16
h ARTES, LETRAS E IDEIAS PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2637. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE JOANA

h - Suplemento do Hoje Macau #47

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Suplemento h - Parte integrante da edição de 22 de Junho de 2012

Citation preview

Page 1: h - Suplemento do Hoje Macau #47

hAR

TE

S, L

ET

RA

S E

IDE

IAS

PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2637. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

JOANA

Page 2: h - Suplemento do Hoje Macau #47

I D E I A S F O R T E Sh2

NÃO serão servidos brioches em Versalhes. Mas pastéis de nata, sim. Ministro Álvaro e estratégias de internaciona-

lização do que é nacional e bom à par-te. O menu está decidido? “O Avillez é que sabe.” O Avillez é José Avillez, uma estrela Michelin no currículo e dois res-taurantes referenciados como tesouros de Lisboa num artigo recente do  The New York Times. E será servido pão. “Os franceses são tarados com o pratinho do pão? É um pratinho bué estúpido. Vocês têm?” Vocês é a Vista Alegre. É preciso cuidar do pratinho do pão. Do tamanho. E dos pratos, travessas, saladeiras, terri-nas. “Uma bela terrina para fazer vista na mesa de apoio.” Um serviço inteiro, que de momento “está com um ar chato como o raio”. Demasiado clássico. Versalhes é Versalhes, dourado, vetusto, imponente. E Joana Vasconcelos é Joana Vasconce-los, exuberante, irreverente, iconoclasta. Capaz de meter o isomorfismo de Escher e o kitsch na mesma peça. Nas calmas. O serviço Vista Alegre em que será ser-vido o jantar de inauguração incorpora os elementos de Perruque, a peça mais icónica da exposição em Versalhes. Aquela que evoca as perucas escultó-ricas de Marie Antoinette e que ficará no quarto desta. Aquela que se inspi-ra vagamente num ovo Fabergé e que é chamada por todos, no atelier e na Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, onde foi feita, “o ovo”. Os pratos têm folhas pretas (em ébano, naPerruque) e desenhos a ouro. A responsável da Vis-ta Alegre trouxe um exemplar de cada peça. Joana usa uma caneta de feltro para de-senhar directamente num prato. Daqui a pouco mais de uma semana será servido o banquete na Orangerie. “Um dos luxos que ela curtia era laranjas.” Marie Antoi-nette mandou vir de Portugal centenas de laranjeiras e no jardim, ainda hoje, há áleas de laranjeiras. La reine por estes dias será a artista plástica portuguesa. Fo-ram enviados 300 convites. O ministro Álvaro vai? Apoiar Joana Vasconcelos é bom para a economia portuguesa? Joana Vasconcelos montou uma exposição de dois milhões e meio de euros. O ministro Portas vai? Joana Vasconcelos é uma embaixadora da cul-tura portuguesa. Joana Vasconcelos leva a Versalhes as rendas do Pico (a revestir lagostas e leões), as tapeçarias de Porta-legre (na peça Vitral), os têxteis de Nisa (nas Valquírias), a iconografia de Borda-lo Pinheiro, a filigrana de Viana recriada em talheres de plástico, a louça da Vista Alegre, o trabalho de mestre Pena que trabalha na Fundação Ricardo Espírito Santo Silva desde os 12 anos, o trabalho de dezenas de pessoas, “uma equipa de luxo”, apoios institucionais, um imagi-nário colectivo. O secretário de Estado da Cultura vai? Mariza vai cantar. Valter Hugo Mãe escreve o texto do catálogo. Os criadores portugueses Dino Alves, Filipe Faísca e Storytailors vão vestir toda a equipa. “O Dino disse que está

22 6

201

2

Anabela Mota RibeiroIn Público

DURANTE DOIS MESES, ACOMPANHOU A ARTISTA PLÁSTICA JOANA VASCONCELOS. FOI A RAMPA FINAL DE UM TRABALHO DE UM ANO E MEIO QUE ESTÁ EXPOSTO EM VERSALHES A PARTIR DESTA TERÇA-FEIRA, DIA 19. ATÉ AO FINAL DO VERÃO, ESTIMA-SE QUE A EXPOSIÇÃO SEJA VISTA POR DOIS MILHÕES E MEIO DE PESSOAS. MAS PODEM SER QUATRO MILHÕES.

JOANA VASCONCELOS

A RAINHA

Page 3: h - Suplemento do Hoje Macau #47

I D E I A S F O R T E S

a fazer um vestido com cauda!” Quem é que não vai estar? Joana Vasconcelos é a primeira mulher e a mais jovem artista a expor no Palácio de Versalhes. Versailles, como ela sem-pre diz. Talvez por ter estudado na école française. Talvez por ter nascido em Pa-ris. Talvez porque tem mais sainete dizer Versailles. O mais certo: porque os inter-locutores dela dizem Versailles. Versail-les é universal. Versalhes, não. Como é que ela chegou lá? “Só consigo chegar a Versailles porque Portugal me apoiou e porque levo o melhor de Por-tugal.” O país está no centro do seu dis-curso artístico. Le pays c’est moi? O Pre-sidente Cavaco Silva falou em Joana no discurso do 25 de Abril. Um ano e meio de trabalho é traduzido numa exposição- embaixada que pode ser vista a partir de 19 de Junho.Primeiro dia de Junho, 18 dias antes da

inauguração. O atelier parece subita-mente desolador. De manhã havia ainda marcas de pó desenhadas no chão, res-quícios da agitação dos últimos meses. A um canto estão os castiçais que são tam-bém porta-garrafas, “estruturas verticais gémeas, que resultam da acumulação de milhares de garrafas de champanhe ilu-minadas do interior”, lê-se na descrição feita pela artista. “Alguém sabe quantas

garrafas são?” À volta de cinco mil. A obra, uma  hommage-piscadela de olho ao célebre porte-bouteilles de Duchamp, será instalada nos lagos rectangulares do Parterre d’Eau. As garrafas são de cham-panhe porque se destinam a França. Se-riam de sake no Japão. De cerveja na Alemanha. De vinho, em Portugal (a pri-meira declinação da obra, Néctar, feita em 2007, pertence à colecção Berardo). 

Os castiçais são a última peça que res-ta no atelier, entre o Tejo e o Museu do Oriente. Um espaço onde há espaço para tudo. Deitados no chão, desmembrados, parecem um corpo que jaz. Ou então era a melancolia que se detectava no ar e que resultava do espaço deserto. O grosso da equipa estava fora. Trabalham ali em per-manência 25 pessoas. “Vieram mais cinco dar uma forcinha” nos últimos tempos. Daí a dois dias partiriam para Versalhes. Joana está na secretária cor de laranja, posicionada no coração do atelier. Visí-vel da porta de entrada. Graceja, diz que está a ver o expediente. Atrás de si, uma pega de cozinha, em tamanho gigante, tricotada — peça de 2002. Está a dar uma entrevista em modo relax. As inter-rupções são consentidas. Um assistente mostrou uma imagem do garrafão e do bule, em ferro forjado, oxi-dado, “como se estivesse lá desde sem-

h3

22 6

201

2

Joana Vasconcelos é a primeira mulher e a mais jovem artista a expor no Palácio de Versalhes. “Só consigo chegar a Versailles porque Portugal me apoiou e porque levo o melhor de Portugal.” O país está no centro do seu discurso artístico.

Page 4: h - Suplemento do Hoje Macau #47

h422

6 2

012

I D E I A S F O R T E S

pre”. As obras, à entrada do Parterre du Midi, “surgem como representações do homem e da mulher”. Madame de um lado, monsieur do outro. São as primeiras a ser montadas em Versalhes e a imagem acabou de chegar. E, por isso, ela tem de saber. A máquina está oleada, muito bem oleada. E, por isso, ao mesmo tempo que desenha num caderno de capa dura, ao mesmo tempo que responde de modo ar-ticulado, pergunta a que horas o camião vem buscar os castiçais. Joana Vasconcelos controla tudo. Faz, sabe fazer, manda fazer. Como quem respira. Ou seja, aparentemente sem esforço. Sem esbracejar e ameaçar que vai ter uma sínco-pe. Como é que ela consegue? “É uma gi-nástica. É a chamada ‘versatilidade’.” A en-trevista prossegue. Joana veste uma longa túnica de linho, uma flor tricotada, as unhas cor de tijolo. Ouvem-se desde a sala do lado Clarice e Ui, os pássaros, um amarelo, um azul. Não se ouvem as agulhas de cro-chet. Não se ouve o barulho da metalurgia. Quem está? Nuno Barão, “Baronette”. (No atelier ninguém é chamado pelo nome. Joana é facilmente “Juanita”. Ana Pedro, responsável pela engenharia financeira, é “a ministra” das finanças.) 

liderar. E ter trabalhado no Lux durante dois anos. No Lux tive de lidar com pes-soas nos estados mais improváveis. Con-vencê-las a descer aquelas escadas sem se matarem tornou-se num desafi o [riso]. Era chefe de segurança. Tive de sair do pedestal intelectual e burguês a que esta-va habituada. Grande escola.” A caravana chegou a Versalhes no dia 3 de Junho. Sete ou oito camiões, to-neladas de material, dezenas de pessoas. Como é que tudo começou? “O convite vem da parte do Jean Jacques Aillagon, que contactou a minha galeria francesa, a Nathalie Obadia, e que chegou à con-clusão de que o meu trabalho se integra-ria bem em Versailles.” O diálogo com artistas contemporâneos fez-se em anos anteriores com Jeff Koons ou Takashi Murakami. Aillagon era então o presi-dente do  château. “Desde o princípio que estabeleci com as minhas galerias [a francesa e a inglesa, Haunch of Ve-nison London] que, ou me apoiavam na realização deste projecto, ou não tinha capacidade económica para o montar. A partir desse acordo, que se fez com as galerias e com Versailles, estabeleceu-se com o Jean-François [Chougnet] duas

Barão é o assistente pessoal que estende um rebuçado, um extraordinário rebuça-do: “Quem é que tem duas malas Louis Vuitton à espera na loja da avenida [da Liberdade]?” A artista é patrocinada pela marca. Nos dias de Versalhes, entre uma visita guiada e uma entrevista, andará com elas. O sucesso de Joana Vascon-celos confirma que as portuguesas em França deixaram de ser a concièrge que usa uma valise en carton. Portanto, será uma valise Vuitton. Os detractores olham-na como uma ar-tistaempresa. Demasiado inclinada para o marketing. Ou uma pop star. E não, pop star não é um elogio. Estes atributos são usados em tom pejorativo. Apesar de Gilles Lipovetsky, o filósofo que disse que o trabalho dela materializava as aná-lises dele. Apesar do sucesso repetido em Veneza — “onde nunca estive a convite do Governo português”, faz questão de sublinhar. Apesar de ser reconhecida na rua, o que não costuma acontecer com artistas plásticos. Apesar das exposições no mundo todo. Apesar de Versalhes.Porque é que o meio artístico não gosta dela nem com molho de tomate? Porque a obra é demasiado imediata, pop, super-

ficial? É da obra que se trata ou da per-sona Joana Vasconcelos? A dissecação do fenómeno é complexa, e não vem ao caso. Entre as respostas possíveis, há quem aponte para o final d’Os Lusíadas — isto é, para a palavra “inveja”. Joana Vasconcelos é uma  one woman show que tem uma rigorosa no-ção de quem é, do que quer, do que é preciso para lá chegar. Se lhe deu o ner-voso quando a convidaram para Versa-lhes? “O nervoso é insegurança. E a inse-gurança não é bem vinda nestas coisas. Não posso gastar dois milhões e meio de euros com insegurança. Seria um atentado, não é?” Demasiado dinheiro, demasiado prestígio. “Isto é  once in a lifetime.” Como é que adquiriu esta resistência psicológica, “por muito que gelem as mãos e que os nervos subam à cabeça”? Nos dois meses em que a equipa da 2 acompanhou a artista, nunca foi visível um momento de pânico, o descontro-lo. “Tive três experiências importantes. Uma família em que o culto da perso-nalidade é forte. O karaté, que aprendi dos 8 aos 28 anos, e que me ensinou a ser resistente, a trabalhar em equipa, a

Page 5: h - Suplemento do Hoje Macau #47

h5

22 6

201

2

I D E I A S F O R T E S

linhas: quais são as obras e quanto é que vão custar. Depois foram feitos contra-tos com as galerias, complicadíssimos. Há todo um jogo económico... Como é que se vai pagar. Quem é que fica a ganhar o quê, e como.” A somar a isto, que representa a parte substancial do or-çamento, há o patrocínio de instituições ou empresas: a Fundação Gulbenkian, a Fundação EDP, a Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, o Turismo de Por-tugal e a marca francesa de perfumaria Annick Goutal. Jean-François Chougnet é o comissário da exposição. Foi na qualidade de pri-meiro director do Museu Berardo que conheceu o trabalho de Vasconcelos. Um trabalho onde se inscreve uma “re-apropriação de objectos do quotidiano” transformado com “técnicas inventivas e inesperadas”. No texto-porta de entrada para a exposição, o comissário fala de “uma reivindicação feminina, sem dog-matismos” que está presente na sua obra, “de um modo mais irónico que militante”. Tradução: vamos lá pegar no coração de Viana e reproduzir a filigrana com talhe-res de plástico. Sim, talheres de plástico — por falar em quotidiano e em inespe-

Peça bizarra. É um ovo que é uma peru-ca que é um móvel que é uma obra de arte. Quando a 2 visitou a montagem da ex-posição,  Perruque  estava já instalada, mas coberta com uma caixa de tecido cru. Um biombo que a esconde até à inauguração. Ao contrário deCoração Independente, o bule e o garrafão de ferro forjado, os castiçais ou a valquí-ria  Mary Poppins, que ficam visíveis para o público assim que são monta-das,  Perruque  é resguardada (como se fosse um tesouro) até dia 19. O quarto da rainha é o espaço mais fo-tografado de Versalhes, a par da sala dos espelhos. É provável que as duas salas sejam o espaço museológico mais visita-do do mundo à terçafeira. A explicação é simples: todos os museus parisienses fecham à terça e o tipo de público que corre ao Louvre para ver a Mona Lisa ou ao Museu d’Orsay para ver os impressio-nistas desloca-se para Versalhes. Enxames de pessoas. Milhares de orien-tais, milhares de brasileiros, milhares de americanos, milhares de crianças em vi-sita escolar, milhares de famílias inteiras. Não raro, é difícil mover uma perna, um

rado. Garfos e facas como os que se usam num piquenique. Ou nas festas das crian-ças. Em vermelho, em preto, em amarelo.Para Versalhes, vieram os corações ver-melho e preto, símbolos de paixão e de morte. Um para o Salon de la Paix, o outro para o Salon de la Guerre. Sus-pensos do tecto abobadado. Imponen-tes, a despeito do material. Com Amália a cantar  Coração Independente  (título da peça) no áudio-guia do visitante. E de permeio, entre a sala da paz e a sala da guerra, a sumptuosa Galerie des Gla-ces, a sala dos espelhos, com lustres que quase podemos tocar com as mãos, tão baixo estão. Das janelas vê-se o infinito. A imensidão dos jardins de Versalhes, de geometria invariável, os lagos que pare-cem chatos mas são profundos ( Joana chegou a pensar em trazer uma caravela, mas a exorbitância do preço fê-la desis-tir do projecto), as árvores retocadas em forma de rectângulo, outras árvores, mais ao fundo, cujas copas parecem soltas, a perder de vista.É nessa galeria — outra tradução — que encontramos  Marilyn. Vamos lá pegar em panelas Silampos, sobrepô-las e fazer com elas uns sapatos. Vamos pegar num

objecto-símbolo atávico do papel das mulheres em casa/na sociedade, e vamos transformá-lo num objecto- símbolo de emancipação. É uma obra poderosa que promove uma oposição entre a cor do aço e o dourado de Versalhes. “É uma ode às conquistas da mulher nos domí-nios público e privado.” Em 2010 foi ven-dida pela leiloeira Christie’s por 573.964 euros. O feminino é o músculo principal da exposição. “Interpretar a densa mitolo-gia de Versailles e transportá-la para a contemporaneidade, evocar a presença de importantes figuras que habitaram o palácio, apoiando-me na minha identi-dade e na minha experiência como mu-lher, portuguesa, nascida em França, será certamente o desafio mais fascinante da minha carreira”, escreve Vasconcelos no texto de apresentação da exposição.  A opção da artista foi ocupar a ala da rainha. “Ouço ainda o eco dos passos de Marie Antoinette, a música e o am-biente festivo dos salons.” As 17 obras que leva a Versalhes podem ser lidas, sumariamente, como um elogio à pre-sença da mulher no palácio. Perruque é a jóia da coroa. 

Page 6: h - Suplemento do Hoje Macau #47

h622

6 2

012

Page 7: h - Suplemento do Hoje Macau #47

h7

22 6

201

2

braço, chegar sequer à barreira de vidro que permite ver a dois metros a cama de Marie Antoinette. É exactamente ao lado que fica Perruque. A forma oval da escultura remete para os nascimentos que aconteceram naquele quarto. Dezanove crianças. Entre elas, Luís XV e Luís XVII. O ovo, feito em madeira vinhático vinda do Brasil, mais mole e fácil de trabalhar, tem incrusta-ções e aplicações, em preto e metal dou-rado. Demorou meses a ser feita. A ideia da artista, desde o princípio, é que tives-se a escala do mobiliário do quarto. Para que harmoniosamente se integrasse nele. Como uma cómoda ou um toucador. Perruque, como o nome indica, faz tam-bém alusão às perucas inventivas de Ma-rie Antoinette. Uma espécie de colmeia onde todos os adornos são permitidos. É aí que entram as protuberâncias cónicas das quais saem mechas de cabelo. Um cabelo solto, indómito, de uma mulher que o afi rma como uma conquista. Re-cordar que foram comprados numa loja duvidosa da Avenida Almirante Reis dá vontade de rir. Nessa tarde, como quem está subitamente no recreio, Joana canta-va os hits dos anos 80 que passavam no canal de música VH1. Na televisão do canto sucediam-se Madonna, Kate Bush, Sade. E escolhia um cabelo, e outro. E experimentava perucas. “Olhem para mim loura!” Já agora: a cama parece um canteiro. A parede de fundo, a colcha, o dossel são de um tecido floral. Com um ar tão apru-mado como se as flores tivessem sido re-gadas e estivessem viçosas. Quando montaram Perruque, foi preci-so mexer na franja do cortinado e quise-ram chamar conservadores para o efei-to. “Olham para aquilo como se a Marie Antoinette estivesse ali na cama!, pá!”, exaspera-se Joana. (Ela diz pá. E bué. E cena. Tem um modo particular de se ex-primir.) Talvez seja o momento de falar da re-lação da artista com Versalhes. “Não fomos recebidos como normalmente somos. Nos museus e nas galerias, as pessoas querem-nos lá. Em Versailles, a equipa não nos quer lá. Versailles tem um simbolismo, como eles dizem, uni-versal. Trabalham ali mil pessoas; e a sua opinião é que a arte contemporânea não pertence ali. Acham que o local não deve ser profanado.” Não muito depois do convite a Joana Vasconcelos, Jean Jacques Aillagon foi substituído na presidência da institui-ção por Catherine Pégard. “Passei de uma pessoa de direita, mas liberal, para uma pessoa de direita, conservadora, que olhou para aquilo de outra maneira. Ela é amiga do Sarkozy, trabalhou no Eliseu. Tomou algumas decisões para se defen-der. Mas foram decisões que iam dando cabo da minha exposição.” O primeiro embate aconteceu com a peça mais famosa de Joana Vasconcelos, o lustre de tampões. “A Noiva foi censu-rada. Em termos conceptuais, não conse-guem decidir onde estão. Não há regra nenhuma. [Decide-se em função de] um

estado de espírito. Primeiro a peça foi aceite, depois não foi aceite. Quando ela [Pégard] me disse que não podia levar ANoiva estive dois dias de ‘cama-psico-lógico’. Foi uma morte. Até reconstruir a minha confiança, levou uma semana. De-pois mudou o helicóptero [Lilicoptère], que estava numa sala muito melhor do que aquela em que está — um cochicho. Mudou porque não conseguiu acordo com os sindicatos dos trabalhadores de Versailles. Depois foi a peça do quarto da Marie Antoinette... Pensei: acabou. Não faço.” Foi para casa pensar no que perdia. “Per-co a exposição, mas não perco as peças. Criei peças fantásticas, com ou sem Ver-sailles fico sempre com a obra.” Pégard cedeu,  Perruque  está no quarto da rainha. Se pesou no recuo de Pégard a vitória de [François] Hollande nas elei-ções francesas? “Teve influência. Permitiu mais maleabilidade, mais tolerância. [Se Nicolas Sarkozy tivesse ganho] ela teria endurecido o discurso e eu não teria feito a exposição.” Catherine Pégard foi jornalista do  Le Point. É muito fácil identificá-la, de sa-pato Ferragamo, saia rodada e coquete, casaco vermelho pela cintura. Estilo bem comportado. Segue-a uma corte de ho-mens de fato e gravata, que caminham muito direitos, pasta debaixo do braço. Ao longo do dia de montagem aparece no momento de içar Mary Poppins num ce-nário neoclássico ou para ver Lilicoptère, um helicóptero emplumado, todo cor de ouro e cristais Swarovski. Uma carrosse d’or para Marie Antoinette adaptada aos tempos modernos. Um coche que parece um pássaro, revestido a penas salmão e rosa. E um tapete no interior feito segun-do uma técnica antiga de Arraiolos. “Ça est impressionnante!” De facto. Mas é uma peça cujas imagens só podem ser di-vulgadas depois da inauguração. Pégard não se cruzou com Alice. 

Entretanto chegou Alice. Entretanto nasceu Alice. 

Alice e Versalhes aconteceram na mes-ma semana. “Soube no dia anterior à ida para a reunião em Paris que estava grávida.” Coisas do destino. Joana tem 40 anos. Como é que se tem um primei-ro filho e se concebe e organiza uma exposição com a dimensão da de Ver-salhes? “Tenho o apoio do meu mari-do. Sem ele, não tinha conseguido isto. Isto não é um emprego. É vida e obra, é tudo junto e a mesma coisa. Quan-do chegamos a casa, a coisa continua. Continuamos a falar.” Mas não havia dúvidas quanto a priori-dades. “Pensei: não há coisa mais impor-tante do que ter esta criança. Trabalhei a gravidez inteira e fui fazendo a expo-sição ao longo da gravidez. Percebi que não podia continuar a trabalhar das oito às oito, e seja o que Deus quiser. Tive de controlar esse meu lado de fazer tudo e mais alguma coisa. Tive montes de expo-sições no ano passado — no Mónaco, na Dinamarca, em Nova Iorque, em Fran-

ça, em Moscovo — a que não fui. Estou muito habituada a acompanhar a minha obra, e adoro. Países, culturas, pessoas. E, de repente, tive de ficar quieta. Foi bom. A equipa tornou-se mais autónoma e mais forte. Estavam muito dependentes de eu estar sempre a decidir tudo.” Alice nasceu em Setembro de 2011. E Joana é uma mãe apaixonada pela filha igual a todas as mães apaixonadas pelos filhos. No atelier, em Lisboa, junto à sua secretária está uma ovelhinha de balou-ço, no refeitório uma cadeirinha. No meio de uma viagem de carro pela cida-de, interrompe a conversa para se per-guntar, perguntando alto: “Será que este externato é bom?” Alice passa os dias com a avó materna. Instalaram- se em Versalhes com toda a equipa. Chegaram pelo meio da tarde à Galerie des Batailles. É um corredor imenso onde se percorre a glória de uma nação. As batalhas que de-finiram a história, os heróis que as trava-ram, o resfolegar dos cavalos, os feridos tombados — tudo isso forra as paredes de um lado e de outro. Toda a história militar francesa está lá. Delacroix foi um dos que pintaram este longo poema épico que vai ser acompa-nhado de trêsValquírias. A Royal, a Dou-rada  e a  Valquíria Enxoval. São corpos exuberantes, volumosos, “indisciplinados de texturas, impondo no espaço o po-der do hedonismo e da sensualidade”. Os tecidos podem ser uma chita barata, um brocado da melhor loja parisiense, os têxteis e o ponto tradicional de Nisa. Fitas, pendentes, franjas. Uma explosão de cor. Estão por ora desmembrados, no chão, embrulhados em sacos vermelhos. Al-guns homens trabalham no cimo de es-truturas metálicas e preparam os cabos de aço que vão suster as peças. (“Estes espaços não-museológicos” — como Versalhes, na sua essência, é, mesmo que exponha a obra de artistas contemporâ-neos desde 2008 — “levantam proble-mas técnicos. Será que o tecto aguenta? Será que a peça passa?”) As mulheres retocam um tecido que esgarçou, um pedaço que descoseu. Por momentos, fazem uma transplantação do atelier para Versalhes. Há recipientes com mis-sangas, berloques, tecidos, linhas. Uma retrosaria em miniatura. A retrosaria gigante fi cou em Lisboa, onde há uma caixa de plástico para cada coisa — até para “crochés sujos”! Alto e pára tudo quando chega Alice. Dá-se uma espécie de suspensão colec-tiva. Joana pega-a no colo. Alguém de-sempacota o andarilho. Duarte Ramirez, o pai, junta-se à mulher e à filha. Não importa nada que Duarte seja arquitec-to, que Joana seja artista plástica, que estejam em Versalhes e que o mundo vá saber daquela exposição em breve. O que importa são os passos que Ali-ce quer dar, pondo uma perna à frente da outra, a olhar muito atenta e curiosa para tudo à volta. Ficaria bem na histó-ria dizer que aprendeu a andar na Gale-rie des Batailles, mas não. Foram passos

titubeantes num andarilho cor-de-rosa. Peça anacrónica naquele mundo doura-do e antigo.O que ali se passa é aquilo a que os psicó-logos chamam quality time. Dez minutos de  quality time. Bem, talvez meia hora de  quality time. Porque depois chega-ram-se a um canto, banhados pela luz das quatro da tarde, e deram a papa a Alice. Joana, Duarte, a mãe e o pai de Joana. Esparramados no chão como quem está em casa. Casa pode ser onde uma pessoa quiser. Ou onde conseguir. Uma criança torna tudo mais imperioso e instantâneo. Teresa e Luís Vasconcelos exilaram-se em França em 1968 por razões políti-cas. “Havia a guerra colonial...”, refere o fotojornalista que esteve na fundação do PÚBLICO e que trabalha com outro fundador, o designer gráfi co Henrique Cayatte, no catálogo da exposição, num ritmo de jornal diário. Fotografam as pe-ças depois das seis da tarde, quando saem os turistas, e fazem a paginação horas de-pois, num hotel em Versalhes. Joana nasceu em 1971 em Paris. Regres-saram a Portugal logo depois da revolu-ção, a 29 de Abril de 74. A primeira coisa que Luís Vasconcelos fotografou em Por-tugal foi a manifestação do 1.º de Maio.

— “Se tivéssemos ficado, seria uma ar-tista francesa em Versailles.”— “Se tivéssemos ficado, se calhar não estarias aqui, o curso da nossa vida teria sido diferente”. — “Teria ido para uma  école des beaux-arts  e teria sido uma artista francesa. É muito mais giro ser uma artista portuguesa!” 

Ao contrário da mãe, Joana não põe se-quer a hipótese de não ser artista, e de não estar ali. A confiança e a ambição são indisfarçáveis. Algum problema com isso? Foi esta confiança e esta ambição que a trouxeram a Versalhes, um dos maiores palácios do mundo, mandado erigir pelo Rei Sol-Luís XIV, que recebe em média dez milhões de turistas por ano, é qua-se Portugal inteiro. Multidões compac-tas vão estar de olhos postos nela até 30 de Setembro. Espera-se que a exposição receba mais de dois milhões e meio de visitantes, que acedem aos espaços inte-riores e exteriores; mas se a contabilidade integrar os que apenas visitam o exterior, cujo acesso é gratuito, a estimativa é de quatro milhões. Como é que tudo funciona? “Funcio-na como toda a criação: dentro de nós. Aprendi a pensar com o desenho. Na joalharia, que também estudei, aprendi o projecto. Decido tudo à partida, a peça quase não sofre alterações. As únicas mu-danças a que sou aberta são as mudanças técnicas.” Come uma bolacha de Alice. Ao almoço serviram carnes. A sala era bonita e ha-via peónias numa jarra. Foi em Versalhes que Marie Antoinette disse para a poste-ridade: “Se não têm pão, dêem-lhes brio-ches.” Mas o tempo é de pastéis de nata. “Trataram dos vinhos? É preciso falar ao comendador [Berardo]...” 

Page 8: h - Suplemento do Hoje Macau #47

h822

6 2

012

C H I N A C R Ó N I C A

dade de Línguas Estrangei-ras que estudavam inglês há vários anos e que, nes-ses tempos de China iso-lada e ainda fechada sobre si própria, jamais tinham tido a possibilidade de falar com um cidadão inglês ou norte-americano. Na nos-sa comitiva havia três ou quatro cidadãos originários das puras paragens angló-fonas e até eu dei o meu melhor para conversar com os estudantes na língua de Shakespeare, hoje de Kate Middleton. Alguns dos rapazes e mui-tas das moças simpatica-mente bonitas eram de na-cionalidade zhuang, con-fessavam porém que quase não sabiam falar zhuang, tão-pouco escrever a lín-gua da sua nacionalidade de origem -- que de resto utiliza um alfabeto igual ao nosso –, porque desde o infantário, e até nas suas ca-sas, haviam sido educados, ensinados a falar, a escrever com caracteres e a ter hábi-tos chineses. Nanning, apesar da presen-ça dos zhuang e de outras pequeníssimas minorias, é uma cidade predominan-temente chinesa. Em volta do centro, basta olhar para a centena de prédios altos e arranha-céus construídos nos últimos vinte anos (o edifício da Câmara de Co-mércio tem 276 metros de altura e é um dos maiores de todo o sul da China), transversais e feios, com a estética inestética dos gran-des caixotes de betão, qua-drados e redondos cobertos com estendais de chapa e vidro. As autoridades da terra juram, no entanto, a pés juntos que a cidade é verde e que 40% da sua superfície é ocupada por parques e jardins. Nanning tem um clima subtropical húmido e um regime de chuvas abundantes, o que favorece o crescimento de

todo o tipo de vegetação. E é verdade que, sobretudo em volta do rio Yongjiang, abundam jardins, bambuais, palmeiras, flores e extensos relvados e, nos subúrbios da capital de Guangxi, existem pequenos bosques e lagos.Em Janeiro de 1958, quan-do da realização em Nan-ning de uma conferência de trabalho do Comité Central do Partido Comu-nista da China, o presiden-te Mao Zedong nadou por duas vezes nas águas do rio Yongjiang. Tinha sessenta e cinco anos, havia lançado o movimento Anti-Direitista de 1956, criado as comunas populares em 1957 e prepa-rava-se para avançar com o desastre do Grande Salto em Frente, campanhas que hoje, vistas à distância dos anos, correspondem a erros políticos colossais que mui-to afectaram o crescimento da China e provocarram inenarráveis sofrimentos a todo o povo chinês. Mao Zedong, voluntarista como por norma são os chineses, quis mostrar o vigor físico de um sexagenário na força da vida, a sua capacidade indomável para encabe-çar todas as lutas. Apesar do clima subtropical quase todo o ano, em Janeiro a temperatura em Nanning não ultrapassa os 15 graus. O velho timoneiro não receou o frio e lançou-se à natação no rio, acompa-nhado por uns tantos se-guranças militares, quando a temperatura da água era de 17 graus. Tudo foi de-vidamente fotografado e filmado, mostrado por toda a China e, na orla do rio, no local onde Mao iniciou a jornada, foi construído, para exemplo das gera-ções futuras, um Pavilhão da Natação de Inverno e levantado um monumento comemorativo. Ainda lá se encontram e todos os anos, em Janeiro, aí se recorda o

António Graça de Abreu

EM南宁NANNING, NATAÇÃO COM O VELHO MAO ZEDONGNOS SÉCULOS XVI e XVII, os portugueses de Macau habituaram-se a manter reserva, uma certa distância ou mesmo a en-tabular negociações com o “vice-rei dos dois Guangs”, ou seja, o governador das províncias de Guangdong e Guangxi, adjacentes à cida-dezinha do Nome de Deus na China. Era preciso saber viver com os chineses e o diálogo com os dois Guan-gs funcionou quase sempre.Guangdong corresponde às terras de Cantão, logo acima de Macau, e Guangxi aos vastos espaços mais a ocidente. Todas estas terras não são, portanto, estra-nhas à gesta lusitana pela China.广西Guangxi significa exactamente “extenso oci-dente” e tem por capital a cidade de Nanning, nas margens do Yongjiang, um dos principais afluentes do rio das Pérolas, a uns seiscentos quilómetros de Macau, a trezentos e cin-quenta de Hanói, capital do Vietname. É habitada sobretudo pelos zhuang, a maior de todas as minorias nacionais chinesas, com 17 milhões de pessoas ainda algo aparentadas com os tailandeses. Mas a influên-cia han na região, ou seja dos chineses propriamente ditos, é muito antiga e hoje os zhuang da província cor-respondem apenas a pouco mais de um terço da popu-lação de Guangxi, absorvi-da, aculturada pelo mundo chinês.Na minha primeira visita a Nanning, na Primavera de 1978, já lá vão trinta e qua-tro gloriosos anos, na com-panhia do pequeno grupo de estrangeiros meus com-panheiros de trabalho nas Edições de Pequim, visitei a Universidade de Nanning e não esqueço o entusiasmo com que fomos recebidos pelos estudantes da Facul-

Page 9: h - Suplemento do Hoje Macau #47

h9

22 6

201

2

C H I N A C R Ó N I C A

feito “glorioso” de Mao Ze-dong com o banho destina-do a umas centenas largas de entusiastas que nadam orgulhosos nas águas ainda frias do Yongjiang. Depois, com o tempo a aquecer, as margens do rio, hoje algo poluído, são a grande praia para as gentes da terra.Nanning é uma cidade que vive principalmente da tro-ca de produtos, do comér-cio, a fronteira com o Viet-name está apenas a 160 qui-lómetros, os intercâmbios comerciais entre os dois países são uma constante e tudo se compra e vende neste burgo, hoje com cer-ca de 3 milhões de habi-tantes. A província produz arroz (duas colheitas por ano), milho, batata doce, cana do açúcar, centenas de milhares de toneladas de chá e frutas tropicais. Sinal evidente da melho-

ria das condições de vida desta vasta mole humana são as ruas de Nanning, pejadas de shoppings e lo-jas, cruzadas permanente-mente, tal como as grandes cidades vietnamitas, por milhares de motorizadas. E começam a aparecer os inevitáveis carros de luxo, os novos ricos prosperam e adoram mostrar os seus car-ros, entusiasmam-se com os floreados da ostentação da riqueza quase sempre ba-coca, vazia mas substancial em termos do vil metal, o yuan.Toda a região foi um pon-to importante no apoio ao Vietname do Norte quan-do do sangrento conflito entre os Vietname do Sul, do Norte e os norte-ame-ricanos, nos anos sessen-ta e setenta do século XX. Na altura, a cidade estava completamente fechada à

EM南宁NANNING, NATAÇÃO COM O VELHO MAO ZEDONG

presença de estrangeiros. Por aqui eram canalizados poderosos meios militares e todo o tipo de auxílio, em combustíveis, comida, ves-tuário, com que os chineses apoiavam os exércitos e a população vietnamita. Por aqui, as incontáveis mer-cadorias transportadas nos imensos comboios que li-gavam Nanning a Hanói, – do lado vietnamita sujeitos a bombardeamentos pelos B 52 norte-americanos –, garantiam a subsistência e sobrevivência do povo vie-tnamita, dos vietcong e do regime de Ho Chih Min. Mudaram-se rapidamen-te tempos e vontades. Em 1979, por múltiplos desen-tendimentos regionais e na-cionais, a China teve uma pequena guerra com o Vie-tname travada exactamente nestas zonas de fronteira entre os dois países.

O velho timoneiro não receou o frio e lançou-se à natação no rio, acompanhado por uns tantos seguranças militares, quando a temperatura da água era de 17 graus. Tudo foi devidamente fotografado e filmado e mostrado por toda a China

A inimizade e desconfiança entre chineses e vietnami-tas entronca na História. Annam, em chinês, o “sul pacificado” – como eram no passado conhecidas as costas do golfo de Tonkim e, para o interior, as terras norte do Vietname –, foi uma extensão do territó-rio chinês até ao ano 939, quando o general vietnami-ta Ngo Quye expulsou defi-nitivamente os chineses das terras do actual Vietname.Hoje vive-se em paz e Nan-ning é também lugar de pas-sagem para muitos jovens ocidentais que viajam um pouco à aventura pela Chi-na. Se querem continuar a descobrir mais Ásia, fazem a viagem de comboio, apenas cinco horas até Hanói. E há mais mundo, mais arrebata-dores encantamentos e ob-tusos fascínios para além das fronteiras da China.

Page 10: h - Suplemento do Hoje Macau #47

a revolta do emir Pedro Lystermann

P R I M E I R O B A L C Ã Oh1022

6 2

012

SÓ, NO MEIO DE UM BAR pratica-mente vazio, atrevo-me a pedir um mar-tini. Esta é uma bebida essencial. Como diz Victoria Moore, se existisse apenas um cocktail seria inevitavelmente este.Trata-se de uma bebida difícil e, ao mes-mo tempo, muito fácil. A atroz simpli-cidade de uma construção decente não esconde o imenso universo que se dispõe à nossa frente. A literatura sobre os seus rituais próprios e o seu modo de prepara-ção é, não só merecidamente vasta, como é testemunho de que a leviandade é algo que deve ser observado com sentido de experimentação e de responsabilidade. Mas, no fundo, os problemas que um mar-tini põe são quase tão ridículos como os seus adeptos mais sérios, as suas interdi-ções e as suas iniciações. Ao contrário do que muitas pessoas dizem, não é neces-sário ir a Londres ou a Nova Iorque para beber um martini de jeito. O mundo está cheio de snobs mas, neste caso particu-lar, é fácil contornar as suas interdições. Em Macau há muitos bares com martinis capazes, um bar de hotel que não o faça bem não merecendo sequer o nome. É por isso que esta é uma bebida definidora. O Macallan, o bar do Star World, o Lan ou o Bar Azul estão perfeitamente à altura desta tarefa de inigualável prestígio.Em casa faz-se com facilidade mas estas sugestões não devem fazer esquecer que esta é a quinta-essencial (mais pura) bebi-da social, um exercício de promoção do encontro, da criatividade e, especialmen-te, do viver urbano e interior. Este seu

rosto difere muito do de um gin tónico ou de um Pimm’s, perfeitamente aceitá-veis ao ar livre. O martini pede madeira, balcões e discordâncias em voz alta.Mas voltemos à problemática da sua con-fecção. Com um pouco de bom senso se consegue uma mistura limpa. Só um total néscio é que não consegue, à segunda ou terceira tentativa, misturar de modo agra-dável ao seu paladar, um bocado de gin e de vermute se se tiver em consideração uma ou duas condições.Basicamente, a questão reside no que fa-zer com o vermute, um problema que, contudo, cria uma vontade de experi-mentar. Ao longo do tempo poder-se-á alterar um pouco o gosto, juntando-se um pouco mais ou reduzindo a sua utilização até praticamente à sua exclusão. Um co-nhecido estadista britânico, gordo, re-ceitava que bastava olhar para a garrafa de vermute para se completar a mistura, uma forma pouco subtil de fazer algo que continua a ser mal visto, que é beber gin puro. Outros bebedores famosos, como Noël Coward ou Buñuel apresentam so-luções aparentadas. Pessoalmente não sou contra encher o copo de gelo, juntar uma boa quantidade deste vinho licoro-so, não descurando a zona junto à borda, e deitar tudo fora uns segundos depois. Verta-se então o gin (em português, gim) menos culpado por esta exclusividade que não será total porque a ela se deve juntar uma casquinha de limão. Quebrar a casquinha para libertar os seus óleos é opcional. Outra opção, desculpável, mais

americana e porventura (ou desventura) mais famosa, são as azeitonas.O reduzido número de ingredientes, a sua acessibilidade e a dispensa de instru-mentalia (se for apenas mexido) promove a confecção deste prazer. Começar por uma proporção de 1 parte de vermute para 3 de gin é uma base clássica a par-tir da qual se pode partir. Humildemente, recomendo apenas 2 coisas: deve fazer--se tudo isto com tempo e tranquilidade, e com copos adequados e muito frios, de preferência mantidos no congelador du-rante uns 20 minutos. O gin também aí deve ser mantido, na companhia de uma bebida que o pode substituir – o vodka (e tudo o que aqui se aplica àquele se aplica a este).Que vermute escolher? A literatura não insiste muito neste ponto. Um Martini ou um Cinzano são perfeitamente ade-quados e muito fáceis de encontrar. Um Noilly Prat poderá dar um pouco mais de distinção por ser menos conhecido mas não eleva substancialmente a qualidade do cocktail. Não vale a pena tentar en-contrar graças escondidas numa bebida que é simples e que não passa de um vi-nho licoroso ou fortificado. Em relação ao gin passa-se o mesmo. É fácil encontrar marcas honradas como Gordon’s ou Be-efeater, os supostamente melhores Bom-bay ou Tanqueray (nas suas variações) ou um ou outro menos conhecido como o Coldstream, ou caro como o Hendrick’s. O gin em si não é uma bebida chique e noutro texto, mais dedicado a esta bebida

setentional e bruta de origem holande-sa, se recordarão os excessos que o povo com ele praticava e que inspiraram os conhecidos quadros de Hogarth. Sendo assim usam-se bem sem remorsos aqueles primeiros honrados e baratos exemplares.Em Macau, atrasadíssimo nesta matéria, não se encontram gins artesanais de ge-ração moderna, mais variados nos seus sabores e na sua ousadia, mas outra coisa não seria de esperar.Um aviso aos mais incautos sobre a quan-tidade de martinis que se deve beber: 1 parece-me desnecessário, 2 a quantidade mais sensata e presumo que a mais prati-cada. Pedir um terceiro pode ser um refle-xo dos efeitos do segundo ou uma tenta-tiva, mais ou menos consciente, de tentar mudar algo na nossa vida. Um possível quarto poderá ter muitas consequências, uma das quais aquela para que a poetisa e conhecida wit, Dorothy Parker, alegre-mente nos avisa:

Gosto de beber um MartiniDois, dois, e mais nãoDepois do terceiro estou debaixo da mesaDepois do quarto debaixo do anfitrião(a tradução é livre, deste vosso dedicadís-simo investigador).

E uma coisa que vem completamente a despropósito. Porque não, da próxima vez, trocar um pouco as voltas a isto tudo, juntar Campari e beber um negroni? Ou-sai pecadores imundos, que o fim está próximo.

MARTINIS

Page 11: h - Suplemento do Hoje Macau #47

T E R C E I R O O U V I D O

PASSO A PASSO

próximo oriente Hugo Pinto

h11

22 6

201

2

QUANDO SURGIU, no início da década de 1990, a expressão “IDM” (Intelligent dance music) procurava distinguir o tipo de música electrónica que não se limitava à justificação funcional das pistas de dança e que se des-viava por caminhos mais dados à experimentação, o que resultava (muitas vezes) em arritmias que não se harmonizavam com pés que queriam bater a noite toda sem parar. Amaldiçoada tanto pelos artis-tas que descrevia como pelos que excluía (deixados a pensar que faziam “stupid dance mu-sic”), a denominação “IDM” so-breviveu para apresentar músi-ca que continua a perder-se no labirinto da electrónica e que depois se encontra aninhada nos circuitos cerebrais dos ou-vintes.Desde que, em 1992, a Warp Records lançou a compilação “Artificial Intelligence”, anun-ciando ao mundo os artistas que viriam a ser considerados os mestres da IDM (Autechre, Aphex Twin, B12, The Black Dog e The Orb), foram imen-sas as ramificações que a música electrónica gerou, e o caminho que então começou a ser des-bravado continua sem fim à vis-ta. Com o tempo, naturalmente, esbateu-se a distinção entre a IDM e o resto da electróni-ca, o que resultou, entre outras coisas, numa música de dança menos convencional, ainda que igualmente funcional.Actualmente, entre os géneros que não se conformam ao pa-drão rítmico mais comum da música electrónica, “four-to--the-floor”, o mais popular é talvez o Dubstep. Com origem em Londres, des-cendente bastardo do Dub, Grime, 2-Step, UK Garage e do Drum and Bass, o Dubstep consiste, em traços gerais, no diálogo de linhas de baixo ul-tra saturadas que estremecem o espaço entre percussões narcó-ticas, quebradas e irregulares, com tímidos esquissos de me-lodias e poucas ou nenhumas vocalizações. É este o som que se ouve, como fundo, em “The Other Side”, o disco de estreia de Achun, produtor de Macau. Editado este ano pela Pause Mu-

sic, editora da Xangai, “On the Other Side” convoca o Dubs-tep como influência notória, mas usa-o como tapete sobre o qual se estendem outras sono-ridades, do 8-Bit (“Chiptune”, remanescente dos primórdios da cultura de videojogos) ao Breakbeat, passando pelo Elec-tro. Aliado à música, surge um imaginário que Achun reclama dos filmes de ficção científica e de teorias da conspiração, que terão dado o mote para o tema de abertura do disco, “Hidden Fear”, que entrecruza Electro e Dubstep num clima de tensão que só a espaços, ao longo do disco, desaparece. De produção consistente e bem artilhada, “On the Other Side” tem como momentos altos “Stargate” (devidamen-te espacial, trazendo ao disco uma profundidade de som que falta a outros temas, ajudando a projectar a música para outra dimensão) e “Scenario”, o tema de maior fidelidade à raiz mais profunda do Dubstep, o Dub. Apesar de só este ano se ter aventurado na edição, Achun tem actividade como produtor desde 2003. O tempo que es-perou até lançar “On the Other Side”, entre outras coisas, reve-la que, como o próprio Achun confessa, “não é fácil ser produ-tor de música em Macau”, nem tão pouco ser um mero aprecia-dor de música electrónica.Depois de concertos na China e em Hong Kong, no próximo dia 28 de Julho, Achun apre-senta “On the Other Side” em Macau, no Armazém do Boi. Além de ser uma oportunidade para ouvir, em avanço, alguns dos temas do próximo EP, com edição agendada para o final de 2012, o concerto servirá, também, para tomar o pulso ao movimento local em torno do Dubstep e da música electróni-ca, que chegou a ter expressão quando o bar Blue Frog abria as portas a noites temáticas. E agora?

“On the Other Side” Achun Pause Music, 2012

Page 12: h - Suplemento do Hoje Macau #47

h1222

6 2

012

C I D A D E S I N V I S Í V E I S

A 15 de Dezembro de 1928 nasceu, em Viena, Friedrich Stowasser, que mais tarde viria a adoptar o nome de Hundertwasser, com o qual assinou a vasta obra pictórica e arquitetónica que produziu até à sua morte, em 19 de Fevereiro de 2000, quando viajava a bordo do transatlântico Queen Elizabeth 2.Percorreu meio mundo e sonhou a outra metade. Incitou à criatividade, afrontou a inércia da sociedade relativamente à tirania do racionalismo mais oco e à urgência de compromissos ecológicos.Defendeu o direito à “terceira pele”, a casa apropriada por quem a veste, na justa medida do respeito pela natureza. Colocou a felicidade como condição da existência e conseguiu a proeza maior de criar uma obra que é, toda ela, um manifesto sem a virulência dos imperativos mas antes com a assertividade do que é belo.Há nas suas espirais de cor algo de essencial. As janelas que invadem todo o seu trabalho são mais do que rasgões na superfície impermeável de um edifício ou de um corpo: abrem para outros mundos, realidades de outra beleza. Da filigrana das gravuras e serigrafias, complexa tessitura de cores e linhas curvas, emergem as mesmas razões que se adivinham nos edifícios que projetou: a integração tranquila da natureza nos elementos construídos, num esforço de devolver ao pó o que da terra emanou.De todos os campos que tocou, foi provavelmente como arquiteto que Hundertwasser ganhou maior notoriedade. Sem os maneirismos barrocos que frequentemente definem o sistema de vedetas do mundo da arquitetura, os projetos que desenhou conseguem integrar a mesma organicidade do seu trabalho pictórico: são estruturas vivas que se desenvolvem com a evidência das plantas que cobrem os telhados ou brotam das paredes.Incorporou na arte a mesma límpida clareza com que defendeu manifestos pela criatividade ou contra a “imoralidade da linha reta”.Travou várias lutas contra o espírito reinante. Foi, por exemplo, uma das vozes a defender a não adesão da Áustria à União Europeia, em nome do respeito pelas tradições que o diretório eurocrata ameaçava, então como agora, em nome da competitividade dos mercados.À luz do conformismo que nos aconselham hoje dirigentes políticos e até  um ou outro universitário, parecerá estéril e mesmo perigoso o aguerrido comprometimento de Hundertwasser com o pensamento crítico e a necessidade de um desenvolvimento assente no bem-estar, na felicidade e no respeito pelo ecossistema em que nos integramos.Contra a tacanhez silenciosa, o testemunho vibrante das suas composições aí está como radical afirmação de liberdade. 

O DIREITO DE JANELA, O DEVER DE ÁRVORE

Nuno CasimiroAutor de vasta obra pictórica e arquitetónica, Hundertwasser tinha um pensamento crítico e defendia um desenvolvimento assente no bem-estar, na felicidade e no respeito pelo ecossistema em que nos integramos.

Page 13: h - Suplemento do Hoje Macau #47

h13À S U P E R F Í C I E

22 6

201

2

O FUNDADOR da WikiLeaks entrou na embaixada equatoriana em Londres e pediu asilo, ao abrigo da declaração de Direitos Humanos das Nações Unidas. Governo equatoriano garante proteção a Assange enquanto avalia o pedido.“Este pedido foi feito ao Ministério dos Negócios Estrangeiros na capital Quito. Estou grato ao embaixador equatoriano e ao governo do Equador por avaliarem o meu pedido”, disse Assange ao diário britânico The Guardian.A embaixada do Equador declarou que repassou imediatamente o pedido ao departamento responsável em Quito, e que, enquanto o departamento avalia o pedido, “o sr. Assange permanecerá na embaixada sob a proteção do governo equatoriano”.De acordo com o ministro dos Negócios Estrangeiros do Equador, Ricardo Patino, Julian Assange argumentou que “as autoridades do seu país não defendem as suas mínimas garantias diante de qualquer governo e ignoram a obrigação de proteger um cidadão perseguido politicamente”. E acrescentou que Assange afirmou que não podia regressar à Austrália “já que este país não bloquearia a sua extradição para um país que aplica a pena de morte para o crime de espionagem e sedição”.

COMPARADO A CHEN GUANGCHENGO advogado e colunista da revista Salon Glenn Greenwald escreveu que Assange não

fugiu, não é fugitivo, nem está a inventar algum tipo de ‘jogada’ para escapar da lei. “O mundo todo sabe exatamente onde ele está nesse momento: no prédio da Embaixada do Equador, em Londres.”Para Greenwald, “pedir asilo, motivado pela ameaça de ter os próprios direitos violados (Assange teme ser injustamente extraditado) é procedimento legal, plenamente reconhecido, nos termos da lei internacional, da lei dos EUA e da lei da Grã-Bretanha, como se viu no recente drama do dissidente chinês Chen Guangcheng. É um direito que Assange, que qualquer pessoa pode legitimamente invocar no caso de sentir-se ameaçada.”Se o Equador se recusar a dar-lhe asilo, disse, “ele voltará à situação em que estava antes de pedir o asilo: sob custódia das autoridades britânicas, que, muito provavelmente, o extraditarão imediatamente para a Suécia, cumprindo mandato de extradição que cobre todo o território da União Europeia (mas não tem qualquer validade fora da Europa, como, por exemplo, em território do Equador).O advogado alertou que “a situação de Assange é extremamente grave, de alto risco. E – como qualquer acusado de prática de crime grave (embora, no caso de Assange não exista acusação formal) – Assange tem perfeito direito legal de invocar todos os procedimentos legais que encontre ao seu alcance, para defender a própria vida e a própria segurança.”

JULIAN ASSANGE PEDE ASILO AO EQUADOR

BERNARDO SASSETTI A emissão de domingo do programa Geografia dos Sons, da Antena 2, vai ser dedicada ao pianista e compositor Bernardo Sassetti, falecido em maio, incluindo gravações inéditas do músico e um texto lido pela atriz Beatriz Batarda.Durante a emissão, vão ser ouvidos depoimentos dos pianistas Mário Laginha e João Paulo Esteves da Silva, dos compositores Vasco Pearce de Azevedo e Eurico Carrapatoso, dos músicos Pedro Moreira, Perico Sambeat, Guy Barker, Laurent Filipe, Carlos Azevedo, Carlos Barreto, Alexandre Frazão e do brasileiro Ivan Lins, com quem Bernardo Sassetti trabalhou ao longo da sua carreira.O programa vai incluir gravações inéditas do músico e compositor e um texto original da sua autoria, lido pela atriz Beatriz Batarda, com quem foi casado.O programa será transmitido na Antena 2, domingo, 24 de junho, às 21:00, com a duração aproximada de uma hora. No dia seguinte, segunda-feira, 25 de junho, o programa será transmitido na versão integral, a partir das 17:30.A Georgrafia dos Sons é um programa do compositor Luís Tinoco, dedicado à divulgação da nova música dos autores contemporâneos.

MÁRIO CASTRIM - INÉDITO A editorial Caminho homenageou o escritor e jornalista Mário Castrim com o lançamento de “Viagens Em Casa”, volume inédito de poesia, e com a reedição da obra para a infância “Estas São As Letras”, ilustrado

por José Miguel Ribeiro. A homenagem ao escritor e jornalista, dez anos passados sobre a sua morte, foi, ao fim da tarde, na Livraria Leya na Buchholz, em Lisboa. A apresentação das duas obras foi feita por António Carlos Cortez.Mário Castrim, pseudónimo de Manuel Nunes da Fonseca (1920-2002), foi jornalista, escritor, professor e crítico da televisão portuguesa, tendo assinado o Canal da Crítica, durante décadas, no Diário de Lisboa, primeiro, e no semanário Tal & Qual, mais tarde.

SÉRGIO GODINHO EM LIVROAs crónicas semanais que o músico Sérgio Godinho publicou no jornal Expresso foram reunidas no livro “Caríssimas 40 canções - Sérgio Godinho e as canções dos outros”, com o selo da editora abysmo.No ano em que celebra 40 anos de canções, o músico publicou semanalmente pequenos textos sobre 40 músicas de eleição, “uma visão íntima de quem conhece a música, os instrumentos, os intérpretes e a sua circunstância”, refere a editora.Com ilustrações de Nuno Saraiva, o livro começa com “Os vampiros”, de José Afonso, e prossegue com Bob Dylan, Chico Buarque, Amália Rodrigues, Violeta Parra, Peggy Lee, Paul Simon, Robert Wyatt ou Fausto Bordalo Dias.“Só faz pleno sentido ler estes textos proximando cada um da ‘sua’ canção, ouvida e desfrutada - seja através da memória, seja através da descoberta”, escreveu Sérgio Godinho no texto introdutório.

UM GRUPO de escritores luso-americanos, de várias gerações, deu em Newark, Estados Unidos, novo passo para estabelecer um fórum regular sobre a literatura luso-americana, que querem divulgar na comunidade e em Portugal. “Ler na Ferry Street”, o encontro de Newark com o escritor português José Luís Peixoto, segue-se a um recente, em Chicago, e visa “dar voz” aos autores e ao seu conhecimento

NEWARK ESCRITORES LUSO-AMERICANOS LANÇAM FÓRUM LITERÁRIO

entre si, “consolidando a tradição literária luso-americana”, disse o organizador, o professor universitário Luís Gonçalves. “Há um fervilhar grande, eles têm publicado bastante em antologias, revistas especializadas de poesia e prosa e algumas publicações comunitárias, mas é preciso que continuem a escrever e só vão continuar a fazê-lo se houver um espaço em que tenham voz”, afirma o académico da universidade de Princeton, Nova Jérsia.O risco, afirma, é que o “’mainstream’ norte-americano absorva” estes escritores, perdendo-se o “vínculo” à comunidade luso-americana, cujas histórias têm vindo a passar ao papel, em romances, poemas ou crónicas.Além do convidado José Luís Peixoto, cinco autores luso-americanos irão ler excertos de obras suas: Glória de Melo, Oona Patrick, Luís Pires, Ana Sofia Paiva e Carlos Queirós, que está na fase final da escrita de um romance passado exatamente na Ferry Street.A seguir a Newark, Gonçalves pensa já num evento semelhante em Boston, noutro na Califórnia e mesmo numa forma de juntar as três comunidades literárias em tempo real. “Ideal seria, usando as novas tecnologias, conseguir fazer um evento que fosse nas três comunidades, ao mesmo tempo, fazer o evento em comum”, disse à Lusa o académico português.Outro momento de afirmação para esta “geração de escritores desconhecida em Portugal” será a nova edição, em julho, do programa internacional literário promovido em Lisboa pela editora norte-americana Dzanc.

Page 14: h - Suplemento do Hoje Macau #47

h1422

6 2

012

gente sagrada José Simões Morais

O L H O S A O A L T O

CONHECIDAS POR Duplo 5, as festividades dos Barcos--Dragão ficaram ligadas des-de o século III a.C. a Qu Yuan (340-278 a.C.). Sábio e poeta, conhecido em cantonense por Chu Yuan, foi um alto minis-tro da corte Chu que, devido a invejas e a interesses obscuros dentro da corte, foi sendo co-locado à parte das decisões que acabaram por levar ao fim do reino Chu. Quando soube da triste notícia atirou-se à água, deixando-se afogar. Em sua honra, no quinto dia do quinto mês lunar, realizam-se as festivi-dades dos barcos dragão. Tudo começou nos finais do pe-ríodo dos Reinos Combatentes (475-221 a.C.), quando o reino Qin preparava uma grande in-vestida para conquistar novos reinos situados sobretudo na planície central do rio Chang (Rio Grande) e na zona de Jiangnan. Apercebendo-se des-sas intenções, Qu Yuan, então alto ministro da corte do reino Chu, estrategicamente propõe uma aliança com o reino Qi. Mas dentro da corte Chu, Jin Sheng, o chefe dos ministros, que era a favor de uma aliança com o reino Qin, opõe-se ao fervoroso patriota Qu Yuan, pois ambicionava expandir o território Chu.Qu Yuan, como alto ministro do reino, escreve ao rei um re-latório e quando Jin Sheng lhe ordena para este lhe mostrar o documento, recusa. Jin Sheng começa a espalhar rumores que Qu Yuan estava a divulgar se-gredos de Estado. Através de espiões, tal chega aos ouvidos dos governantes Qin que logo lhe enviam presentes para o su-bornar; o que não funcionou. Estava-se num período de es-tratégia e as alianças eram um meio de equilibrar os poderes. Por isso convinha desfazer o feixe das alianças e pela con-tra-informação, com a ajuda dos traidores, desacreditava-se quem pelo povo trabalhava. Fá-cil foi subornar com ouro, prata

e jóias, Jin Sheng e a concubina preferida do rei Chu. Assim Qu Yuan em 313 a.C. é expulso da capital e começa a escrever em poesia sobre temas como a cor-rupção da corte e da aristocra-cia Chu. Ainda um ano não ti-nha passado, quando o rei aper-cebendo-se da inevitabilidade de uma guerra contra o reino Qin, manda chamar Qu Yuan à corte, voltando a entregar-lhe o cargo. Como a guerra não esta-va de feição para os Qin, estes convidaram o rei Chu para ir ao território Qin fazer um tratado de paz e de aliança. Qu Yuan bem avisou o rei que era uma emboscada, mas este para além de o humilhar, repreendendo-o em público, enviou-o de novo para o degredo. Tarde de mais! O rei Chu foi capturado e mor-reu na prisão três anos depois. Os Qin arrasaram o grande exército Chu e tornaram-se o mais poderoso reino. O filho mais velho do rei Chu subiu ao poder e Qu Yuan as-sinou ainda algumas reformas, assim como escreveu poemas satirizando a corrupção de mui-tos dos altos funcionários da corte Chu. No entanto, quando o novo rei se casou com a filha do rei Qin, Qu Yuan devido a críticas na corte viu-se desacre-ditado e demitido de ministro, sendo de novo banido.O reino Qin volta a invadir os Chu em 280 a.C. e em 278 a.C. ocupa a capital. Qu Yuan soube da notícia quando andava pelo Norte da actual província de Hunan, junto às margens do rio Miluo. Desesperado lançou-se à água, mas a população que ad-mirava as suas qualidades enviou barcos à sua procura. Perceben-do que o poeta do povo se tinha afogado, lançaram arroz à água alimentando os peixes para que estes não comessem o corpo de Qu Yuan. Em Macau, a este Espírito não lhe é votado algum sacrifício e por isso não tem Templo. A sua imagem, pelo mundo, é difícil de encontrar nos dias que correm.

屈原 QU YUAN, O POETA DO POVO

Page 15: h - Suplemento do Hoje Macau #47

L E T R A S S Í N I C A S

Que se deixem soberanos altivos comandar um povo enfraquecido e rara será a nação que daí não pereça.

HUAI NAN ZI 淮南子 O LIVRO DOS MESTRES DE HUAINAN

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (actual Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e refinaram o cor-po de ensinamentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e co-ordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fundamentais, efectuada a partir do texto canónico completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extrac-tos encontram-se organizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.O texto original chinês pode ser con-sultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.

DO ESTADO E DA SOCIEDADE – 10

Os soberanos querem duas coisas dos seus súbditos: que trabalhem para o país e que morram pelo país. Dos seus soberanos esperam os súbditos três coisas: que se dê de comer aos famintos; que se dê descanso aos cansados e que recebam recompensas os meri-tórios. Se o povo cumpriu com as duas exigências que lhe são pedidas pelo governo, negligenciando o governo as três coisas que dele espera o povo, nesse caso, ainda que um país seja grande e muita sua gente, a milícia será em todo o caso fraca.

* * *

O Senhor Marcial do Estado de Wei perguntou a um dos seus ministros o que faz perecer uma nação. O ministro lhe respondeu: “Vitórias numerosas em numerosas guerras”.O senhor disse: “Uma nação é afortunada por ganhar numerosas vitórias em guerras numerosas, porque

pereceria então?”Disse o ministro: “Quando existem repetidas guerras, o povo se enfraquece; quando ganham repetidas vitórias, os soberanos se tornam altivos. Que se deixem soberanos altivos comandar um povo enfraquecido e rara será a nação que daí não pereça.”

* * *

Um letrado ancião que acartava uma resma de livros encontrou na estrada um eremita. Disse o eremita: “Os funcionários públicos agem por reacção à mudança e as mudanças no tempo se desenrolam, assim, aqueles que conhecem o tempo não agem de maneira fixa. Os livros se produzem por palavras e as palavras vêm daqueles que sabem; como tal, aqueles que sabem não guardam livros”.

* * *

Quando o Estado de Jin se lançou sobre o Esta-do de Chu, os maiorais de Chu pediram ao rei

para atacar, mas o rei disse: “Jin não nos atacou durante o reinado do nosso anterior rei; agora que Jin nos ataca durante o meu reinado, tal só pode ser minha culpa. O que pode ser feito face a tal desgraça?”Disseram os maiorais: “Jin não nos atacou no tempo de anteriores ministros; agora que Jin ataca durante a nossa administração, tal só pode ser nossa culpa.”O rei de Chu inclinou sua cabeça e chorou. De seguida, levantou-se e fez vénia aos seus ministros.Quando o povo de Jin soube disto, disse: “O rei e os seus ministros competem pela culpa. Quão facilmente se rebaixa o rei ante seus subordinados! Não os podemos atacar.”Assim, nessa noite, o exército de Jin deu volta de regresso a casa. É por isto que Lao Tzu disse: “Aquele que sabe aceitar a desgraça da nação é chamado seu líder.”

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

h15

22 6

201

2

Page 16: h - Suplemento do Hoje Macau #47

O SOL, A LUA E A VIA DO FIO DE SEDA

FERNANDA DIASU m a l e i t u r a d o

YI JING

A nova tradução do livro que há milénios ilumina a civilização chinesa