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Trabalho realizado para a u.c. de Escrita Criativa
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ESCRITA CRIATIVA
UM ESPAÇO, UMA “ESTÓRIA”
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Docente: Professora Dr.ª Inês Amaral
Discente: Maria de Castro e Sousa Maló de Abreu
Deitado na minha cama confortável, de lençóis macios e quentes, vejo as ondas
de calor a percorrerem o quarto. Conto sem conta as pintas douradas do meu cobertor
castanho, gasto pelo uso, gasto pelo tempo. Olho para o tecto e conto as estrelas que
outrora colei, quando ainda era miúdo e achava que no tecto brilhava a via láctea. Vi e
revi, vezes sem conta, as constelações, contava-as em voz baixa, Ursa Maior, Ursa
Menor, Escorpião, todas as que existiam no universo e todas as que eu acrescentava na
escuridão da noite iluminada pelo brilho reflectido nas estrelas do meu tecto. Ainda hoje
lá estão, com o brilho gasto, com as pontas a ceder à lei da gravidade, mas de lá só
sairão quando a idade as fizer perder a cola.
Desço o meu olhar para a porta do armário, porta que tem falhas na madeira,
falhas tortas, umas mais gastas do que outras, falhas provocadas pelo retocar da
adolescência no uso da fita-cola e da pastilha elástica, que anos antes seguraram
cartazes dos meus ídolos femininos, das miúdas mais giras dos meus olhos a fervilhar
de hormonas prestes a entrarem em erupção, como se de um vulcão se tratasse. Cada
poro do meu corpo, emanava fogo, calor que descia pelo meu corpo abaixo, como se
fosse uma cascata de desejos quentes, repleta de cenas escaldantes com as protagonistas
que, do papel colado às portas, sorriam para mim, contorciam os seus esbeltos corpos e
até mandavam beijos delicados, os quais eu agarrava no ar e colava à minha boca uma
vez que jamais os colaria às minhas bochechas cheias de borbulhas, o famoso Acne.
Hoje as miúdas foram-se, aos poucos o tempo foi-as substituindo por motas poderosas
de enormes cilindradas, depois vieram os carros descapotáveis, e, hoje, restam as
paredes despidas de cores e com cicatrizes.
Continuo a descida do meu olhar e fixo-o no chão, penso, ainda tenho o tapete
de sempre. Será possível que nunca me tenha ocorrido a simples ideia de o substituir por
um mais adequado à minha idade, pois este ficou esquecido na mudança dos anos da
vida. Os meus chinelos, que foram cedendo lugar a outros e mais outros, sempre se
deixaram repousar neste tapete tão velho, que por muito que tente neste momento,
simplesmente não lhe consigo definir a cor. Penso em substitui-lo na próxima
oportunidade mas, de repente, lembro-me das inúmeras histórias que ele tem para
contar. Das inúmeras vezes que corpos nus por ali se deleitaram, das manchas de
comida esquecidas de limpar pela simples preguiça de me inclinar e recolher migalhas,
de passar um pano húmido pelo sumo que deu uma nova cor ao tapete. É melhor não,
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não vou trocar este velho companheiro, onde os meus pés já se habituaram a pousar, por
outro novo e reluzente, mas pior que isso, por outro sem uma única história alegre ou
triste para me contar. Sim querido tapete, tu ficas, aqui para todo o sempre. Já podes
mudar para a cor da alegria.
Percorro os tacos de madeira envelhecidos e gastos de tantas lavagens, e reparo
que há anos que digo que tenho de substituir estes dois aqui junto à escrivaninha, pois
estão a sobressair e estou sempre a tropeçar neles. Quantas vezes já ouvi o pronuncio de
uma queda fatal, de um golpe misericordioso na minha cabeça que mostrará o troféu dos
pontos que um dia levarei, quantas vezes já ouvi que ficaria com a minha linda face
deformada pela cicatriz que levarei ao cair no chão, apenas porque tenho a enorme falta
de vontade de os trocar ou até mesmo colá-los. Agora sigo para o espelho e vejo a cara
linda que tantas vezes ecoa nos meus ouvidos pela voz da minha mãe. Cara linda, essa
observação é boa, porque é que será que todas as mães nunca têm coragem de admitir
que seu filho é feio, e quando digo feio, é mesmo feio. Será que quando for pai acharei
o meu filho lindo, mesmo sendo feio, ou terei a coragem de dizer e assumir que é
mesmo um pequeno monstro de feições? Só o tempo o dirá. Mas fica o pensamento
registado para memória futura.
Na continuidade da minha peregrinação pelo meu quarto, sou interrompido pelos
berros da minha mãe a chamar por mim. Mas que chatice, lembra-se sempre de qualquer
coisa completamente inútil para eu fazer. Será que ainda não percebeu que não sou o
único habitante deste edifício chamado lar? Há mais pessoas a partilhar este espaço
físico. Já sei que fazer, finjo que durmo e se for preciso até ressono. Aqui vai, oiçam o
meu ressonar, pareço ou não um lindo porco, em dia de sol, a esfregar-me feliz pela
lama? Eu sabia que concordariam com os meus sons. Afinal é domingo de manhã,
manhã quase a chegar ao almoço, mas é dia de pausa merecida.
Oiço passos, o som aumenta, pararam em frente à minha porta. Oiço a maçaneta
a rodar com rapidez e de olhos bem fechados e com a boca a fazer o ronco, consigo ver
a cara da minha mãe que vacila entre a fúria de ainda estar deitado nesta bela vida
dominical de solteiro e bom rapazito e o ar doce de quem olha um filho, como se da
primeira vez se tratasse. Sinto a respiração dela, sinto o olhar dela, vejo-lhe o sorriso e
oiço os passos doces a fazerem inversão de marcha, o silêncio restabelece-se e só fica
no ar o rodar da maçaneta, desta vez leve e o afastar da querida mãe que deixa o seu
filho descansar mais um bocadinho. Sim, mais uma vez fui um herói, mais uma vez ela
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a heroína, mais uma vez um final feliz para este domingo frio de Inverno, mas quente de
coração.
Abro os olhos, a claridade continua a invadir o quarto que nunca dorme de
portadas fechadas, pois a lua ilumina a escuridão, dá vida às estrelas e conta histórias de
carneiros a embalar o sono nas nuvens altas e fofas. Perdi-me na minha peregrinação.
Perdi-me com esta cena de enganar a minha mãe. Mas continuo a ouvir a voz dela a
chamar por outro inquilino, mas não percebo quem ela está a chamar desta vez. Oiço
risos e passos. Fecho os olhos e volto para o lugar onde estava. Abro-os e vejo os tacos.
Conto-os até chegar ao rodapé mais próximo, o da esquerda, reparo que já não é
limpo há semanas, tenho uma nova reclamação para colocar no livro de reclamações da
família. Argumento contra a falta de limpeza eficaz no meu castelo e oiço lamentações.
Secalhar o melhor é não dizer nada, para evitar discursos antigos em tempos modernos.
É melhor não dizer nada. Sigo o rodapé até à porta de entrada e saída do meu castelo
privado, da minha Caixa de Pandora, do meu álbum mental de recordações, claro que
estou falar da porta do meu quarto, cuja maçaneta do lado de fora suporta o aviso para
não perturbar o seu inquilino, Eu, claro e óbvio. Porta que também tem as suas feridas,
causadas por mim e pelos meus ataques de fúria contra o mundo cruel que desconheço
tantas vezes, fúria contra a invasão de extraterrestres familiares que insistem em
desvendar os meus segredos, fúria contra a perseguição do cão parvo que por aqui
habitou e do meu gato fiel e selvagem que tantas vezes me aqueceu os pés nas noites
mais frias e até me trazia oferendas, pulgas sedentas de sangue humano, ratinhos
descontentes que se suicidavam na boca do Riscas e partes incertas de corpos de
pássaros que acreditavam em voos rasantes e eficazes, pois se voassem alto nenhum
gato os apanharia. Riscas, guardo as tuas fotografias na minha gaveta dos mistérios,
jamais te esquecerei, não te preocupes.
Percorro toda a porta, remendada aqui e acolá, e de repente deparo-me com as
paredes nuas, de cor incerta, entre o branco sujo e o amarelo das tardes de tabaco
escondido, das noites de experiências com cachimbo. Uma vez disseram-me que fumar
cachimbo dava um ar de macho latino, eu ainda adolescente e com baixa auto-estima,
achei que as miúdas iam cair aos meus pés quando me vissem a fumar cachimbo, a dar
baforadas em forma de círculos de fumo, tão sexy. Foi simplesmente uma enorme perda
de tempo, fiquei com uma crise de asma, e ainda oiço às vezes o eco nos meus tímpanos
dos berros alternados entre a voz furiosa e estridente da minha mãe e as ameaças da voz
grossa do meu pai. Lá se foi a pose sexy e as miúdas a meus pés.
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Onde estão os cartazes que colei pelas paredes do meu quarto para dar cor ao
meu mundo secreto? Perderam-se no tempo, nas limpezas avassaladoras de verão que
minha mãe, ajudada pela minha avó, fazia. Lembro-me de ficar a olhar para elas e tentar
perceber de quem elas falavam mal, ouvia nomes conhecidos, mas as histórias que se
soltavam no ar tinham enredos estranhos. Misturavam nomes, situações. Às vezes
perguntava de quem falavam, claro que a resposta eram quatro-olhos bem abertos,
sorrisos semi-serrados e um rosnar de dentes. Sabia então que estava mais do que na
hora de mudar o meu local físico. Lá me ia eu embora continuando sem perceber nada.
Ainda hoje pergunto-me, como elas se entendem tão bem numa linguagem cheia de
códigos.
Continuo a percorrer as paredes e paro o meu olhar na janela. Há muito que
deixou de ter os velhos caixilhos de madeira, agora substituídos pelos de alumínio,
prateados. Gostava mais dos outros, gostava de escrever na madeira o nome das minhas
namoradas platónicas, porque as minhas namoradas reais foram apenas duas. Pobre de
mim, no meio dos meus vinte anos e apenas, duas namoradas. Os meus amigos gozam
comigo, tentam ensinar-me técnicas de engate, mas quando as utilizo, é um verdadeiro
desastre. Às vezes penso que o que me dizem para fazer, devia fazê-lo de modo oposto.
Quando digo este ou aquele piropo, a cara delas transforma-se, deixa de haver o sorriso
a mostrar os dentes, que nem sempre são lá muito lineares e branquinhos. Na realidade,
os meus dentes, são dignos do famoso anúncio da Colgate. Um dia destes, mudo de
técnica e não lhes digo absolutamente nada.
Estes meus amigos, amigos das borgas, das bebedeiras, das ressacas do dia
seguinte, do futebol aos domingos à tarde, dos engates mal sucedidos e das eternas
discussões sobre o nosso clube de eleição. Somos famosos aqui na Vila por sermos
excelentes treinadores de arquibancadas. Como treinadores, ganhávamos todos os anos
o título de campeões. Às vezes é divertido nas tardes frescas de verão e no arrefecer do
Outono, juntarmo-nos todos no café do Ti’Jaquim e discutirmos, até perder a voz, os
jogos do nosso querido clube. Saímos animados pelas cervejas e perfumados pelo
tabaco, sim, porque é o único café aqui da Vila onde se pode fumar e, ainda bem.
Ora bem, regressemos ao ponto anterior, mais precisamente à minha janela. Tem
uma vista linda. Só de fechar os olhos, consigo ver os meus jardins cheios de cor na
primavera, os campos verdes que rodeiam o exterior do meu castelo, as árvores de fruto
que se estendem ao longo do pomar, os cavalos que se encontram do outro lado da cerca
de arame, sempre livres de amarras. Gosto de os ver correr, faz-me lembrar os filmes
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antigos, aqueles da época do meu pai. Vejo a minha égua e o seu potro à espera que lá
vá dar a maçã. Chama-se Bonita, é de raça Puro Lusitano, castanha, de porte altivo,
muito elegante. Sempre que tenho tempo ainda fazemos grandes cavalgadas pelos
montes. Fazer criação de cavalos é uma tarefa árdua, mas extremamente compensadora.
Levar uns coices faz parte da vida de cavaleiro.
De repente lembrei-me, que o meu fiel companheiro, de há uns anos para cá, se
encontra em pleno silêncio. Parece morto. Procuro por ele ainda deitado na minha cama
quentinha, não o vejo, começo a ficar ansioso, tento lembrar-me da última vez que o vi,
faço um esforço enorme, nada me vem à memória. Começo a ficar preocupado se o terei
deixado em lugar de fácil acesso a terceiros, começo a imagina-los a entrar no menu
principal, no menu das mensagens, a lê-las e rirem-se de mim, a abrirem a boca com os
textos lá cuidadosamente guardados, começo a suar. Tenho de tomar uma decisão
rápida, levantar-me já da minha caminha e procura-lo antes que aconteça um desastre.
Continuo a imaginar a cara do inimigo a ler tudo, a ver as imagens impróprias, perco
tanto tempo a fazer este filme mental que nem consigo concentrar-me relativamente ao
local onde o terei deixado.
Já sei, escondi-o no sapato ontem à noite, depois de receber aquela mensagem da
Anita. Tão provocadora esta miúda, onde será que vai buscar tanta imaginação para
dizer aquelas coisas, ás vezes é tão excitante como assustador. Pobre amigo que hoje
deve cheirar tão mal… mas se está tão silencioso, o mais certo é ter ficado sem bateria
ou ter sido esquecido no modo silêncio. Vou imediatamente salva-lo da escuridão do
sapato. Tantas mensagens, esta miúda é mesmo muito animada.
Oiço vozes a chamar por mim. Lá vem a minha mãe outra vez. Confesso que
agora ela tem razão, já passa muito das 13horas e tenho mesmo que fazer a minha
higiene pessoal, para depois comer a comidinha saborosa que ela nos prepara, mas
sempre a lamentar-se. Não compreendo as mulheres: fazem-nos todas as vontades, mas
sempre com aquele ar triste, com a lágrima a tentar cair. Se as elogiamos, dizem que
estamos a mentir. Lá vou eu escolher a roupa de domingo, responder às mensagens da
Anita e tentar marcar um café com ela para o fim da tarde.
Já vou, mãe. Estou mesmo a ir. Já saí do meu quarto e estou na direcção certa, a
casa de banho para tomar banho. Sim mãe, é rápido. Sim, mãe não demoro. Sim, mãe!
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