Lispector, clarice. uma aprendizagem ou o livro dos prazeres
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O coração tem que se apresentar diante do Nada sozinho e sozinho bater em silêncio de uma taquicardia nas trevas. A experiência da protagonista desta aprendizagem mostra afinidades tanto com as provações da bela Psique, do mito grego, quanto com a mística aventura da alma, ao atravessar a noite escura no "Cântico Espiritual" de São João da Cruz. Como um quadro cujas linhas mestras o recortassem do grande mistério que tudo contém, este livro que se pediu uma liberdade maior, é a narrativa de uma iniciação e um extraordinário hino ao amor. Lóri, a mulher, faz uma longa viagem ao mais profundo de si mesma e chega à consciência total de ser. Diz: eu é; o homem, Ulisses, um professor de filosofia que possui fórmulas para explicar o mundo, transforma-se em algo mais simples, um simples homem. Ambos serão iniciados: Ulisses fecha os ouvidos para as outras sereias porque só está disponível para Lóri, cujo verdadeiro nome é Loreley, como a personagem de Heine e de Apollinaire, uma ondina ou sereia que costumava atrair para os rochedos os barqueiros do Reno. Na verdade, cada um vai encontrar-se
Lispector, clarice. uma aprendizagem ou o livro dos prazeres
1. O corao tem que se apresentar diante do Nada sozinho e
sozinho bater emsilncio de uma taquicardia nas trevas. A experincia
da protagonista desta aprendizagem mostra afinidades tanto comas
provaes da bela Psique, do mito grego, quanto com a mstica aventura
da alma, aoatravessar a noite escura no "Cntico Espiritual" de So
Joo da Cruz. Como um quadro cujas linhas mestras o recortassem do
grande mistrio quetudo contm, este livro que se pediu uma liberdade
maior, a narrativa de uma iniciaoe um extraordinrio hino ao amor.
Lri, a mulher, faz uma longa viagem ao mais profundode si mesma e
chega conscincia total de ser. Diz: eu ; o homem, Ulisses,
umprofessor de filosofia que possui frmulas para explicar o mundo,
transforma-se em algomais simples, um simples homem. Ambos sero
iniciados: Ulisses fecha os ouvidos paraas outras sereias porque s
est disponvel para Lri, cujo verdadeiro nome Loreley,como a
personagem de Heine e de Apollinaire, uma ondina ou sereia que
costumavaatrair para os rochedos os barqueiros do Reno. Na verdade,
cada um vai encontrar-se
2. consigo mesmo em face do outro. Por ser trabalho, ascese,
viagem, o amor de Lri e Ulisses vence a diferena, oestranhamento,
vence at mesmo a morte, ou o medo da morte. E a entrega
finalmentefsica dos personagens se realiza com fora tntrica de
xtase, de epifania. Para Lri, aatmosfera era de milagre; Ulisses,
estava sofrendo de vida e de amor. Nada termina, porm, o momento
anuncia uma nova aurora: Ambos estavamplidos e ambos se acharam
belos. Clarice, que se insere sabiamente no possvel, fechacom dois
pontos a narrativa que comeara com uma vrgula.
3. OBRAS DA AUTORAPerto do corao selvagem, romanceO lustre,
romanceA cidade sitiada, romanceA ma no escuro, romanceA paixo
segundo G.H., romanceUma aprendizagem ou o livre dos prazeres,
romancegua viva, romanceUm sopro de vida, romanceA hora da estrela,
novelaA bela e a fera, contosLaos de famlia, contosA legio
estrangeira, contosFelicidade clandestina, contosOnde estivestes de
noite, contosA via crucis do corpo, contosDe corpo inteiro,
entrevistasPara no esquecer, crnicasA descoberta do mundo, crnicasO
mistrio do coelho pensante, infantilA mulher que matou os peixes,
infantilA vida ntima de Laura, infantilQuase de verdade,
infantilComo nasceram as estrelas, infantil Clarice Lispector UMA
APRENDIZAGEM OU
4. O LIVRO DOS PRAZERES Romance Rio de Janeiro - 1998 1969,
Clarice Lispector, Paulo Gurgel Valente e Pedro Gurgel Valente
estabelecimento do texto MARLENE GOMES MENDES (Dra. em Literatura
Brasileira pela USP/Prof" de Crtica Textual na UFF) Depois disto
olhei, e eis que vi uma porta aberta no cu, e a primeira voz
queouvi era como a trombeta que falava comigo, dizendo: sobe aqui,
e mostrar-te-ei ascoisas que devem acontecer depois destas.
Apocalipse, IV, 1
Provo..................................................... Que a
mais alta expresso da dor......... Consiste essencialmente na
alegria....... Augusto dos Anjos Jeanne: Je ne veux pas mourir! Jai
peur! II y a la joie qui est la plus forte! (Oratrio dramtico de
Paul Claudel para msica de Honneger, Jeanne dArc an
5. bucher.) NOTA Este livro se pediu uma liberdade maior que
tive medo de dar. Ele est muitoacima de mim. Humildemente tentei
escrev-lo. Eu sou mais forte do que eu. CL. NOTA PRVIA Todo texto
com tradio tomada a palavra no sentido que a Crtica Textual
lheempresta tende a apresentar, nas reprodues que dele so feitas,
um maior ou menornmero de alteraes que vo, desde os erros cometidos
por distrao de digitadores atas "correes" bem intencionadas de
revisores ou copidesques. Por isso, necessrioque se proceda ao
estabelecimento desse texto, procurando, no confronto com asedies
publicadas em vida do autor, restituir-lhe sua fidedignidade e
genuinidade. Clarice Lispector escrevia e reescrevia seus textos,
mas no se preocupava emguardar manuscritos e originais, como se
pode verificar no arquivo que se encontra naFundao Casa de Rui
Barbosa, cujo inventrio foi organizado por Eliane Vasconcellos,
epublicado em 1994. De toda sua obra ficcional, s restou um
original datilografado: o degua viva, a propsito do qual fala em
carta a Olga Borelli, mostrando como trabalhavaexaustivamente o
texto: "...No pude te esperar: estava morrendo de cansao,
porqueestou trabalhando ininterruptamente desde as cinco da manh.
Infelizmente eu quetenho que fazer a cpia de Atrs do pensamento,
sempre fiz a ltima cpia dos meuslivros anteriores porque cada vez
que copio vou modificando, acrescentando, mexendoneles, enfim"
(grifo nosso). No entanto, depois de encaminhar o texto editora,
Clarice no se interessavamais por ele, conforme declara em
entrevista concedida a Affonso Romano de SantAnnae Marina
Colasanti, para o Museu da Imagem e do Som, em 20 de outubro de
1976: "Affonso Voc tem os seus textos escritos na cabea. E uma vez
voc medisse uma coisa impressionante: voc nunca rel um texto seu.
Clarice No. Enjo. Quando publicado, como livro morto. No quero
mais
6. saber dele. E quando eu leio, estranho, acho ruim. A no
leio, ora!" Olga Borelli, grande amiga e companheira de Clarice
Lispector, com quemconversamos recentemente, nos assegurou que, de
fato, Clarice no revia seus textosdepois que encaminhava os
originais editora. Assim, no possvel trabalhar com textos de
Clarice Lispector, ignorando-se ofato de que no os revia e,
portanto, no fazia mudanas de uma edio para outra. Umaaprendizagem
ou o livro dos prazeres teve quatro edies publicadas em vida da
autora:as duas primeiras, de 1969 e 1973, publicadas pela Editora
Sabi e duas pela JosOlympio, 1974 e 1976. Nas edies que se
seguiram, incorporaram-se incorrees que procuramoscorrigir nesta
edio, cuidadosamente confrontada com a primeira, escolhida como
textode base. Marlene Gomes Mendes A Origem da Primavera ou A Morte
Necessria em Pleno Dia , estando to ocupada, viera das compras de
casa que a empregada fizera spressas porque cada vez mais matava
servio, embora s viesse para deixar almoo ejantar prontos, dera
vrios telefonemas tomando providncias, inclusive um dificlimo
parachamar o bombeiro de encanamentos de gua, fora cozinha para
arrumar as compras edispor na fruteira as maas que eram a sua
melhor comida, embora no soubesseenfeitar uma fruteira, mas Ulisses
acenara-lhe com a possibilidade futura de por exemploembelezar uma
fruteira, viu o que a empregada deixara para jantar antes de ir
embora,pois o almoo estivera pssimo, enquanto notara que o terrao
pequeno que era privilgiode seu apartamento por ser trreo precisava
ser lavado, recebera um telefonemaconvidando-a para um coquetel de
caridade em benefcio de alguma coisa que ela noentendeu totalmente
mas que se referia ao seu curso primrio, graas a Deus que estavaem
frias, fora ao guarda-roupa escolher que vestido usaria para se
tornar extremamente
7. atraente para o encontro com Ulisses que j lhe dissera que
ela no tinha bom-gosto parase vestir, lembrou-se de que sendo sbado
ele teria mais tempo porque no dava nessedia as aulas de frias na
Universidade, pensou no que ele estava se transformando paraela, no
que ele parecia querer que ela soubesse, sups que ele queria
ensinar-lhe a viversem dor apenas, ele dissera uma vez que queria
que ela, ao lhe perguntarem seu nome,no respondesse "Lri" mas que
pudesse responder "meu nome eu", pois teu nome,dissera ele, um eu,
perguntou-se se o vestido branco e preto serviria, ento do
ventremesmo, como um estremecer longnquo de terra que mal se
soubesse ser sinal deterremoto, do tero, do corao contrado veio o
tremor gigantesco duma forte dorabalada, do corpo todo o abalo e em
sutis caretas de rosto e de corpo afinal com adificuldade de um
petrleo rasgando a terra veio afinal o grande choro seco, choromudo
sem som algum at para ela mesma, aquele que ela no havia
adivinhado, aqueleque no quisera jamais e no previra sacudida como
a rvore forte que maisprofundamente abalada que a rvore frgil
afinal rebentados canos e veias, entosentou-se para descansar e em
breve fazia de conta que ela era uma mulher azul porqueo crepsculo
mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de
ouro assensaes, faz de conta que a infncia era hoje e prateada de
brinquedos, faz de contaque uma veia no se abrira e faz de conta
que dela no estava em silncio alvssimoescorrendo sangue escarlate,
e que ela no estivesse plida de morte mas isso fazia deconta que
estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a
verdadede pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta
verde-cintilante, faz de contaque amava e era amada, faz de conta
que no precisava morrer de saudade, faz de contaque estava deitada
na palma transparente da mo de Deus, no Lri mas o seu nomesecreto
que ela por enquanto ainda no podia usufruir, faz de conta que
vivia e no queestivesse morrendo pois viver afinal no passava de se
aproximar cada vez mais damorte, faz de conta que ela no ficava de
braos cados de perplexidade quando os fiosde ouro que fiava se
embaraavam e ela no sabia desfazer o fino fio frio, faz de contaque
ela era sbia bastante para desfazer os ns de corda de marinheiro
que lhe atavamos pulsos, faz de conta que tinha um cesto de prolas
s para olhar a cor da lua pois elaera lunar, faz de conta que ela
fechasse os olhos e seres amados surgissem quandoabrisse os olhos
midos de gratido, faz de conta que tudo o que tinha no era faz
deconta, faz de conta que se descontraa o peito e uma luz
douradssima e leve a guiava poruma floresta de audes mudos e de
tranqilas mortalidades, faz de conta que ela no eralunar, faz de
conta que ela no estava chorando por dentro pois agora
mansamente,
8. embora de olhos secos, o corao estava molhado; ela sara
agora da voracidade deviver. Lembrou-se de escrever a Ulisses
contando o que se passara, mas nada sepassara dizvel em palavras
escritas ou faladas, era bom aquele sistema que Ulissesinventara: o
que no soubesse ou no pudesse dizer, escreveria e lhe daria o
papelmudamente mas dessa vez no havia sequer o que contar. Agora
lcida e calma, Lri lembrou-se de que lera que os movimentos
histricosde um animal preso tinham como inteno libertar, por meio
de um desses movimentos, acoisa ignorada que o estava prendendo a
ignorncia do movimento nico, exato elibertador era o que tornava um
animal histrico: ele apelava para o descontrole durante o sbio
descontrole de Lri ela tivera para si mesma agora as
vantagenslibertadoras vindas de sua vida mais primitiva e animal:
apelara histericamente paratantos sentimentos contraditrios e
violentos que o sentimento libertador terminaradesprendendo-a da
rede, na sua ignorncia animal ela no sabia sequer como,
estavacansada do esforo de animal libertado. E agora chegara o
momento de decidir se continuaria ou no vendo Ulisses. Emsbita
revolta ela no quis aprender o que ele pacientemente parecia querer
ensinar e elamesma aprender revoltava-se sobretudo porque aquela no
era para ela poca de"meditao" que de sbito parecia ridcula: estava
vibrando em puro desejo como lheacontecia antes e depois da
menstruao. Mas era como se ele quisesse que elaaprendesse a andar
com as prprias pernas e s ento, preparada para a liberdade
porUlisses, ela fosse dele o que que ele queria dela, alm de
tranqilamente desej-la?No comeo Lri enganara-se e pensara que
Ulisses queria lhe transmitir algumas coisasdas aulas de filosofia
mas ele disse: "no de filosofia que voc est precisando, se
fosseseria fcil: voc assistiria s minhas aulas como ouvinte e eu
conversaria com voc emoutros termos", pois que agora o terremoto
serviria sua histeria e agora que estavalibertada podia at adiar
para o futuro a deciso de no ver Ulisses: s que hoje queriav-lo e,
apesar de no tolerar o mudo desejo dele, sabia que na verdade era
ela quem oprovocava para tentar quebrar a pacincia com que ele
esperava; com a mesada que opai mandava comprava vestidos caros
sempre justos, era s isso que sabia fazer paraatra-lo e estava na
hora de se vestir: olhou-se ao espelho e s era bonita pelo fato de
seruma mulher: seu corpo era fino e forte, um dos motivos
imaginrios que fazia com queUlisses a quisesse; escolheu um vestido
de fazenda pesada, apesar do calor, quase semmodelo, o modelo seria
o seu prprio corpo mas enfeitar-se era um ritual que a
tornavagrave: a fazenda j no era um mero tecido, transformava-se em
matria de coisa e era
9. esse estofo que com o seu corpo ela dava corpo como podia um
simples pano ganhartanto movimento? seus cabelos de manh lavados e
secos ao sol do pequeno terraoestavam da seda castanha mais antiga
bonita? no, mulher: Lri ento pintoucuidadosamente os lbios e os
olhos, o que ela fazia, segundo uma colega, muito malfeito, passou
perfume na testa e no nascimento dos seios a terra era perfumada
comcheiro de mil folhas e flores esmagadas: Lri se perfumava e essa
era uma das suasimitaes do mundo, ela que tanto procurava aprender
a vida com o perfume, de algummodo intensificava o que quer que ela
era e por isso no podia usar perfumes que acontradiziam:
perfumar-se era de uma sabedoria instintiva, vinda de milnios de
mulheresaparentemente passivas aprendendo, e, como toda arte,
exigia que ela tivesse ummnimo de conhecimento de si prpria: usava
um perfume levemente sufocante, gostosocomo hmus, como se a cabea
deitada, esmagasse hmus, cujo nome no dizia anenhuma de suas
colegas-professoras: porque ele era seu, era ela, j que para
Lriperfumar-se era um ato secreto e quase religioso usaria brincos?
hesitou, pois queriaorelhas apenas delicadas e simples, alguma
coisa modestamente nua, hesitou mais:riqueza ainda maior seria a de
esconder com os cabelos as orelhas de cora e torn-lassecretas, mas
no resistiu: descobriu-as, esticando os cabelos para trs das
orelhasincongruentes e plidas: rainha egpcia? no, toda ornada como
as mulheres bblicas, ehavia tambm algo em seus olhos pintados que
dizia com melancolia: decifra-me, meuamor, ou serei obrigada a
devorar, e agora pronta, vestida, o mais bonita quanto
poderiachegar a s-lo, vinha novamente a dvida de ir ou no ao
encontro com Ulisses pronta,de braos pendentes, pensativa, iria ou
no ao encontro? com Ulisses ela se comportavacomo uma virgem que no
era mais, embora tivesse certeza de que tambm isso eleadivinhava,
aquele sbio estranho que no entanto no parecia adivinhar que ela
queriaamor. Mais uma vez, nas suas hesitaes confusas, o que a
tranqilizou foi o quetantas vezes lhe servia de sereno apoio: que
tudo o que existia, existia com umapreciso absoluta e no fundo o
que ela terminasse por fazer ou no fazer no escapariadessa preciso;
aquilo que fosse do tamanho da cabea de um alfinete, no
transbordavanenhuma frao de milmetro alm do tamanho de uma cabea de
alfinete: tudo o queexistia era de uma grande perfeio. S que a
maioria do que existia com tal perfeio era,tecnicamente, invisvel:
a verdade, clara e exata em si prpria, j vinha vaga e
quaseinsensvel mulher. Bem, suspirou ela, se no vinha clara, pelo
menos sabia que havia um sentido
10. secreto das coisas da vida. De tal modo sabia que s vezes,
embora confusa, terminavapressentindo a perfeio de novo esses
pensamentos, que de algum modo usavacomo lembrete (de que, por
causa da perfeio que existia, ela terminaria acertando) mais uma
vez o lembrete agiu nela e com seus olhos ainda escuros agora
pelopensamento perturbado, decidiu que veria Ulisses pelo menos
mais esta vez. E no era porque ele esperava por ela, pois muitas
vezes Lri, contando com a jinsultuosa pacincia de Ulisses, faltava
sem avisar-lhe nada: mas idia de que apacincia de Ulisses se
esgotaria, a mo subiu-lhe garganta tentando estancar umaangstia
parecida com a que sentia quando se perguntava "quem sou eu? quem
Ulisses? quem so as pessoas?" Era como se Ulisses tivesse uma
resposta para tudoisso e resolvesse no d-la e agora a angstia vinha
porque de novo descobria queprecisava de Ulisses, o que a
desesperava queria poder continuar a v-lo, mas semprecisar to
violentamente dele. Se fosse uma pessoa inteiramente s, como era
antes,saberia como sentir e agir dentro de um sistema. Mas Ulisses,
entrando cada vez maisplenamente em sua vida, ela, ao se sentir
protegida por ele, passara a ter receio deperder a proteo embora
ela mesma no soubesse ao certo que idia fazia de "serprotegida":
teria, por acaso, o desejo infantil de ter tudo mas sem a ansiedade
de deverdar algo em troca? Proteo seria presena? Se fosse protegida
por Ulisses ainda maisdo que era, ambicionaria logo o mximo: ser to
protegida a ponto de no recear ser livre:pois de suas fugidas de
liberdade teria sempre para onde voltar. Por ter de relance se
visto de corpo inteiro ao espelho, pensou que a proteotambm seria
no ser mais um corpo nico: ser um nico corpo dava-lhe, como agora,
aimpresso de que fora cortada de si prpria. Ter um corpo nico
circundado peloisolamento, tornava to delimitado esse corpo, sentiu
ela, que ento se amedrontava deser uma s, olhou-se avidamente de
perto no espelho e se disse deslumbrada: como soumisteriosa, sou to
delicada e forte, e a curva dos lbios manteve a inocncia.
Pareceu-lhe ento, meditativa, que no havia homem ou mulher que por
acasono se tivesse olhado ao espelho e no se surpreendesse consigo
prprio. Por umafrao de segundo a pessoa se via como um objeto a ser
olhado, o que poderiam chamarde narcisismo mas, j influenciada por
Ulisses, ela chamaria de: gosto de ser. Encontrarna figura exterior
os ecos da figura interna: ah, ento verdade que eu no imaginei:
euexisto. E pelo mesmo fato de se haver visto ao espelho, sentiu
como sua condio erapequena porque um corpo menor que o pensamento a
ponto de que seria intil ter
11. mais liberdade: sua condio pequena no a deixaria fazer uso
da liberdade. Enquanto acondio do Universo era to grande que no se
chamava de condio. A condiohumana de Ulisses era maior que a dela
que, no entanto, tinha um cotidiano rico. Mas seudescompasso com o
mundo chegava a ser cmico de to grande: no conseguira acertaro
passo com as coisas ao seu redor. J tentara se pr a par do mundo e
tornara-seapenas engraado: uma das pernas sempre curta demais. (O
paradoxo que deveriaaceitar de bom grado essa condio de manca,
porque tambm isto fazia parte de suacondio). (S quando queria andar
certo com o mundo que se estraalhava e seespantava). E de repente
sorriu para si prpria com um sorriso amargo, mas que no eramau
porque tambm ele era de sua condio. (Lri se cansava muito porque
ela noparava de ser). Pareceu-lhe que Ulisses, se ela tivesse
coragem de contar-lhe o que sentia, ejamais o faria, se lhe
contasse ele responderia mais ou menos assim e bem calmo: acondio
no se cura mas o medo da condio curvel. Ele diria isso ou qualquer
outracoisa irritou-a porque cada vez que lhe ocorria um pensamento
mais agudo ou maissensato como este, ela supusesse que Ulisses era
quem o teria, ela, que reconhecia comgratido a superioridade geral
dos homens que tinham cheiro de homens e no deperfume, e reconhecia
com irritao que na verdade esses pensamentos que elachamava de
agudos ou sensatos j eram resultado de sua convivncia mais estreita
comUlisses. E mesmo o fato de seus "sofrimentos" serem agora mais
espaados, o que deviaa Ulisses "sofrimentos"? Ser era uma dor? E s
quando ser no fosse mais uma dor que Ulisses aconsideraria pronta
para dormir com ele? No, no vou ao encontro, pensou ento
paradesligar-se dele. Mas desta vez no quis que ele fosse ao bar
esper-la: para ofend-loquis dizer-lhe que no ia, ele que estava
habituado a v-la faltar e no avisar sequer.Dessa vez ela lhe diria
que no ia, o que era uma ofensa mais positiva. Haviam-se passado
momentos ou trs mil anos? Momentos pelo relgio em quese divide o
tempo, trs mil anos pelo que Lri sentiu quando com pesada angstia,
todavestida e pintada, chegou janela. Era uma velha de quatro
milnios. No no fazia vermelho. Era a unio sensual do dia com a sua
hora maiscrepuscular. Era quase noite e estava ainda claro. Se pelo
menos fosse vermelho vistacomo o era nela intrinsecamente. Mas era
um calor de luz sem cor, e parada. No, amulher no conseguia
transpirar. Estava seca e lmpida. E I fora s voavam pssaros depenas
empalhadas. Se a mulher fechava os olhos para no ver o calor, pois
era um calor
12. visvel, s ento vinha a alucinao lenta simbolizando-o: via
elefantes grossos seaproximarem, elefantes doces e pesados, de
casca seca, embora mergulhados no interiorda carne por uma ternura
quente insuportvel; eles eram difceis de se carregarem a siprprios,
o que os tornava lentos e pesados. Ainda era cedo para acender as
lmpadas, o que pelo menos precipitaria umanoite. A noite que no
vinha, no vinha, no vinha, que era impossvel. E o seu amor queagora
era impossvel que era seco como a febre de quem no transpira era
amor sempio nem morfina. E "eu te amo" era uma farpa que no se
podia tirar com uma pina.Farpa incrustada na parte mais grossa da
sola do p. Ah, e a falta de sede. Calor com sede seria suportvel.
Mas ah, a falta de sede.No havia seno faltas e ausncias. E nem ao
menos a vontade. S farpas sem pontassalientes por onde serem
pinadas e extirpadas. S os dentes estavam midos. Dentro deuma boca
voraz e ressequida os dentes midos mas duros e sobretudo a boca
vorazpara nada. E o nada era quente naquele fim de tarde eternizada
pelo planeta Marte. Seus olhos abertos e diamantes. Nos telhados os
pardais secos. "Eu vos amo,pessoas", era frase impossvel. A
humanidade lhe era como morte eterna que no entantono tivesse o
alvio de enfim morrer. Nada, nada morria na tarde enxuta, nada
apodrecia.E s seis horas da tarde fazia meio-dia. Fazia meio-dia
com um barulho atento demquina de bomba de gua, bomba que
trabalhava h tanto tempo sem gua e que virarferro enferrujado: h
dois dias faltava gua em diversas zonas da cidade. Nada jamaisfora
to acordado como seu corpo sem transpirao e seus olhos-diamantes, e
devibrao parada. E o Deus? No. Nem mesmo a angstia. O peito vazio,
sem contrao.No havia grito. Enquanto isso era vero. Vero largo como
o ptio vazio nas frias da escola.Dor? Nenhuma. Nenhum sinal de
lgrima e nenhum suor. Sal nenhum. S uma dourapesada: como a da
casca lenta dos elefantes de couro ressequido. A esqualidez lmpida
equente. Pensar no seu homem? No, era a farpa na parte corao dos
ps. Lamentar noter casado e no ter filhos? Quinze filhos
dependurados, sem se balanarem ausnciade vento. Ah, se as mos
comeassem a se umedecer. Nem que houvesse gua, pordio no se
banharia. Era por dio que no havia gua. Nada escorria. A
dificuldade erauma coisa parada. E uma jia diamante. A cigarra de
garganta seca no parava de rosnar.E se o Deus se liquefaz enfim em
chuva? No. Nem quero. Por seco e calmo dio, queroisso mesmo, este
silncio feito de calor que a cigarra rude torna sensvel. Sensvel?
Nose sente nada. Seno esta dura falta de pio que amenize. Quero que
isto que
13. intolervel continue porque quero a eternidade. Quero esta
espera contnua como o cantoavermelhado da cigarra, pois tudo isso a
morte parada, a Eternidade de trilhes deanos das estrelas e da
Terra, o cio sem desejo, os ces sem ladrar. nessa hora que obem e o
mal no existem. o perdo sbito, ns que nos alimentvamos com
gostosecreto da punio. Agora a indiferena de um perdo. Pois no h
mais julgamento.No um perdo que tenha vindo depois de um
julgamento. a ausncia de juiz econdenado. E no chove, no chove. No
existe menstruao. Os ovrios so duasprolas secas. Vou vos dizer a
verdade: por dio seco, quero isto mesmo, e que nochova. E
exatamente ento ela ouve alguma coisa. Uma coisa tambm seca que a
deixaainda mais seca de ateno. um rolar de trovo seco, sem uma
saliva, que rola, masaonde? No cu nu e absolutamente azul nenhuma
nuvem de amor que chore. Deve serde muito longe o trovo. Ao mesmo
tempo o ar tem um cheiro adocicado de elefantesgrandes, e de jasmim
adocicado na casa ao lado. A ndia invadindo o Rio de Janeiro
comsuas mulheres adocicadas. Um cheiro de cravos de cemitrio. Ir
tudo mudar to derepente? Para quem no tinha nem noite nem chuva nem
apodrecimento de madeira nagua para quem no tinha seno prolas, ser
que a noite vai chegar? Vai ter madeiraenfim apodrecendo, cravo
vivo de chuva no cemitrio, chuva que vem da Malsia? A urgncia ainda
imvel mas j tem um tremor dentro. Lri no percebe que otremor seu,
como no percebera que aquilo que a queimava no era o fim da
tardeencalorada, e sim o seu calor humano. Ela s percebe que agora
alguma coisa vai mudar,que chover ou cair a noite. Mas no suporta a
espera de uma passagem, e antes dachuva cair, o diamante dos olhos
se liquefaz em duas lgrimas. E enfim o cu se abranda. Lri ligou o
nmero de telefone: No poderei ir, Ulisses, no estou bem. Houve uma
pausa. Ele afinalperguntou: fisicamente que voc no est bem? Ela
respondeu que no tinha nada fsico. Ento ele disse: Lri, disse
Ulisses, e de repente pareceu grave embora falasse tranqilo,
Lri:uma das coisas que aprendi que se deve viver apesar de. Apesar
de, se deve comer.Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve
morrer. Inclusive muitas vezes o prprioapesar de que nos empurra
para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angstia
queinsatisfeita foi a criadora de minha prpria vida. Foi apesar de
que parei na rua e fiquei
14. olhando para voc enquanto voc esperava um txi. E desde logo
desejando voc, esseteu corpo que nem sequer bonito, mas o corpo que
eu quero. Mas quero inteira, com aalma tambm. Por isso, no faz mal
que voc no venha, esperarei quanto tempo forpreciso. Por que que
voc nunca se casou? perguntou ela incongruentemente. que e sua voz
era a voz de quem sorria que no senti necessidade epor sorte tive
as mulheres que eu quis. Ela se despediu, abaixou a cabea em pudor
e alegria. Pois apesar de, ela tiveraalegria. Ele esperaria por
ela, agora o sabia. At que ela aprendesse. Tudo estava tranqilo
agora. E ao lembrar-se de sua prpria imagem bblica, aose ter olhado
antes ao espelho, achou-a to de algum modo bonita, que tinha que
daresse aspecto de beleza a algum. E esse algum s podia ser Ulisses
que sabia ver abeleza disfarada e to recndita que um ser vulgar no
poderia. Mas ele, a um olhar,podia. Ele era um homem, ela era uma
mulher, e milagre mais extraordinrio do que esses se comparava
estrela-cadente que atravessa quase imaginariamente o cu negro
edeixa como rastro o vivido espanto de um Universo vivo. Era um
homem e era umamulher. Ela que tantas vezes chegara a odiar
Ulisses, mesmo continuando a fazer comque ele a desejasse. Ah!
gritou-se muda de repente, que o Deus me ajude a conseguir o
impossvel,s o impossvel me importa! Nem sequer entendeu o que
queria dizer com isso, mas como se tivesse sidoatendida no maior
apelo humano e de algum modo, s por desej-lo, tivesse tocado
noimpossvel, disse baixo, audvel, humilde: obrigada. Atravs de seus
graves defeitos que um dia ela talvez pudesse mencionarsem se
vangloriar que chegara agora a poder amar. At aquela glorificao:
elaamava o Nada. A conscincia de sua permanente queda humana a
levava ao amor doNada. E aquelas quedas como as de Cristo que vrias
vezes caiu ao peso da cruz eaquelas quedas que comeavam a fazer a
sua vida. Talvez fossem os seus "apesar de"que, Ulisses dissera,
cheios de angstia e desentendimento de si prpria, a
estivessemlevando a construir pouco a pouco uma vida. Com pedras de
material ruim ela levantavatalvez o horror, e aceitava o mistrio de
com horror amar ao Deus desconhecido. Nosabia o que fazer de si
prpria, j nascida, seno isto: Tu, Deus, que eu amo comoquem cai no
nada.
15. Depois foi fcil telefonar para Ulisses e dizer-lhe que
mudara de idia e que podiair esper-la no bar. Era cruel o que fazia
consigo prpria: aproveitar que estava em carneviva para se conhecer
melhor, j que a ferida estava aberta. Mas doa demais mexer-senesse
sentido. Ento preferiu apaziguar-se e planejou que, no txi,
pensaria no nariz retode Ulisses, na sua cara marcada pela
aprendizagem lenta da vida, nos seus lbios queela jamais beijara. S
que ela no queria ir de mos vazias. E assim como se lhe levasse uma
flor,ela escreveu num papel algumas palavras que lhe dessem prazer:
"Existe um ser quemora dentro de mim como se fosse casa dele, e .
Trata-se de um cavalo preto e lustrosoque apesar de inteiramente
selvagem pois nunca morou antes em ningum nem jamaislhe puseram
rdeas nem sela apesar de inteiramente selvagem tem por isso
mesmouma doura primeira de quem no tem medo: come s vezes na minha
mo. Seu focinho mido e fresco. Eu beijo o seu focinho. Quando eu
morrer, o cavalo preto ficar semcasa e vai sofrer muito. A menos
que ele escolha outra casa e que esta outra casa notenha medo
daquilo que ao mesmo tempo selvagem e suave. Aviso que ele no
temnome: basta cham-lo e se acerta com seu nome. Ou no se acerta,
mas, uma vezchamado com doura e autoridade, ele vai. Se ele fareja
e sente que um corpo-casa livre, ele trota sem rudos e vai. Aviso
tambm que no se deve temer o seu relinchar: agente se engana e
pensa que a gente mesma que est relinchando de prazer ou declera, a
gente se assusta com o excesso de doura do que isto pela primeira
vez". Ela sorriu. Ulisses ia gostar, ia pensar que o cavalo era ela
prpria. Era? Como se uma manada de gazelas transparentes se
transladassem no ar domundo ao crepsculo foi isso o que Lri
conseguiu vrias semanas depois. A vitriatranslcida foi to leve e
promissora como o prazer pr-sexual. Ela se tornara mais habilidosa:
como se aos poucos estivesse se habituando terra, Lua, ao Sol, e
estranhamente a Marte sobretudo. Estava numa plataformaterrestre de
onde por timos de segundos parecia ver a super-realidade do que
verdadeiramente real. Mais real disse-lhe Ulisses quando ela a seu
jeito contou-lhe oquase no acontecimento mais real que a realidade.
No dia seguinte tentou pacientemente de novo o crepsculo. Estava
espera.Com os sentidos aguados pelo mundo que a cercava como se
entrasse nas terrasdesconhecidas de Vnus. Nada aconteceu.
16. Luminescncia De Ulisses ela aprendera a ter coragem de ter
f muita coragem, f em qu?Na prpria f, que a f pode ser um grande
susto, pode significar cair no abismo, Lritinha medo de cair no
abismo e segurava-se numa das mos de Ulisses enquanto a outramo de
Ulisses empurrava-a para o abismo em breve ela teria que soltar a
mo menosforte do que a que a empurrava, e cair, a vida no de se
brincar porque em pleno dia semorre. A mais premente necessidade de
um ser humano era tornar-se um ser humano. E houve a noite de
terror. Ela ouvia passos indo e vindo. Olhou pela fresta dajanela e
viu que era o mesmo homem meio doido, com braos compridos de
macaco, quedurante o dia a seguira. Os passos vagarosos que vinham
e iam e voltavam. Lri sabiaque ele esperava por ela. Pela fresta
viu que ele fumava e pacientemente andava para ce para I. Ela no
suportou mais e telefonou para Ulisses. Ele disse que em minutos
estariaI. Minutos ou horas interminveis? Ter-se-ia quebrado o freio
de seu carro ou coisasemelhante? Finalmente ouviu o carro parar.
Viu pela janela os dois homens falando, e umsussurro calmo que se
prolongava demais. Afinal viu o homem se afastar, ao mesmo tempo
que Ulisses dizia-lhe baixo: Lri, est tudo bem. Foi um homem que
voc hoje ficou olhando muito,possivelmente distrada, e ele com
esperana acompanhou voc esperando que vocabrisse a porta. Venha at
a porta. Ele foi: Quer tomar um caf? perguntou ela como pretexto
para faz-lo entrar. Ele ficou no limiar. Ela estava de p, em
camisola curta e transparente. Ele iadizer: "pode dormir
descansada, eu dissuadi o homem a meu modo". Mas antes de dizerisso
ele parou inteiramente, com os lbios apertados, e olhou-a de alto a
baixo. Afinaldisse: De dia telefono para voc. Com o desespero de
fmea desprezada, ouviu o carro dele se afastar. A viso de Ulisses
tirara-lhe o sono. Olhou-se de corpo inteiro ao espelho
paracalcular o que Ulisses vira. E achou-se atraente. No entanto
ele no quisera entrar. Esperou sem pressa pela madrugada. A melhor
luz de se viver era na
17. madrugada, leve to leve promessa de manhzinha. Ela sabia
disso, j passara inmerasvezes por isso. Como para um pintor que
escolhe a luz que lhe convm, Lri preferia paraa descoberta do que
se chama viver essas horas tmidas do vago comeo do dia. Demadrugada
ia ao pequeno terrao e quando tinha sorte era madrugada com
lua-cheia.Tudo isso ela j aprendera atravs de Ulisses. Antes ela
evitara sentir. Agora ainda tinhaporm j com leves incurses pela
vida. Mas da lua ela no tinha receio porque era mais lunar que
solar e via de olhosbem abertos nas madrugadas to escuras a lua
sinistra no cu. Ento ela se banhavatoda nos raios lunares, assim
como havia os que tomavam banhos de sol. E ficavaprofundamente
lmpida. Nesta madrugada fresca foi ao terrao e refletindo um pouco
chegou assustadora certeza de que seus pensamentos eram to
sobrenaturais como uma histriapassada depois da morte. Ela
simplesmente sentira, de sbito, que pensar no lhe eranatural.
Depois chegara concluso de que ela no tinha um dia-a-dia mas sim
umavida-a-vida. E aquela vida que era sua nas madrugadas era
sobrenatural com suasinmeras luas banhando-a de um prateado lquido
to terrvel. Sobretudo aprendera agora a se aproximar das coisas sem
lig-las sua funo.Parecia agora poder ver como seriam as coisas e as
pessoas antes que lhes tivssemosdado o sentido de nossa esperana
humana ou de nossa dor. Se no houvesse humanosna terra, seria
assim: chovia, as coisas se ensopavam sozinhas e secavam e
depoisardiam secas ao sol e se crestavam em poeira. Sem dar ao
mundo o nosso sentido, comoLri se assustava! Tinha medo da chuva
quando a separava da cidade e dosguarda-chuvas abertos e dos campos
se embebendo de gua. Ento o que chamava demorte a atraa tanto que s
poderia chamar de valoroso o modo como, por solidariedade epena dos
outros, ainda estava presa ao que chamava de vida. Seria
profundamenteamoral no esperar pela morte como os outros todos
esperam por esta hora final. Teriasido esperteza dela avanar no
tempo, e imperdovel ser mais sabida que os outros. Porisso, apesar
da curiosidade intensa que tinha pela morte, Lri esperava.
Amanheceu. O que se passara no pensamento de Lri naquela madrugada
era to indizvel eintransmissvel como a voz de um ser humano calado.
S o silncio da montanha lhe eraequivalente. O silncio da Sua, por
exemplo. Lembrou-se com saudade do tempo emque o pai era rico e
viajavam vrios meses por ano. Por mais intransmissvel que fossem os
humanos, eles sempre tentavam se
18. comunicar atravs de gestos, de gaguejos, de palavras mal
ditas e malditas. J era demanh mais alta quando ela preparou caf
forte, tomou-o e disps-se a se comunicar comUlisses, j que Ulisses
era o seu homem. Escreveu: "E to vasta a noite na montanha. To
despovoada. A noite espanhola tem operfume e o eco duro do
sapateado da dana, a italiana tem o mar clido mesmo seausente. Mas
a noite de Berna tem o silncio. Tenta-se em vo ler para no ouvi-lo,
pensar depressa para disfar-lo, inventarum programa, frgil ponte
que mal nos liga ao subitamente improvvel dia de amanh.Como
ultrapassar essa paz que nos espreita. Montanhas to altas que o
desespero tempudor. Os ouvidos se afiam, a cabea se inclina, o
corpo todo escuta: nenhum rumor.Nenhum galo possvel. Como estar ao
alcance dessa profunda meditao do silncio?Desse silncio sem
lembrana de palavras. Se s morte, como te abenoar? um silncio,
Ulisses, que no dorme: insone: imvel mas insone e semfantasmas. E
terrvel sem nenhum fantasma. Intil querer povo-lo com a
possibilidadede uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que
se abra e "diga" alguma coisa.Ele vazio e sem promessa. Como eu,
Ulisses? Se ao menos houvesse o vento. Vento ira, ira a vida. Mas
nas noites que passei em Berna no havia vento e cada folha
estavaincrustada no galho das rvores imveis. Ou se fosse poca de
cair neve. Que mudamas deixa rastro tudo embranquece, as crianas
riem brincando com os flocos, ospassos rangem e marcam. Isso
durante o dia to intenso que a noite ainda povoada.H uma
continuidade que a vida. Mas este silncio no deixa provas. No se
pode falardo silncio como se fala da neve. O silncio a profunda
noite secreta do mundo. E nose pode falar do silncio como se fala
da neve: sentiu o silncio dessas noites? Quemouviu no diz. H uma
maonaria do silncio que consiste em no falar dele e de ador-losem
palavras. A noite, Ulisses, desce com suas pequenas alegrias de
quem acende lmpadas,com o cansao que tanto justifica o dia. As
crianas de Berna adormecem, fecham-se asltimas portas. As ruas
brilham nas lajes e brilham j vazias. E afinal apagam-se as
luzesdas casas. S um ou outro poste iluminado para iluminar o
silncio. Mas este primeiro silncio, Ulisses, ainda no o silncio.
Que se espere, poisas folhas das rvores ainda se ajeitaro melhor,
algum passo tardio talvez se oua comesperana pelas escadas. Mas h
um momento em que do corpo descansado se ergue o esprito atento,
eda Terra e da Lua. Ento ele, o silncio, aparece. E o corao bate ao
reconhec-lo: pois
19. ele o de dentro da gente. Pode-se depressa pensar no dia
que passou. Ou nos amigos que passaram epara sempre se perderam.
Mas intil esquivar-se: h o silncio. Mesmo o sofrimentopior, o da
amizade perdida, apenas fuga. Pois se no comeo o silncio parece
aguardaruma resposta como arde, Ulisses, por ser chamada e
responder; cedo se descobreque de ti ele nada exige, talvez apenas
o teu silncio. Mas isto os da maonaria sabem.Quantas horas perdi na
escurido supondo que o silncio te julga como esperei emvo ser
julgada pelo Deus. Surgem as justificaes, trgicas justificaes
forjadas,humildes desculpas at indignidade. To suave para o ser
humano enfim mostrar suaindignidade e ser perdoado com a
justificativa de que se um ser humano humilhado denascena. At que
se descobre, Ulisses nem a tua indignidade ele quer. Ele o
Silncio.Ele o Deus? Pode-se tentar engan-lo tambm. Deixa-se como
p< acaso o livro da cabeceiracair no cho. Mas horror o livro cai
dentro do silncio e se perde na muda e paradavoragem deste. E se um
pssaro enlouquecido cantasse? Esperana intil. O cantoapenas
atravessaria como uma leve flauta o silncio. O que mais se parecia,
no domniodo som, com o silncio, era uma flauta. Ento, se h coragem,
no se luta mais. Entra-se nele, vai-se nele para oInferno? Vai-se
com ele, ns os nicos fantasmas de uma noite em Berna. Que se
entre.Que no se espere o resto da escurido diante dele, s ele
prprio. Ser como seestivssemos num navio to descomunalmente enorme
que ignorssemos estar numnavio. E este singrasse to largamente que
ignorssemos estar indo. Mais do que isso umhomem no pode. Viver na
orla da morte e das estrelas vibrao mais tensa do que asveias podem
suportar. No h sequer um filho de astro e de mulher como
intermediriopiedoso. O corao tem que se apresentar diante do Nada
sozinho e sozinho bater emsilncio de uma taquicardia nas trevas. S
se sente nos ouvidos o prprio corao.Quando este se apresenta todo
nu, nem comunicao, submisso. Pois ns nofomos feitos seno para o
pequeno silncio, no para o silncio astral. Se no h coragem, que no
se entre. Que se espere o resto da escurido diantedo silncio, s os
ps molhados pela espuma de algo que se espraia de dentro de ns.Que
se espere. Um insolvel pelo outro. Um ao lado do outro, duas coisas
que no vemna escurido. Que se espere. No o fim do silncio mas o
auxlio bendito de um terceiroelemento: a luz da aurora.
20. Depois nunca mais se esquece, Ulisses. Intil at fugir para
outra cidade. Poisquando menos se espera pode-se reconhec-lo de
repente. Ao atravessar a rua nomeio das buzinas dos carros. Entre
uma gargalhada fantasmagrica e outra. Depois deuma palavra dita. s
vezes no prprio corao da palavra se reconhece o Silncio. Osouvidos
se assombram, o olhar se esgazeia ei-lo. E dessa vez ele fantasma."
Escrever aliviou-a. Estava de olheiras pela noite no dormida,
cansada, mas porum instante ah como Ulisses gostaria de saber
feliz. Porque, se no expressara oinexpressvel silncio, falara como
um macaco que grunhe e faz gestos incongruentes,transmitindo no se
sabe o qu. Lri era. O qu? Mas ela era. O que acontecia na verdade
com Lri que, por alguma deciso to profundaque os motivos lhe
escapavam ela havia por medo cortado a dor. S com Ulisses
vieraaprender que no se podia cortar a dor seno se sofreria o tempo
todo. E ela haviacortado sem sequer ter outra coisa que em si
substitusse a viso das coisas atravs dador de existir, como antes.
Sem a dor, ficara sem nada, perdida no seu prprio mundo eno alheio
sem forma de contato. Fora ento que Ulisses aparecera casualmente
na sua vida. Ele, que seinteressara por Lri apenas pelo desejo,
parecia agora ver como ela era inalcanvel. Emais: no s inalcanvel
por ele mas por ela prpria e pelo mundo. Ela vivia de
umestreitamento no peito: a vida. Ento que haviam comeado os
encontros: ela s parecia querer dele aprenderalguma coisa e
enganara-se pensando que queria aprender pelo fato de Ulisses
serprofessor de Filosofia, usando-o nessa esperana. Quando esta
morreu, ao ver que eleno tinha a menor inteno de ensinar-lhe um
modo de viver "filosfico" ou "literrio", jera tarde: estava presa a
ele porque queria ser desejada, sobretudo gostava de serdesejada
meio selvagemente quando ele bebia demais. J tinha sido desejada
por outroshomens mas era novo Ulisses querendo-a e esperando com
pacincia mesmo quandoestava embriagado, o que no lhe tirava o
controle e esperando com pacincia que elaestivesse pronta, enquanto
ele prprio dizia de si mesmo que estava em plenaaprendizagem, mas
to alm dela que ela se transformava em nfimo corpo vazio edoloroso,
apenas isso. E ela ansiava por ele porque exatamente ele lhe
parecia ser olimite entre o passado e o que viesse o que viria?
Nada, pensava em desespero.Esperava, j que no tinha a fazer seno
dar aulas de manha no curso primrio ou entoestar de frias como
agora, ler um pouco, comer e dormir, e encontrar-se com Ulisses
quepouco a transformava, ou se a transformava era pouco demais. E
esperar.
21. No entanto era o seu pavor de uma possvel intimidade de
alma com Ulisses oque a deixava irritada com ele. Estaria na
verdade lutando contra a sua prpria vontadeintensa de aproximar-se
do impossvel de um outro ser humano? Ah, que no fosse maisa dor, e
ajudava Ulisses aplicando-se depressa em aprender o qu? por medo
deque ao final ele achasse que j era tarde demais para ela e
recuasse gentilmente.Parecia-lhe no entanto que ela prpria
dificultava a misso de ambos. Porque emborasem saber o que queria,
alm de um dia vir a dormir com ele, adivinhava que seria algoto
difcil de dar e receber que ele talvez se recusasse. A prpria Lri
tinha uma espcie de receio de ir, como se pudesse ir longedemais em
que direo? O que dificultava a ida. Sempre se retinha um pouco como
sereti-vesse as rdeas de um cavalo que poderia galopar e lev-la
Deus sabe onde. Ela seguardava. Por que e para qu? Para o que
estava ela se poupando? Era um certo medoda prpria capacidade,
pequena ou grande, talvez por no conhecer os prprios limites.Os
limites de um humano eram divinos? Eram. Mas parecia-lhe que, assim
como umamulher s vezes se guardava intocada para dar-se um dia ao
amor, que ela queria morrertalvez ainda toda inteira para a
eternidade t-la toda. Queria ela a salvao? A dor fora anquilosada e
paralisada dentro de seu peito,como se ela no quisesse mais us-la
como forma de viver. Mas essa precauo vindadepois de Ulisses no era
ainda a que a salvaria: pois em lugar da dor, nada vieraseno a
parada da vida dos sentimentos. Se era a salvao que ela esperava de
Ulisses,isso seria pedir tanto e to grande que ele negaria? Ela
nunca vira ningum salvar o outro,ento temia uma aproximao que s
faria desiludi-la na confirmao de que um ser notranspassa o outro
como sombras que se trespassam. s vezes regredia e sucumbia a uma
completa irresponsabilidade: o desejo deser possuda por Ulisses sem
ligar-se a ele, como fizera com os outros. Mas tambmnisso poderia
falhar: era agora uma mulher de grande cidade mas o perigo que
tambmhavia uma forte herana agrria vinda de longe no seu sangue. E
sabia que essa heranapoderia fazer com que de repente ela quisesse
mais, dizendo-se: no, eu no quero sereu somente, por ter um eu
prprio, quero a ligao extrema entre mim e a terra frivel
eperfumada. O que chamava de terra j se tornara o sinnimo de
Ulisses, tanto ela queriaa terra de seus antepassados. Com as
crianas que ela ensinava de manh, noconseguia unir-se terra, como
se no estivesse pronta para ter a ligao de mulher como que
representava filhos. E restava, ainda como sombra da dor sombria de
que fora feitaantes de Ulisses, o pensamento desalentado: o que ela
era, era apenas uma pequena
22. parte de si mesma. Sua alma incomensurvel. Pois ela era o
Mundo. E no entanto vivia o pouco. Issoconstitua uma de suas fontes
de humildade e forada aceitao, e tambm a enfraqueciadiante de
qualquer possibilidade de agir. Alis sentir-se humilde demais era
de onde paradoxalmente vinha a sua altivezde pessoa. E que sua
altivez que se refletia no modo flexvel e tranqilo de andar sua
altivez vinha da certeza obscura de que suas razes eram fortes, e
que sua humildadeno era apenas humildade humana: que qualquer raiz
era forte, e sua humildade vinhada certeza obscura de que todas as
razes eram humildes, terrosas e cheias de midovigor na sua modstia
nodosa de raiz. claro que tudo isso no era pensado: era vivido, com
uma ou outra rpidapassagem de luz de holofote na noite iluminando o
cu por um timo de segundo depensamento a escurido. O que tambm
salvara Lri que sentia que se o seu mundo particular no
fossehumano, tambm haveria lugar para ela, e com grande beleza: ela
seria uma manchadifusa de instintos, douras e ferocidades, uma
trmula irradiao de paz e luta, como erahumanamente, mas seria de
forma permanente: porque se o seu mundo no fossehumano ela seria um
bicho. Por um instante ento desprezava o prprio humano
eexperimentava a silenciosa alma da vida animal. E era bom. "No
entender" era to vasto que ultrapassava qualquer entender entender
era sempre limitado. Mas no-entender no tinha fronteiras e levava
ao infinito,ao Deus. No era um no-entender como um simpies de
esprito. O bom era ter umainteligncia e no entender. Era uma bno
estranha como a de ter loucura sem serdoida. Era um desinteresse
manso em relao s coisas ditas do intelecto, uma doura deestupidez.
Mas de vez em quando vinha a inquietao insuportvel: queria entender
obastante para pelo menos ter mais conscincia daquilo que ela no
entendia. Embora nofundo no quisesse compreender. Sabia que aquilo
era impossvel e todas as vezes quepensara que se compreendera era
por ter compreendido errado. Compreender erasempre um erro preferia
a largueza to ampla e livre e sem erros que era no-entender.Era
ruim, mas pelo menos se sabia que se estava em plena condio humana.
No entanto s vezes adivinhava. Eram manchas csmicas que
substituamentender. Lri j havia contado a Ulisses sobre o tempo
que, em Campos, os pais eram
23. ricos e viajavam, demorando-se meses com os filhos num pas
ou outro, at que, aomesmo tempo em que a me morrera, a fortuna se
reduzira a um tero. Ulisses, apesarde nunca ter viajado seno pelo
Brasil, jamais lhe fizera perguntas tursticas. Nem ela asdescrevia.
Lri falava sucintamente sobre si mesma em outros pases. Dissera
pouco masele, pela ateno que lhe dera, parecia ter ouvido alm do
que ela contara. Ela falara de Paris mas no da terra chamada Paris.
Falara de como o inverno Iera cheio de trevas no crepsculo e de
como nevava neve ruim, no da leve mas dagrossa, e ainda mais: os
flocos gelados batiam-lhe no rosto j rgido de frio trazidos
pelasrajadas de vento. Contara por alto que um dia, ao escurecer,
comeara numa esquina achorar de manso. No havia ningum por perto, e
ento ela comeara a falar sozinha: "ODeus que me ajude nessas trevas
geladas que so as minhas." Nessa esquina, dissera ela a Ulisses com
sua voz sempre mansa, eu me sentiperdida, salva de algum naufrgio e
jogada numa praia escura, fria, deserta. Paris, de sbito, aquela
terra estranha, dera-lhe a dor mais inslita a de suaperdio real.
Estar perdida no era a verdade corriqueira mas era a irrealidade
que lhevinha dar a noo de sua condio verdadeira. E a de todos.
Contou tambm de como no inverno ainda em Paris, ela procurara
umacostureira num bairro distante do hotel. Dentro de casa no
sentira a tarde cair e, estandoa lareira acesa, no percebera que o
frio com a noite precoce se tornara gelado. Era novede fevereiro.
Ao sair assustara-se ao encontrar noite feita. No conhecia o bairro
e ostxis eram raros, os que passavam naquela rua negra j vinham com
passageiros. Notinha exata noo a que distncia se achava do hotel.
Ficara ali de p esperandoinutilmente um txi. E se esquecesse o nome
do hotel? E de repente no tivera a menoridia do nome do seu, tanto
o nome dos hotis em todas as cidades do mundo separeciam e ela
morara ou apenas pousara em tantos. Se no se lembrasse nunca maisdo
nome do hotel, ningum a encontraria, ela ficaria morando naquele
bairro sujo e negroe de edifcios enegrecidos, isolada do resto de
Paris e teria que mudar de vida parasobreviver. Moraria ali mesmo
onde se perdera: era raro uma pessoa tocar to de perto asua prpria
perdio. Para ter o que comer iria se prostituir? De acordo como era
feitaparecia-lhe mais fcil e menos angustioso do que trabalhar atrs
do balco de uma loja. Perdera a noo de quanto tempo estava ali
naquela noite. O frio aumentaratanto que homens haviam acendido uma
fogueira cor de flama intensa dentro de uma latadepositada na
calada. Aproximou-se tambm e, como os homens, para no sentir
adormncia crescente dos ps frgidos, sapateava de vez em quando
imitando-os e, ainda
24. imitando-os, esfregava as mos enluvadas uma na outra at que
de repente oinesperado: o txi vazio passando. Mandou-o parar. E o
nome do hotel? "V andando", disse ela ao chofer."Andando para
onde?" respondera mal-humorado como todos os choferes em Paris.
"Vandando", repetiu com fingida dureza. Esqueceria de fato o nome
do hotel? Sentia-secomo quando era criana e tomava parte em
representaes teatrais, e nos bastidores,antes de entrar no palco,
estremecia de pavor porque simplesmente havia esquecido asprimeiras
linhas do que devia dizer. Embora, uma vez entrando no palco,
falasse derepente como uma sonmbula, e s mais tarde fosse aos
poucos tomando conscincia desi e do pblico e conseguisse
representar seu papel. Foi a uma freada sbita do txi, acompanhada
de palavres do chofer, que lhedeu o choque necessrio e de sbito
lembrara-se do nome do hotel. Disse-o ao chofer eimediatamente caiu
num choro abafado de alvio e sofrimento. Ulisses ouvira de testa
franzida. E depois dissera: E ento voc no quis mais nada disso. E
parou com a possibilidade de dor, oque nunca se faz impunemente.
Apenas parou e nada encontrou alm disso. Eu no digoque eu tenha
muito, mas tenho ainda a procura intensa e uma esperana violenta.
Noesta sua voz baixa e doce. E eu no choro, se for preciso um dia
eu grito, Lri. Estou emplena luta e muito mais perto do que se
chama de pobre vitria humana do que voc, mas vitria. Eu j poderia
ter voc com o meu corpo e minha alma. Esperarei nem que sejamanos
que voc tambm tenha corpo-alma para amar. Ns ainda somos moos,
podemosperder algum tempo sem perder a vida inteira. Mas olhe para
todos ao seu redor e veja oque temos feito de ns e a isso
considerado vitria nossa de cada dia. No temos amado,acima de todas
as coisas. No temos aceito o que no se entende porque no
queremospassar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranas por no
nos termos um ao outro.No temos nenhuma alegria que j no tenha sido
catalogada. Temos construdocatedrais, e ficado do lado de fora pois
as catedrais que ns mesmos construmos,tememos que sejam armadilhas.
No nos temos entregue a ns mesmos, pois isso seriao comeo de uma
vida larga e ns a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante
doprimeiro de ns que por amor diga: tens medo. Temos organizado
associaes e clubessorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos
procurado nos salvar mas sem usara palavra salvao para no nos
envergonharmos de ser inocentes. No temos usado apalavra amor para
no termos de reconhecer sua contextura de dio, de amor, de cime ede
tantos outros contraditrios. Temos mantido em segredo a nossa morte
para tornar
25. nossa vida possvel. Muitos de ns fazem arte por no saber
como a outra coisa. Temosdisfarado com falso amor a nossa
indiferena, sabendo que nossa indiferena angstiadisfarada. Temos
disfarado com o pequeno medo o grande medo maior e por issonunca
falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa
consideradouma gafe. No temos adorado por termos a sensata
mesquinhez de nos lembrarmos atempo dos falsos deuses. No temos
sido puros e ingnuos para no rirmos de nsmesmos e para que no fim
do dia possamos dizer "pelo menos no fui tolo" e assim noficarmos
perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em pblico do que
nosorriramos quando ficssemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a
nossa candura.Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo
isso consideramos a vitria nossade cada dia. Mas eu escapei disso,
Lri, escapei com a ferocidade com que se escapa dapeste, Lri, e
esperarei at voc tambm estar mais pronta. Lri sempre se espantava
de como Ulisses a conhecia. Mas apesar de ele podercompreender,
receava sua censura ou de que ele desanimasse e a abandonasse,
enunca lhe dissera que o "mal" muitas vezes voltava: o ar dentro
dela tinha ento cheiro depoeira molhada. Vai recomear, meu Deus?
Perguntava-se ento. E reunia toda a suafora para parar a dor. Que
dor era? A de existir? A de pertencer a alguma coisadesconhecida? A
de ter nascido? E depois, estancada a dor como se no tivesse sequer
havido, exausta, aps ternadado quilmetros no universo vazio, ficara
ofegante, jogava-se nas areias brilhantes deum planeta, imvel, de
bruos. Tambm no dissera a Ulisses de como melhorara a penosa sensao
de estarsolta o fato de estar solta mesmo: o pai perdendo o grosso
da fortuna, ela mudara-sesozinha de Campos para o Rio, comprara o
pequeno apartamento onde vivia, sustentadaregiamente pela mesada do
pai. Com quatro irmos homens, e ela filha nica, o pai lhemandava o
que ela quisesse. Com um tero da fortuna que restara dava para
elesviverem como ricos, mas felizmente para ela acabara-se a
possibilidade de viajar semparar pela Europa. No contara a Ulisses
por vergonha: ele era, ao que ela entendera,socialista e no
admitiria sem escrnio ou revolta dar-se com ela sem desprezo. Por
que voc veio para o Rio? No existem escolas primrias em Campos? E
que eu no queria... no queria me casar, queria certo tipo de
liberdade queI no seria possvel sem escndalo, a comear pela minha
famlia, I tudo se sabe, meupai me manda mesada porque o dinheiro da
escola eu no poderia Quantos amantes voc j teve? interrompeu ele.
Ela silenciou. Depois disse:
26. No foram propriamente amantes porque eu no os amava. Nas
frias, como agora, voc no se sente muito sozinha? Antes de
mim,quero dizer. Alguma companhia eu tenho porque sempre posso
conversar um pouco com aempregada antiga que vem por horas arrumar
a casa e deixar pronto almoo e jantar. Etem uma cartomante que de
vez em quando eu visito. Ele no riu: E de amigas, voc no sente
falta? J que ele no rira, ela pde dizer: Mas a cartomante minha
amiga, ela nem me cobra consulta. E eu estavacansada de viver em
companhia de quatro irmos e de meu pai e de todos os conhecidose
conhecidas. Amiga s tive enquanto estudava. Agora prefiro ficar
sozinha. Escute, Lri, voc sabe muito bem como conheci voc e quero
de propsitorelembr-lo: voc estava esperando um txi e eu, depois de
olhar muito para voc, poisfisicamente voc me agradava, simplesmente
abordei voc com um comeo de conversaqualquer sobre a dificuldade de
encontrar txi quela hora, ofereci-lhe lev-la no meucarro para onde
voc quisesse, no fim de cinco minutos de rodagem convidei voc
paraum usque e voc sem nenhuma relutncia aceitou. Com os seus
amantes voc foiabordada na rua? Ela se ofendeu e respondeu dura e
sincera: Claro que no. Eu no quero falar neles. Eles no tinham
importncia senorelativa e passageira. E no pergunto sequer se voc
agora mesmo no tem uma amante.Ficaram calados. Ele talvez pensando
com cautela que era a sua primeira cena de cimes.Ela feliz,
pensando que essa era a sua primeira cena de cimes. Quantos amantes
voc teve? perguntou abruptamente. Ela fazendo um esforo sobre si
mesma disse rpido: Cinco. Ele engoliu a dor e mudou de assunto: Mas
nas suas viagens impossvel que voc nunca tenha estado
entrelaranjeiras, sol, e flores com abelhas. No s o frio escuro mas
tambm o resto? No, disse sombria. Essas coisas no so para mim. Sou
mulher de cidadegrande. Em primeiro lugar, Campos no o que se chama
de cidade grande. E depoisessas coisas, como smbolo, so para todo o
mundo. E porque voc no aprendeu at-las.
27. E isso se aprende? Laranjeiras, sol e abelhas nas flores?
Aprende-se quando j no se tem como guia forte a natureza de si
prprio.Lri, Lri, oua: pode-se aprender tudo, inclusive a amar! E o
mais estranho, Lri, pode-seaprender a ter alegria! Diga o que voc
quer que eu aprenda, disse ela com inesperada ironia. OCntico dos
Cnticos? Talvez, por que no? respondera ele mais srio. Voc diz isso
porque est pronto. Pronto em todos os sentidos eu nunca estarei,
Lri, eu no me engano. Eles silenciaram, Ulisses pediu mais uma dose
de usque. Por que, perguntou ele, voc me d a impresso de que
voluntariamente seseparou das pessoas? Um dia digo talvez a voc, se
tiver a coragem de falar muito. Era raro ele se mostrar claramente
mais srio. Lri reconhecia que ele tinhaconcentrao, intensidade,
delicadeza e discrio, embora tudo fosse quase sempreencapado por um
tom leve para no mostrar emoo. Sabe, Lri, disse ele agora sorrindo.
Depois que encontrei voc umas trs ouquatro vezes por Deus, talvez
tenha sido exatamente da primeira vez que vi voc! pensei que
poderia agir com voc com o mtodo de alguns artistas: concebendo
erealizando ao mesmo tempo. que de incio pensei ter encontrado uma
tela nua e branca,s faltando usar os pincis. Depois que descobri
que se a tela era nua era tambmenegrecida por fumaa densa, vinda de
algum fogo ruim, e que no seria fcil limp-la.No, conceber e
realizar o grande privilgio de alguns. Mas mesmo assim no
tenhodesistido. No, continuou ele falando como se ela no estivesse
ali, no mesmo combons sentimentos que se faz literatura: a vida
tambm no. Mas h algo que no bomsentimento. E uma delicadeza de vida
que inclusive exige a maior coragem para aceit-la. Lri ficou
quieta. Percebia que ele pensava alto e que ela no precisava
entender.Mas era to bom ouvir. Ela tambm quis se fazer ouvir e
disse com algumavoluptuosidade na voz, o que nada combinava com ela
e fez com que ele erguesse eminterrogao as sobrancelhas: Estive
lendo um dia um filsofo, sabe. Uma vez segui um conselho dele e
deucerto. Era mais ou menos isto: s quando esquecemos todos os
nossos conhecimentos que comeamos a saber. Ento pensei em voc que
no fala uma palavra de filosofiacomigo e quando estamos juntos,
pois , quando estamos juntos voc at parece um
28. sbio que no quer mais ser sbio e at, sabe, at se d ao luxo
de disfaradamente seangustiar como qualquer um de ns. Ulisses
estava atento, imvel. Lri continuou: Parece to fcil primeira vista
seguir conselhos de algum. Seus conselhos,por exemplo. J agora ela
falava srio: Seus conselhos. Mas existe um grande, o maior obstculo
para eu ir adiante:eu mesma. Tenho sido a maior dificuldade no meu
caminho. E com enorme esforo queconsigo me sobrepor a mim mesma.
Ela jamais falara tantas palavras em seguida. Por isso queria
evitar o principal.De repente porm notou que se no dissesse o
final, nada teria dito, e falou: Sou um monte intransponvel no meu
prprio caminho. Mas s vezes por umapalavra tua ou por uma palavra
lida, de repente tudo se esclarece. Sim, tudo se esclarecia e ela
surgia de dentro de si mesma quase comesplendor. Sim, disse
Ulisses. Mas voc se engana. Eu no dou conselhos a voc.
Eusimplesmente eu eu acho que o que eu fao mesmo esperar. Esperar
talvez quevoc mesma se aconselhe, no sei, Lri, juro que no sei, s
vezes me parece que estouperdendo tempo, s vezes me parece que pelo
contrrio, no h modo mais perfeito,embora inquieto, de usar o tempo:
o de te esperar. Voc sabe rezar? O qu? perguntou ela em
sobressalto. No rezar o Padre-Nosso, mas pedir a si mesma, pedir o
mximo a si mesma? No sei se sei, nunca tentei. Isto um conselho?
perguntou com ironia. Ele se perturbou: Acho que foi. Esquea o que
eu disse. Mas ela no esqueceu. Lavava o rosto devagar, penteava-se
devagar, j de camisola para dormir.Adiava, adiava. Escovou mais uma
vez os dentes. Sua testa estava franzida, sua almatrmula. Ela sabia
que ia tentar rezar e assustava-se. Como se o que fosse pedir a
simesma e ao Deus precisasse de muito cuidado: porque o que
pedisse, nisso seriaatendida. Foi geladeira, bebeu um copo de gua:
agia como se tivesse sido hipnotizadapor Ulisses. E ainda um nfimo
movimento de revolta contra o hipnotismo a que pareciater sido
sujeita fazia-a adiar o que viesse. Pedir? Como que se pede? E o
que se pede? Pede-se vida?
29. Pede-se vida. Mas j no se est tendo vida? Existe uma mais
real. O que real? E ela no sabia como responder. s cegas teria que
pedir. Mas ela queria que,se fosse s cegas, pelo menos entendesse o
que pedisse. Ela sabia que no devia pediro impossvel: a resposta no
se pede. A grande resposta no nos era dada. perigosomexer com a
grande resposta. Ela preferia pedir humilde, e no sua altura que
eraenorme: Lri sentia que era um enorme ser humano. E que devia
tomar cuidado. Ou nodevia? A vida inteira tomara cuidado em no ser
grande dentro de si para no ter dor. No, no devia pedir mais vida.
Por enquanto era perigoso. Ajoelhou-se trmulajunto da cama pois era
assim que se rezava e disse baixo, severo, triste, gaguejando
suaprece com um pouco de pudor: alivia a minha alma, faze com que
eu sinta que Tua moest dada minha, faze com que eu sinta que a
morte no existe porque na verdade jestamos na eternidade, faze com
que eu sinta que amar no morrer, que a entrega de simesmo no
significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria modesta e
diria, fazecom que eu no Te indague demais, porque a resposta seria
to misteriosa quanto apergunta, faze com que me lembre de que tambm
no h explicao porque um filhoquer o beijo de sua me e no entanto
ele quer e no entanto o beijo perfeito, faze comque eu receba o
mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensvel eu fui
criadae eu mesma tambm incompreensvel, ento que h uma conexo entre
esse mistriodo mundo e o nosso, mas essa conexo no clara para ns
enquanto quisermosentend-la, abenoa-me para que eu viva com alegria
o po que eu como, o sono quedurmo, faze com que eu tenha caridade
por mim mesma pois seno no poderei sentirque Deus me amou, faze com
que eu perca o pudor de desejar que na hora de minhamorte haja uma
mo humana amada para apertar a minha, amm. No era toa que ela
entendia os que buscavam caminho. Como buscavaarduamente o seu! E
como hoje buscava com sofreguido e aspereza o seu melhor modode
ser, o seu atalho, j que no ousava mais falar em caminho.
Agarrava-se ferozmente procura de um modo de andar, de um passo
certo. Mas o atalho com sombrasrefrescantes e reflexo de luz entre
as rvores, o atalho onde ela fosse finalmente ela, issos em certo
momento indeterminado da prece ela sentira. Mas tambm sabia de
umacoisa: quando estivesse mais pronta, passaria de si para os
outros, o seu caminho era osoutros. Quando pudesse sentir
plenamente o outro estaria salvo e pensaria: eis o meu
30. porto de chegada. Mas antes precisava tocar em si prpria,
antes precisava tocar no mundo. Da vez seguinte em que se
encontraram no terrao do bar, uma semana depois,Ulisses estava com
o seu ar moroso e desinteressante. Mas Lri j o conhecia: este
arvinha de que ele tranqilamente treinava instante por instante um
modo de abrir caminho.Se saa desse ar longnquo era para olh-la com
um vago desejo que no parecia quererse tornar mais forte. Lri
manteve-se em silncio, deixando que ele bebesse em silncio, sem
olh-lo.Foi pois com um pequeno susto que o ouviu dirigir-se a ela,
e no saberia h quantotempo ele a contemplara para dizer-lhe: Voc to
antiga, Lri, disse ele e para surpresa dela havia ternura na
suavoz. Voc to antiga, minha flor, que eu deveria lhe dar a beber
vinho numa nfora,disse j sem ternura e chamara-a de "minha flor"
como ela o ouvira chamar a secretriadele, da vez em que a haviam
encontrado na rua. Era um modo disfarado de uma falsacamaradagem,
assim como Lri agia em relao a ele com certa secura. Mas
haviatenacidade em Ulisses, havia tenacidade em Lri. Ulisses agora
olhava-a curioso: Lri, voc nem ao menos consegue sentir o que h de
profunda e arriscadaaventura no que ns dois tentamos? Lri, Lri! Ns
estamos tentando a alegria! Voc aomenos sente isso? E sente como
nos arriscamos no perigo? Voc sente que h maissegurana na dor
morna? Ah Lri, Lri, voc no consegue recuperar, mesmo vagamente,na
lembrana da carne, o prazer que pelo menos no bero voc deve ter
sentido porestar? Por ser? Ou pelo menos outra vez na vida, no
importa quando, nem por qu? Lri no respondeu, sabia que ele
adivinhava que a resposta era negativa. Voc prefere a dor? Tambm a
isso ela no respondeu, sabia que ele adivinhava que a resposta
seriade novo: no. O que ? Para aprender a alegria voc precisa de
todas as garantias? Ela ficou em silncio, porque o tom de Ulisses
mudara e em vez de ardente setornara sardnico e era para feri-la.
Ele reclinou-se na cadeira um pouco cansado e disse: Voc das que
precisam de garantia. Quer saber como eu sou para meaceitar? Vou me
fazer conhecer melhor por voc, disse com ironia. Olhe, tenho uma
almamuito prolixa e uso poucas palavras. Sou irritvel e firo
facilmente. Tambm sou muitocalmo e perdo logo. No esqueo nunca. Mas
h poucas coisas de que eu me lembre.
31. Sou paciente mas profundamente colrico, como a maioria dos
pacientes. As pessoasnunca me irritam mesmo, certamente porque eu
as perdo de antemo. Gosto muito daspessoas por egosmo: que elas se
parecem no fundo comigo. Nunca esqueo umaofensa, o que uma verdade,
mas como pode ser verdade, se as ofensas saem de minhacabea como se
nunca nela tivessem entrado? Lri comeava a achar que Ulisses
zombava dela. E apertou os lbios em clera.S que no podia se impedir
de querer ouvi-lo, sua curiosidade crescia medida que,mesmo sabendo
que ele brincava, tambm falava a verdade. Tenho uma paz profunda,
continuou ele, somente porque ela profunda e nopode ser sequer
atingida por mim mesmo. Se fosse alcanvel por mim, eu no teria
umminuto de paz. Quanto minha paz superficial, ela uma aluso
verdadeira paz. Outracoisa que esqueci que h outra aluso em mim a
do mundo grande e aberto. Souprofessor de Filosofia porque o que eu
mais estudei e no fundo gosto de me ouvirfalando sobre o que me
interessa. Tenho um senso didtico pronunciado que faz com quemeus
alunos se apaixonem pela matria e me procurem fora das aulas. Este
meu sensodidtico, que uma vontade de transmitir, eu tambm tenho em
relao a voc, Lri, sebem que voc seja a pior de meus alunos. Bom,
apesar de meu ar duro, que alis vemtambm do fato de meu nariz ser
to reto, apesar de meu ar duro, sou cheio de muitoamor e isso o que
certamente me d uma grandeza, essa grandeza que voc percebe ede que
tem medo. Como se de sbito tivesse notado que falara srio, parou e
riu para desfazer tudoo que dissera: Meu amor pelo mundo assim: eu
perdo as pessoas terem um nariz malfeito ou terem lbios finos
demais e serem feias todo erro dos outros e nos outros uma
oportunidade para mim de amar. Veja, no permito que ningum mande em
mim, eno entanto no me incomodo por exemplo de simplesmente seguir
o programa traado nafaculdade para o ensino de cada classe. Ulisses
finalmente notou a clera muda de Lri. Ento disse simples e sincero:
Bem sei que estava brincando, mas no menti nenhuma vez, tudo o que
eudisse verdade. E se me confessei, no importa, sobretudo se foi a
voc. Alis eu meconfessaria tambm a outros, sem nenhum perigo:
ningum pode fazer uso do que osoutros so, nem mesmo uso mental, por
isso, esse tipo de confisso no jamaisperigoso. Talvez agora voc
ainda me desconhea mais. O melhor modo de despistar dizer a
verdade, embora eu no tenha tentado nenhuma vez despistar voc, Lri,
disse
32. ele. Com alguma dor ento Lri percebeu que Ulisses, apesar
de dizer o contrrio, noqueria se dar a ela. E ela pagaria com a
mesma moeda. Talvez antes de ele falar, elativesse a inteno de um
dia dar-se, pois sabia que teria de dar a algum o que ela era,seno
o que faria de si? Como morrer antes de dar-se, mesmo em silncio?
Porque nodar-se teria enfim uma testemunha de si prpria. E porque
Ulisses tambm teria pensadona morte, ele disse: Antes de morrer se
vive, Lri. E uma naturalidade morrer, transformar-se,transmutar-se.
Nunca se inventou nada alm de morrer. Como nunca se inventou ummodo
diferente de amor de corpo que, no entanto, estranho e cego e no
entanto cadapessoa, sem saber da outra, reinventa a cpia. Morrer
deve ser um gozo natural. Depoisde morrer no se vai ao paraso,
morrer que o paraso. Ficaram em silncio muito tempo, um silncio que
no pesava. At que ele, comose quisesse lhe dar alguma coisa, disse:
Olhe para esse pardal, Lri mandou ele no pra de ciscar o cho
queaparentemente est vazio mas com certeza seus olhos vem a comida.
Obediente, ela olhou. E de sbito eis que o pardal alou vo, e na
surpresa Lriesqueceu-se de si prpria e disse como uma criana para
Ulisses: to bonito que voa! Falara com a inocncia que usava nas
aulas com as crianas, quando no temiaser julgada. Inquieta ento
olhou rpido para o lado de Ulisses. Ele a olhava. Com umsusto Lri
notou: era um olhar... de amor? Uma semana depois Lri ainda pensava
nesse ltimo encontro. No vira maisUlisses, nem ele lhe telefonara.
H uma semana que ela bordava uma toalha de mesa, ecom as mos
ocupadas e destras conseguia passar os longos dias das frias
escolares.Bordava, bordava. s vezes, ao cair da noite, ela se
enfeitava demoradamente e ia aocinema. Mas sentia uma pressa por
dentro, sentia pressa: havia alguma coisa que elaprecisava saber e
experimentar, e no estava sabendo e nunca soubera. E o tempo
dealgum modo estava ficando curto, no demorava que voltassem a
funcionar as escolas.Temia que Ulisses se cansasse daquela sua
resistncia paquidrmica em deixar o mundoentrar nela, e desistisse.
E o desespero a tomava. Sabia que ainda no estava prontapara dar-se
a ele nem a ningum, e nesse nterim talvez ele a largasse. O
desesperonuma dessas tardes ensolaradas cresceu. De repente
deixou-se deitar na cama debruos, com o rosto quase enterrado no
travesseiro: a dor voltara.
33. A dor voltara quase fisicamente, e ela pensou em rezar. Mas
logo descobriu queno queria falar com o Deus. Talvez nunca mais.
Lembrou-se de que uma vez, de friasnuma fazenda, deitara-se de
bruos numa clareira do matagal, encostando o peito naterra, os
membros na terra, s o rosto virado para o cho era protegido por um
dos braosdobrados. A essa lembrana, que visualizou de novo, pensou
que de agora em diante eras isso o que ela queria do Deus: encostar
o peito nele e no dizer uma palavra. Mas seisso era possvel, s
seria depois de morta. Enquanto estivesse viva teria que rezar, o
queno queria mais, ou ento falar com os humanos que respondiam e
representavam talvezDeus. Ulisses sobretudo. Embora, por deformao
profissional, Ulisses ensinasse demais. No tinha ardoutorai,
parecia mais com um estudante que fosse mais velho, e que suas
palavras novinham de livros e sim de uma vida que ela adivinhava
plena. O que no impedia que elefosse sem querer um pouco pedante.
Irritava-a como ele queria parecer... o qu?Superior? Ulisses, o
sbio Ulisses, algum dia ia cair como uma esttua de seu pedestal.Lri
sabia que pensava tudo isso por raiva, de dor, com o rosto
enterrado no travesseiro. No sabia mais de nada. E apesar de se
sentir agora muda em relao ao Deus,percebia em si a vontade intensa
quase pungente de se lamentar, de acusar, sobretudode reivindicar.
Parecia-lhe que j fora to experimentada que agora lhe deveria
chegar,dentro da lgica romntica dos humanos, a hora de receber a
paz. J nem ousava pensarem alegria, que ela no sabia propriamente
como era, mas em paz. O que seria umaalegria? Ainda teria
capacidade de reconhec-la, se viesse? Ou j era tarde demais paraque
soubesse distingui-la. Pois ela adivinhava que a alegria viria
talvez como um somsimples quase aqum do nvel de audio. Ento ela,
que nunca mais falara com o Deuscsmico, disse-Lhe em sbita clera:
eu nada Vos dou porque nada me destes. Porque ela parecia saber que
existia algo o qu que os humanos davampara o Deus como? E ela nem
mesmo queria mais saber o que era. S que sentiu queo Deus tambm
precisava dos humanos e ento negou-se a Ele. Seria talvez possvel
que a um certo ponto da vida o mundo se tornasse bvio?Tinha medo de
perder a vida da surpresa contnua se chegasse a esse ponto, e
noentanto ele se tornaria uma fonte de paz. Ou no seria paz o que
ela queria? Sem poder, no entanto, impedir de quase jusufruir o que
imaginava que acontecia depois de morrer como encostara o corpo
naterra, encostar-se toda at ser absorvida pelo Deus. J quis estar
morta, no porque no
34. quisesse a vida a vida que ainda no lhe dera o seu segredo
mas porque ansiavapor essa integrao sem palavras. Mas a palavra de
Deus era de tal mudez completa queaquele silncio era Ele prprio.
Tambm no queria mais entrar numa igreja, nem quefosse apenas para
respirar a penumbra fresca e recolhida. Ela agora estava s para a
dor que tivesse que vir. Sabia que, se estava s epara a dor que
viesse mas isso no vinha da humildade de uma aceitao ou de
umacoragem. Mas como um desafio ao Deus com que agora, por desiluso
e solido, elaparecia querer medir foras. Tu me criaste atravs de um
pai e de uma me e depois melargaste no deserto. Em vingana
estranha, pois era contra si mesma, contra uma crianado Deus, era
no deserto ento que ela ficaria, e sem pedir gua para beber.
Quemsofreria mais com isso era ela mesma, mas o principal que com o
seu sofrimentovoluntrio ofendia o Deus e ento pouco lhe importava a
dor. Mas seu Deus no lhe servia: fora feito sua prpria imagem,
parecia-se demaiscom ela, tinha alguma ansiedade nas solues s que
Nele era ansiedade criadora a mesma severidade que era dela. E
quando Ele era bom, o era igual a ela se tivessebondade. O
verdadeiro Deus, no feito sua imagem e semelhana, era por
issototalmente incompreendido por ela, e ela no sabia se Ele
poderia compreend-la. O seuDeus at agora fora terrestre, e no era
mais. De agora em diante, se quisesse rezar,seria como rezar s
cegas ao cosmos e ao Nada. E sobretudo no podia mais pedir aoDeus.
Descobriu que at agora rezara para um eu-mesmo, s que
poderoso,engrandecido e onipotente, chamando-o de o Deus e assim
como uma criana via o paicomo a figura de um rei. Depois Lri
despertou um pouco para uma realidade mais objetiva em torno de
si,mudou de posio de cabea sobre o brao dobrado. Pensou que h
minutos lutava como Deus, cansada, exausta, murmurou sem timbre de
voz: no entendo nada. Era umaverdade to indubitvel que tanto seu
corpo como sua alma vergaram-se ligeiramente eassim ela repousou um
pouco. Naquele instante era apenas uma das mulheres do mundo,e no
um eu, e integrava-se como para uma marcha eterna e sem objetivo de
homens emulheres em peregrinao para o Nada. O que era um Nada era
exatamente o Tudo. Havia desmistificado uma das poucas grandezas de
que vivia. Sabia que por enquanto doa muito e que depois ainda
doeria mais pois sofreriaa falta dAquele que, mesmo se no
existisse, ela amava porque era uma clula dele. Etalvez viesse a se
salvar: porque a angstia era a incapacidade de enfim sentir a
dor.Pensou: eu nunca tive a minha dor. Por falta de grandeza,
sofrer suportavelmente tudo o
35. que nela havia a sofrer. Mas agora sozinha, amando um Deus
que no existia mais,talvez tocasse enfim na dor que era dela.
Angstia tambm era o medo de sentir enfim ador. J estava com saudade
do que fora: nem mesmo Igreja de Santa Luzia, queera o refgio no
calor entorpecente da cidade, ela iria mais. Lembrava-se da ltima
vezque entrara I e sentara-se na sombra lmpida entre santos.
Pensara ento: "Cristo foiCristo para os outros, mas quem? Quem fora
um Cristo para o Cristo?" Ele tivera que irdiretamente ao Deus. E
ela, sentada ento no banco da igreja, quisera tambm poder irdireto
Onipotncia, sem ser atravs da condio humana de Cristo que era tambm
asua e a dos outros. E, oh Deus, no querer ir a Ele atravs da
condio misericordiosa deCristo talvez no passasse de novo do medo
de amar. Levantou-se e tornou a bordar. Foi ento que o telefonou
tocou. Mesmo antes de atender ela sabia que devia serUlisses.
Depositou o bordado numa cadeira e deixou o telefone tocar um pouco
mais, noqueria mostrar avidez. Era ele, sim. E como se no se
tivesse passado uma semana, disse que estavana piscina do clube e
por que que ela no vinha encontr-lo, era s dizer na portaria queera
convidada dele. No era na piscina que ela queria v-lo, mas o medo
de perd-lo fezcom que ela aquiescesse, embora temendo o momento de
se verem quase nus. Uma hora e meia depois o tempo de comprar um
maio novo ela j estavade roupa mudada na cabine, e sem coragem de
sair. Envolveu-se no roupo e foiencontr-lo sentado borda da
piscina. Procurou disfarar a dura relutncia em ficarpraticamente
nua, afinal tirou o roupo, ela nem sequer o olhava. Sentaram-se sem
falar,ele bebia um gim-tnica. Muito tempo se passara ou talvez no
muito mas para ela o silncio estava setornando intolervel, enquanto
para disfarar, balanava os ps dentro da gua verde. Atque enfim ele
falou e sem rudeza disse: Veja aquela moa ali, por exemplo, a de
maio vermelho. Veja como anda comum orgulho natural de quem tem um
corpo. Voc, alm de esconder o que se chama alma,tem vergonha de ter
um corpo. Ela no respondeu, mas, atingida, tornou-se
imperceptivelmente mais rgida.Depois, como sentiu que ele no ia
dizer mais nada, pde aos poucos relaxar osmsculos. Pensou tanto
quanto lhe era possvel pensar estando de maio na frente dele
pensou: como que explicaria a ele, mesmo que quisesse, e no queria,
o longocaminho andado at chegar quele momento possvel em que suas
pernas se
36. balanavam dentro da piscina. E ele ainda achava pouco. Como
explicar que, do longe deonde de dentro de si ela vinha, j era uma
vitria estar semivivendo. Porque enfim, umavez quebrado o susto da
nudez diante dele, ela estava respirando de leve, jsemivivendo. A
um movimento seu, que era o de jogar os cabelos para trs, viu num
relance orosto dele, percebeu que ele a olhava e que a desejava.
Sentiu ento um pudor que jdiferia do que ele chamara de pudor de
ter um corpo. Era um pudor de quem tambmdeseja, assim como Lri
desejara colar o peito e os membros no Deus. Ao perceber muitoclaro
o prprio desejo, tornou-se arisca e dura, e ficaram em silncio o
resto da tarde. Elafoi se tranqilizando e perdeu o medo maior que
tinha: o de perd-lo por se atardar tanto. Surpreendeu seu prprio
pensamento: ento ela planejava de fato um dia sersua? Pois
enganava-se sempre pensando que se tratava de uma espcie estranha
deamizade e que assim continuaria sempre, at murchar como uma fruta
que no colhidaa tempo e cai apodrecida da rvore para o cho. Os
gritos de alegria e sustos das crianas j no se ouviam mais: era bem
maistarde e o sol tinha enfraquecido, a piscina vazia. H quanto
tempo estavam em silncio?A solido dos dois s era entrecortada pela
chegada silenciosa e pressurosa do garomque vinha imediatamente
encher o copo de Ulisses mal esse esvaziava-se. O silncio do
entardecer. Ela olhou para Ulisses, e este olhava de
olhossemicerrados para o longe. Ela olhou-o. E quela hora vinha
dele uma irradiaoluminosa. Depois Lri percebeu que esse fulgor eram
os reflexos do sol antes dedefinitivamente morrer. Olhou para as
mesinhas com pra-sol dispostas em torno dapiscina: pareciam
sobrepairar na homogeneidade do cosmo. Tudo era infinito, nada
tinhacomeo nem fim: assim era a eternidade csmica. Da a um instante
a viso da realidadese desfazia, fora apenas um timo de segundo, a
homogeneidade desaparecia e os olhosse perdiam numa multiplicidade
de tonalidades ainda surpreendentes: viso aguda einstantnea
seguira-se algo mais reconhecvel na terra. Quanto a Ulisses, nessas
novascores que enfim Lri tinha a capacidade de ver, quanto a
Ulisses estava agora a umtempo slido e transparente, o que o
enriquecia de ressonncias e esplendor. Podia-secham-lo de um homem
belo. Pela primeira vez ento olhou-o sob o ponto de vista de beleza
estritamentemasculina, e viu que havia nele uma calma virilidade.
Sob a nova luz, Ulisses estava irreale no entanto verossmil. Irreal
pela sua espcie de beleza, que agora flutuava com asflutuaes ltimas
do sol. Verossmil porque bastaria estender a mo e, no que esta
o
37. tocasse, encontraria a resistncia do que slido. Lri teve
receio de que lhe poderiaacontecer a ela, j que era uma adoradora
dos homens. Ulisses voltou o rosto para ela e descobriu que era
examinado. No entanto, descoberta, foi Lri que enrubesceu,
desviando os olhos. No tenha medo, disse ele sorrindo, no tenha
medo de meu silncio... Souum louco mas guiado dentro de mim por uma
espcie de grande sbio... Ele no a entendera, pois: pensara que ela
estava perturbada pelo silncio. Lrino respondeu. J estava habituada
ao tom didtico de Ulisses que na verdade no erapedante.
Relanceou-o: ele estava to calmo como se fosse ela apenas que
sofresse e elenunca tivesse conhecido a dor de no ter futuro seno o
de continuar existindo. Ele no aentendera, e isso alegrou-a. Pois
Lri descobriu o que estava acontecendo com enormedelicadeza: aquilo
que ela julgara ser apenas o seu olhar direto para Ulisses e para
arealidade dele fora o primeiro passo assustador para alguma coisa.
Ou ele percebera?Percebera, sentiu ela, mas sem saber do que se
tratava, sentira que ela avanara e entoquisera assegur-la com a
segurana de retomar o silncio. Pois ela estava como na sua primeira
infncia e sem medo de que a angstiasobreviesse: estava em
encantamento pelas cores orientais do Sol que desenhava
figurasgticas nas sombras. Pois que o Deus foi nascido da Natureza
e por sua vez Ele interferiunela. As ltimas claridades ondulavam as
guas paradas e verdes da piscina.Descobrindo o sublime no trivial,
o invisvel sob o tangvel ela prpria toda desarmadacomo se tivesse
naquele momento sabido que sua capacidade de descobrir os
segredosda vida natural ainda estivesse intacta. E desarmada tambm
pela leve angstia que lheveio ao sentir que podia descobrir outros
segredos, talvez um mortal. Mas sabia que eraambiciosa: desprezaria
o sucesso fcil e quereria, mesmo com medo, subir cada vez maisalto
ou descer cada vez mais baixo. Ulisses falou: Bem tranqila, Lri, v
bem tranqila. Mas cuidado. melhor no falar, nome dizer. H um grande
silncio dentro de mim. E esse silncio tem sido a fonte deminhas
palavras. E do silncio tem vindo o que mais precioso que tudo: o
prpriosilncio. Por que que voc olha to demoradamente cada pessoa?
Ela corou: No sabia que voc estava me observando. No por nada que
olho: queeu gosto de ver as pessoas sendo. Ento estranhou-se a si
prpria e isso parecia lev-la a uma vertigem. que ela
38. prpria, por estranhar-se, estava sendo. Mesmo arriscando
que Ulisses no percebesse,disse-lhe bem baixo: Estou sendo... Como?
perguntou ele quele sussurro de voz de Lri. Nada, no importa.
Importa sim. Quer fazer o favor de repetir? Ela se tornou mais
humilde, porque j perdera o estranho e encantado momentoem que
estivera sendo: Eu disse para voc Ulisses, estou sendo. Ele
examinou-a e por um momento estranhou-a, aquele rosto familiar de
mulher.Ele se estranhou, e entendeu Lri: ele estava sendo. Ficaram
calados como se os dois pela primeira vez se tivessem
encontrado.Estavam sendo. Eu tambm, disse baixo Ulisses. Ambos
sabiam que esse era um grande passo dado na aprendizagem. E nohavia
perigo de gastar este sentimento com medo de perd-lo, porque ser
era infinito, deum infinito de ondas do mar. Eu estou sendo, dizia
a rvore do jardim. Eu estou sendo,disse o garom que se aproximou.
Eu estou sendo, disse a gua verde na piscina. Euestou sendo, disse
o mar azul do Mediterrneo. Eu estou sendo, disse o nosso mar verdee
traioeiro. Eu estou sendo, disse a