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haroldo de campos - da transcriação poética e semiótica da operação tradutora

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  • FALE/UFMG

    Belo Horizonte

    2011

    Da transcriao potica e semitica da operao tradutora

    Haroldo de Campos

  • 5 Por uma potica da traduo

    9 Da transcriao:

    potica e semitica da operao tradutora

    31 Da traduo como criao e como crtica

    47 Traduoereconfiguraodoimaginrio:

    otradutorcomotransfingidor

    63 Para alm do princpio da saudade:

    a teoria benjaminiana da traduo

    75 Paul Valry e a potica da traduo:

    as formulaes radicais do clebre

    poeta francs a respeito do ato de traduzir

    91 O que mais importante: a escrita ou o escrito?

    107 A lngua pura

    na teoria da traduo de Walter Benjamin

    123 Tradio, traduo, transculturao:

    o ponto de vista do ex-cntrico

    133 Haroldo de Campos, Jos Paulo Paes

    e Paulo Vizioli falam sobre traduo

    151 Referncias

    Sumrio

    Diretor da Faculdade de LetrasLuiz Francisco Dias

    Vice-DiretoraSandra Maria Gualberto Braga Bianchet

    Comisso editorialEliana Loureno de Lima Reis Elisa Amorim Vieira Fbio Bonfim Duarte Lucia Castello Branco Maria Cndida Trindade Costa de Seabra Maria Ins de Almeida Snia Queiroz

    CapaeprojetogrficoGlria Campos Mang Ilustrao e Design Grfico

    PesquisaeorganizaodostextosSnia Queiroz

    PreparaodeoriginaisediagramaoTatiana ChanocaTiago Garcias

    Primeira reviso de provasBruna Fortes Paulo Henrique Alves

    SegundarevisodeprovasMarcos Fabio de Faria Priscila Justina

    Endereo para correspondnciaFALE/UFMG Laboratrio de Edio Av. Antnio Carlos, 6627 sala 4081 31270-901 Belo Horizonte/MG Telefax: (31) 3409-6072 e-mail: [email protected]

  • Em 1987, cerca de 25 anos aps a publicao do seu primeiro texto sobre a traduo potica em que aparece o termo transcriao, Haroldo de Campos poeta, ensasta e tradutor anuncia em observao ps-escrita ao ensaio que d ttulo a esta coletnea, o lanamento de um livro a ser publicado pela Brasiliense de So Paulo no primeiro semestre do ano prximo. O livro, que teria o mesmo ttulo daquele ensaio apresentado inicialmente como conferncia no II Congresso Brasileiro de Semitica, realizado na PUC-SP no ano anterior, no saiu em 1988, e mais de vinte anos depois continuamos a esperar por ele...

    Em 2009, segundo ano da nfase em Edio no Bacharelado em Letras da UFMG, a turma de alunos da disciplina Preparao de Originais assumiu a tarefa de reunir os principais ensaios sobre o tema da transcriao, que at o momento s eram encontrados em publicaes esparsas em livros e peridicos editados em diferentes locais e datas, o que exigiu dos estudantes um exerccio rigoroso de atualizao e nor-malizao de texto.

    O ensaio Da traduo como criao e como crtica foi pela primeira vez apresentado ao pblico em 1962, no III Congresso Brasileiro de Crtica e Histria Literria, realizado na Universidade Federal da Paraba. Um ano depois, o texto foi publicado no Rio de Janeiro, na revista Tempo Brasileiro. Este parece ser o primeiro texto escrito pelo ensasta em que aparece o neologismo transcriao. O ensaio foi posteriormente recolhido pela Editora Cultrix na coletnea de textos de Haroldo de Campos Metalinguagem, que

    Por uma potica da traduo

  • 6 Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora Por uma potica da traduo 7

    chegou terceira edio em 1976. Em 1992, saiu, pela Editora Perspectiva, nova edio, ampliada e reintitulada Metalinguagem & outras metas.

    Em 1991 Haroldo de Campos publica o ensaio Traduo e reconfigurao do imaginrio: o tradutor como transfingidor, na colet-nea de diversos autores Traduo: teoria e prtica, organizada por Malcolm e Carmen Rosa Caldas Coulthard, e que saiu pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina. Em 1989 este mesmo texto havia sido publicado na revista 34 Letras, com o ttulo Da traduo transficcionalidade, e um pouco antes, em 1987, com o ttulo Reflexes sobre a potica da traduo, no volume 1 dos Anais dos 1 e 2 Simpsios de Literatura Comparada, organizados por Eneida Maria de Souza e Jlio Pinto e publicados em Belo Horizonte, pela UFMG. Optamos, nesta edio, pelo ttulo mais recente.

    Pela Folha de S. Paulo Haroldo teve publicados, nos nmeros 412 e 419 do caderno Folhetim, de 1984 e 1985, respectivamente, os ensaios Para alm do princpio da saudade: a teoria benjaminiana da traduo e Paul Valry e a potica da traduo: as formulaes radicais do clebre poeta francs a respeito do ato de traduzir.

    Ainda s voltas com as teorias benjaminianas o autor publicou, pela Revista USP, o ensaio O que mais importante: a escrita ou o escrito (teoria da linguagem em W. Benjamin), lanado no nmero 15 da revista, no ano de 1992. A lngua pura na teoria da traduo de Walter Benjamin foi publicado em 1997 no nmero 33 da mesma revista e expe a teoria da traduo potica desenvolvida pelo ensasta alemo no conhe-cido texto A tarefa do tradutor, que constitui uma das principais fontes do conceito de transcriao.

    Este volume traz tambm o texto Tradio, traduo, transcultu-rao: o ponto de vista ex-cntrico, apresentado por Haroldo de Campos em simpsio realizado pela Universidade de Yale como homenagem aos setenta anos do autor. O texto de 1999 e foi traduzido do ingls pela estudante Aline Sobreira.

    Encerramos com um dilogo aberto publicado em 1988, em Campinas, no nmero 11 dos Trabalhos de Lingustica Aplicada no qual Haroldo de Campos, Jos Paulo Paes e Paulo Vizioli falam sobre traduo.

    Desde que d incio, nos anos 1960, publicao de suas reflexes nascidas da intensa prtica de traduo de poesia iniciada nos anos 1950, at a morte do autor, em 2003, foram pelo menos quatro dcadas de vivncia e militncia por uma potica e semitica da traduo transcriao.

    Snia Queiroz

  • Marcao do percursoH mais de vinte anos me ocupo, em sede terica, dos problemas da traduo potica. Esta reflexo terica nasceu de uma prtica intensiva

    da traduo de poesia, levada a efeito individualmente ou em equipe por Augusto de Campos, Dcio Pignatari e por mim (desde a dcada de 1950, quando constitumos o grupo Noigandres), como um corolrio programtico de nossa atividade de poetas. Inspirou-a outra prtica: aquela poundiana, do make it new via traduo, descrita por Luciano Anceschi como o exerccio de uma verdadeira maiutica potica. Na dcada de 1960, passamos, Augusto e eu, a nos dedicar a um novo domnio exploratrio: a traduo de poesia russa, com a colaborao ou a reviso de Boris Schnaiderman, numa harmoniosa integrao de pontos de vista quanto natureza da operao tradutora em poesia.

    O trabalho de mais flego que publiquei sobre o assunto, Da tra-duo como criao e como crtica, foi apresentado ao III Congresso Brasileiro de Crtica e Histria Literria, na Paraba, em 1962, e a seguir estampado no nmero especial 4-5 da revista Tempo Brasileiro, de 1963. Por outro lado, meu livro de ensaios A arte no horizonte do provvel, de 1969, contm uma seo denominada A potica da traduo, na qual se recolhem estudos terico-prticos sobre a operao tradutora aplicada a Hlderlin, a Pndaro e poesia chinesa, publicados originalmente entre 1967 e 1969. No mesmo livro, encontram-se tradues de poesia japonesa (do haicai de Bash e Buson aos poetas de vanguarda do grupo Vou),

    Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora

  • 10 Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora 11

    italiana (Leopardi, Ungaretti) e alem (de Arno Holz aos expressionistas e vanguardistas). Assim, tambm, em A operao do texto, de 1976, inclu vrios trabalhos que apresentam esse denominador comum, entre eles o dedicado ao exame comparativo das tradues de O Corvo de Poe e o votado a refazer, etapa a etapa, atravs da anlise arrazoada da traduo do poema de Maiakvski Sierguiu Iessininu (A Siergui Iessinin), a gnese e a evoluo desse mesmo poema, explicitadas laboratorial-mente pelo prprio poeta em Kak dielat stikhi? (Como fazer versos?). Ultimamente, tenho me dedicado ao estudo do hebraico, no intuito de transcriar a poesia bblica.1

    Nessas sucessivas abordagens do problema, o prprio conceito de traduo potica foi sendo submetido a uma progressiva reelaborao neolgica. Desde a ideia inicial de recriao, at a cunhagem de termos como transcriao, reimaginao (caso da poesia chinesa) transtextualiza-o, ou j com timbre metaforicamente provocativo transparadisao (transluminao) e transluciferao, para dar conta, respectivamente, das operaes praticadas com Seis cantos do Paradiso de Dante e com as duas cenas finais do Segundo Fausto (Deus e o Diabo no Fausto de Goethe). Essa cadeia de neologismos exprimia, desde logo, uma insatisfao com a ideia naturalizada de traduo, ligada aos pressupostos ideolgicos de restituio da verdade (fidelidade) e literalidade (subservincia da tradu-o a um presumido significado transcendental do original), ideia que

    subjaz a definies usuais, mais neutras (traduo literal), ou mais

    pejorativas (traduo servil), da operao tradutora.

    Traduo/tradioUm outro aspecto, desde o incio tematizado nesse percurso de teorizao ditado por uma prtica translatcia de contornos definidos, foi a noo de

    que a operao tradutora est ligada necessariamente construo de uma tradio, o que implicava projetar o problema no campo mais lato da historiografia literria.

    1 CAMPOS. Bereshit: a gesta da origem. O original hebraico e a respectiva transposio criativa em portugus fizeram parte da mostra Arte e Traduo, organizada por Julio Plaza especialmente para o II Congresso Brasileiro de Semitica, realizado em So Paulo, em 1985.

    Assim, num texto includo em apndice traduo em equipe (por Augusto de Campos, Dcio Pignatari e por mim) de Cantares,2 a equao paronomtica traduo/tradio por mim proposta e tentativamente resolvida em termos de traduzir = trovar. Ficava subentendida uma operao de morfologia cultural, ou, como eu preferia escrever quela altura,3 culturmorfologia, para preservar no barbarismo lexical o conceito de Kulturmorphologie, aliado ao de paideuma, que Ezra Pound extrara da antropologia de Leo Frobenius (migrao de complexos de elementos significativos ou formas culturais) e que reinterpretara livremente

    como: A ordenao do conhecimento para que o prximo homem (ou gerao) possa o mais rapidamente possvel encontrar-lhe a parte viva e perder o mnimo de tempo com itens obsoletos. Uma operao qual Pound conferira o atributo de uma das funes da crtica.

    Utilizei, ento, a ideia de corte paidumico para sintetizar este procedimento poundiano de levantar uma tradio viva por meio de separaes drsticas de um elenco de autores vlido para um dado (e novo) momento histrico. (No caso de Pound, a rejeio de Milton e de seu estilo de torneio latinizante e pompa retrica, reminiscente do verbalismo virgiliano; a correlata excluso de Gngora e do barroco, em favor de uma diferente tradio remontvel a Catulo e Proprcio que conduzisse, via Franois Villon, a Gautier e Browning e aos simbolistas de linha coloquial-irnica, Laforgue e Corbire, com a rasura, pelo menos aparente, de Mallarm). Dei, ocasio, um exemplo pertinente prtica da traduo: Pound transps Proprcio em vers de societ, maneira de Laforgue. Entre o poeta latino e o francs, a linguagem assumida por Pound lana uma ponte de culturmorfologia aplicada poesia.4 E acrescentei a esta observao uma outra, de Hugh Kenner: Ezra Pound levou s elegias de Proprcio uma sensibilidade alerta ao cinismo ele-

    2 POUND. Cantares, p. 151.3 Numa verso especial que fiz dos primeiros tpicos deste ensaio benjaminiano, para servir de base

    a uma aula sobre traduo, por mim ministrada em outubro de 1984 no curso da Prof Dra. Jeanne Marie Gagnebin (O texto da histria: um estudo da filosofia de Walter Benjamin, Ps-Graduao em Filosofia, PUC-SP), propus uma interpretao estranhante, num sentido deliberadamente etimologizante, heideggeriano-derridiano, do ttulo Die Aufgabe des bersetzers. Jogando com as vrias acepes mutuamente suplementveis do substantivo (die) Aufgabe e do verbo aufgeben, traduzi: Ao que se d e o que d o tradutor; ou mais concisamente: O que dado ao tradutor dar.

    4 POUND. Cantares, p. 8.

  • 12 Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora 13

    gante, informada pelo modo laforgueano de lidar com o sentimento pre-tensioso e o pretenso bombstico.5 Uma pequena amostra poder aqui ser til. Burlando-se, ao mesmo tempo, da escuta convencional dos professores de latim e da licorosa recepo vitoriana das elaboradas elegias de Proprcio, Pound fez uma espcie de reinveno dos versos do poeta latino, com o intuito de acentuar-lhes o gume irnico e resgat-los da capa morturia das leituras passivas. Assim, no verso:

    utque decem possint corrumpere mala puelase como dez mas possam perverter as jovens

    Pound, no resistindo oportunidade do trocadilho, traduziu mas (malum, i) pelo homfono que significa m ao, vcio (tambm neutro com o plural em -a), e escreveu:

    And how ten sins can corrupt young maidensE como dez pecados podem corromper donzelas

    Ou, como eu gostaria de retraduzir, aproveitando a deixa e extremando o exemplo:

    E como dez ms aes mas, m sina! podem perverter meninas,

    j que o trocadilho semntico de Pound parece ter sido guiado (e isto Hugh Kenner, de quem extra o exemplo, deixa de apontar) pelo jogo fnico entre DEcEM poSSINt e TEN SINS... (Para entender o mood ou tom que Pound estava buscando reativar em Proprcio, s pensar no Laforgue de coisas assim:

    Je ne peux plus moccuper que des Jeunes Filles, Avec ou sans parfum de famille...No me toco seno por Menininhas Tenham ou no cheirinho de famlia...

    No meu exemplo extremado fiz, obviamente, um repique troca-dilhesco com o mala de Proprcio e o sins de Pound (m sina), alm de brincar com as mas do original convertidas edenicamente nas ms aes da voluntria mistranslation poundiana...

    5 POUND. Cantares, p. 8.

    Em Traduzir & trovar, coletnea de ensaios e tradues meus e de Augusto de Campos (os provenais, Guido Cavalcanti, Dante, metafsicos ingleses e marinistas italianos), a equao terminolgica retomada, j no ttulo. Numa breve nota introdutria, l-se: Traduzir & trovar so dois aspectos da mesma realidade. Trovar quer dizer achar, quer dizer inventar. Traduzir reinventar.6 E linhas adiante:

    Este volume expe-se como um canteiro de trabalho. Poesia que, atravs da traduo, pode ser vista in fieri: o carter concluso da obra feita fica provisoriamente suspenso e o fazer reabre o seu processo, refaz-se na dimenso da nova lngua do tradutor. Uma didtica direta. A jornada e o jornal de um laboratrio de textos.7

    Corte paidumico e corte sincrnicoJ em A arte no horizonte do provvel, a noo de corte paidumico articulada com a de corte sincrnico e repensada em termos daquela Histria estrutural da literatura proposta por Roman Jakobson em Linguistics and Poetics:

    A descrio sincrnica considera no apenas a produo literria de um perodo dado, mas tambm aquela parte da tradio literria que, para o perodo em questo, permaneceu viva ou foi revivida. Assim, por exemplo, Shakespeare, por um lado, e Donne, Marvell, Keats e Emily Dickinson, por outro, constituem presenas vivas no atual mundo potico da lngua inglesa, ao passo que as obras de James Thomson8 e Longfellow no pertencem, no momento, ao nmero dos valores artsticos viveis. A escolha de clssicos e sua reinterpretao luz de uma nova tendncia um dos problemas essenciais dos estudos literrios sincrnicos.9

    No prefcio desse meu livro de 1969, a traduo vista como forma de crtica que manifesta, na prtica textual, a visada na potica sincrnica. Esta, por seu turno, caracterizada nos ensaios a ela dedicados como uma potica situada na acepo sartreana do termo [...], s pode assumi-la um homem datado e inscrito num dado tempo

    6 CAMPOS. Traduzir & trovar, p. 3. 7 CAMPOS. Traduzir & trovar, p. 4.8 Jakobson est se referindo ao pr-romntico ingls, elegaco-paisagista, autor de uma pea de efeito,

    clebre ao tempo, o poema Rule, Britannia!.9 JAKOBSON. Lingstica e comunicao, p. 121.

  • 14 Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora 15

    histrico, o presente. Da deduzo o seu estatuto relativo (relativizando no mesmo passo a noo poundiana de corte paidumico, sem prejuzo da importncia que lhe atribuo): Ao contrrio do que se poderia imagi-nar, o valor relativo, funcional, e no o eterno, canonizado, que preside a uma histria literria estrutural, montada sobre cortes sincrnicos. (Veja-se, para dar apenas este exemplo, como Harold Bloom, o crtico de Yale, reentroniza Milton no pice da tradio potica e degrada Eliot e Pound a favor de Yeats e Wallace Stevens, assim como, nas geraes mais recentes, privilegia as alternativas de John Ashbery e de Archie Randolph Ammons, em desfavor do que rotula pardias voluntrias, fornecidas por Robert Lowell, e pardias involuntrias, de que seria prdigo Allen Ginsberg...).

    Tradio/traduo/recepoEnquanto eu publicava os trabalhos que compem a seo Por uma potica sincrnica de A arte no horizonte do provvel,10 Hans Robert Jauss proferia sua preleo inaugural na Universidade de Constana, Alemanha (13/4/1967), O que significa e para que fim se estuda a his-tria da literatura?, que ficaria famosa sob o ttulo com o qual foi publi-cada: Literaturgeschichte als Provokation der Literaturwissenschaft (A

    histria da literatura como provocao teoria literria). Nesse ensaio

    metodolgico, que ps em pauta de discusso, por assim dizer, a cha-mada teoria da recepo esttica, Jauss, procurando dar uma dimen-so histrica e hermenutica a certas categorias da potica imanente (como, por exemplo, a de novidade), opera com os conceitos de hori-zonte de expectativa e de fuso de horizontes para explicar como a resistncia oposta expectativa de seu primeiro pblico pela obra nova pode ser to grande, que um longo processo de recepo poder ser necessrio antes que seja assimilado ao que a princpio era inesperado, inassimilvel. E exemplifica:

    Foi necessrio aguardar o lirismo hermtico de Mallarm e de seus discpulos para que se tornasse possvel um retorno poesia barroca,

    10 Estampados no Correio da Manh do Rio de Janeiro, entre fevereiro e abril de 1967.

    longo tempo desdenhada, e pois esquecida, bem como, notada-mente, reinterpretao filolgica e renascena de Gngora...11

    A constituio da tradio vista por Jauss, correlatamente, como um processo de traduo, operando sobre o passado a partir de uma tica do presente. A mais incisiva declarao sobre este ponto encontra-se em Geschichte der Kunst und Historie (Histria da arte e histria):

    Se se deve entender por tradio o processo histrico da prxis artstica, ento cabe compreend-la como um movimento do pensar que se constitui na conscincia receptora, apropria-se do passado, o traz at ela e ilumina o que ela assim traduziu ou tra-ditou em presente, nova luz de um significado atual.

    (A retificao de pormenor contida nas reflexes complementares ao

    ensaio sobre a Ifignia de Racine e a de Goethe, de 1973, reconhecendo o carter seletivo e parcial de toda reproduo do passado artstico na recepo atual, no modifica, antes acentua, o aspecto necessariamente

    translatcio do processo, que o que aqui me importa enfatizar). Observo, em contraponto, que foi com uma afirmao relativizadora e parcial, de

    verdadeira potica de leitura, que conclu o segundo dos trs trabalhos encadeados em Por uma potica sincrnica:

    A leitura estrutural que Garca Lorca e Damaso Alonso realizaram na poesia de Gngora , para ns, seus contemporneos, a poesia de Gngora. E o ser at que um novo lance da evoluo literria, novas necessidades concretas de criao, ponham essa leitura em desfuno.12

    Mas remontemos ao ensaio de 1962, Da traduo como criao e como crtica, para confrontar as hipteses e concluses que ento formulei, com as reflexes que pude fazer no arco dos vinte anos que o

    sucederam.

    Impossibilidade/isomorfismoA primeira preocupao do meu ensaio foi o enfrentamento da ques-to aportica (do caminho sem sada) suscitada pela concepo tradicional da impossibilidade da traduo de poesia. Estabeleci, como

    11 JAUSS. A histria da literatura como provocao teoria literria.12 CAMPOS. O samurai e o kakemono, p. 219.

  • 16 Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora 17

    limite negativo da reflexo, a postulada impossibilidade da traduo da

    sentena absoluta (Albrecht Fabri) ou da informao esttica (Max Bense), uma vez que, para o primeiro, a possibilidade da traduo decor-reria sempre da deficincia da sentena (a traduo operaria sobre o

    que no linguagem num texto, ou seja, sobre o resduo no lingustico do processo de significao; em outros termos, o significado referen-cial); para o segundo, essa impossibilidade decorreria da fragilidade da informao esttica, que seria inseparvel de sua realizao sin-gular. Procedendo por reverso dialtica desse momento de negativi-dade radical, passei a afirmar, em contrapartida, a possibilidade, em prin-cpio, da recriao (re-criao) de textos poticos. Para fazer face ao argumento da outridade da informao esttica quando reproposta numa nova lngua,13 introduzi o conceito de isomorfismo: original e traduo, autnomos enquanto informao esttica, estaro ligados entre si por uma relao de isomorfia; sero diferentes enquanto linguagem, mas, como os corpos isomorfos, cristalizar-se-o dentro de um mesmo sistema. Insinuava-se, aqui, a noo de mimesis no como cpia ou reproduo do mesmo, mas como produo simultnea da dife-rena. Levando s ltimas consequncias a reverso assim praticada, inverti outra objeo tradicional traduo de poesia: quanto mais dif-cil ou mais elaborado o texto potico, mais se acentuaria aquele trao principal da impossibilidade da traduo. No caso da recriao, dar-se-ia exatamente o contrrio: quanto mais inado de dificuldades esse texto,

    mais recrivel, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriao.14 (Exemplifico: do ponto de vista da transcriao, traduzir Guimares Rosa seria sempre mais possvel, enquanto abertura, do que traduzir Jos Mauro de Vasconcelos; traduzir Joyce mais vivel, enquanto plenitude, do que faz-lo com Agatha Christie). A disjuno poesia/prosa deixava de ser relevante frente a essa noo de traduo criativa, onde a condio de possibilidade se constitua, exatamente, com apoio no critrio da difi-culdade. Eu no conhecia, quela altura, o lema de Lezama Lima: Slo lo difcil es estimulante, mas ele corresponderia ponto por ponto minha concepo do traduzir como re-criao.

    13 Em outra lngua, ser uma outra informao esttica, ainda que seja igual semanticamente (Max Bense).14 CAMPOS. Da traduo como criao e como crtica.

    Iconicidade e traduoFinalmente, o medium por excelncia da operao transcriadora pas-sava a ser a prpria iconicidade do signo esttico. Signo esttico que eu entendia ento como signo icnico (na acepo do discpulo de Peirce, Charles Morris): aquele que de certa maneira similar quilo que ele denota. Traduzir a iconicidade do signo implicava recriar-lhe a fisicali-dade, a materialidade mesma (ou, como diramos hoje, as proprieda-des do significante, abrangendo este, no meu entender, tanto as formas fono-prosdicas, e grafemticas da expresso, como as formas gramati-cais e retricas do contedo). Estas formas, por definio, seriam sempre

    formas significantes, uma vez que o parmetro semntico (o significado,

    o contedo), embora deslocado da funo dominante que lhe conferia a chamada traduo literal, termo a termo, no era vanificado (esvaziado),

    mas, ao contrrio, constitua-se por assim dizer num horizonte mvel, num virtual ponto de fuga: a baliza demarcatria do lugar da empresa recria-dora (como eu ento escrevi). Pensava, ocasio, na frase de Blanchot: Lesprit, dit Mallarm aprs Hegel, est dispersion volatile. E a imaginava

    aplicvel dimenso semntica da linguagem: tambm ela poderia ser definida como disperso voltil (lembro-me de ter referido este ponto,

    certa vez, a Nicolas Ruwet, para expressar-lhe minhas dvidas quanto ao xito de uma semntica estrutural, ou seja, das tentativas de integrar a componente semntica no modelo de uma gramtica gerativa). De tudo isto, a minha concluso, que assinalava o procedimento nietzscheano de pr o aprendizado ao revs (umzulernen): Est-se, pois, no avesso da chamada traduo literal.

    Dois ensaios de importncia fundamental, que eu no conhecia poca em que redigi Da traduo como criao e como crtica, permi-tiram-me posteriormente, retomar as elaboraes tericas acima resu-midas, s quais eu chegara, vale a pena insistir, a partir de uma prtica intensa e diversificada, individual ou grupal, da traduo de poesia.

    Trata-se de On Linguistics Aspects of Translation (Aspectos lingusticos da traduo), de Roman Jakobson,15 e Die Aufgabe des bersetzers (A tarefa-renncia do tradutor), de Walter Benjamin.16

    15 JAKOBSON. Lingstica e comunicao, p. 63-72.16 Publicado inicialmente em 1923, como introduo traduo dos Tableaux parisiens de Baudelaire.

  • 18 Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora 19

    Fsica e metafsica da traduoSobre o ensaio de Walter Benjamin eu me detive em A palavra vermelha de Hlderlin, para consider-lo, mais do que uma fsica, uma verda-deira metafsica do traduzir.17 Correlatamente, ao de Roman Jakobson caberia definir e eu o venho fazendo pelo menos desde 197518 como uma fsica da operao tradutora, estrategicamente delineada a partir dos pressupostos da potica estrutural jakobsoniana, ou seja, tendo como embasamento a distino entre funes da linguagem, que o grande linguista russo desenvolveu progressivamente desde a dcada de 1920. Recorde-se sua diferenciao entre linguagem potica e linguagem emotiva no livro de 1923 sobre o verso tcheco, ponto de partida para a formulao mais cabal da questo, no ensaio Linguistics and Poetics (Lingustica e potica),19 um dos mais famosos do autor e centro das discusses em torno da potica imanente.

    A leitura dos dois estudos fundamentais que acabo de mencio-nar, um procedente da rea de filosofia da linguagem, outro do campo

    da cincia lingustica aplicada potica, teve para mim o sabor de um verdadeiro hasard objectif, de uma surpreendente confirmao (por antecipao) daquilo que minha prtica de tradutor de poesia (uma pr-tica radical, compartilhada por Augusto de Campos e Dcio Pignatari) me levara a excogitar no plano reflexivo da teoria.

    Jakobson: a fsica da traduoO ncleo de ensaio de Jakobson est em considerar o significado (meaning) como um fato semitico (semiotic fact) e, na esteira de Peirce, em definir o significado de um signo lingustico como sua tradu-o (translation) em outro ou outros signos alternativos. (Geralmente, na medida em que se parta da noo translatcia bsica de glosa ou verbete de dicionrio, ocorrer uma expanso elucidativa do signo

    17 CAMPOS. A arte no horizonte do provvel, p. 95.18 Ano em que ministrei, no 1 semestre, o meu primeiro curso, em nvel de ps graduao (at onde

    sei, o primeiro sobre este assunto e nesse nvel em universidade brasileira) de Esttica da traduo (ento como disciplina optativa do antigo Programa de Ps-Graduao em Teoria Literria, hoje Comunicao e Semitica). O programa, na Parte I (Propostas Tericas), dividia-se em trs sees: 1. A lgica da traduo (traduo referencial e traduo potica); 2. A fsica da traduo (a traduo como produo de informao esttica); 3. A metafsica da traduo (Walter Benjamin).

    19 JAKOBSON. Lingstica e comunicao, p. 118.

    traduzido naqueles que lhe so alternativos; assim: rosa: flor da roseira; gnero tipo da famlia das rosceas).

    Depois de assinalar que a equivalncia na diferena o problema cardinal da linguagem e a preocupao central da lingustica, Jakobson, deslocando-se para o ponto de vista do receptor ou intrprete das mensagens lingusticas (o plo do interpretante no tringulo semi-tico de Peirce), coloca as atividades translatcias (translating activities) em posio focal no que concerne cincia lingustica. Ao dogma da intraduzibilidade, Jakobson responde com a inevitabilidade implcita do exerccio da operao metalingustica na prpria faculdade de falar uma dada linguagem e, reportando-se ao fsico Niels Bohr, afirma: Toda

    experincia cognitiva pode ser traduzida (is conveyable) e classificada em qualquer lngua existente. Evidentemente, esta possibilidade principal da traduo est ligada ao exerccio da funo referencial ou cognitiva da linguagem. o limite que Jakobson impe sua anterior assero:

    Em sua funo cognitiva, a linguagem depende muito pouco de sua configurao gramatical (grammatical pattern), porque a definio de nossa experincia est numa relao complementar com as operaes metalingsticas; o nvel cognitivo da linguagem no somente admite, mas exige a recodificao interpretativa (recoding interpretation), isto , a traduo.20

    donde a concluso (vlida para este primeiro plano de observao): Qualquer hiptese de dados cognitivos inefveis ou intraduzveis seria uma contradio em termos.

    Mudando de plano de reflexo, Jakobson passa ento a considerar

    o caso da poesia (hiptese privilegiada, embora no exclusiva, do exer-ccio da funo potica da linguagem, conforme estabelecera em seu clebre ensaio sobre esta questo).

    Nos gracejos (jest), nos sonhos, na magia, enfim, naquilo que se poderia chamar a mitologia verbal de todos os dias, e sobretudo na poesia, as categorias gramaticais carreiam um teor semntico elevado. Nessas condies, a questo da traduo torna-se muito mais complexa e controvertida.21

    20 JAKOBSON. Lingstica e comunicao, p. 70. 21 JAKOBSON. Lingstica e comunicao, p. 70.

  • 20 Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora 21

    No a forma vazia, mas exatamente a semantizao das componentes formais da linguagem, o trao distintivo da operao tradutora, no caso da poesia e nos que a ele se assemelham. Darei um exemplo. Freud, em seu estudo sobre o chiste e suas relaes com o inconsciente, salienta um Witz (chiste) paradigmal de Schleiermacher, o filsofo, telogo e herme-neuta alemo ligado aos romnticos do Athenaeum:

    Eifersucht ist eine Leidenschaft, die mit Eifer sucht, was Leiden schafft.

    O cime uma paixo que, com avidez, procura o que causa a dor.22

    A transcriao do mesmo trecho poderia ser:

    O cime causa uma dor, que assume, com gume, o seu causador.

    Da porque Jakobson recorre mais uma vez, taticamente, ao dogma da intraduzibilidade (que ele havia previamente desconstitudo no plano cognitivo), para reafirm-lo agora, declarando-o pertinente em

    relao poesia:

    Em poesia, as equaes verbais tornam-se princpio constitutivo do texto. As categorias sintticas e morfolgicas, as razes, os afixos, os fonemas e seus componentes (traos distintivos) em suma, todos os constituintes do cdigo verbal so confrontados, justapostos, colocados em relao de contigidade de acordo com o princpio de similaridade e contraste, e transmitem assim uma significao prpria. [...] O trocadilho, ou, para empregar um termo mais erudito, e talvez mais preciso, a paronomsia, reina sobre a arte potica; quer esta dominao seja absoluta ou limitada, a poesia, por definio, intraduzvel (poetry by definition is untranslatable). S possvel a transposio criativa (creative transposition)...23

    o conhecido teorema jakobsoniano da funo potica vista como proje-o do paradigma no sintagma (a equivalncia promovida condio

    22 Aqui cabe uma remisso ao ensaio de Flora Sssekind, Friedrich Schlegel o chiste e suas relaes com o Romantismo, no qual comparece a citao de Schleiermacher, seguida de observao onde ressaltado o jogo irnico com a harmonmia. No obstante, a ensasta traduziu o Witz do romntico Iean por O cime uma paixo que, com avidez, procura o que causa a dor, no se preocupando, evidentemente, com a sua reconfigurao potica.

    23 JAKOBSON. Lingstica e comunicao, p. 72.

    de recurso constitutivo da sequncia),24 que , assim, transferido para o campo operacional do dispositivo translatcio, sempre que se trate de poesia, ou, por extenso, de informao esttica.

    Eu reencontrava, portanto, numa outra articulao dialtica, aquele mesmo problema que me servira de ponto de partida no ensaio de 1962: o dogma da intraduzibilidade da poesia. E via, reciprocamente, engendrar-se um corolrio semelhante ao que eu havia extrado. A assero da possibilidade mesma dessa (paradoxal) operao tradutora, desde que entendida como transposio criativa: ou seja, nos meus termos, como re-criao, como trans-criao.

    Benjamin: a metafsica da traduoSalientarei, aqui, apenas os pontos mais relevantes de Die Aufgabe des bersetzers (A tarefa do tradutor) em relao ao meu ensaio de 1962, Da traduo como criao e como crtica. Estes pontos, de certa maneira, j foram postos por mim em relevo no estudo A palavra ver-melha de Hlderlin, onde trato exatamente das transcriaes sofoclia-nas do poeta subio. Benjamin as considera arqutipos de sua forma (Urbilder ihrer Form) e afirma que estariam para outras tradues dos mesmos textos, ainda as mais perfeitas dentre essas, como o arqu-tipo para o prottipo (als das Urbild zum Vorbild), como tambm se poderia dizer a arquifigura para a protofigura, supondo a distino

    entre um arqutipo ideal, irrepetvel, e um paradigma ou tipo modelar dele decorrente, j que Urbild tambm pode significar original e Vorbild modelo, exemplo; na ltima linha do ensaio benjaminiano a palavra

    Urbild recorre e definida, em chave platonizante, como o ideal de

    toda traduo (Ideal aller bersetzung).O lugar exponencial conferido por Walter Benjamin s tradues

    de Hlderlin (desacreditadas pelo Oitocentos alemo, por vozes to emi-nentes como as de Goethe, Schiller e Voss, este ltimo o prestigiado tradutor de Homero) deriva da concepo benjaminiana da traduo como forma (bersetzung ist eine Form; die bersetzung eine eigene Form ist). Entenda-se: como uma forma literria dotada de contedo

    24 JAKOBSON. Lingstica e comunicao, p. 130.

  • 22 Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora 23

    tipolgico especfico; uma forma artstica (Kunstform), como a lrica uma forma e, para o primeiro Lukcs, que influenciou Benjamin, o

    ensaio este poema intelectual (Schlegel) tambm o . S que a lei (Gesetz) dessa forma singular a lei que lhe d significao (Bedeutung) enquanto forma encontra-se no respectivo original (em outra forma, portanto). A essncia (Wesen) da forma traduo inere ao original sob a espcie da translatibilidade (bersetzbarkeit) deste; esta translatibilidade essencial necessria (apodtica, no sentido kantiano), pois atravs dela e somente assim se manifesta uma determinada dimenso de significncia inerente a certas obras de

    arte verbal (Dichtwerke). Para capt-la, ser preciso optar por uma operao tradutora regida por uma noo de fidelidade (Treue) muito mais voltada at ao estranhamento para a redoao da forma (Treue in der Wiedergabe der Form), do que submetida ao critrio tradi-cional de fidelidade restituio do sentido (Sinnwiedergabe). A insis-tncia, aparentemente tautolgica, nesse aspecto formal da traduo se explica (a meu ver, como no caso de Jakobson) por uma estratgia de inverso.

    Obra de arte e comunicaoDe fato, Benjamin comea por questionar o carter comunicativo da obra de arte (Kunstwerk) ou da forma artstica (Kunstform). Excluindo, a priori, a utilidade do relacionamento a um pblico especfico (auf ein

    bestimmtes Publikum) para o conhecimento de uma ou de outra, Benjamin pe entre parnteses o problema da recepo (Aufnehmung) e, assim, suspende, correlatamente, a questo da comunicao. Afirma quanto

    obra de arte verbal (Dichtung): sua essncia no a comunicao, no a assero (Ihr Wesentliches ist nicht Mitteilung, nicht Aussage). A par-tir desta colocao principal, passa a definir como caractersticas da m

    traduo (de poesia): a) a inessencialidade (que decorre da preocupao com o contedo); b) a inexatido (que decorre da inapreenso do que essencial, daquilo que est alm do contedo comunicvel, ou seja, das Unfassbare, Geheimnisvolle, Dichterische o inaferrvel, o misterioso, o potico). Donde a sua concluso, em modo quase aforismtico, quanto

    m traduo: uma transmisso inexata de um contedo inessencial (eine ungenaue bermittlung eines unwesentlichen Inhalts).

    A inverso do propsito tradicionalmente atribudo traduo (enquanto traduo cognitiva ou referencial de um pressuposto significado denotativo) produz outra inverso: a da ideia ingnua da

    traduo servil, j que a prtica da m traduo (de poesia) persis-tir enquanto permanecer o credo de que o escopo do traduzir seja servir ao leitor (dem Leser zu deinen). A suspenso da considerao do contedo parece-me, no caso, uma tpica operao de Aufhebung (no sentido hegeliano, de negao dialtica, que no implica nulificao ou

    abolio), j que, mais adiante, extremando a sua desconstituio do dogma da servilidade da traduo, Benjamin atribui ao original a tarefa de preconfigurar, de ordenar o contedo para efeito da traduo, permi-tindo, assim, que esta, desonerada de um encargo que a desviaria de seu verdadeiro fim (a expresso da mais ntima relao recproca entre as

    lnguas), possa, afinal, perseguir essa meta, que s se deixa vislumbrar

    atravs do que eu chamo transcriao, vale dizer, de uma redoao das formas significantes em convergncia e tendendo mtua complemen-tao. De certo modo, o original que, nessa transvalorao benjami-niana, passa a servir traduo:

    [...] a traduo deve, na mais larga medida, libertar-se do sentido (von Sinn), de propsito (Absicht) de comunicar algo (etwas mitzuteilen); nisto o original para ela essencial (wesentlich) ape-nas na medida em que j tiver exonerado (enthoben) o tradutor e sua obra do af (Mhe) e da ordenao (Ordnung) do comunicvel (des Mitzuteilenden, daquilo que haveria para comunicar).25

    Esta j incipiente dialtica da negatividade, esta maneira de ver o problema ao revs ou pelo negativo (negativ gewendet), permite a Benjamin restituir traduo de poesia a sua verdadeira (essencial) tarefa, dirigindo-a ao escopo para o qual est teleologicamente (zweck-mig) vocacionada: atestar (bewhren) a afinidade (Verwandtschaft) entre as lnguas. um parentesco que no se pe no plano histrico ou etimolgico, mas que, antes, diz respeito a um telos comum a todas as

    25 BENJAMIN. Die Aufgabe des bersetzers. [Todas as citaes em portugus de publicaes estrangeiras so tradues de Haroldo de Campos, salvo quando especificado o contrrio. N. do E.].

  • 24 Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora 25

    lnguas, intencionalidade (intentio) oculta em cada uma delas e que as faz tender para a lngua pura (die reine Sprache).

    AlnguapuraLibertar na sua prpria aquela lngua pura, que est desterrada na lngua estranha; liberar, atravs da transpoetizao (Umdichtung), aquela lngua que est cativa (gefangene) na obra, eis a tarefa do tradutor.26 Correlatamente, a tarefa da fidelidade (die Aufgabe der treue) consiste em emancipar o tradutor da preocupao com a transmisso do mero contedo referencial; a reivindicao de liberdade da traduo trans-pe-se para um plano mais alto, o do resgate (Erlsung). Para cumprir sua misso, o tradutor tem, portanto, de operar um virtual desoculta-mento (uma remisso, no sentido salvfico da palavra, cara termino-logia benjaminiana deste ensaio):27 tem de pr a manifesto o modo de re-presentao, de encenao (Darstellungmodus), o modo de inten-cionar (Art der intentio), o modo de significar (Art des Meinens) do original. Este modo de significar no se confunde com o que signi-ficado (das Germeinte), como o contedo denotativo comum a Brot e pain, ou bread e po, por exemplo (a substncia do contedo, como se poderia dizer com Hjelmslev). Diz respeito, antes, ao que j desig-nei por forma significante (um conceito para o entendimento do qual concorreriam ambos os aspectos formais discernidos por Hjelmslev: tanto a forma da expresso como a forma do contedo). Sendo a intentio ou modo de significar diferente nas vrias lnguas, a lngua pura, na concep-o benjaminiana, resultaria da harmonia, num ponto messinico (o fim

    messinico da histria, a culminao do sacro evoluir das lnguas) de todas essas intencionalidades das lnguas isoladas, de sua integrao, de sua convergente complementaridade (numa outra terminologia, podera-mos dizer que a lngua pura seria o significado de conotao visado pelo modo de intencionar de todas as lnguas isoladas). Este seria o momento paradisaco da verdade das lnguas, de sua transparncia na plenitude de

    26 BENJAMIN. Die Aufgabe des bersetzers.27 Ver, a propsito, meu artigo Para alm do princpio da saudade, bem como o estudo de Jeanne Marie

    Gagnebin Origem da alegoria, alegoria da origem; da mesma autora, Zur Geschichtsphilosophie Walter Benjamins e LAllgorie, face souffrante du monde; tambm Winfreid Menninghaus, Walter Benjamins Theorie der Sprachmagie.

    uma redenta linguagem universal, quando a traduo se ultimaria como inscrio interlinear, absolutizada na revelao da lngua sagrada.

    AmetafsicadoinefvelO aspecto esotrico, platonizante, idealista deste Benjamin pr-marxista, fascinado pela cabala e pela hermenutica bblica, tem levado certos comentadores, como Jean-Ren Ladmiral, a indigitar a metafsica do inefvel que haveria em sua teoria da traduo, um pouco maneira como Meschonnic acusou Jakobson de se render a uma noo meta-fsica, no historicizada, de intraduzvel.28 Note-se que, em relao a Benjamin, Meschonnic limita-se a constatar o carter ainda idealista de sua metalinguagem, mas subscreve, por outro lado, a proposio benja-miniana da tarefa do tradutor como o fazer ressoar (ertnen) o modo de intencionar prprio de sua lngua qual um harmnico, um complemento ao modo de intencionar da lngua do original; acolhe a ideia benjaminiana da traduo como estranhamento da lngua do tradutor e alargamento das fronteiras desta ao influxo do original; substitui, apenas, a lngua pura

    de Benjamin pela noo de criture, como lugar de interaes histricas entre lnguas, culturas, poticas; em outro passo, Benjamin e a imagem da traduo interlinear, virtualmente embutida na absolutizao do texto sacro, so invocados por Meschonnic em abono da concepo da tradu-o como prtica de uma teoria do significante, como produo de um

    texto e no parfrase, significado prvio.

    Mas no propriamente das contradies de Meschonnic (que ele sabe tornar fecundas em mais de um momento de suas proposies sobre o traduzir) que me pretendo ocupar, e sim de como desinvestir a pioneira teoria benjaminiana de sua aura sacralizante, para reconhecer-lhe a ope-racionalidade enquanto prtica terica, j que Benjamin, ele prprio, um pensador-escritor-tradutor (o maior estilista da lngua alem moderna, segundo um depoimento de Max Bense)29 e que sua teoria aponta neces-sariamente para um exerccio radical da traduo como forma de trans-poetizao (Umdichtung).

    28 Ver Jean-Ren Ladmiral, Entre les lignes, entre les langues, in Revue dEsthtique, nouvelle srie, n. 1 (nmero especial dedicado a Walter Benjamin); Henri Meschonnic. Pour la potique II.

    29 Ver Max Bense, A fantasia racional (entrevista concedida a Haroldo de Campos), Pequena esttica.

  • 26 Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora 27

    OlugarsemiticodaoperaotradutoraTenho para mim que o jogo conceitual benjaminiano um jogo irnico (no por acaso o tema romntico da ironia reponta no seu ensaio, jus-tamente quando ele assinala que a traduo transplanta o original para um domnio mais definitivo da linguagem). Sob a roupagem rabnica de

    sua metafsica do traduzir pode-se depreender nitidamente uma fsica, uma pragmtica da traduo. Esta fsica pode, hoje, ser reencontrada in nuce nos concisos teoremas jakobsonianos sobre a traduo (antes examinados), aos quais, por seu turno, os relampagueantes filosofemas

    benjaminianos daro uma perspectiva de vertigem.Basta considerarmos a lngua pura como o lugar semitico da

    operao tradutora e a remisso (Erlsung) desocultadora da Art der intentio ou des Meinens (modo de tender para ou de intencionar) como o exerccio metalingustico que, aplicado ao texto original, nele desvela o modus operandi da funo potica jakobsoniana (aquela que promove a palpabilidade, a materialidade dos signos) qual se fora um intracdigo exportvel de lngua a lngua, ex-traditvel de uma a outra: uma coreografia de correspondncias e divergncias, regida no

    tanto pela complementaridade harmnico-paradisaca, mas pela lgica do suplemento (aquela que envolve a diffrance no sentido de Derrida). Benjamin fala na complementaridade das intencionalidades como um ergnzen (um complementar que pode ser tambm um suplementar). E entende, ainda, a traduo como um modo at certo ponto provisrio de pr em discusso (auseinandersetzen) a estranheza (Fremdheit) das lnguas. A hipstase messinica da lngua pura, como stio de conver-gncia de todas essas diferenas complementares na presena totaliza-dora da lngua da verdade (que as absorveria e resolveria em sua pleni-tude sacra), pode aqui ser substituda pela hiptese heurstica de uma forma semitica universal, concretizvel diferencialmente nas diversas lnguas e em cada poema, cujo desvelamento (num sentido operacional, no teolgico) seria a primeira instncia da transposio criativa de Jakobson (do que Benjamin denomina Umdichtung; do que eu entendo por transcriao). O tradutor, por assim dizer, desbabeliza o stratum semitico das lnguas interiorizado nos poemas, procedendo como se (fico heurstica, verificvel casuisticamente na prtica experimental)

    este intracdigo fosse intencional ou tendencialmente comum ao original e ao texto resultante da traduo; texto que o tradutor constri parale-lamente (paramorficamente) ao original, depois de desconstru-lo num primeiro momento metalingustico. A traduo opera, assim, graas a uma deslocao reconfiguradora, a projetada reconvergncia das divergncias

    (nos limites do campo do possvel, porque sua operao provisria, vale dizer, histrica, num sentido laico que substitua o fim messinico

    dos tempos pela noo de cmbio e fuso de horizontes). Uma prtica, ao mesmo tempo desfiguradora e transfiguradora.

    Contra a teoria da cpiaWalter Benjamin rejeita a teoria da cpia (Abbildung, afigurao, figu-rao a partir de, retrato, imitao), que implicaria a preocupao de

    assemelhar-se ou assimilar-se (Sich hnlich zu machen) ao sentido (Sinn) do original. Prope, ao invs, uma Anbildung (uma figurao junto, paralela, uma parafigurao) do modo de significar (Art des Meinens) desse original. Isto tem a ver com a afinidade (Verwandtschaft), com o que se poderia denominar contiguidade semitica: aquela tenso de intencionalidade para o telos da lngua pura, como, na metfora benja-miniana, os fragmentos dispersos de um mesmo vaso se compem, se justapem no seu todo maior, adequando-se uns aos outros nos mnimos detalhes, sem que para isto devam ser exatamente similares. A mera similaridade (superficial, relativa ao significado comunicvel, inessencial)

    to vaga como seria inobjetiva para uma teoria do conhecimento a noo estreita de cpia do real. O tradutor traduz no o poema (seu contedo aparente), mas o modus operandi da funo potica no poema, liberando na traduo o que nesse poema h de mais ntimo, sua intentio intra-e-intersemitica: aquilo que no poema linguagem, no mera-mente lngua, para servir-me aqui de uma distino operacional cara a Dcio Pignatari.

    A exatido (Genauigkeit) no traduzir se regula no por essa busca imprecisa de similaridade no plano do significado, mas pelo resgate da afi-nidade. O termo Verwandtschaft, de prestgio goetheano, significa paren-tesco, mas tambm afinidade no sentido qumico (Wahlverwandtschaften, afinidades eletivas, seriam aquelas afinidades qumicas que destroem um

  • 28 Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora 29

    composto em proveito de novas combinaes). Em Verwandtschaft ecoam verwandeln, Verwandlung (transformar, transmudar, transformao, metamorfose). Por isto Benjamin pode afirmar, a despeito do apa-rente paradoxo, que a traduo, segundo sua essncia, no se prope mera assemelhao (hnlichkeit) com relao ao original, uma vez que o prprio original, considerado do ponto de vista de seu perviver (Fortleben), mutvel, envolve as ideias de transformao (Wandlung) e renovao (Erneuerung). Assim tambm no constitui o maior elogio de uma traduo, sobretudo na poca de sua produo, dizer que ela se deixa ler como um original de sua prpria lngua, uma vez que, para Benjamin, a operao tradutora deve ser estranhante, ao invs de acomodatcia, naturalizadora, neutra. Traduo quer dizer transmutao.

    Os conceitos de fidelidade (Treue) e liberdade (Freiheit) so, como j vimos, deslocados de sua acepo na teoria tradicional. Ao invs da fidelidade entendida como literalidade servil em funo da resti-tuio do sentido, agora a fidelidade estar antes numa redoao da

    forma (Treue in der Wiedergabe der Form) que torna mais dificultosa, precisamente, esta reproduo ch de um sentido superficial. Tarefa da

    fidelidade ser exatamente a liberdade, entendida porm como emanci-pao de um sentido comunicacional. Liberdade que uma libertao (Befreiung) e uma redeno (Erlsung). A funo semitica da traduo (nesta minha releitura operacional da teoria benjaminiana) ser, portanto, uma funo de resgate do modo de re-presentao (Darstellungmodus) do original, que tambm, para usar de uma expresso de Umberto Eco, um modo de formar. Isto obtido, sobretudo, afirma provo-cativamente Benjamin pela literalidade na transposio da sintaxe (Wrtlichkeit in der bertragung der Syntax), que e o caso das mons-truosas tradues sofoclianas de Hlderlin um exemplo arruna toda restituio do sentido (Sinnwiedergabe), ameaando com a precipita-o no ininteligvel (ins Unverstndliche), com o emuramento do tradutor no silncio, o grande perigo que ronda a transpoetizao na concepo benjaminiana.

    Dois preceitos podem ser assim extrados para a prtica do tradu-zir: 1) o tradutor (segundo a lio de Rudolph Pannwitz) deve estranhar sua lngua, alarg-la, deix-la ser violentamente sacudida (gewaltig

    bewegen zu lassen) pelo original, em lugar de preserv-la do choque; deve helenizar o alemo ao invs de germanizar o grego, por exemplo;30 2) j que a lei da traduo como forma encontra-se nessa outra forma literria que o original, uma traduo que corresponda essncia de sua forma especfica (dem Wesen dieser Form) ser aferida pela con-dio de traduzibilidade do original (uma propriedade ontolgica deste, segundo Benjamin). A noo de traduzibilidade, na teoria benjaminiana, refoge ideia convencional, para incluir-se naquela mesma srie de con-ceitos disruptores que afrontam a teoria tradicional: trata-se de uma tra-duzibilidade a ser mensurada segundo o modo de formar do original, segundo a densidade deste e no segundo o seu significado no plano da

    comunicao. Assim, quanto menores sejam o valor (Wert) e a digni-dade (Wrde) da lngua do original, quanto mais elevado seja o seu teor de comunicao (Mitteilung), tanto menos ele tem a oferecer tradu-o; no limite, o excesso de peso (bergewicht) do sentido, ao invs de servir de alavanca para uma operao tradutora plena de forma (einer formvellen bersetzung), acaba por frustr-la; por outro lado, quanto mais altamente elaborada (geartet) tenha sido uma obra, mais ela permanecer traduzvel, ainda que no mais fugidio contacto com o seu sentido.

    Nesta altura da exposio: a) reencontro-me com Jakobson e com Walter Benjamin na concepo da traduo de poesia como trans-criao, creative transposition, Umdichtung (transpoetizao); b) na caracterizao da traduo potica por seu modus operandi, no como mera traduo do significado superficial, mas como uma prtica para-mrfica voltada para o redesenho da funo potica (Jakobson), do

    Darstellungmodus, modo de re-presentar (ou de encenar) a intentio do original; esta operao, em Benjamin, corresponde a uma parafigu-rao (Anbildung), capaz de captar as afinidades eletivas entre origi-nal e texto traduzido atravs de uma hiperfidelidade estranhante, melhor

    definvel como fidelidade redoao da forma (Treue in der Wiedergabe

    der Form); c) finalmente, na teoria benjaminiana vejo ratificada por ante-cipao minha concepo da matriz aberta do original, como uma nova

    30 Ver PANNWITZ. Die Krisis der europaeischen Kultur. Ver ainda CAMPOS. A palavra vermelha de Hlderlin.

  • O ensasta Albrecht Fabri, que foi por algum tempo professor da Escola Superior da Forma, Ulm, Alemanha, escreveu para a revista Augenblick, umas notas sobre o problema da linguagem artstica que denominou Preliminares a uma teoria da literatura. Nesse trabalho, o autor desen-volve a tese de que a essncia da arte a tautologia, pois as obras arts-ticas no significam, mas so. Na arte, acrescenta, impossvel dis-tinguir entre representao e representado. Detendo-se especificamente

    sobre a linguagem literria, sustenta que o prprio desta a sentena absoluta, aquela que no tem outro contedo seno sua estrutura, a que no outra coisa seno o seu prprio instrumento. Essa sen-tena absoluta ou perfeita, por isso mesmo, continua Fabri, no pode ser traduzida, pois a traduo supe a possibilidade de se separar sen-tido e palavra. O lugar da traduo seria, assim, a discrepncia entre o dito e o dito. A traduo apontaria, para Fabri, o carter menos perfeito ou menos absoluto (menos esttico, poder-se-ia dizer) da sentena, e nesse sentido que ele afirma que toda traduo crtica, pois nasce

    da deficincia da sentena, de sua insuficincia para valer por si mesma.

    No se traduz o que linguagem num texto, mas o que no linguagem. Tanto a possibilidade como a necessidade da traduo residem no fato de que entre signo e significado impera a alienao.

    No mesmo nmero de Augenblick, enfrentando o problema e transpondo-o em termos de sua nova esttica, de base semitica e te-rico-informativa, o filsofo e crtico Max Bense estabelece uma distino

    Da traduo como criao e como crticamaneira, deliberadamente paradoxal, de encarar a gradao de transla-tibilidade dos textos poticos (quanto mais inado de dificuldades esse

    texto, mais recrivel, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriao, escrevi em meu ensaio de 1962).

  • 32 Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora Da traduo como criao e como crtica 33

    entre informao documentria, informao semntica e informa-o esttica. Informao, j o definira alhures, todo processo de sig-nos que exibe um grau de ordem. A informao documentria reproduz algo observvel, uma sentena emprica, uma sentena-registro. Por exemplo (transporemos a exemplificao de Bense para uma situao de

    nosso idioma): A aranha tece a teia. A informao semntica j trans-cende a documentria, por isso que vai alm do horizonte do observado, acrescentando algo que em si mesmo no observvel, um elemento novo, como, por exemplo, o conceito de falso ou verdadeiro: A aranha tece a teia uma proposio verdadeira, eis uma informao semntica. A informao esttica, por sua vez, transcende a semntica, no que con-cerne imprevisibilidade, surpresa, improbabilidade da ordenao de signos. Assim, quando Joo Cabral de Melo Neto escreve:

    A aranha passa a vida Tecendo cortinados Com o fio que fia De seu cuspe privado1

    estamos diante de uma informao esttica. Esta distino bsica, permite a Bense desenvolver, a partir dela, o conceito de fragilidade da informao esttica, no qual residiria muito do fascnio da obra de arte. Enquanto a informao documentria e tambm a semntica admitem diversas codificaes, podem ser transmitidas de vrias maneiras (por

    exemplo: A aranha faz a teia, A teia elaborada pela aranha, A teia uma secreo da aranha etc.), a informao esttica no pode ser codificada seno pela forma em que foi transmitida pelo artista (Bense

    fala aqui da impossibilidade de uma codificao esttica; seria talvez

    mais exato dizer que a informao esttica igual sua codificao ori-ginal). A fragilidade da informao esttica , portanto, mxima (de fato, qualquer alterao na sequncia de signos verbais do texto transcrito de Joo Cabral perturbaria sua realizao esttica, por pequena que fosse, de uma simples partcula). Na informao documentria e na semntica, prossegue Bense, a redundncia (isto , os elementos previsveis, subs-tituveis, que podem ser reconstitudos por outra forma) elevada, com-

    1 De Formas do nu, em Terceira feira.

    parativamente esttica, onde ela mnima: a diferena entre informa-o esttica mxima possvel e informao esttica de fato realizada na obra de arte sempre mnima. A informao esttica , assim, inseparvel de sua realizao, sua essncia, sua funo esto vinculadas a seu ins-trumento, a sua realizao singular. De tudo isto, conclui:

    O total de informao de uma informao esttica em cada caso igual ao total de sua realizao [donde], pelo menos em princpio, sua intraduzibilidade [...] Em outra lngua, ser uma outra informao esttica, ainda que seja igual semanticamente. Disto decorre, ademais, que a informao esttica no pode ser semanticamente interpretada.2

    Aqui Bense nos faz pensar em Sartre, na distino entre poesia (mot-chose) e prosa (mot-signe) em Situations II, quando, a propsito dos versos de Rimbaud:

    O saisons! O chteaux! Quelle me est sans dfaut,

    Sartre escreve (para demonstrar a diferena quanto ao uso da palavra na poesia e na prosa respectivamente):

    Personne nest interrog; personne ninterroge: le pote est absent. Et linterrogation ne comporte pas de rponse ou plutt elle est sa propre rponse. Est-ce donc une fausse interrogation? Mais il serait absurde de croire que Rimbaud a voulu dire: tout le monde a ses dfauts. Comme disait Breton de Saint-Pol-Roux: Sil avait voulu le dire, il laurait dit. Et il na pas non plus voulu dire autre chose. Il a fait une interrogation absolue; il a confr au beau mot dme une existence interrogative. Voil linterrogation devenue chose, comme langoisse du Tintoret tait devenue ciel jaune. Ce nest plus une signification, cest une substance []3

    Realmente, o problema da intraduzibilidade da sentena absoluta de Fabri ou da informao esttica de Bense se pe mais agudamente quando estamos diante de poesia, embora a dicotomia sartriana se mos-tre artificial e insubsistente (pelo menos como critrio absoluto), quando

    se consideram obras de arte em prosa que conferem primacial importn-cia ao tratamento da palavra como objeto, ficando, nesse sentido, ao lado

    da poesia. Assim, por exemplo, o Joyce de Ulysses e Finnegans Wake, ou,

    2 BENSE. Das Existenzproblem der Kunst.3 SARTRE. Situations II.

  • 34 Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora Da traduo como criao e como crtica 35

    entre ns, as Memrias sentimentais de Joo Miramar e o Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade; o Macunama, de Mrio de Andrade; o Grande serto: veredas, de Guimares Rosa. Tais obras, tanto como a poesia (e mais do que muita poesia), postulariam a impossibilidade da traduo, donde parecer-nos mais exato, para este e outros efeitos, substituir os conceitos de prosa e poesia pelo de texto.

    Admitida a tese da impossibilidade em princpio da traduo de textos criativos, parece-nos que esta engendra o corolrio da possibili-dade, tambm em princpio, da recriao desses textos. Teremos, como quer Bense, em outra lngua, uma outra informao esttica, autnoma, mas ambas estaro ligadas entre si por uma relao de isomorfia: sero

    diferentes enquanto linguagem, mas, como os corpos isomorfos, cristali-zar-se-o dentro de um mesmo sistema.

    J Paulo Rnai, em sua preciosa Escola de tradutores, tratando do problema, salientou que a demonstrao da impossibilidade terica da traduo literria implica a assertiva de que traduo arte. So suas palavras:

    O objetivo de toda arte no algo impossvel? O poeta exprime (ou quer exprimir) o inexprimvel, o pintor reproduz o irreproduzvel, o estaturio fixa o infixvel. No surpreendente, pois, que o tradu-tor se empenhe em traduzir o intraduzvel.4

    Ento, para ns, traduo de textos criativos ser sempre recria-o, ou criao paralela, autnoma porm recproca. Quanto mais inado de dificuldades esse texto, mais recrivel, mais sedutor enquanto pos-sibilidade aberta de recriao. Numa traduo dessa natureza, no se traduz apenas o significado, traduz-se o prprio signo, ou seja, sua fisi-calidade, sua materialidade mesma (propriedades sonoras, de imagtica visual, enfim tudo aquilo que forma, segundo Charles Morris, a iconici-

    dade do signo esttico, entendido por signo icnico aquele que de certa maneira similar quilo que ele denota). O significado, o parmetro

    semntico, ser apenas e to-somente a baliza demarcatria do lugar da empresa recriadora. Est-se pois no avesso da chamada traduo literal.

    4 RNAI. Escola de tradutores, p. 17.

    Em nosso tempo, o exemplo mximo de tradutor-recriador , sem dvida, Ezra Pound. O caminho potico de Pound, a culminar na obra inconclusa Cantares, ainda em progresso, foi sempre pontilhado de aventuras de traduo, atravs das quais o poeta criticava o seu prprio instrumento lingustico, submetendo-o s mais variadas dices, e esto-cava material para seus poemas em preparo. Pound desenvolveu, assim, toda uma teoria da traduo e toda uma reivindicao pela categoria esttica da traduo como criao. Em seu Literary Essays, escreve ele:

    Uma grande poca literria talvez sempre uma grande poca de tradues, ou a segue [...] bastante curioso que as Histrias da Literatura Espanhola e Italiana sempre tomem em considerao os tradutores. As Histrias da Literatura Inglesa sempre deixam de lado a traduo suponho que seja um complexo de inferioridade no entanto alguns dos melhores livros em ingls so tradues.5

    Depois do Seafarer e alguns outros fragmentos da primitiva lite-ratura anglo-saxnica, continua Pound,

    a literatura inglesa viveu de traduo, foi alimentada pela traduo; toda exuberncia nova, todo novo impulso foram estimulados pela traduo, toda assim chamada grande poca uma poca de tradutores, comeando por Geoffrey Chaucer, Le Grand Trans-lateur, tradutor do Romance da Rosa, parafraseador de Virglio e Ovdio, condensador de velhas histrias que foi encontrar em latim, francs e italiano.6

    No mesmo livro, apontando as funes da crtica, arrola desde logo, como modalidade desta, a traduo. Criticism by translation. O que perfeitamente compreensvel, quando se considera que, para Pound, as duas funes da crtica so: 1) tentar teoricamente antecipar a criao; 2) a escolha; ordenao geral e expurgo do que j foi feito; eliminao de repeties...; [...] a ordenao do conhecimento de modo que o prximo homem (ou gerao) possa o mais rapidamente encontrar-lhe a parte viva e perca o menos tempo possvel com questes obsoletas.

    assim que Pound, animado desses propsitos, se lana tarefa de traduzir poemas chineses, peas n japonesas (valendo-se dos manus-critos do orientalista Ernest Fenollosa);7 trovadores provenais; Guido

    5 POUND. Literary Essays, p. 34.6 POUND. Literary Essays, p. 34-35.7 Ver FENOLLOSA; POUND. The Noh Theatre of Japan.

  • 36 Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora Da traduo como criao e como crtica 37

    Cavalcanti, o pai da poesia toscana; simbolistas franceses (Laforgue e ainda recentemente Rimbaud); reescreve Proprcio em vers de socit, aproveitando suas experincias do manejo da logopeia (a dana do inte-lecto entre as palavras) laforgueana e verte as Trachiniae de Sfocles para um coloquial americano dinamizado a golpes de slang. Seu trabalho ao mesmo tempo crtico e pedaggico, pois, enquanto diversifica as

    possibilidades de seu idioma potico, pe disposio dos novos poetas e amadores de poesia todo um repertrio (muitas vezes insuspeitado ou obscurecido pela rotinizao do gosto acadmico e do ensino da lite-ratura) de produtos poticos bsicos, reconsiderados e vivificados. Seu

    lema make it new: dar nova vida ao passado literrio vlido via tradu-o. Para entend-lo melhor, basta recordarmos estas consideraes de T. S. Eliot a respeito de uma traduo de Eurpedes de lavra do eminente helenista Prof. Murray:

    Necessitamos de uma digesto capaz de assimilar Homero e Flaubert. Necessitamos de um cuidadoso estudo dos humanistas e tradutores da Renascena, tal como Mr. Pound o iniciou. Neces-sitamos de um olho capaz de ver o passado em seu lugar com suas definidas diferenas em relao ao presente e, no entanto, to cheio de vida que dever parecer to presente para ns como o prprio presente. Eis o olho criativo; e porque o Prof. Murray no tem instinto criativo que ele deixa Eurpedes completamente morto.8

    verdade que, muitas vezes, Pound trai a letra do original (para prestarmos tributo ao brocardo traduttori traditori); mas, ainda quando o faz, e ainda quando o faz no por opo voluntria mas por equvoco flagrante,9 consegue quase sempre por uma espcie de milagrosa intui-o ou talvez de solidariedade maior com a dico, com a Gestalt final da obra qual adequou tecnicamente seu instrumento ser fiel ao esp-rito, ao clima particular da pea traduzida; acrescenta-lhe, como numa contnua sedimentao de estratos criativos, efeitos novos ou variantes,

    8 ELIOT. Eurpides y el Profesor Murray. Los poetas metafsicos y otros ensayos sobre teatro y religin.9 Ver PORTEUS. Ezra Pound and His Chinese Character: a Radical Examination. O que notvel a

    respeito das tradues chinesas de Pound que elas to frequentemente consigam captar o esprito do original, mesmo quando, como ocorre constantemente, vacilem diante do texto literal ou manipulem imperitamente [...] Sua pseudo-sinologia liberta sua clarividncia latente, assim como as pseudocincias dos antigos muitas vezes lhes davam uma viso supranormal.

    que o original autoriza em sua linha de inveno. Repara Hugh Kenner, na introduo s Translations de Ezra Pound:

    Ele no traduz palavras [...] ele precisa mesmo desviar-se das pala-vras, se elas obscurecem ou escorregam, ou se o seu prprio idioma lhe falta [...] Se certo que no traduz as palavras, permanece como tradutor fiel sequncia potica de imagens do original, aos seus ritmos ou ao efeito produzido por seus ritmos, e ao seu tom.10

    Nisto, acrescenta Kenner, ele presta homenagem ao conheci-mento que o seu predecessor tem de seu ofcio. E conclui:

    O trabalho que precede a traduo , por consequncia, em primeiro lugar, crtico, no sentido poundiano da palavra crtica, uma penetrao intensa da mente do autor; em seguida, tcnico, no sentido poundiano da palavra tcnica, uma projeo exata do contedo psquico de algum e, pois, das coisas em que a mente desse algum se nutriu [...] Suas melhores tradues esto entre a pedagogia de um lado e a expresso pessoal de outro, e par-ticipam de ambas.11

    Quando Kenner fala em traduzir o tom, o tonus do original, a propsito da empreitada de Ezra Pound, est usando as mesmas palavras que empregou o poeta Boris Pasternak, outro grande tradutor e terico da traduo, a respeito do problema.

    Entre ns [afirma Pasternak] Rilke realmente desconhecido. As poucas tentativas que se fizeram para vert-lo no foram felizes. No so os tradutores os culpados. Eles esto habituados a traduzir o significado e no o tom do que dito. Ora, aqui tudo uma questo de tom.12

    No toa que Pasternak, dentro desta visada, que transcende o caso particular de Rilke e pode ser estendida aos textos criativos em geral, se aplicou a traduzir Shakespeare com um acento inconfundivel-mente pessoal e permitindo-se uma grande liberdade de reelaborao.13 Giuseppe Ungaretti, outro grande poeta-tradutor, faria algo de seme-lhante, no j com o teatro, mas com os sonetos shakespearianos.

    10 KENNER. Introduction, p. 11-12.11 KENNER. Introduction, p. 12.12 PASTERNAK. Essai dautobiographie.13 Sobre Pasternak tradutor de Shakespeare, falta de um conhecimento direto dos textos, louvamo-nos

    nas abalizadas informaes do Prof. Boris Schnaiderman.

  • 38 Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora Da traduo como criao e como crtica 39

    No Brasil, no nos parece que se possa falar no problema da tradu-o criativa sem invocar os manes daquele que, entre ns, foi o primeiro a propor e a praticar com empenho aquilo que se poderia chamar uma verdadeira teoria da traduo. Referimo-nos ao pr-romntico maranhense Manuel Odorico Mendes (1799-1864). Muita tinta tem corrido para depre-ciar o Odorico tradutor, para reprovar-lhe o preciosismo rebarbativo ou o mau gosto de seus compsitos vocabulares. Realmente, fazer um nega-tive approach em relao a suas tradues empresa fcil, de primeiro impulso, e desde Slvio Romero (que as considerava monstruosidades, escritas em portugus macarrnico), quase no se tem feito outra coisa. Mas difcil seria, porm, reconhecer que Odorico Mendes, admirvel huma-nista, soube desenvolver um sistema de traduo coerente e consistente, onde os seus vcios (numerosos, sem dvida) so justamente os vcios de suas qualidades, quando no de sua poca. Seu projeto de traduo envolvia desde logo a ideia de sntese (reduziu, por exemplo, os 12.106 versos da Odisseia a 9.302, segundo tbua comparativa que acompanha a edio), seja para demonstrar que o portugus era capaz de tanta ou mais conciso do que o grego e o latim; seja para acomodar em decas-slabos heroicos, brancos, os hexmetros homricos; seja para evitar as repeties e a monotonia que uma lngua declinvel, onde se pode jogar com as terminaes diversas dos casos emprestando sonoridades novas s mesmas palavras, ofereceria na sua transposio de plano para um idioma no flexionado. Sobre este ltimo aspecto, diz ele: Se vertsse-mos servilmente as repeties de Homero, deixaria a obra de ser aprazvel como a dele; a pior das infidelidades.14 Procurou tambm reproduzir as metforas fixas, os caractersticos eptetos homricos, inventando com-psitos em portugus, animado pelo exemplo de tradutores italianos de Homero Monti e Pindemonte e muitas vezes extremando o paradigma, pois entendia a nossa lngua ainda mais afeita s palavras compostas e ainda mais ousada do que o italiano. Preocupava-se em ser realista, em reproduzir exatamente a crueza de certas passagens dos cantos homricos (sirva de exemplo o episdio da apario de Ulisses a Nauscaa, e as crticas que tece aos eufemismos usados pelo tradutor francs Giguet). Tinha a

    14 MENDES. Odissia.

    teima do termo justo, seja para a reproduo de um matiz da gua do mar, seja para a nomeao de uma pea de armadura. Suas notas aos cantos traduzidos do uma ideia de seu cuidado em apanhar a vivncia do texto homrico, para depois transp-lo em portugus, dentro das coordenadas estticas que elegera (veja-se a comparao que faz entre a jangada de Ulisses Odisseia, Livro V e a usada pelos jangadeiros do Cear; ou a passagem em que reporta o uso, no Maranho, de um caldeiro de ferro semelhante trpode grega). Discute, e muitas vezes refuta duramente as solues dos tradutores que o precederam em outras lnguas. Adota a tcnica de interpolao, incorporando versos de outros poetas (Cames, Francisco Manoel de Melo, Antnio Ferreira, Filinto Elsio), quando entende que certa passagem homrica pode ser vertida atravs desse expediente. bvio que sua prtica no est altura de sua teoria, que muitas de suas solues, de seus arrevesamentos sintticos e, em especial, de seus compsitos, so mesmo sesquipedais e inaceitveis. Para isso tambm contribui o fator tempo. Assim, velocpede Aquiles, para Aquiles de ps velozes ou simplesmente veloz, soa caricato, quando hoje velocpede a denominao corriqueira de um veculo para crianas. Mas outros neo-logismos, posto de lado o preconceito contra o maneirismo, que no pode ter mais vez para a sensibilidade moderna, configurada por escritores

    como o Joyce das palavras-montagem ou o nosso Guimares Rosa das inesgotveis invenes vocabulares, so perfeitamente bem-sucedidos, como ris alidourada, criniazul Netuno, ou, para um rio, amplofluente

    ou, ainda, bracicndida para Helena, tudo dentro do contexto que cria e das regras do jogo que estabeleceu. Consegue muitas vezes reproduzir aquela melopeia que, segundo Pound, tem seu auge no grego homrico:

    Purprea morte o imerge em noite escura, Brilha punceo e fresco entre a poeira,15

    algo que teria o timbre de poesia pura para um ouvido bremondiano.Em matria de sonoridade, que j raia quase pelo sonorismo gra-

    as ao impressionante e ininterrupto desfile de onomsticos e patronmi-cos gregos, de se ver a enumerao dos nomes dos capites das naus helenas e de suas terras de origem nos versos 429 e seguintes do Livro

    15 MENDES. A Ilada de Homero.

  • 40 Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora Da traduo como criao e como crtica 41

    II da Ilada, que Odorico esmerou-se em passar para o portugus, rebe-lando-se contra a ideia de saltar o trecho.16 feliz na transcrio onoma-topaica do rudo do mar, uma constante incidncia na epopeia homrica:

    Muge horrssona vaga e o mar reboa, Com sopro hrrido e rspido encapelam O clamoroso plago [...]17

    Uma pedra-de-toque, que Ezra Pound seleciona como exemplo de melopeia intraduzvel, o verso:

    par thina polyphlisboio thalasses,

    o mpeto das ondas na praia e seu refluxo, comenta Pound,18 faz boa figura na verso de Odorico (admitida a hiprbase):

    Pelas do mar fluctissonantes praias

    Tem o tradutor tambm, aqui e ali, seus bons momentos de logo-peia, como, por exemplo, vrios do Livro XI da Odisseia. Este como amostra (a descrio do espectro de Hrcules no ato de disparar uma flecha):

    Cor da noite, ele ajusta a frecha ao nervo, Na ao de disparar, ttrico olhando.19

    Naturalmente, a leitura das tradues de Odorico uma leitura bizarra e difcil (mais difcil que o original, opina, com alguma ironia, Joo Ribeiro, que alis o encarou compreensivamente). Mas na histria cria-tiva da poesia brasileira, uma histria que se h de fazer, muitas vezes, por versos, excertos de poemas, pedras-de-toque, antes que por poe-mas inteiros, ele tem um lugar assegurado. E para quem se enfronhar na sua teoria da traduo, exposta fragmentariamente nos comentrios aos cantos traduzidos, essa leitura se transformar numa intrigante aven-

    16 Roland Barthes (Essais Critiques), escrevendo sobre o Mobile de Michel Butor, chama a ateno sobre a atualidade de que se podem revestir estas enumeraes homricas, verdadeiros catlogos picos, como Barthes as denomina, a testemunhar a infinita apossibilidade da guerra e do poder. Odorico andou bem, por mais de um ttulo, ao censurar os tradutores que as omitiam de suas verses.

    17 MENDES. A Ilada de Homero.18 Ezra Pound tentou duas adaptaes deste verso: [...] imaginary/ Audition of the phantasmal sea-

    surge (Mauberley) e he lies by the poluphloisboious seacoast (Moeurs contemporaines). Pelas praias do mar polissonoras como gostaramos de traduzir esta linha.

    19 MENDES. Odissia.

    tura, que permitir acompanhar os xitos e fracassos (mais fracassos do que xitos talvez) do poeta na tarefa que se cometeu e no mbito de sua linguagem de convenes e faturas especiais; pois, diversamente do que pareceu a Slvio Romero, o fato de o maranhense ter-se entregue a sua faina a frio (sem emoo) e munido de um sistema preconcebido , a nosso ver, precisamente o que h de mais sedutor em sua empresa.

    Os maneirismos de Chapman, seus excessos de ornamento adi-tivo, seus parnteses e inverses que tornam a leitura em muitos pon-tos difcil, no impedem que Ezra Pound reconhea nele o melhor tra-dutor ingls de Homero; nem o fato de que Pope esteja out of fashion inibe o mesmo Pound de apreciar-lhe os tpicos inventivos, embora res-salve tambm que essas tradues inglesas do grego, cheias de belas passagens, no oferecem uma satisfao prolongada ou cabal. Sero talvez as tradues de Odorico, como diz Ezra Pound das de Chapman e Pope, tradues de interesse para especialistas, mas nem por isso sua presena pode ser negligenciada.20 Mormente quando se percebe, na voz solitria de um outro maranhense, o revolucionrio Sousndrade da segunda gerao romntica, nas inslitas criaes vocabulares do autor do Guesa errante, o influxo de Odorico. O Pai Rococ, como o chama

    Sousndrade. Confira-se este trecho (gongorino-mallarmaico!) do Novo

    den, onde Sousndrade persegue uma sonoridade grega:

    Alta amarela estrela brilhantssima; Cadentes sul-meteoros luminosos Do mais divino p de luz; vus palos Abrindo ao oriente a homrea rododctila Aurora!...21

    Quando os poetas concretos de So Paulo se propuseram uma tarefa de reformulao da potica brasileira vigente, em cujo mrito no nos cabe entrar, mas que referimos aqui como algo que se postulou e que se procurou levar prtica, deram-se, ao longo de suas atividades de teorizao e de criao, a uma continuada tarefa de traduo. Fazendo-o, tinham presente justamente a didtica decorrente da teoria e da prtica

    20 POUND. Early Translators of Homer.21 Rhododctylos Eos, a Aurora dos dedos cor-de-rosa, o epteto cunhado por Homero. Odorico tem

    esta bela soluo: a dedirrsea Aurora.

  • 42 Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora Da traduo como criao e como crtica 43

    poundiana da traduo e suas ideias quanto funo da crtica e da crtica via traduo como nutrimento do impulso criador. Dentro desse projeto, comearam por traduzir em equipe dezessete Cantares de Ezra Pound, procurando reverter ao mestre moderno da arte da traduo de poesia os critrios de traduo criativa que ele prprio defende em seus escritos. Em seguida, Augusto de Campos empreendeu a transposio para o portugus de dez dos mais complexos poemas de e. e. cummings, o grande poeta norte-americano falecido em 1962, poemas onde inclusive o dado tico deveria ser como que traduzido, seja quanto disposio tipogrfica, seja quanto fragmentao e s relaes interlineares, o que

    implicava, por vezes, at mesmo a previso do nmero de letras e das coincidncias fsicas (plsticas, acsticas) do material verbal a utilizar. Alm de outras experincias com textos difceis (desde vanguardistas alemes e haicastas japoneses at canes de Dante, trovadores pro-venais e metafsicos ingleses), poetas do grupo (no caso Augusto de Campos em colaborao com o autor destas linhas) tentaram recriar em portugus dez fragmentos do Finnegans Wake, vrios dos quais no tra-duzidos em nenhum outro idioma (salvo erro, o romance-poema de Joyce s foi, at a dcada de 1960,22 vertido em curtos excertos, pouco nume-rosos, para o francs, o italiano, o alemo e o tcheco, nos dois primeiros casos trabalho de equipe, com a participao do prprio Joyce). Destes ensaios, feitos antes de mais nada com intelletto damore, com devoo e amor, pudemos retirar, pelo menos, um prolongado trato com o assunto, que nos autoriza a ter ponto de vista firmado sobre ele.

    A traduo de poesia (ou prosa que a ela equivalha em problema-ticidade) antes de tudo uma vivncia interior do mundo e da tcnica do traduzido. Como que se desmonta e se remonta a mquina da criao, aquela fraglima beleza aparentemente intangvel que nos oferece o pro-duto acabado numa lngua estranha. E que, no entanto, se revela susce-tvel de uma vivisseco implacvel, que lhe revolve as entranhas, para traz-la novamente luz num corpo lingustico diverso. Por isso mesmo a traduo crtica. Paulo Rnai cita uma frase de Jos Salas Subirat, o tra-dutor para espanhol do Ulysses de Joyce, que diz tudo a este propsito:

    22 Entre os anos de 2000 e 2003, foi publicada, pela Ateli Editorial, a traduo integral do romance de Joyce, em cinco volumes, feita pelo poeta e tradutor Donaldo Schler. (N. E.)

    Traduzir a maneira mais atenta de ler. E comenta: Precisamente esse desejo de ler com ateno, de penetrar melhor obras complexas e pro-fundas, que responsvel por muitas verses modernas, inclusive essa castelhana de Joyce.23

    Os mveis primeiros do tradutor, que seja tambm poeta ou pro-sador, so a configurao de uma tradio ativa (da no ser indiferente a

    escolha do texto a traduzir, mas sempre extremamente reveladora), um exerccio de inteleco e, atravs dele, uma operao de crtica ao vivo. Que disso tudo nasa uma pedagogia, no morta e obsoleta, em pose de contrio e defuno, mas fecunda e estimulante, em ao, uma de suas mais importantes consequncias. Muito se fala, por exemplo, das influncias joyceanas na obra de Guimares Rosa. Nenhuma demonstra-o ser, porm, segundo pensamos, mais eloquente e mais elucidativa a respeito do que o simples cotejo de excertos do Grande serto com outros (recriados em portugus) do Finnegans Wake. Mtodo ideogr-mico. Crtica atravs da anlise e comparao do material (via traduo). A este trabalho se deu Augusto de Campos no seu estudo Um lance de ds do Grande serto, de onde extramos a seguinte amostra:

    Grande serto: veredas

    E me cerro, aqui, mire e veja. Isto no o de um relatar passagens de sua vida, em toda admirao. Conto o que fui e vi, no levantar do dia. Auroras. Cerro. O Senhor v. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O Rio de So Francisco que de to grande se comparece parece um pau grosso, em p, enorme... Amvel o senhor me ouviu, minha idia confirmou: que o Diabo no existe. Pois no? O senhor um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo no h! o que eu digo, se for... Existe homem humano. Travessia.24

    Finnegans Wake (Finnicius revm)

    Sim, me vou indo. Oh amargo fim! Eu me escapulirei antes que eles acordem. Eles no ho de ver. Nem saber. Nem sentir minha falta. E velha e velha triste e velha triste e em tdio que

    23 RNAI. Escola de tradutores, p. 68.24 ROSA. Grande serto: veredas, p. 571. (fim)

  • 44 Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora Da traduo como criao e como crtica 45

    eu volto a ti, frio pai, meu frio frentico pai, meu frio frentico feervel pai, at que a pura vista da mera aforma dele, as lguas e lguas dele, lamentando, me faam maremal lamasal e eu me lance, oh nico, em teus braos. Ei-los que se levantam! Salva-me de seus terrpertos tridentes! Dois mais. Um, dois morhomens mais. Assim. Avelaval. Minhas folhas se foram. Todas. Uma resta. Arrasto-a comigo. Para lembrar-me de. Lff! To maviosa manh, a nossa. Sim. Leva-me contigo, paizinho, como daquela vez na feira de brinquedos! Se eu o vir desabar sobre mim agora, asas bran-quiabertas, como se viesse de Arkanjos, eu pnsil que decairei a seus ps, Humil Dumilde, s para lauv-los. Sim, fim. l. Primeiro. Passamos pela grama psst trs do arbusto para. Psquiz! Gaivota, uma. Gaivotas. Longe gritos. Vindo, longe! Fim aqui. Ns aps. Finn quem! Toma. Bosculaveati, mememormim! Ati milnios fim. Lps. As chaves para. Dadas! A via a uma a uma amm amor alm a25

    O autor do presente ensaio dedicou-se ao aprendizado do idioma russo com o escopo definido de traduzir Maiakvski e outros poetas esla-vos de vanguarda. No nos cabe avaliar os primeiros resultados j obtidos nesse campo, mas reportar um experimento pessoal que poder ter inte-resse. Escolhemos para tentativa inicial o poema Sierguiiu lessininu (A Siergui lessinin), escrito por Maiakvski quando do suicdio daquele seu contemporneo (e adversrio de ideais estticos). A propsito desse poema, Maiakvski desenvolve toda a sua teoria da composio potica, num estudo admirvel Como se fazem versos? traduzido para o espa-nhol por Lila Guerrero e para o francs por Elsa Triolet. Pois bem, o exerccio da traduo para a nossa lngua desse poema, proposto como recriao, atravs de equivalentes em portugus, de toda a elaborao formal (sonora, conceitual, imagtica) do original, permitiu-nos refazer, passo a passo, as etapas criativas descritas por Maiakvski em seu trabalho terico, e, muta-tis mutandis, repetir as operaes de testagem e eleio de cada linha do poema entre as vrias possibilidades que se apresentavam mente, tendo em vista sempre o projeto e as exigncias do texto maiakovskiano. Foi, para ns, a melhor leitura que poderamos jamais ter feito do poema, colocando-o sua matriz teortica e revivendo a sua praxis, uma leitura verdadeiramente crtica. Um exemplo: h no original uma aliterao que merece especial nfase nos comentrios do poeta:

    25 JOYCE. Finnegans Wake, p. 627-628 (fim). Traduo de Augusto e Haroldo de Campos, em Panaroma (Fragmentos do Finnegans Wake de James Joyce vertidos para o portugus).

    Gdi on bronzi zvon ili granita gran.

    Literalmente, seria: onde o ressoar do bronze ou a aresta de gra-nito, referncia ao monumento que ainda no se erguera ao poeta morto. Sem fugir do mbito semntico, a fidelidade ao efeito desejado pelo poeta

    levou-nos a traduzir a aliterao, antes que o sentido. E ficou:

    Onde o som do bronze ou o grave granito.

    substituindo-se o substantivo aresta, faceta, pelo adjetivo grave, porm mantido o esquema sonoro do original.

    De experincias como esta, se nada mais, decorre pelo menos a convico, que sustentamos agora, da impossibilidade do ensino de lite-ratura, em especial de poesia (e de prosa a ela equiparvel pela pesquisa formal), sem que se coloque o problema da amostragem e da crtica via traduo. Sendo universal o patrimnio literrio, no se poder pensar no ensino estanque de uma literatura. Ora, nenhum trabalho terico sobre problemas de poesia, nenhuma esttica da poesia ser vlida como peda-gogia ativa se no exibir imediatamente os materiais a que se refere, os padres criativos (textos) que tem em mira. Se a traduo uma forma privilegiada de leitura crtica, ser atravs dela que se podero conduzir outros poetas, amadores e estudantes de literatura penetrao no mago do texto artstico, nos seus mecanismos e engrenagens mais ntimos. A esttica da poesia um tipo de metalinguagem cujo valor real s se pode aferir em relao linguagem-objeto (o poema, o texto criativo enfim) sobre o qual discorre. No toa, reciprocamente, que tantos

    poetas, desde o exemplar ensaio de Edgar Allan Poe The Philosophy of Composition, se preocuparam em traar a gnese de seus poemas, em mostrar que a criao potica pode ser objeto de anlise racional, de abordagem metdica (uma abordagem que no exclui, de modo algum, a intuio sensvel, a descrio fenomenolgica, antes se completa por elas).

    O problema da traduo criativa s se resolve, em casos ideais, a nosso ver, com o trabalho de equipe, juntando para um alvo comum lin-guistas e poetas iniciados na lngua a ser traduzida. preciso que a barreira

  • 46 Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora

    entre artistas e professores de lngua seja substituda por uma cooperao frtil, mas para esse fim necessrio que o artista (poeta ou prosador) tenha

    da traduo uma ideia correta, como labor altamente especializado, que requer uma dedicao amorosa e pertinaz, e que, de sua parte, o professor de lngua tenha aquilo que Eliot chamou de olho criativo, isto , no esteja bitolado por preconceitos acadmicos, mas sim encontre na colaborao para a recriao de uma obra de arte verbal aquele jbilo particular que vem de uma beleza no para a contemplao, mas de uma beleza para a ao ou em ao. O dilema a que se refere Hugh Gordon Porteus ao com-parar as verses de poemas chineses feitas pelo orientalista Arthur Waley (certamente competentssimas como fidelidade ao texto) e por Ezra Pound

    (indubitavelmente exemplares como criao) Pound antes de mais nada um poeta. Waley antes de mais nada um sinlogo. Nos crculos sinolgicos, sem dvida, as incurses de Pound no chins despertam apenas um esgar de desdm... Por outro lado, as pessoas sensveis s belezas sutis do verso poundiano no podem tomar a srio a tcnica potica de erro e acerto do Sr. Waley.26

    deve ser superado no projeto de um Laboratrio de Textos, onde os dois aportes, o do linguista e o do artista, se completem e se integrem num labor de traduo competente como tal e vlido como arte. Num produto que s deixe de ser fiel ao significado textual para ser inventiva, e que

    seja inventiva na medida mesma em que transcenda, deliberadamente, a fidelidade ao significado para conquistar uma lealdade maior ao esprito do

    original transladado, ao prprio signo esttico visto como entidade total, indivisa, na sua realidade material (no seu suporte fsico, que muitas vezes deve tomar a dianteira nas preocupaes do tradutor) e na sua carga con-ceitual. Nesse Laboratrio de Textos, de cuja equipe participariam linguistas e artistas convidados, e que poderia cogitar de uma linha de publicaes experimentais de textos recriados, poder-se-iam desenvolver, em nvel de seminrio, atividades pedaggicas tais como a colaborao de alunos em equipes de traduo ou o acompanhamento por estes das etapas de uma verso determinada, com as explicaes correlatas do porqu das solues adotadas, opes, variantes etc.

    26 PORTEUS. Ezra Pound and His Chinese Characters: a Radical Examination, p. 203-217.

    Traduoereconfiguraodoimaginrio: otradutorcomotransfingidor

    Uma preocupao norteadora, desde os meus primeiros trabalhos sobre traduo criativa, tem sido equacionar a teoria da traduo do linguista Roman Jakobson (On Linguistic Aspects of Translation, 1959) com a do filsofo Walter Benjamin (Die Aufgabe des bersetzers, 1921