13
SÃO PAULO, ANO II, N. 04, JAN./ABR. DE 2015 Como o cinema nacional pode ser socialmente relevante e interessante?

Blow-up_desejo, Excitação e Espetáculo Na Imagem_REVISTA ESPAÇO ÉTICA_dossiê Cinema_Fabio Masuda

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Filosofia e Cinema.

Citation preview

  • So Paulo, ano II, n. 04, jan./abr. de 2015

    Como o cinema nacional pode ser socialmente relevante e interessante?

  • dossiSo Paulo, Ano I, n. 04, jan./abr. de 2015 31

    Blow-up: desejo, excitao e espetculo na imagem1

    Fbio Takao Masuda2

    A partir de uma reflexo sobre o filme Blow-up, este artigo traa uma anlise do estatuto da

    imagem na contemporaneidade, com base na crtica de Nietzsche cultura e s estrutu-

    ras do conhecimento. Para tanto, lanaremos mo dos termos sociedade do espetculo

    (Guy Debord), tcnica de mquinas (Martin Heidegger), desejo mimtico (Ren Girard)

    e choque de imagem(Christoph Trcke), os quais tambm norteiam o eixo de anlise de

    tal obra flmica.

    1. IntroduoO filme Blow-up, do cineasta italiano Michelangelo Antonioni (1912-2007), logo no ano do seu lanamento (1966), obteve

    tima recepo do pblico e foi premiado no Grand Prix do Festival de Cannes de 1967. No Brasil, a pelcula recebeu o ttulo Depois

    Daquele Beijo. Para elaborar o roteiro desse longa-metragem, Antonioni se inspirou livremente no conto do escritor Jlio Cortzar

    (1914-1984), Las babas del diablo, que foi publicado originalmente na Argentina em 1959. Desse modo, a trama, aparentemente

    simples, traz como protagonista um famoso fotgrafo de moda, Thomas, que trabalha na cidade de Londres dos anos de 1960.

    De um lado, mesmo sendo bem-sucedido profissionalmente, Thomas no parece nada satisfeito com a maioria das suas ativi-

    dades desenvolvidas no mundo fashion com exceo da cena do incio do filme, em que ele realiza um ensaio fotogrfico com a

    modelo Veruschka3. Nessa sequncia antolgica, existe a simulao de uma cena de sexo mediado pela prpria cmera do fotgrafo,

    cujo impacto imagtico descarta qualquer tipo de legenda do que a encenao cinematogrfica se props a simular. No restante do

    seu cotidiano no circuito da moda, Thomas expressa, recorrentemente, enfado, cansao e irritao no set preparado em seu estdio.

    Por outro lado, Thomas somente demonstra desejo, excitao e fascnio quando seu senso esttico afetado por um encontro com o

    mundo, cuja potencialidade pode ser captada por algum enquadramento de sua mquina, seja este usual ou no. Tal fato confir-

    mado com a sequncia em que ele arrebatado, inusitadamente, por uma hlice encontrada num antiqurio, objeto este que, apesar

    do estranhamento, vai compor o ambiente de seu estdio. No obstante, isso passa pela mediao do seu olhar atravs da lente da

    cmera fotogrfica, ou seja, as coisas adquirem valor quando Thomas imprime uma ordem prpria para a desordem do mundo e para

    o turbilho da vida. Esse ordenamento ocorre, de certa maneira, como uma compensao, j que sua atividade profissional lhe causa

    tdio na maior parte do tempo. Portanto, no se trata de uma ao desinteressada do fotgrafo.

    1 Este trabalho consiste em um desdobramento de uma pesquisa de doutorado desenvolvida no Programa de Ps-Graduao em Histria Social da USP. 2 Bacharel, licenciado e doutorando em Histria pela Universidade de So Paulo. diretor de cinema documentrio, tendo como principal trabalho o filme Retra-tos Frgeis (Brasil, 2013). [email protected] Veruschka foi uma famosa modelo dos anos de 1960. Neste filme, portanto, podemos dizer que ela interpreta a si mesma.

    Imagem

    conhecim

    ento

    IdentIdade

    sociedade

    do

    espetcu

    lo

  • dossiSo Paulo, Ano I, n. 04, jan./abr. de 2015 32

    Um dos momentos de quebra dessa monotonia em meio aos inmeros cliques disparados pela sua mquina em face das poses

    das modelos, ou aspirantes a estrelas das passarelas da alta-costura, consiste na ocasio em que Thomas fotografa um misterioso

    e desconhecido casal num parque da cidade londrina. Essa situao excita-o, quase como um voyeur, que tem prazer ao observar a

    relao ntima de outros. Porm, a moa do parque descobre o fotgrafo escondido entre rvores e arbustos. Ela corre atrs dele para

    tomar o filme da mquina. Contudo, ele no entrega os negativos para a moa. Assim, ela persegue-o em busca das fotos, at a sua

    morada. Isso intriga o fotgrafo, ainda mais pelo jogo de seduo que ela empreende em sua residncia na esperana de recuperar

    os registros nos negativos. Mais uma vez, Thomas no lhe entrega os filmes, pelo contrrio, apenas finge devolver, visto que o pote

    estava vazio. Ento, aps a sada da moa misteriosa, Thomas passa a revelar os negativos e executa sucessivas ampliaes, inclusive

    de fotos ampliadas de outras fotografias (tcnica denominada blow-up). Com isso, aps algumas interrupes, o fotgrafo percebe

    (?) que a sequncia narrativa de cada frame (quadro ou fotograma) colocado em uma linha temporal, estruturada em sua memria,

    denuncia um assassinato. Mas como isso possvel, se Thomas no viu absolutamente nada no parque, com exceo do namoro e do

    beijo do casal, ao passo que as ampliaes das fotos lhe mostram uma fria execuo? O que realmente aconteceu naquele parque?

    Em meio a tantas questes ensejadas pela narrativa audiovisual de Antonioni, o que salta aos olhos o tema que gira em torno

    de como se constroem as imagens e como, a partir delas, produzido o conhecimento. Ou talvez seja at mais radical: a impossibi-

    lidade de uma apreenso objetivamente neutra da realidade tanto por meio das suas imagens percebidas por nossos rgos senso-

    riais, quanto por meio da razo, similarmente postura de dvida do ceticismo quanto pretenso da filosofia de conhecer a phsis

    como realidade originria e verdade ltima de todas as coisas (CHAU [1994], 2002, p. 169). Nesse sentido, essa obra cinematogrfica

    contesta o estatuto epistemolgico tanto da imagem esttica quanto da imagem em movimento, isto , da fotografia e do prprio

    cinema, respectivamente, na medida em que o espectador do filme outro que tambm no visualiza o assassinato no parque. S

    possvel enxergar o mesmo que o campo de viso de Thomas, ou o que a sua lente fotogrfica capacita o espectador a abarcar.

  • dossiSo Paulo, Ano I, n. 04, jan./abr. de 2015 33

    Com essa soluo cinematogrfica, Antonioni critica e ironiza a postura de certeza do homem diante do que sua viso capaz de

    apreender, o que uma postura extremamente consciente e ousada, uma vez que a sociedade, desde ento, cada vez mais guiada

    pelo olhar, pela excitao gerada pelos estmulos visuais e pelo espetculo imagtico. Desse modo, o discurso cinematogrfico de

    Antonioni faz uma crtica de sua prpria linguagem artstica, utilizando a metalinguagem, uma vez que faz uso da imagem para

    desestabilizar a credibilidade epistmica de seu prprio estatuto discursivo.

    2. O estatuto da imagem na sociedade que deseja excitao e espetculoA problemtica presente em Blow-up, em um primeiro momento, concentra-se na discusso sobre a possibilidade de se

    alcanar certezas, ou apenas iluses acerca do que nos informado atravs da imagem. No segundo momento coloca-se o

    questionamento do que significa ver e como se estruturam as imagens na contemporaneidade, embora esses dois momentos

    do problema se entrecruzem durante a realizao flmica. Nessa direo, Thomas se encontra em uma situao aportica entre

    a verdade e a mentira do que ele viu no parque. Essa aporia da personagem ocorre de acordo com o diagnstico realizado por

    Nietzsche, o qual j nos alertava, quase um sculo antes do filme, sobre o trao de arbitrariedade que rege a construo do co-

    nhecimento, cujo assentamento se localiza na transposio da percepo do mundo em imagens. Essas ltimas, por sua vez, so

    transpostas e enunciadas em palavras e conceitos, que estruturam a linguagem tanto cientfica quanto potica: De antemo,

    um estmulo nervoso transposto em uma imagem! Primeira metfora. A imagem, por seu turno, remodelada num som! Segunda

    metfora. E, a cada vez, um completo sobressalto de esferas em direo a uma outra totalmente diferente e nova (NIETZSCHE

    [1873], 2008, p. 31). Como consequncia, Nietzsche nos faz recordar que as imagens, os sons das palavras e at os conceitos

    tambm so metforas, as quais se tornaram sedimentadas e, por isso, esquecemo-nos desse seu carter estrutural. Dentro desse

    escopo, determinados problemas filosficos que envolvem a epistemologia, juntamente com a questo histrico- cultural em

    torno do fundamento referencial da imagem e suas condies de produo e seus efeitos de manipulao, assumem uma posio

    fundamental para a presente discusso sobre o Blow-up. Nesse contexto, o filme projeta a questo da dvida e da certeza que

    passa, inclusive, por nossa insuficincia e limitao em apreender sensorialmente a realidade, a qual, no caso de Thomas, per-

    cebida por meio da viso, do seu posicionamento diante do mundo e atravs da tcnica, representada pela lente de sua cmera

    fotogrfica. Com efeito, entendemos o desespero de Thomas, visto que as suas certezas foram desestabilizadas no momento em

    que ele confrontou a memria conservada das imagens do casal no parque com o resultado, ulterior, das sucessivas ampliaes

    dos negativos. Assim sendo, podemos considerar que a fotografia pode gerar mltiplas perspectivas e interpretaes, porque

    mesmo quando os fotgrafos esto muito mais preocupados em espelhar a realidade, ainda so assediados por imperativos de

    gosto e de conscincia (SONTAG [1977], 2004, p. 17). Logo, trata-se, inevitavelmente, de uma leitura, ao mesmo tempo, limita-

    da da realidade, assim como carregada de subjetividade inscrita nos enquadramentos selecionados a cada clique, que imputam

    valores diretivos a uma pretensa imparcialidade da imagem. H, por conseguinte, desvios que encobrem, deformam e deslocam

    a verdade, cujo carter est muito longe da iseno. Ora, o que est em jogo a (im)possibilidade de obtermos um conhecimento

    objetivo tanto por meio da experincia perceptiva, quanto por meio da linguagem escrita ou imagtica dos fatos, visto que o

    corpo que experimenta e pronuncia a percepo j segue um vis interpretativo, que delineado pelos seus rgos sensoriais e

    pelos valores de julgamento presentes no seu horizonte moral.

  • dossiSo Paulo, Ano I, n. 04, jan./abr. de 2015 34

    Esse problema descerrado por Nietzsche se intensifica e adquire novos contornos, posto que, diante da disseminao exponencial

    de imagens4 na contemporaneidade, cuja produo em massa atinge escala global, constatamos que h no somente a saturao da

    viso, mas tambm um empobrecimento das reflexes que as imagens podem suscitar. Nada de inteiramente novo para Nietzsche,

    visto que seus apontamentos foram confirmados e, portanto, retomados por outros pensadores (GIACOIA JUNIOR, 2008, p. 16). Po-

    rm, imprescindvel salientar que o problema no reside na imagem e, sim, nos efeitos causados pela exacerbao da sua gerao

    tcnica nas sociedades contemporneas. Com isso, h a propenso perda do sentido reflexivo causada, exatamente, pelo excesso,

    porque com a gerao de um grande volume imagtico, ocorre a abdicao quase que inevitvel e a recusa do ato de pensar, jus-

    tamente, pela ausncia de tempo para exercer a reflexo sobre um nmero infindvel de imagens produzidas a cada segundo. Seria

    como se a maioria das pessoas desejasse apenas exercer o poder de registrar aquilo que primeiro se apresenta de imediato ao seu

    campo visual, ou, at de modo insensato, aquilo que no se v na superfcie visual e s, posteriormente, revela-se revelia do prprio

    fotgrafo, semelhante ao que aconteceu com Thomas naquele dia fatdico no parque. Destarte, o entendimento e o pensamento so

    afastados e relegados ao esquecimento em face da obteno da autonomia da imagem em relao sua constituio pelos sujeitos.

    Tal processo sucede tanto do ponto de vista da objetividade quanto da significao. E esse mesmo processo nos remete a um momen-

    to histrico especfico da civilizao humana, cujo desenlace culmina na modernidade, expressa na racionalidade lgico-cientfica.

    Ora, a escalada planetria do domnio tcnico-cientfico da natureza (GIACOIA JUNIOR, 2008, p. 18) e a sua produo massificada

    de imagens foram aladas ao patamar atual, precisamente, no momento decisivo em que doravante o mundo tornou-se imagem,

    de acordo com o que Heidegger postulou em uma Conferncia de 1938: o que distingue a essncia da modernidade no o que se

    transite de uma precedente do mundo medieval para uma imagem do mundo moderna, mas sim que o mundo se torne, em geral,

    imagem (HEIDEGGER [1938], 1998, p. 113). No obstante, isso s foi concebido com o advento da tcnica moderna. Para Heidegger,

    essa tcnica da modernidade advm da cincia que, por sua vez, origina-se da metafsica. E a metafsica o prprio esquecimento do

    ser. Portanto, a tcnica a transformao autnoma das prticas e, ao mesmo tempo, o reflexo longnquo do esquecimento do ser.

    Aos fenmenos essenciais da modernidade pertence a sua cincia. Um fenmeno de um nvel igualmente importante

    a tcnica de mquinas. No entanto, no se pode confundi-la com a simples aplicao prtica da moderna cincia natural

    matemtica. A tcnica de mquinas ela mesma uma transformao autnoma da prtica, de tal modo que esta que

    exige o emprego da cincia natural matemtica. A tcnica de mquinas permanece o rebento at agora mais visvel da

    essncia da tcnica moderna, a qual idntica essncia da metafsica moderna (HEIDEGGER [1938], 1998, p. 97).

    4 Em 2013, o Facebook divulgou alguns dados de seu armazenamento (Big data) de imagens: durante o tempo de existncia, contabilizado at o ano de 2013, esta rede social acumulava mais de 250 bilhes de fotos, uma mdia de 350 milhes de uploads por dia, o que significa: 14.580.000 uploads de fotos por hora, 243.000 uploads de fotos por minuto, 4.000 uploads de fotos por segundo. Alm disso, h um imenso trfego de usurios que compartilham 4,75 bilhes de itens de contedo por dia incluindo mensagens, comentrios, vdeos, fotos e atualizaes de status, de acordo com a publicao do site Mashable: , acessado em 20/09/2013. Acrescentam-se a esta estatstica os nmeros de visualizaes do YouTube: O YouTube tem mais de um bilho de usurios; todos os dias as pessoas assistem a centenas de milhes de horas de vdeo no YouTube e geram bilhes de visualiza-es; ano aps ano, o nmero de horas por ms que as pessoas assistem no YouTube cresce at 50%; 300 horas de vdeo so enviadas ao YouTube a cada minuto; o YouTube est localizado em 75 pases e disponvel em 61 idiomas; metade das visualizaes do YouTube em dispositivos mveis. Tais informaes esto dispo-nveis no prprio site do YouTube: , acessado em 14/03/2015. J na pgina do Instagram, encon-tramos a informao de que em dezembro de 2014, este servio chegou a 300 milhes de usurios, os quais partilham mais de 70 milhes de fotos e vdeos por dia , acessado em 14/03/2015.

  • dossiSo Paulo, Ano I, n. 04, jan./abr. de 2015 35

    Logo, as tecnologias contemporneas no so meramente instrumentos ou ferramentas, elas so a prpria imagem do mun-

    do contemporneo, que determinada pela tcnica de mquinas. E tal imagem do mundo, compreendida essencialmente, no

    quer, por isso, dizer uma imagem que se faz do mundo, mas o mundo concebido como imagem (HEIDEGGER [1938], 1998, p. 112).

    Entretanto, no se trata de demonizar a tcnica, porque a tcnica no o que h de perigoso. No existe uma tcnica demonaca,

    pelo contrrio, existe o mistrio da sua essncia. A essncia da tcnica, enquanto um destino do desabrigar, o perigo (HEIDEGGER

    [1959], 2007, p. 390). Por isso, ser contemporneo saber enfrentar este perigo e no se deixar enfeitiar. Incumbncia que o pen-

    sador italiano Giorgio Agamben, que foi aluno de Heidegger, perseguiu em sua obra: Compreendam bem que o compromisso que

    est em questo na contemporaneidade no tem lugar simplesmente no tempo cronolgico: , no tempo cronolgico, algo que urge

    dentro deste e que o transforma. E essa urgncia a intempestividade (AGAMBEN [2008], 2009, p. 65). Nesse sentido, Agamben,

    ao seguir as prelees de seu mestre e tambm ao retomar uma obra de juventude de Nietzsche Consideraes intempestivas ,

    prope-se a compreender a contemporaneidade e o contemporneo. Todavia, para que tal empresa seja bem-sucedida, preciso agir

    intempestivamente no seu prprio tempo, ou seja, Agamben aponta o carter flutuante presente no brilho das imagens do contem-

    porneo e no espetculo das luzes do seu tempo, os quais ofuscam e at substituem o real. Logo, se nossos olhos s ficarem presos s

    luzes do presente, no possvel enxergar e compreender a contemporaneidade, uma vez que a realidade composta tanto de luz

    quanto de sombra: contemporneo aquele que mantm fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber no as luzes, mas o escuro

    (AGAMBEN [2008], 2009, p. 62).

    Por isso o filme de Antonioni vem tona, j que proporciona encontros com a contemporaneidade de maneira intempestiva.

    Dessa forma, essa experincia flmica propicia aos seus espectadores modos de problematizar o estatuto da imagem e criar itinerrios

    que abrem a discusso em mbito interdisciplinar, sob o foco da tela do cinema. Muitos dos temas vinculados ao debate do contem-

    porneo esto presentes e so anunciados, em graus distintos de acentuao, nessa obra. Assim, a riqueza dessa pelcula permite

    no apenas verificar o problema, simplesmente, do vis epistemolgico tradicional da relao entre sujeito (Thomas) e o objeto (ima-

    gem), mas tambm possibilita a discusso acerca do prprio processo de construo do conhecimento, a partir do perspectivismo que

    integra os modos do ser e, por conseguinte, as suas representaes e intenes significativas presentes nas imagens.

    Portanto, diante da polissemia apresentada por Blow-up, um tratamento rigoroso e que seja capaz de potencializar reflexes,

    intempestivamente, no pode restringir-se oposio entre essncia e aparncia, presente na filosofia clssica. Deve, sim, operar

    a partir de uma entrada genealgica (NIETZSCHE [1887] 1998, p. 65-66) aos temas do filme e um confronto intempestivo com as

    perspectivas filosficas, os elementos histricos e culturais ensejados pela obra. Dessa maneira, possvel apreender a gestao e

    emergncia do tempo espetacular, que foi definido por Guy Debord:

    O tempo pseudocclico consumvel o tempo espetacular, tanto como tempo do consumo das imagens, em sentido restrito,

    como imagem do consumo do tempo, em toda a sua extenso. O tempo do consumo das imagens, meio de ligao de todas

    as mercadorias, o campo inseparvel em que se exercem plenamente os instrumentos do espetculo, e o objetivo que estes

    apresentam globalmente, como lugar e como figura central de todos os consumos particulares: sabe-se que os ganhos de

    tempo constantemente procurados pela sociedade moderna seja nos transportes rpidos, seja no uso da sopa em p tra-

    duzem-se de modo positivo para a populao dos Estados Unidos no fato de ela poder assistir televiso, em mdia, de trs

  • dossiSo Paulo, Ano I, n. 04, jan./abr. de 2015 36

    a seis horas por dia. A imagem social do consumo do tempo, por seu lado, exclusivamente dominada pelos momentos de

    lazer e de frias, momentos representados distncia e desejveis por definio, como toda a mercadoria espetacular. Essa

    mercadoria explicitamente oferecida como momento da vida real, cujo retorno cclico deve ser aguardado. Mas, mesmo

    nesses momentos concedidos vida, ainda o espetculo que se mostra e se reproduz, atingindo um grau mais intenso. O

    que foi representado como vida mais realmente espetacular (DEBORD [1992], 1997, p. 105-106).

    Ora, esse processo de espetacularizao da vida atingiu um nvel de agudez social sem precedentes na contemporaneidade, por

    meio do qual todos os sujeitos so expostos e, concomitantemente, consomem uma profuso de imagens, sejam elas reproduzidas

    na tela da televiso, das tecnologias mobile, do computador, da propaganda publicitria, do cinema, do videogame etc. Nunca o ho-

    mem disps de tantas telas no apenas para ver o mundo, mas para viver sua prpria vida. E tudo indica que o fenmeno, sustentado

    pelas proezas das tecnologias high-tech, vai se estender e se acelerar ainda mais (LIPOVETSKY; SERROY [2007], 2009, p. 255). Nessa

    senda, Blow-up (1966) foi capaz de sintetizar e antecipar o que Debord e os situacionistas denominaram de A sociedade do espetcu-

    lo, que foi publicada originalmente em 1967.

    E a sociedade do espetculo a que vivemos ainda, pois o espao contemporneo composto e moldado por imagens, o que

    parece alinhar-se com o fato de que necessitamos, cada vez mais e em doses maiores, de estmulos sensoriais, principalmente os visuais,

    os quais retroalimentam o prprio mundo de imagens. Ao longo do sculo XX, houve a intensificao do frenesi causado por meio da

    avassaladora onda de imagens, que irrompeu por toda a sociedade. Nesse sentido, as imagens se tornaram cada vez mais profusas na

    contemporaneidade e centrais para compreender-se a cultura dessa condio histrica. Desse modo, no novidade alguma afirmar que

    vivemos em um mundo no qual h o predomnio de um regime visual, em todas as esferas da nossa existncia. Com efeito, somos me-

    diados por imagens, somos consumidores de imagens e, de certo modo, somos submissos ao espetculo imagtico, posto que o prprio

    ato de consumir ocorre, primeiro, atravs da imagem do produto e no pelo produto em si. Isso verificado quando os sujeitos sentem

    o desejo por comprar apenas pelas imagens que representam a publicidade das

    mercadorias. Trata-se da ausncia da referncia da imagem, sem que se tenha

    a noo de tal perda e dissoluo. Mas h quem produziu e assumiu a prpria

    referncia dessa imagem gerada para o consumo, cuja funo preencher o

    tempo espetacular dos sujeitos.

    Nessa esteira de reflexo, outro pensador, o alemo Christoph Trcke,

    que cunhou a denominada filosofia da sensao, parte do diagnstico

    de Debord e aponta para os efeitos desta condio histrica:

    A presso de proclamar novos tipos de sociedade uma caracterstica da sociedade

    da sensao, e ela no nova, pois h sculos j se trama. Ela tambm j foi nomeada

    A sociedade do espetculo. Guy Debord [...] marcou a ferro e fogo, sob esse ttulo, o espetculo miditico como

    espetculo de feira transformado, o chamativo audiovisual como propaganda alavancada de mercadorias, o culto

    imagtico como fetichismo da mercadoria estetizado, o moderno como apogeu do arcaico (TRCKE [2002], 2010b, p. 11).

  • dossiSo Paulo, Ano I, n. 04, jan./abr. de 2015 37

    Destarte, todos so atingidos, a cada piscar de nossos olhos, pelo espetculo produzido por meio da maquinaria high-tech das

    imagens e sons eletrnicos. Ela inunda o olho e o ouvido com uma abundncia de estmulos que no d nenhuma chance at mesmo

    para somente a sua elaborao toleravelmente proporcional (TRCKE [2009], 2010a, p. 157). Exemplo agudo dessa condio a

    sequncia do show da banda de rock The Yardbirds, que apresentada no filme Blow-up. Nesse show, o pblico est sob o efeito da

    metralhadora audiovisual, constatado at pela distrao concentrada dos jovens que compem a plateia, os quais ou esto sen-

    tados, ou em p e imveis, com exceo de um casal danando ao fundo: O contnuo abalo de todos os estados sociais, abalo este

    que se origina do mercado absoluto, se traduz na metralhadora audiovisual e penetra cada forma de intuio da sensao, [...] para a

    qual se retorna sob um novo ponto de vista: o da distrao concentrada (TRCKE, 2010b, p. 263). Dessa maneira, todos que assistem

    ao show parecem no enxerg-lo realmente, pois esto em puro transe causado pelo espetculo da metralhadora audiovisual. At

    mesmo o casal, que dana ao fundo, parece fora do ritmo da msica, destoa da melodia frentica com seus passos lentos e distrados.

    Entretanto, o ritmo da maquinaria quebrado: o amplificador da banda comea a falhar e chiar terrivelmente; ento, o guitarrista,

    Jimmy Page, irrita-se, pois o auxiliar de palco no consegue resolver o problema. Assim, ele fica enfurecido e quebra a sua prpria

    guitarra na caixa do amplificador. Em seguida, lana o brao da guitarra quebrada para o pblico que, em uma atitude violenta, apa-

    rentemente acorda do seu estado letrgico e inicia uma luta incessante e frentica pelo objeto lanado por Page.

    A multido at ento amorfa se precipita, a batalha comea, e Thomas, nosso plcido fotgrafo, em geral to cool, de-

    bate-se como um endemoniado no centro daquela sbita tormenta. Agarra o objeto precioso antes de sair do meio da

    multido hostil e s escapa dos perseguidores com grande dificuldade. Novamente na calma da rua, em frente vitrine

    de uma loja que exibe manequins de plstico to inexpressivos quanto a multido do comeo da cena, toma flego, con-

    templa o objeto fora de seu contexto, um desventurado brao de guitarra quebrado pelo qual acaba de arriscar a vida,

    e larga-o por ali mesmo. Minutos antes aquele objeto era valioso. J no vale mais nada. Uma transeunte viu Thomas

    jogar fora alguma coisa, aproxima-se, pega o objeto e o dispensa tambm. Agora aquilo no passa de um dejeto. Uma

    coisa fora do mundo do desejo. Uma coisa pobre, que em poucos segundos passou da glria absoluta, objeto de todos os

    desejos, sublime solido dos objetos ignorados pelo homem.

    Thomas, fotgrafo de moda, profissional do desejo mimtico, que julgaramos insensvel s suas armadilhas, to logo

    se v em situao coletiva, torna-se exatamente como os outros. E sucumbe ao desejo mimtico, porque simplesmente,

    como diria Ren Girard, por mais lcido que seja, ningum infenso ao desejo [ ].

    O que vemos nessa cena de Blow-up efetivamente a dissoluo do eu do fotgrafo no desejo mimtico: o eu-do-desejo

    perde o lugar para o eu aparente, o indivduo curva-se lei da massa. Ou digamos que, quando cede multido em sua

    presena, o indivduo se recobra no recolhimento e na solido. A cena da multido assemelha-se a um lapso revelador:

    subitamente a ponta do iceberg do eu insular se inverte e revela seu fundamento social e maciamente mimtico. O

    social desponta sob o individual e revela sua iluso fundadora (POURRIOL [2011], 2012, p. 80-83).

    Conforme a citao, a teoria mimtica elaborada por Ren Girard colocada em prtica na anlise de Ollivier Pourriol que pode

    ser passvel de crtica , mas, ao mesmo tempo, evidencia a questo do desejo, suas projees e disputas na sociedade do espet-

  • dossiSo Paulo, Ano I, n. 04, jan./abr. de 2015 38

    culo. Alm disso, a dinmica do processo mimtico tem incio no desejo imitado e passa pela rivalidade. Ento, o desejo mimtico

    no s ocorre pela imitao do outro, como tambm transcorre pela rivalidade intergrupal pelo objeto desejado a disputa uma

    vez que o objeto de desejo o mesmo do outro. Isso engendra a rivalidade mimtica, que torna a prpria disputa mais importante do

    que o objeto do desejo mimtico. Em tal sequncia de cenas da banda The Yardbirds, a rivalidade mimtica incontestvel, tendo em

    vista o desejo ensandecido dos jovens por um brao de guitarra quebrado, que fora do seu contexto social marcado pela maquinaria

    high-tech do show, consiste em pura compulso fundamentada pela reproduo do desejo mimtico. Mas a partir do momento

    em que o objeto lanado ao pblico, a rivalidade explode violentamente e espalha-se como em um rastilho de plvora entre os

    competidores e a busca pela vitria se torna primordial, em detrimento do prprio brao da guitarra. Prova disso que aps Thomas

    vencer a disputa, ele no se interessa mais pelo objeto e abandona-o no lixo, porque o desejo era muito mais pela imagem de parte

    de uma guitarra de um astro do rock do que propriamente pelo objeto. como todos os desejos obsessivos, desejo de poder, desejo

    de riqueza: paixo rivalitria (GIRARD [2008], 2011, p. 79).

    Dessa forma, na sociedade contempornea, ou ps-moderna, como denominam certos autores, o vcio pelas imagens dos ob-

    jetos apresentados pelos choques audiovisuais pode ser enquadrado na imitao de tais desejos obsessivos e paixes rivalitrias

    apontados por Ren Girard. Nesse sentido, Christoph Trcke acrescenta o seguinte:

    O choque de imagem exerce um poder fisiolgico; o olho atrado magneticamente pela sua mudana abrupta de luz

    e apenas se deixa desviar disso por uma grande fora de vontade. O choque de imagem exerce fascinao esttica;

    constantemente ele promete novas imagens ainda no vistas. Ele exercita a onipresena do mercado; o seu olha para

    c anuncia a prxima cena como um pregoeiro de feira a sua mercadoria. E desde que a tela pertence igualmente ao

    computador quanto ao telespectador, no somente preenche mais o tempo livre, mas penetra toda a vida do trabalho,

    ento tambm o choque da imagem e a tarefa de trabalho coincidem (TRCKE [2009], 2010a, p. 308).

    exatamente esse poder fisiolgico do espetculo da onipresena do mercado uma das causas da dependncia pelas ima-

    gens do consumo, as quais so disseminadas nos crans das mquinas. Evidentemente que ocorreu um vultoso desenvolvimento

    tcnico-cientfico, que gerou inegveis benefcios (GABRIEL, 2013, p. 62-63); no entanto, esse mesmo processo produziu, de forma

    ambivalente, outro problema: trata-se da reduo do tempo dedicado aos relacionamentos concretos, devido aos perodos longos

    disponibilizados nos contatos on-line, nos jogos virtuais, em conversas a distncia via softwares etc., que so, ao mesmo tempo,

    facilitadores da comunicao, do acesso informao e do trabalho, bem como um dos grandes responsveis pela perda da experi-

    ncia concreta, na medida em que o vcio nas relaes on-line so abdicaes do aqui e agora, isto , do instante presente, digamos

    off-line, que nico. Assim, por constantes choques de imagens ela mesma [imaginao tcnica] se torna aqui-agora, ou isso-a-

    mquina (TRCKE [2009], 2010a, p. 315).

    Isso tudo so sintomas manifestos de dficit de ateno. A assim chamada sndrome de dficit de ateno (SDA), ou at

    sndrome de hiperatividade-dficit de ateno (SHDA), apenas um extremo caso especial disso. A se trata de crianas

    que no conseguem concentrar-se em qualquer coisa, demorar-se em algo, construir uma amizade, perseverar num jogo

  • dossiSo Paulo, Ano I, n. 04, jan./abr. de 2015 39

    comum; crianas que comeam tudo o que possvel e no terminam nada. Elas so impelidas por constante inquietao

    motora, que no encontra vlvula, nem descanso, e que as torna contnuas perturbadoras na escola, na famlia e nos

    grupos de jovens. Para tranquiliz-las h, todavia, um recurso altamente eficaz. Quando se coloca crianas que no con-

    seguem sentar quietas nem por um segundo e seus olhos se movem para a direita e a esquerda, procurando e desviando,

    na frente de um computador, o seu olhar se torna claro e fixo, as suas atividades direcionadas e pacientes, escreve o

    analista de crianas Wolfgang Bergmann. De qualquer modo mais do que notvel que crianas e jovens hiperativos, os

    quais no mundo real procedem como se estivessem perdidos, orientam-se bem nos computadores e se movimentam nos

    jogos e contatos online com uma segurana da qual no dispem na assim chamada primeira realidade, no cotidiano da

    sua vida. E por que essa mquina instantaneamente se torna familiar a eles? Bastam poucos movimentos de mo a fim

    de trazer um objeto desejado para a regio da disponibilidade, ou a fim de chamar um parceiro de comunicao para a

    troca desta ou aquela fantasia, desses ou daqueles contatos tudo est preparado como que disposio. No obstante:

    Tudo est direcionado respectivamente para a satisfao-agora prpria. Logo que se realizou, apaga-se a representao

    do objeto justo agora almejado, da ao ou do contato com outros; com um gesto de mo, um clique no teclado, eles so

    afastados, como se nunca tivessem existido (TRCKE [2009], 2010a, p. 309-310).

    Em Blow-up, o clique gerador das imagens era dado na mquina fotogrfica com um gesto de mo de Thomas, ao passo que

    na contemporaneidade, os cliques se multiplicam nos teclados dos computadores, nos dispositivos mveis e nas plataformas digitais

    para a satisfao-agora. Nesse sentido, o filme de Antonioni, apesar de ser datado de 1966, j apresenta essa dependncia pelo cho-

    que imagtico e a incapacidade de lidar com a denominada primeira realidade, conforme citado acima, mesmo que, em tal poca,

    muitas das tecnologias high-tech contemporneas ainda no tivessem sido desenvolvidas. Nota-se que existe o culto da imagem em

    detrimento da realidade: No mundo realmente invertido, a verdade um momento do que falso (DEBORD [1992], 1997, p. 17).

    Por isso, quando o fotgrafo Thomas encontra o cadver no parque, ele no capaz de fazer nada. A sua atitude atesta a dificuldade

    contempornea em lidar com o real, que, no caso em questo, era a prova do crime. Isso ocorreu porque Thomas no portava a sua

    mquina fotogrfica, isto , ele s era capaz de estabelecer uma relao com a realidade atravs da mediao da cmera fotogrfica.

    Sem o seu dispositivo e, por conseguinte, sem o suporte imagtico que esse equipamento produz, Thomas est privado de qualquer

    possibilidade de ao imediata, ainda que esteja diante de um cadver, o qual fora assassinado. Talvez por isso o crtico da cultura

    Fredric Jameson tenha indicado o carter irreal desse cadver mostrado no filme como sendo o problema do referente: O problema

    formal principal, de natureza mais metafsica, se posso colocar dessa maneira, est ligado ao cadver: ser que ele deveria mesmo ter

    sido visto? [...] Mas um corpo de cera e sem dvida o objeto mais irreal mostrado no filme (JAMESON [1992], 1995, p. 200).

    Pois bem, o problema colocado por Jameson reporta-se diretamente questo do referente. No obstante, ele no se reteve

    no formalismo da dualidade pautada em essncia e aparncia, na medida em que foi mais radical ao colocar o prprio referente em

    dvida, quando inscrito na condio de simulacro um cadver j a caminho do status de imagem ou simulacro (JAMESON [1992],

    1995, p. 200). Ora, no por menos que Thomas encontra-se em uma situao aportica entre a verdade e a mentira do que ocorreu

    no parque, pois a nica foto do parque que lhe restou um simulacro5. Essa aporia do personagem faz-nos retornar ao diagnstico

    5 Embora Jean Baudrillard tenha afirmado que j no estamos na sociedade do espetculo de que falavam os situacionistas (BAUDRILLARD [1981], 1991, p. 43), o seu conceito de simulacro apropriado e adequado anlise e, por isso, tambm foi retomado por Fredric Jameson.

  • dossiSo Paulo, Ano I, n. 04, jan./abr. de 2015 40

    realizado por Nietzsche, o qual j nos alertava sobre a marca arbitrria das verdades. Ento, ao evidenciar esse lado frgil e metaf-

    rico do conhecimento, Nietzsche realiza a transvalorao do entendimento humano, cujo efeito aplacar a soberba e a altivez do

    homem diante do mundo. Nosso caso exemplar a cena na qual Thomas afirma que no sabe como ocorreu o crime, uma vez que

    no o tinha testemunhado e porque sabia que a nica foto que lhe restava no passava de uma mancha branca (cadver?), a qual no

    comprova nada, pois, quanto mais ampliada, mais distorcida se tornava. Tratava-se de uma mancha explodida em pontos brancos,

    ou seja, ele no podia dizer a que se refere essa imagem fotogrfica gerada pelo processo tcnico denominado blow-up. Alm disso,

    a arrogncia das posturas anteriores, que eram norteadas pela crena na tcnica e na cincia, tambm tem como consequncias a

    agonia e o engano, pois escamoteia o deslocamento epistemolgico que a prpria linguagem visual causa ao enunciar processos,

    fatos e imagens. O abatimento de Thomas contrasta com a sua alegria anterior, quando ele dizia para Ron, o editor de seu livro, que

    havia salvado um sujeito da tentativa de homicdio. Isso decorre do efeito causado pela inverso de sentido da imagem: de belo idlio

    do casal para assassinato (MELLO E SOUZA, 1988, p. 406-407). Assassinato que nunca ser solucionado, no s pelo roubo das fotos

    e dos negativos, mas tambm pelos desvios, desejos e espetculos, os quais orientaram os enquadramentos selecionados para cada

    disparo da cmera. Antonioni, assim, procura retirar o seu espectador da apatia e distrao diante da tela do cinema, bem como o

    convida a fazer uma crtica s modalidades de saberes produzidos nas sociedades contemporneas, cuja regncia presidida por

    imagens tcnicas do espetculo e da excitao. Essa a riqueza discursiva promovida por Antonioni, visto que h a crtica da imagem

    feita por meio dela mesma. E isso tambm a proposta do diretor, o qual deixa a cargo de seu espectador decidir o que se pode ver

    na cena do parque, o que no se v e o que somente captado pela cmera de Thomas. No entanto, Antonioni no coloca a questo

    de maneira neutra, pois o que visto atravs da lente da cmera fotogrfica j foi, previamente, interposto pela lente do cineasta,

    que , neste caso, o prprio referente da produo. Por isso, o alerta de Nietzsche:

  • dossiSo Paulo, Ano I, n. 04, jan./abr. de 2015 41

    Aquela audcia ligada ao conhecer e sentir, que se acomoda sobre os olhos e sentidos dos homens qual uma nvoa

    ofuscante, ilude-os quanto ao valor da existncia, na medida em que traz em si a mais envaidecedora das apreciaes

    valorativas sobre o prprio conhecer. Seu efeito mais universal engano todavia, os efeitos mais particulares tambm

    trazem consigo algo do mesmo carter (NIETZSCHE [1873], 2008, p. 26-27).

    O pensamento de Nietzsche , pois, de grande valia, j que nos alerta para os limites da razo em alcanar e explicar certos pro-

    blemas relacionados percepo e s imagens que povoam o mundo. Trata-se, portanto, da assuno de uma condio epistemol-

    gica no sentido de construir, intempestivamente, formas de conhecimento livres de aspiraes metafsicas. Por conseguinte, abre-se

    o caminho para traar uma crtica a pilares da contemporaneidade, como, por exemplo, o prprio espetculo imagtico, a essncia da

    tcnica e o consumo de imagens.

    3. Consideraes finaisEm linhas gerais, elegemos a imagem e o conhecimento como os temas centrais de Blow-up, os quais catalisam toda a discus-

    so presente no artigo. Nesse sentido, a importncia da experincia de refletir-se acerca do ato de ver cardinal para a realizao

    de uma anlise profcua. Portanto, fundamental a colocao de questes, como, por exemplo, o que significa ver alguma coisa e

    como mostrar isso em imagens na contemporaneidade? Mas alm desses grandes temas, h outros elementos que orbitam em torno

    desse grande ncleo temtico. Assim, por conta da complexidade exigida pela obra de Antonioni, no suficiente adotar apenas um

    ponto de vista terico para ancorar qualquer anlise que se pretenda abranger o horizonte de discusso do filme. Assim, com base no

    cruzamento de autores distintos e distantes no que se refere ao posicionamento terico e ideolgico, foi admitido pensar alm do que

    se referem estritamente as questes e solues cinematogrficas de Blow-up. Logo, a problemtica imposta pelo filme foi expandida

    para se pensar em outras instncias, que so prementes na contemporaneidade.

    Nessa perspectiva, vimos que o que est em jogo no apenas o tema da percepo humana e o estatuto da imagem na contem-

    poraneidade, mas tambm fundamental a questo das condies de construo do conhecimento em uma sociedade cada vez mais

    excitada pelo predomnio do choque imagtico e pelo desejo do espetculo audiovisual. Com efeito, a formulao de uma crtica

    dessa cultura colocada, intempestivamente, na direo da constituio de um mundo de imagens autnomas que se apresentam

    como se no tivessem que ser interpretadas e, tampouco, ser passveis de consideraes devido pretensa transparncia de seu

    estatuto epistemolgico. Ora, o impacto de tal posicionamento de neutralidade nas prticas de usos e produes de imagens incide

    diretamente nos comportamentos dos sujeitos contemporneos, a saber, no prprio ato de consumo. De um lado, o imediatismo e a

    suposta transparncia e verdade da imagem parecem substituir os produtos representados no simulacro do marketing publicitrio,

    que objetiva a gerao do desejo mimtico em seus consumidores. Mas, apesar da autonomia das imagens, sempre h interesses

    envolvidos na sua gerao. No caso das mercadorias, mais do que claro que os valores esto a servio dos prprios produtores das

    imagens de consumo. Por outro lado, a questo no to bvia quando o prprio mundo se torna a imagem do conjunto de nossas

    representaes e valores. Como vimos, a origem desse esquecimento est localizada no momento histrico que constituiu a moder-

    nidade. E s possvel desvelar a metafsica presente na imagem do mundo por meio da genealogia da essncia da tcnica de

    mquinas. Contudo, para compreender as verdades presentes em tal processo, no suficiente apenas localizar a correspondncia

  • dossiSo Paulo, Ano I, n. 04, jan./abr. de 2015 42

    do objeto representado. Basta retomar o caso emblemtico de Thomas no parque, no qual assistimos e constatamos que o centro de

    referncia o prprio sujeito, cuja percepo visual j uma metfora, bem como o seu prprio conhecimento do fato, representado

    na foto manchada pelo processo tcnico blow-up. Esta a riqueza do filme de Antonioni e que est longe de estar esgotada. Todavia,

    h que se ressaltar que no podemos nos deixar enfeitiar pelo gnio desse diretor, pois seu efeito mais universal engano (NIET-

    ZSCHE [1873], 2008, p. 27).

    Referncias bibliogrficasAGAMBEN, Giorgio. O que o contemporneo? e outros ensaios. Chapec: Argos, 2009.

    BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulao. Lisboa: Relgio dgua, 1991.

    CHAU, Marilena. Introduo histria da filosofia: dos pr-socrticos a Aristteles. So Paulo: Companhia das Letras, 2002. v. 1.

    DEBORD, Guy. A sociedade do espetculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

    GABRIEL, Martha. Educar. A (r)evoluo digital na educao. So Paulo: Saraiva, 2013.

    GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. tica e sociedade. Pesquisa em Educao Ambiental (UFSCar), v. 3, p. 13-32, 2008.

    GIRARD, Ren. Anorexia e desejo mimtico. So Paulo: Realizaes, 2011.

    HEIDEGGER, Martin. O tempo da imagem no mundo. In: ______. Caminhos de Floresta. Lisboa: Gulbenkian, 1998.

    ______. A questo da tcnica. Revista Scientia Studia. So Paulo, v. 5, n. 3, p. 375-398, 2007.

    JAMESON, Fredric. As marcas do visvel. Rio de Janeiro: Graal, 1995.

    LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A tela global: mdias culturais e cinema na era hipermoderna. Porto Alegre: Sulina, 2009.

    MELLO E SOUZA, Gilda de. Variaes sobre Michelangelo Antonioni. In: NOVAES, Adauto et al. (Org.). O olhar. So Paulo: Compa-

    nhia das Letras, 1988.

    NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polmica. Traduo Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras,

    1998.

    ______. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. So Paulo: Hedra, 2008.

    POURRIOL, Ollivier. Blow-up/A iluso do eu. In: ______. Filosofando no cinema: 25 filmes para entender o desejo. Rio de Janei-

    ro: Zahar, 2012.

    SONTAG, Susan. Sobre fotografia. So Paulo: Companhia das Letras, 2004.

    TRCKE, Christoph. Filosofia do sonho. Iju: Ed. Uniju, 2010a.

    ______. Sociedade excitada. Filosofia da sensao. Campinas: Edunicamp, 2010b.

    Imagens: www.freeimages.com, pt.wikipedia.org/ e en.wikipedia.org/