismo de Castro Alves, posturas crticas do

    surrealismo francs durante a segunda guerra mundial, autores como Brecht e Garcia Lorca.

    Nestes casos, o EU vale por um NS.

    A terceira vertente da lrica a racional, que se contrape s facilidades da

    inspirao e busca desfazer o mito romntico do poeta-gnio iluminado. Valoriza o lavor po-

    tico, apontando para as dificuldades que tal arte exige, pois a emoo (sentimental) se transforma

    em reflexo, questionamento. Neste sentido tende, de certa maneira, a se tornar a verso

    contempornea do classicismo. Este ponto de vista inclui toda modalidade de metapoesia, de

    poesia didtica e incide diretamente sobre as teorizaes das vanguardas. Este filo, descendente

    de Mallarm, muito acentuado nos grandes poetas do sculo XX (Paul Valry, T. S. Eliot, Joo

    Cabral de Melo Neto, boa parte de Carlos Drummond de Andrade), pois atua basicamente na

    linguagem como meio de renovar uma dico gasta (devido aos excessos de derramamento do

    Eu) em prol de um intelectualismo manifesto atravs de hermetismo ou obscuridade voluntrios.

    Compreende-se destarte a posio de Valry, para quem a poesia fruto de uma

    escolha e um trabalho consciente e lcido, resultado de uma pesquisa infinitamente minuciosa e

    complexa, para ultrapassar o estgio do entusiasmo, pois no se fazem versos com idias e sim

    com palavras. O poema um exerccio jamais inteiramente acabado, podendo ser sempre

    remanejado de novo, culminando no hermetismo. A afirmao de que o poeta um arquiteto

    enfatiza um novo culto da forma, disfarado, no qual o poder encantatrio da forma corresponde

    a uma festa do intelecto. Esta linguagem dentro da linguagem despertaria no leitor um universo

  • potico que harmoniza a expresso elaborada e o contedo racional. Segundo este autor, o artista

    deve convocar, dentre as riquezas disponveis, aquelas que correspondem ao seu desejo de

    beleza, resistir a elas para melhor control-las e selecionar palavras e imagens com total cons-

    cincia. Assim se chegaria ao encantamento e ao milagre. J que a linguagem contm recursos

    emotivos misturados s suas propriedades prticas e diretamente significativas,

    o dever, o trabalho, a funo do poeta so tornar evidentes e atuantes as

    potencialidades de movimento e encantamento, excitantes da vida afetiva e da

    sensibilidade intelectual que so confundidas na linguagem usual com os signos

    e os meios de comunicao da vida ordinria e superficial. (...) Esta palavra

    extraordinria se faz conhecer e reconhecer pelo ritmo e pelas harmonias que a

    sustentam e que devem ser to intimamente, e mesmo to misteriosamente

    ligados ao seu engendramento, que o som e o sentido no se possam mais se-

    parar e se correspondam infinitamente na memria.

    Estas trs interpretaes do fenmeno lrico no se dissociam por completo, j que

    decorrem da prpria essncia da Lrica. o predomnio de um dos aspectos sobre os demais que

    leva conceituao deste tipo de poesia em emocional, social ou racional. Afinal todas estas

    variantes decorrem do prprio ponto de partida, que a manifestao da subjetividade. Dai

    resultam as diferentes verses histricas, cujos pontos mais marcantes na literatura ocidental so

    abordados na seqncia cronolgica de ocorrncias que preenchem este volume.