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Thiago Alves Valente Monteiro Lobato Um estudo de A chave do tamanho Thiago Alves Valente Monteiro Lobato: um estudo de A chave do tamanho

Monteiro Lobato

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Embora a produção infanto-juvenil de Monteiro Lobato (1882-1948) venha sendo celebrada pelo público e pela crítica especializada desde seu lançamento entre as décadas de 20 e 40 do século passado, alguns títulos, con- siderados individualmente, não receberam toda a atenção que mereceriam. É o caso de A chave do tamanho , título lançado em 1942, obra de maturidade do autor e um dos últimos volumes da saga do Picapau Amarelo.Essa narrativa, que em sua primeira edição recebeu o subtítulo “A maior reinação do mundo”, foi lembrada por muitos daqueles que se propuseram comentar ou estudar esse título lobatiano. No entanto, de um modo geral, as considerações sobre a obra se concentraram na discussão de questões ideológicas, que a lançaram num clima de acirrada polêmica, sem que houvesse por contrapartida um estudo mais vertical da narrativa; ou seja, sem que fosse, de fato, analisada sua composição em diferentes níveis e nas relações que estabelecem entre si.

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  • Thiago Alves Valente

    Monteiro LobatoUm estudo de A chave do tamanho

    Thiago Alves Valente

    Monteiro Lobato: um

    estudo de A chave do tamanho

    Neste livro, Thiago Alves Valente faz um percurso panor-mico e histrico da fortuna crtica de A chave do tamanho, de Monteiro Lobato, configurando um quadro por cujas lacunas pretende caminhar. Ao organizar os vrios estudos crticos por eixos temticos (ideologia, pensamento filosfico, cientificismo, questes estticas), o autor constata que h a necessidade de empreender uma anlise textual em que os elementos estrutu-rais da narrativa possam ser compreendidos sem sua funcionali-dade na construo da obra.

    Com esse intuito, Valente realiza um confronto entre as modificaes feitas por Monteiro Lobato nas vrias edies do livro para, em seguida, apresentar com rara originalidade sua cr-tica desse texto lobatiano, comprovando, por meio de elementos que estruturam a narrativa, de que modo os temas centrais da obra de Lobato esto articulados na criao literria.

    9 7 8 8 5 3 9 3 0 1 9 9 7

    ISBN 978-85-393-0199-7

    Embora a produo infanto-juvenil de Monteiro Lobato (1882-1948) venha sendo celebrada pelo pblico e pela cr-tica especializada desde seu lanamento entre as dcadas de 20 e 40 do sculo passado, alguns ttulos, considerados indi-vidualmente, no receberam toda a aten-o que mereceriam. o caso de A chave do tamanho, ttulo lanado em 1942, obra de maturidade do autor e um dos ltimos volumes da saga do Picapau Amarelo.

    Essa narrativa, que em sua primeira edio recebeu o subttulo A maior reinao do mundo, foi lembrada por muitos daqueles que se propuseram comentar ou estudar esse ttulo lobatiano. No entanto, de um modo geral, as consi-deraes sobre a obra se concentraram na discusso de questes ideolgicas, que a lanaram num clima de acirrada polmi-ca, sem que houvesse por contrapartida um estudo mais vertical da narrativa; ou seja, sem que fosse, de fato, analisada sua composio em diferentes nveis e nas relaes que estabelecem entre si.

    Este livro que ora nos apresenta Thiago Alves Valente vem cumprir um papel fundamental no sentido de situar em um novo patamar a produo crtica sobre a obra. O pesquisador buscou superar as abordagens que deixaram de lado ou em uma posio muito secun-dria a dimenso esttica da obra do escritor, para, de modo decisivo, trazer esse questionamento ao primeiro plano, direcionando os olhos do leitor contem-porneo para aspectos at ento pouco explorados no exame da obra.

    O alicerce para seu trabalho de an-lise consistiu num levantamento exaustivo da fortuna crtica de A chave do tamanho,

    comentada ao longo da primeira parte deste livro A tradio crtica segun-do uma perspectiva bastante exigente. Ao elencar e comentar estudiosos da obra de diferentes pocas e origens e aglutin-los segundo tendncias que os aproxi-mam, o autor permite aos pesquisadores das novas geraes no apenas expandir a viso sobre a obra em questo, mas delinear com maior clareza o projeto literrio lobatiano como um todo.

    Sobre a segunda parte deste livro, Uma leitura de A chave do tamanho, prefervel quase nada adiantar, para no eliminar as boas surpresas que o texto propicia, na medida em que Valente realiza, efetivamente, o que o ttulo dessa unidade do livro prope uma leitura, na melhor acepo do termo. Ao propor mltiplas camadas de significao para a obra, fun-damentadas numa anlise minuciosa de sua estrutura profunda, de sua linguagem, das relaes forma/contedo, atribuindo-lhes crescente unidade, o pesquisador faz o que se espera de um bom estudo literrio e que, nem sempre, outros lei-tores, apressados e apegados apenas epiderme narrativa, acabam por realizar. Temos aqui o encontro feliz de um texto brilhante e um leitor sua altura.

    Joo Lus CeCCantini

    Thiago Alves Valente doutorado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Assis, rea de Literatura e vida social, e atua como professor- -adjunto no curso de Letras da da Universidade Estadual do Norte do Paran (Uenp), campus de Cornlio Procpio.

  • MONTEIRO LOBATO

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  • FUNDAO EDITORA DA UNESP

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  • THIAGO ALVES VALENTE

    MONTEIRO LOBATO UM ESTUDO DE

    A CHAVE DO TAMANHO

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  • Editora afi liada:

    CIP BRASIL. Catalogao na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    V249m

    Valente, Thiago Alves Monteiro Lobato: um estudo de A chave do tamanho / Thiago Alves Valente. So Paulo: Editora Unesp, 2011.

    Inclui bibliografi a ISBN 978-85-393-0199-7

    1. Lobato, Monteiro, 1882-1948. A chave do tamanho. 2. Lobato, Monteiro, 1882-1948 Crtica e interpretao. 3. Literatura infanto-juvenil brasileira Histria e crtica I. Ttulo.

    11-7806 CDD: 869.98CDU: 821.134.3(81)-8

    Este livro publicado pelo projeto Edio de Textos de Docentes ePs-Graduados da UNESP Pr-Reitoria de Ps-Graduao

    da UNESP (PROPG) / Fundao Editora da UNESP (FEU)

    2011 Editora UNESP

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  • SUMRIO

    Prefcio 7Introduo 11

    1 A tradio crtica 152 Uma leitura para A chave do tamanho 63

    Consideraes finais 117Referncias bibliogrficas 123

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  • PREFCIO

    Embora a produo infanto-juvenil de Monteiro Lo-bato (1882-1948) venha sendo celebrada pelo pblico e pela crtica especializada desde seu lanamento entre as dcadas de 20 e 40 do sculo passado, alguns ttulos, con-siderados individualmente, no receberam toda a ateno que mereceriam. o caso de A chave do tamanho, ttulo lanado em 1942, obra de maturidade do autor e um dos ltimos volumes da saga do Picapau Amarelo.

    Essa narrativa, que em sua primeira edio recebeu o subttulo A maior reinao do mundo, foi lembrada por muitos daqueles que se propuseram comentar ou estudar esse ttulo lobatiano. No entanto, de um modo geral, as consideraes sobre a obra se concentraram na discusso de questes ideolgicas, que a lanaram num clima de acirrada polmica, sem que houvesse por contrapartida um estudo mais vertical da narrativa; ou seja, sem que fosse, de fato, analisada sua composio em diferentes nveis e nas relaes que estabelecem entre si.

    Escrita e publicada em pleno desenrolar da Segunda Guerra Mundial, A chave do tamanho foi objeto, sobretu-do, de abordagens temticas, muitas vezes marcadas pela

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    dicotomizao poltica tpica do ps-guerra ou por discus-ses que puseram na berlinda a postura transgressora e relativista da obra na formao das crianas e jovens, em especial pelo fato de tratar de questes darwinianas clssicas, como evoluo e adaptao. A celeuma criada pelo Padre Sales Brasil cerca de uma dcada aps a morte de Lobato, com a publicao do livro A literatura infantil de Monteiro Lobato ou Comunismo para crianas (1959), tornou-se no-tria e exemplar no mau sentido do modo ligeiro com que muitas vezes foi lido esse texto to original de Lobato.

    O trabalho que ora nos apresenta Thiago Alves Va-lente, e que corresponde em linhas gerais sua disserta-o de mestrado, realizada e defendida junto ao Curso de Ps-graduao em Letras da Faculdade de Cincias e Letras (FCL) da Unesp, campus de Assis, vem cumprir um papel fundamental no sentido de situar em um novo patamar a produo crtica sobre a obra. O pesquisador buscou superar as abordagens que deixaram de lado ou em uma posio muito secundria a dimenso esttica da obra do escritor, para, de modo decisivo, trazer esse questionamento ao primeiro plano, direcionando os olhos do leitor contemporneo para aspectos at ento pouco explorados no exame da obra.

    O alicerce para seu trabalho de anlise consistiu num levantamento exaustivo da fortuna crtica de A chave do tamanho, comentada ao longo da primeira parte deste livro A tradio crtica segundo uma perspectiva bastante exigente. Ao elencar e comentar estudiosos da obra de diferentes pocas e origens e aglutin-los segun-do tendncias que os aproximam, o autor permite aos pesquisadores das novas geraes no apenas expandir a viso sobre a obra em questo, mas delinear com maior clareza o projeto literrio lobatiano como um todo.

    Nessa primeira parte do estudo, merece destaque, ainda, o trabalho substantivo de cotejo entre as vrias edies da

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    narrativa em pauta, em particular entre a primeira edio e a de 1947, das Obras completas, o que desnuda o mo-dus operandi de Lobato, modelando e remodelando seu texto no calor da hora, seja durante a Segunda Grande Guerra, seja no perodo logo aps o trmino do embate. Revela-se sua plena sintonia com o dinamismo do processo histrico em curso e sua compreenso da necessidade de reelaborao contnua de conceitos e julgamentos que o momento impunha.

    Sobre a segunda parte deste livro, Uma leitura de A chave do tamanho, prefervel quase nada adiantar, para no eliminar as boas surpresas que o texto propicia, na medida em que Valente realiza, efetivamente, o que o ttulo dessa unidade do livro prope uma leitura, na melhor acepo do termo. Ao propor mltiplas camadas de significao para a obra, fundamentadas numa anlise minuciosa de sua estrutura profunda, de sua linguagem, das relaes forma/contedo, atribuindo-lhes crescente unidade, o pesquisador faz o que se espera de um bom estudo literrio e que, nem sempre, outros leitores, apres-sados e apegados apenas epiderme narrativa, acabam por realizar. Temos aqui o encontro feliz de um texto brilhante e um leitor sua altura.

    Joo Lus Ceccantini Professor de Literatura Brasileira da

    Faculdade de Cincias e Letras (FCL), Unesp, campus de Assis

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  • INTRODUO

    Avies sobrevoam a cidade em exerccio de guerra. Moas da classe mdia apressam-se, em uniformes bran-cos, para servir nao com o exerccio da enfermagem. Batalhes marcham nas datas cvicas: bravura, po de guerra, gasognio a cidade de So Paulo na dcada de 1940.

    Em 1942, no auge do conflito mundial, Lobato con-tava 60 anos de idade, com uma experincia de vida, no mnimo, invejvel. Escritor, jornalista, editor, empresrio: dentre as muitas qualificaes possveis, surge tambm aquela que o coloca entre os poucos escritores brasileiros em cujos textos literrios podem ser encontrados ecos da Segunda Guerra (Cytrynowicz, 2000). No caso da litera-tura infantil de Lobato, isso caracterstica relevante de uma de suas ltimas obras, A chave do tamanho (1942).

    Antes da carnificina causada pela chamada Grande Guerra (1914-1918), Lobato j voltara os olhos para outros conflitos, como a Guerra do Paraguai. Alm dos textos escritos para os leitores adultos, como Veteranos do Paraguai e Uruguaiana, ambos publicados em A onda verde (1921), os conflitos so abordados em livros infantis

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    como Histria do mundo para crianas (1933) e Geografia de Dona Benta (1935). Mas a guerra, sem distino de local e data, tambm aparece em histrias aparentemente sem compromisso com a realidade em O Saci (1921), por exemplo, Pedrinho discute com o personagem folclrico apontado no ttulo a estupidez das batalhas humanas.

    A Segunda Guerra Mundial, por sua vez, no iria ficar fora das histrias lobatianas. Em 1941 ela aparece em A reforma da natureza e, em 1942, ressurge com toda a fora em A chave do tamanho.

    interessante observar que essa preocupao huma-nstica de Lobato se manifesta marcadamente em livros destinados ao pblico infantil, ou seja, h neles um carter pedaggico, em sentido amplo, visando formao das novas geraes. Uma obra como A chave do tamanho se opunha frontalmente a discursos oficiais nos quais a guerra constantemente aparecia como momento de manifesta-o dos atos mais heroicos ou dos valores morais mais sublimes.

    O engajamento com a causa republicana levara a inte-lectualidade brasileira a ver na escola a possibilidade efetiva de mudanas sociais. A necessidade de legitimao da Repblica, bem como de sua ideologia, encontrou na ins-tituio escolar um meio eficaz de alcanar seus objetivos. Empenhada em construir a imagem de um pas em franca urbanizao e significativo desenvolvimento econmico, a elite poltica empreendeu reformas institucionais a fim de levar a instruo pblica a camadas mais amplas da populao. O livro para crianas fazia parte desse projeto, com o trabalho, o amor ptria e a dedicao famlia como temas recorrentes. As personagens eram crianas modelares cuja presena nos livros parece cumprir a funo de contagiar de iguais virtudes e sentimentos seus jovens leitores (Zilberman; Lajolo, 1999, p.33). Isso atendia a um projeto pedaggico calcado na reproduo passiva de

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    comportamentos, atitudes e valores que os textos poten-cialmente poderiam inculcar nos leitores.

    O aparecimento de A menina do Narizinho Arrebitado (1920) , sem dvida, um marco na histria da literatura infantil brasileira. O interesse de Lobato de escrever para crianas leva-o constituio de uma srie de histrias em que, se h tambm o carter pedaggico, seja com a abordagem de matrias escolares, seja com o tratamento de temas do momento, prevalece, contudo, o aspecto ldico, em que a fantasia encontra espao privilegiado.

    Mas com Narizinho Arrebitado, de 1921, que Lobato fixa o espao que estar presente em todas as narrativas, mesmo que seja apenas como ponto de partida para a histria: o Stio do Picapau Amarelo. Junto com o espao, o escritor fixa tambm um quadro de personagens: Dona Benta, Tia Nastcia, Narizinho, Pedrinho, Emlia e o Vis-conde de Sabugosa, alm dos animais falantes que faro parte das histrias o porco Rabic, o burro Conselheiro e o rinoceronte Quindim.

    A obra de Lobato se insurgia contra um modelo ufa-nista cultivado afoitamente pelos intelectuais brasileiros os valores que perpassam a obra infantil lobatiana ins-tauram o esprito crtico que levaria Emlia a ser objeto de polmica especialmente no meio pedaggico. A preo-cupao com o ensino levou o escritor a realizar obras como Aritmtica da Emlia e Emlia no pas da Gramtica. Porm, pedaggico em Lobato adquire outras dimen-ses no que diz respeito formao humana, uma vez que suas aventuras estaro sempre ligadas ao conhecimento, crtica, reformulao de conceitos.

    Como uma das obras mais maduras do escritor, A chave do tamanho encerra as caractersticas literrias j apon-tadas em toda a srie do Picapau Amarelo, tendo ainda a Segunda Guerra como elemento motivador para uma leitura mais instigante ao leitor mais atento.

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    O objetivo de resgatar a crtica e/ou os estudos que tm como objeto de anlise uma obra lobatiana, no caso, A chave do tamanho, apresenta-se como meio de verificar a abrangncia dos estudos realizados sobre essa obra, confi-gurando um quadro cujas lacunas podero ser preenchidas por novas pesquisas. Para isso, o texto est dividido em dois captulos: no primeiro, apresentam-se dados referentes a levantamento da fortuna crtica sobre A chave do tamanho, de 1942 a 2004; no segundo, prope-se uma leitura para compreenso da obra a partir de seus elementos textuais, sejam aqueles j analisados pela crtica, sejam aqueles ainda no abordados em trabalhos de maior envergadura.

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  • 1A TRADIO CRTICA

    Como uma das ltimas obras infantis de Lobato, A chave do tamanho encontra um campo de leitores j ha-bituado escrita lobatiana.

    Escritor consagrado, Lobato no deixaria de receber ateno cada vez que publicasse uma obra embora j reconhecido escritor de literatura infantil, continuaria a causar estranhamento e admirao aos seus contempor-neos. Em 1945, por exemplo, o colunista do Estado, Lo Vaz (1945, p.51), escreve um artigo intitulado A chave do tamanho em que, aps ressaltar a importncia do escritor na produo de livros para crianas no pas, apresenta A chave do tamanho, destacando aquilo que considera como ideias centrais da obra: lendo-o provvel que as crianas absorvam, sem o saber, uma sadia dose do mais precioso elixir filosfico e acrescenta bem capaz de lhes meter nas cabecinhas o mais precioso e raro dom com que pde jamais dotar-se uma criatura neste conturbado planeta: e vem a ser o senso da relatividade.

    O artigo de Vaz apresenta uma apreciao de leitura, elogiando A chave do tamanho no contexto da produ-o literria para crianas dos anos 1940, o que aponta

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    a especificidade do texto no conjunto dessa produo. O comentrio do colunista ainda traz um dos aspectos mais abordados posteriormente, seja por crticos, seja por pesquisadores: o contedo filosfico, a ideologia presente em A chave do tamanho.

    , porm, o comentrio de Edgar Cavalheiro que viria a estabelecer certa forma de pensar a obra uma histria de ensinamentos teis, de amargo pessimismo, apesar de apresentar uma grande aventura; histria ligada perda dos filhos homens ainda jovens, por parte do escritor; priso, situao tensa do Brasil e do mundo.

    Com efeito, as palavras de Cavalheiro (1956) em Mon-teiro Lobato: vida e obra foram retomadas por diversas vezes em trabalhos posteriores, servindo mesmo de ponto de partida para pesquisas cujo foco se lana sobre aspec-tos filosficos do texto em questo, ou sobre o momento existencial do escritor. importante notar que, sendo uma biografia escrita por algum prximo de Lobato, a obra de Cavalheiro retoma palavras do prprio escritor a questo da relatividade, por exemplo e estabelece uma forma de interpretar a produo lobatiana partindo de elementos biogrficos, e no de abordagens textuais.

    Na dcada de 1950, o espao da crtica sombreado pela obra do padre Sales Brasil (1959), A literatura infantil de Monteiro Lobato ou Comunismo para crianas, em que A chave do tamanho, como os demais livros de Lobato so duramente criticados por trazerem um iderio co-munista a chave seria a prpria literatura infantil, a fim de acessar a famlia brasileira e, ali, implantar ideias comunistas, pags, herticas.

    Apresentando-se em tom de denncia, a obra de Sales Brasil se prope a realizar uma anlise de toda a obra infantil lobatiana a partir de uma perspectiva religiosa. O tom de denncia seguido por um texto doutrinrio visando mostrar ao pblico os malefcios das histrias

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    de Lobato, destacando A chave do tamanho em que a di-minuio dos homens seria, por exemplo, a franca adoo do iderio comunista homens do mesmo tamanho. uma obra sem dvida interessante, especialmente pelos elemen-tos contextuais que oferece por meio de suas observaes, muitas das quais reveladoras de uma leitura superficial e desatenta: no exemplo dado, a respeito da igualdade do tamanho, importante lembrar que, mesmo pequeninos, os homens continuam com diferena de tamanho, propor-cional altura que tinham antes do apequenamento, o que mostra o tipo de anlise insustentvel empreendida pelo padre, talvez muito desatento a elementos que certamente no passaram despercebidos s crianas da poca.

    Aps a obra do padre Sales Brasil, nota-se um longo perodo de silncio, ao menos em relao A chave do tama-nho, nas dcadas de 1960 e 1970. Novas abordagens sobre A chave do tamanho e tambm sobre toda a produo de Lobato para crianas renovariam sua presena no cenrio nacional a partir dos anos 1980.

    De 1981 so os textos de Ana Maria Lisboa Mello (1995), intitulado A chave do tamanho: a instaurao de uma nova ordem, publicado novamente com o mesmo ttulo em 1995; e o de Antonio Carlos Scavone (1981), Reflexos do positivismo em A chave do tamanho; e Monteiro Lobato 1882-1948, de Ruth Rocha (1981).

    O texto de Mello ressalta a viso universalista de Lobato, que, no livro, aparece como a instaurao de uma nova ordem, inaugurada por Emlia ao abaixar a chave, ordem que se constitui como um dos aspectos principais da obra para a autora. Para sua anlise, Mello tambm parte do contexto vivenciado pelo autor, recuperando elementos como a relatividade e a nudez com vistas a confirmar sua tese de que em A chave do tamanho existe uma viso uni-versalista do homem. Embora no empreenda uma anlise mais pormenorizada em relao aos elementos narrativos,

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    merece destaque a abordagem textual, trazendo a obra luz das discusses a respeito da literatura infantil brasileira no comeo da dcada de 1980.

    Scavone, por sua vez, como o ttulo de seu texto j revela, apresenta o positivismo como caracterstica mar-cante de A chave do tamanho. A presena desse iderio pode ser constatada pela nfase na ideia de evoluo e na experincia cientfica, presentes, por exemplo, na insis-tncia do narrador de mensurar todas as coisas: o autor escreve que a ideologia positivista est presente tanto na estrutura da histria quanto no pensamento e ao dos personagens.

    Como uma anlise que se detm sobre um aspecto mais delimitado o discurso cientificista , o texto de Scavone busca identificar esse discurso por toda a obra, alm de apresentar uma leitura em que a cincia est associada s relaes de poder, observadas nas atitudes de Emlia quanto ao Visconde, por exemplo. Contudo, o autor no aprofunda sua anlise no sentido de revelar a importncia do cientificismo como elemento estrutural do texto, sua relao com os demais elementos para a tessitura narrativa.

    No caso de Ruth Rocha, comenta-se de forma concisa o lugar da obra na produo lobatiana. Em poucas linhas a autora aponta A chave do tamanho como alegoria, prope um paralelo com A reforma da natureza e, finalmente, identifica-a como uma espcie de chegada da fico de Lobato. Tendo em vista o pblico escolar, Rocha faz consideraes genricas que, pelo carter pedaggico da publicao, no apontam ao leitor indcios da complexi-dade da obra.

    Observando os trs primeiros textos da dcada de 1980 que de alguma forma abordam A chave do tamanho, percebe-se certa tendncia para abordagens temticas, no deixando de ressaltar que Scavone nos remete estrutura narrativa, mesmo sem analis-la, e Ruth Rocha aponta

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    a alegoria como elemento estrutural do texto, embora tambm no empreenda nenhuma anlise da narrativa.

    No ano seguinte, 1982, Alfredo Bosi comenta a obra em texto publicado numa edio comemorativa da Bi-blioteca Mrio de Andrade, em So Paulo. Apontando o carter iluminista dos textos lobatianos, o texto do crtico focaliza o contedo cientfico de A chave do tamanho, lembrando, porm, de que tanto A reforma da natureza quanto A chave do tamanho ainda no receberam a aten-o que merecem. O texto de Bosi indica um caminho possvel para a compreenso dessas obras no conjunto da produo lobatiana a ideologia marcante do escritor cujo iluminismo est ligado a determinado conceito de desenvolvimento e felicidade humanas, concepo que se afasta de um naturalismo simplista (retorno condio primitiva de dependncia da natureza) e nega a tecnologia de morte (incentivo implementao blica). Iluminismo que pode ser uma chave para a compreenso do didatismo e proselitismo lobatiano, no s em A chave do tamanho, mas em toda sua obra infantil.

    Nesse mesmo ano, Brbara Vasconcelos de Carvalho (1982), em obra panormica sobre a literatura infantil, A literatura infantil: viso histrica e crtica, identifica a obra como melanclica, apesar de reconhecer nela o inter-texto com Swift (1667-1745) e Carroll (1832-1898), bem como a forte presena da fantasia na histria. interes-sante notar que a autora destaca o humor e o contedo filosfico do texto, porm retoma a relao apresentada por Cavalheiro, afirmando que Lobato estava brigado com a humanidade em A chave do tamanho. Se o texto da autora reitera a ideia de que h certo pessimismo na obra de Lobato decorrente dos problemas vivenciados tanto no contexto scio-histrico quanto no pessoal, no se pode esquecer da ateno dada por Carvalho fantasia como elemento caracterizador da narrativa, bem como da

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    questo do didatismo lobatiano e de suas peculiaridades no campo da literatura infantil brasileira.

    Ainda em 1982, aparecem obras cujo foco de anlise incide ora sobre o autor, ora sobre sua obra. No primeiro caso, Vozes do tempo de Lobato, organizado por Paulo Dantas (1982), apresenta um comentrio desse autor para quem A chave do tamanho uma obra de cunho nacio-nalista, um tipo de apreciao impressionista incidindo sobre questes temticas e no representando efetivamente acrscimo aos estudos da narrativa infantil lobatiana.

    No segundo caso, O universo ideolgico da obra infantil de Monteiro Lobato, Zinda Maria Carvalho de Vasconcelos (1982) procura explicitar os principais traos ideolgicos da obra de Lobato, chamando a ateno do leitor para a intencionalidade de se abaixar a chave do tamanho, dado que o tamanho j fora criticado como problema em outros textos, como em Histria das invenes e A reforma da na-tureza. A autora ainda destaca a utopia de uma sociedade dirigida por sbios, o que reafirma a presena do iderio iluminista lobatiano e, consequentemente, remete ao texto de Bosi (1982), Lobato e a criao literria, tambm de 1982. Nota-se, ainda, que nesse trabalho A chave do tamanho, como as outras obras infantis de Lobato, no recebe nenhuma anlise mais detalhada, o que se justifica pela natureza da prpria pesquisa da autora cujo interesse est na apresentao de um quadro geral sobre os aspectos ideolgicos dos textos lobatianos.

    Os textos de Laura C. Sandroni (1982), A funo transgressora de Emlia no universo do Picapau Amarelo, e Regina Zilberman (1982), Monteiro Lobato e a aventura do imaginrio, ambos publicados na revista Letras de hoje, em 1982, tambm se inserem nesse segundo caso. O primeiro texto apresenta a possibilidade de realizarmos uma leitura segundo a qual a protagonista, Emlia, ope-se frontalmente sociedade baseada no dinheiro. Como no

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    caso de Carvalho (1982), as observaes sobre A chave do tamanho so realizadas em razo da abordagem de um elemento narrativo no contexto do conjunto das obras lobatianas para crianas, e no com o objetivo de realizar uma anlise mais pontual sobre essa obra. O segundo, por sua vez, ressalta a dilogo da obra com o contexto histrico e sua carga utpica em relao ao Brasil. Mais uma vez tem-se um texto cujo foco de anlise est sobre um elemento narrativo abordado no contexto da obra lobatiana. Porm, importante notar as observaes de Zilberman a respeito de certa esttica realista de Lobato, uma referncia estrutura e organizao textual at ento no realizada em textos anteriores.

    Com A imaginao miniaturizante em A chave do tamanho, Maria Alice de Oliveira Faria (1992), em-preende, em 1983, uma anlise do espao a partir de um referencial terico estabelecido, A potica do espao, de Gaston Bachelard. Embora tambm trate de aspectos te-mticos como a ideologia e a utopia do texto, Faria analisa cuidadosamente os arqutipos do devaneio miniaturizante e aponta relaes intertextuais entre a obra de Lobato e clssicos da literatura infantil, como Viagens de Gulliver, Alice no pas das maravilhas e Pequeno Polegar. O texto da pesquisadora merece destaque tanto por ser uma anlise que se detm especificamente sobre A chave do tamanho quanto por tratar de um elemento narrativo, o intertex-to, considerando sua relao com os demais aspectos da narrativa, bem como sua importncia para a construo do texto ficcional.

    Obra panormica das mais importantes para os estudos na rea de literatura infantil, Literatura infantil brasileira: histria & histrias, de Regina Zilberman e Marisa Lajolo (1999), retoma, em 1985, a questo da utopia, ressaltando o pessimismo de Lobato diante da sociedade moderna. A chave do tamanho aparece no contexto das reflexes a

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    cerca do carter metafrico do Stio do Picapau Amarelo, sendo ela um exemplo dos ideais e desejos de Lobato, ou seja, a narrativa citada no contexto dos aspectos polticos e ideolgicos caractersticos da obra do escritor.

    Essa relao entre utopia/otimismo e desiluso/pessi-mismo aprofundada por Andr Luiz Vieira de Campos, em 1986, no texto A ambiguidade do progresso. Para o autor, a ambiguidade das ideias lobatianas, oscilando entre a euforia do modelo norte-americano e a catstrofe de uma guerra mundial, est ligada tanto formao intelectual quanto ao momento histrico e pessoal do escritor Campos retoma a afirmao de Cavalheiro (1955), identificando o pessimismo diante da humanidade com os problemas vivenciados por Lobato. O autor ainda destaca a impor-tncia de A chave do tamanho, sem, contudo, esclarecer a relevncia dessa obra no conjunto da produo do escritor.

    Optando por um vis temtico, Campos realiza uma anlise da obra partindo de ideias j estabelecidas, como a ligao do texto com os problemas existenciais de Lobato. Contudo, ao apontar a presena de dois modos conflitantes no tratamento do progresso na literatura lobatiana, o autor afirma de forma pertinente que a civilizao natural exaltada em A chave do tamanho no prescinde de uma herana antiga, o conhecimento acumulado ao longo da histria da humanidade. Diante disso, o autor elabora seu texto revelando contrastes entre o otimismo e o pessimismo quanto ao desenvolvimento. Essa relao dialtica que, segundo Campos, pode apresentar um Lobato que no deixa de ser crtico mesmo quando entusiasmado com a paisagem industrial norte-americana, leva o autor a uma compreenso poltico-ideolgica de A chave do tamanho. Isso perceptvel tambm na concluso de seu trabalho ao relacionar o fazer literrio lobatiano aproximao do escritor com o Partido Comunista. Esclarecendo ao leitor que no tentar uma investigao a respeito da prtica

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    marxista no pensamento lobatiano, esclarecimento que j afirma a existncia de tal prtica em Lobato, Campos acaba por dialogar com a obra do padre Sales Brasil, o que se faz por meio de um encaminhamento temtico que se fecha numa abordagem poltica do texto analisado, como se a opo pelo socialismo fosse uma sada para a descrena no progresso orientado pelo capitalismo liberal e para a permanncia do conhecimento humano uma concluso que no permite ao autor explorar a tenso otimismo/pessimismo no conjunto dos elementos textuais.

    Em 1988, o saber cientfico em A chave do tamanho tema da dissertao de mestrado de Carlos Ziller Ca-menietzki (1988), O saber impotente, trabalho segundo o qual Lobato no mais concebe o conhecimento como intrinsecamente bom ou mau h sempre o fator da utili-zao para que o conhecimento traga este ou aquele efeito sobre a humanidade. Embora apresente a obra como livro notvel, Camenietzki a identifica como escatolgica, com abundante uso de humor negro, fazendo uma corre-lao em que o primeiro atributo se apresenta de forma antagnica quanto s outras caractersticas da obra. importante o aprofundamento da anlise a respeito do discurso cientfico em Lobato, contexto em que A chave do tamanho aparece e comentada pelo autor. Se por um lado a dissertao de Camenietzki no apresenta nenhuma contribuio efetiva para a anlise dos elementos textuais, por outro, o estudioso realiza uma abordagem que muito contribui para a compreenso da concepo de cincia e do prprio fazer cientfico nas obras infantis lobatianas.

    Mrcia Kupstas (1988), em Monteiro Lobato, afirma que a obra violenta, podendo marcar as crianas como modelo negativo. Os breves comentrios da autora mostram uma leitura impressionista que despreza a riqueza da narrativa ao se prender a aspectos ideolgicos relativizados pelo prprio discurso elaborado em A chave do tamanho. Num segundo

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    momento do comentrio sobre a obra, Kupstas a compara com Fbulas, afirmando que a presena do maravilhoso incorporado ao real um valor que continua vlido em Lobato, mas isso a autora associa apenas segunda obra e no primeira, ou seja, A chave do tamanho no teria valores pertinentes como as outras histrias lobatianas, nem mesmo a presena do maravilhoso.

    Em sua monografia premiada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, intitulada Monteiro Lobato um escritor brasileiro, em 1989, Nbia Soares Lima Maranho volta a caracterizar A chave do tamanho como alegoria e, tambm, como portadora da crena lo-batiana no progresso. Dado o carter do trabalho, o que a autora faz uma apresentao dos livros de Lobato, atribuindo a cada um caractersticas estabelecidas pela crtica corrente no caso de A chave do tamanho, Maranho recorre s palavras do prprio escritor na carta enviada a Rangel em que concebe a obra como filosofia que gente burra no entende.

    J na dcada de 1990, o texto de Otavio Frias Filho e Marco Antonio Chaga (1999), Monteiro Lobato, de 1992, destoa da concepo de obra violenta, identificando o li-vro como libelo pacifista e, ainda, aponta A chave do tamanho como, possivelmente, o melhor dos livros infantis de Lobato, sem apresentar argumentos que justifiquem tal afirmao. Merece destaque a leitura realizada pelos autores, mesmo que resultando em brevssimo comentrio, apontando a possibilidade de se compreender Emlia no mbito do discurso poltico autoritrio dos anos 1930, o que no s se contrape a uma abordagem baseada em elementos antagnicos, mas tambm permite ver na per-sonagem a presena de discursos conflitantes, fato ligado ideia de relatividade.

    Uma abordagem temtica da obra lobatiana tambm o objeto de estudo de Llian Starobinas (1992), em O

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    caleidoscpio da modernizao: discutindo a atuao de Monteiro Lobato. Nessa dissertao de mestrado, a autora cita A chave do tamanho como exemplo da descrena do escritor na sociedade moderna, levando relativizao do poder das grandes potncias. Descrena/ceticismo resulta-do da priso e da desiluso do escritor, afirma Starobinas. Como proposta de trabalho, o recorte temtico da autora no aponta caminhos para abordagens mais especficas de A chave do tamanho ou A reforma da natureza, antes as obras surgem como exemplos do brincar com as di-menses da natureza. No contexto de um trabalho cujo recorte temtico aborda toda a produo lobatiana, mais uma vez tem-se a ligao da obra com o ceticismo do escritor diante do mundo como algo estabelecido.

    Tambm realizando um recorte temtico dos textos de Lobato, Rosa Maria Melloni (1995), com O imaginrio e o iderio de Monteiro Lobato: um estudo antropolgico, empreende uma anlise dos mitos presentes na obra do autor, dada a sua construo de uma imagem ideal do homem e do seu meio. A chave do tamanho aparece, ento, como obra em que a mudana de tamanho elemento propiciador para a mutao dos estados de conscincia, um exemplo do mito da transformao. Melloni volta suas atenes importncia do imaginrio na constituio do universo infantil lobatiano, um foco de anlise em que a citao de obras literrias permite observar concepes a respeito dos textos lobatianos. No caso de A chave do tamanho, obra da qual a autora destaca longo trecho para ressaltar o encanto do mundo imaginrio construdo por Lobato, Melloni destaca o raciocnio dedutivo, a dialtica cientfica num mundo de fantasia e a importncia do pen-samento no processo de adaptao mediante as mudanas. Tambm um trabalho cuja abordagem apenas toma A chave do tamanho como fonte de exemplos. Nota-se, porm, a ausncia da relao da obra com o momento vivenciado

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    pelo escritor, bem como o apontamento de caractersticas inerentes ao texto, como a dialtica e a razo.

    Outro trabalho acadmico, Prlogo de uma Paidia Lobatiana fundada no fazer especulativo: A chave do tama-nho, de Mary de Andrade Arapiraca (1996), tem o fazer especulativo como objetivo do trabalho, manifestando a preocupao com o tratamento da cincia no texto lobatia-no. Sem empreender anlise textual mais pormenorizada, a autora aborda o pensamento cientfico positivista e seus elementos mais pertinentes, como o mtodo experimental, reiterando e aprofundando um foco de anlise verificado em Scavone (1981) e tambm retomando a questo do carter iluminista da obra lobatiana, tema abordado por Bosi em 1982. A escolha do tema leva a autora conclu-so de que o fazer especulativo pode ser lido como a principal caracterstica da obra.

    Tambm em 1996, em Revendo Monteiro Lobato: vida e obra, de Edgar Cavalheiro: uma leitura de Monteiro Lobato, Sandra M. Giovanetti Bertozzo (1996) retoma o comentrio de Cavalheiro (1955), o que se justifica pelo tipo de trabalho realizado. Outro trabalho que nos remete s consideraes de Cavalheiro o de Hilda Junqueira Villela Merz (1996), Histrico e resenhas da obra infantil de Monteiro Lobato, em que se reafirma a ligao de A chave do tamanho com um momento difcil da vida do escritor. A resenha de Merz demonstra a viso corrente da obra alm da ligao com o momento vivenciado pelo escritor, o texto de A chave do tamanho destaca-se pelo seu carter poltico-filosfico.

    Optando por abordar o contedo cientfico da obra, Jos Apstolo Netto (1996), em O discurso cientificista no livro A Chave do Tamanho de Monteiro Lobato, publi-cado na revista Ps-Histria, o autor trata do positivismo, ao que acrescenta uma tentativa de breve anlise formal identificando elementos textuais, o uso dos tempos verbais,

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    por exemplo, como marcas do discurso cientfico. Esse artigo traz, em sua concluso, a indicao de uma possvel pesquisa no texto de A chave do tamanho investigar a viso mecanicista newtoniana, o que representaria uma contribuio mais original para as investigaes dos tex-tos lobatianos. A tentativa de anlise formal apresenta-se como possibilidade de compreenso da estrutura narrativa.

    Deixando em segundo plano as questes temticas, Juci-mar Cunha Ribeiro de Oliveira (1996), em sua dissertao de mestrado A chave do tamanho: um mundo s avessas, busca analisar a obra sob o foco da esttica da recepo. O trabalho de Oliveira debrua-se sobre a estrutura narrativa a partir de teorias da rea da Teoria Literria: a teoria do mundo s avessas de Ernest R. Curtius e a esttica do efeito de Wolfgang Iser, sendo essa usada pela autora como fun-damento para abordagem no mbito da esttica da recepo. Merece destaque, portanto, a inteno da autora de tratar de elementos intrnsecos construo do texto, sendo o mundo s avessas o portador de uma proposta de transformao. O mundo s avessas comportaria um aspecto didtico, ou seja, a inverso da ordem estaria relacionada a uma pro-posta de transformao do mundo direcionada criana. A esttica da recepo apresentada no mbito da apreciao da pesquisadora que no chega a demonstrar o resultado de leituras realizadas por crianas as consideraes da autora apresentam-se mais como hipteses a respeito de como as crianas teriam recebido o texto de A chave do tamanho, do que observao da prtica desses leitores.

    Do ano de 1996 um texto de carter mais pessoal, de Alaor Barbosa (1996), O ficcionista Monteiro Lobato, que destaca a obra como texto primoroso, o que se deveria a certo ideal de clareza e objetividade de Lobato presentes em A chave do tamanho. Trata-se, sobretudo, de uma apai-xonada, cujo envolvimento pessoal no permite ao autor empreender consideraes mais contundentes.

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    Entre as pesquisas acadmicas da dcada de 1990, destaca-se a obra de Jos Roberto Whitaker Penteado (1997), Os filhos de Lobato, em que o autor realiza uma coleta de impresses dos leitores que se formaram lendo Monteiro Lobato. A obra tratada pelo autor como uma das mais loucas, um tipo de fico infanto-juvenil que se destaca como livro crucial da srie, importncia que no esclarecida no trabalho de Penteado. A pesquisa apresenta um quadro das possveis influncias do pen-samento lobatiano sobre a gerao que se formou lendo os livros do escritor, influncias que remetem a certo iluminismo uma vez que esse levaria a uma narrativa cujo carter formador implicaria na discusso de questes poltico-sociais, como a guerra, um dos temas principais no texto de A chave do tamanho.

    Uma anlise voltada para os elementos narrativos o trabalho de Carmem Silva Martins Leite (1998), Anli-se da narrativa carnavalizada A chave do tamanho, de Monteiro Lobato. Nessa dissertao de mestrado, tendo como referencial terico a viso carnavalesca do mundo s avessas de Mikhail Bakhtin, a autora realiza uma anlise estrutural de A chave do tamanho, identificando elementos da stira menipeia e destacando o fantstico. Ao dialogar muito de perto com o trabalho de Oliveira (1996), Leite retoma a ideia do mundo s avessas enfatizando, porm, outras implicaes desse processo como o dialogismo que, segundo a autora, perpassa todo o texto lobatiano. im-portante notar a referncia ao intertexto, o que remete novamente ao texto de Faria (1983). Finalmente, a autora ressalta a busca incessante pela verdade, o que se d por meio de uma leitura prazerosa.

    Em 1998, Ana Mariza Ribeiro Filipouski (1998), em A obra infanto-juvenil de Monteiro Lobato, publicado na Revista da Biblioteca Mrio de Andrade, afirma que A chave do tamanho uma obra que se projeta para o futuro,

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    levando a criana reflexo. A observao da autora mostra a compreenso da obra por um vis temtico, destacando certo carter pedaggico, um tipo de observao que, mesmo breve, retoma ideias estabelecidas a respeito do texto de A chave do tamanho, no caso, seu contedo como um conjunto de ensinamentos filosficos, o que afirmara Cavalheiro em sua obra de 1955.

    As caractersticas apontadas como positivas seja por Leite (1998), seja por Filipouski (1998), no so, entre-tanto, suficientes para retirar a obra de uma perspectiva de periculosidade, como se v nas observaes de Nelly Novaes Coelho (2000), em Literatura infantil teoria, anlise, didtica, para quem o texto lobatiano marcado por distores de valores que podem servir de modelo negativo aos pequenos leitores; um texto cujo perigo est em apresentar como valor a relatividade das crenas e atitudes humanas.

    Mais recentemente, no mbito dos estudos temti-cos, Mulheres em Lobato: uma leitura feminista das obras Reinaes de Narizinho e A chave do tamanho, Sandra Arajo de Lima (2002) aborda A chave do tamanho porque nela uma personagem feminina, Emlia, a protagonista. Contudo, retomando at mesmo os traos positivistas do texto de Lobato, a autora afirma que no consegue ver nenhum enaltecimento da personagem feminina na obra.

    Tambm realizando uma abordagem temtica, O Poo e a Chave: progresso e guerra na obra infanto-juvenil de Monteiro Lobato, de Ana Amlia Vianna Gouva (2003), uma dissertao de mestrado que merece destaque pelo trabalho de identificao da temtica de guerra em toda a obra lobatiana. A escolha da autora, O poo do Visconde (1937) e A chave do tamanho (1942), tem como objetivo mostrar a mudana do ponto de vista do escritor, de uma defesa irrestrita ao desenvolvimento, na primeira obra, descrena na capacidade humana de bem usar a tecnologia,

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    na segunda. Embora tambm relacione a obra ao momento vivenciado pelo escritor morte dos filhos, idade, contexto histrico , a autora avana em sua anlise, realizando uma contextualizao no s no mbito da histria factual, mas tambm da produo literria internacional, quadro em que se destaca A chave do tamanho.

    ltimo trabalho identificado por nossa pesquisa, a tese de Adriana Silene Vieira (2004), Viagens de Gulliver ao Brasil: Estudo das adaptaes de Gullivers Travels por Carlos Jansen e por Monteiro Lobato, de 2004, trata de A chave do tamanho retomando a anlise j realizada por Faria (1983). A presena da miniaturizao o elemento que estabelece o dilogo com Gullivers Travel, de Swift, porm, a autora tambm destaca a violncia presente em A chave do tamanho, bem como a ironia, caractersticas que aproximam Lobato do escritor irlands. interessante notar que a proposta inicial do trabalho, o cotejo das tra-dues de Jansen e Lobato, acaba conduzindo a A chave do tamanho pelas discusses instauradas a respeito do dilogo das obras desses escritores. A autora conclui seu trabalho conduzindo nosso olhar para a presena de Gulliver em A chave do tamanho e abandonando a abordagem inicial das tradues; fato que poderamos entender como resultante da atrao exercida por uma histria que se nutre de clssicos infantis universais, como a obra de Swift, e, ao mesmo tem-po, apresenta-se como uma narrativa original e complexa.

    Enfim, como notamos nesta breve observao da fortuna crtica sobre A chave do tamanho, a partir da dcada de 1980, quando os estudos acadmicos voltam-se com mais ateno para a literatura infantil brasileira, delineiam-se alguns pontos constantemente retomados pelos pesquisa-dores. Um deles a nfase na abordagem temtica, talvez ressaltada pela singularidade da obra em meio produo tanto nacional quanto internacional nos anos da Segunda Guerra, como afirma Gouva (2003).

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    Os textos crticos recolhidos nesta pesquisa constituem um conjunto de dados relevante para a melhor compreenso do texto de A chave do tamanho no contexto da literatura infantil brasileira.

    De modo geral, podemos encontrar algumas linhas de investigao que se constituram desde a publicao dos primeiros textos abordando A chave do tamanho. Tendo como ponto de partida o comentrio de Lo Vaz, em 1945, percebemos que a maioria dos textos se insere numa abor-dagem ideolgica, enfatizando a carga filosfica da obra. O outro grupo, bem menor, aquele formado por textos cujo foco de anlise se encontra sobre os elementos narrativos.

    Essas duas abordagens podem ser encontradas tanto em obras de carter mais panormico, como o trabalho de Vasconcelos (1982) que analisa aspectos ideolgicos de toda a srie infantil lobatiana, quanto em textos voltados para anlises mais localizadas, como o trabalho de Lima (2002), que procura realizar uma leitura feminista de A chave do tamanho.

    Tendo em vista somente os textos crticos cujo objeto de anlise A chave do tamanho, ou seja, no conside-rando textos em que a obra citada ou comentada em meio a outros temas, apresenta-se a seguir uma lista em que se delineiam pelo menos trs principais tendncias de abordagem da obra:

    1 Ideologia, pensamento filosfico

    Lo Vaz (1945), A chave do tamanho. Revista da Academia Paulista de Letras.

    Pe. Sales Brasil (1959), A literatura infantil de Mon-teiro Lobato ou comunismo para Crianas.

    Andr Luiz Vieira de Campos (1986), A Repblica do Picapau Amarelo uma leitura de Monteiro Lobato.

    Lilian Starobinas (1992), O caleidoscpio da moder-nizao: discutindo a atuao de Monteiro Lobato.

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    Ana Maria Lisboa de Mello (1995), A chave do ta-manho: a instaurao de uma nova ordem.

    Rosa Maria Melloni (1995), O imaginrio e o iderio de Monteiro Lobato: um estudo antropolgico.

    Sandra Arajo de Lima (2002), Mulheres em Lobato: uma leitura feminista das obras Reinaes de Nari-zinho e A chave do tamanho.

    Ana Amlia Vianna Gouva (2003), O poo e a cha-ve: progresso e guerra na obra infanto-juvenil de Monteiro Lobato.

    2 Cientificismo

    Jos Apstolo Netto (1996), O discurso cientificista no livro A chave do tamanho de Monteiro Lobato.

    Mary de Andrade Arapiraca (1996), Prlogo de uma paideia lobatiana fundada no fazer especulativo: A chave do tamanho.

    Carlos Ziller Camenietzki (1988), O saber impotente. Antonio Carlos Scavone (1981), Reflexos do posi-

    tivismo em A chave do tamanho.

    3 Questes estticas

    Maria Alice de Oliveira Faria (1983), A imaginao miniaturizante em A chave do tamanho.

    Carmem Silva Martins Leite (1998), Anlise da narrativa carnavalizada A chave do tamanho, de Monteiro Lobato.

    Jucimar Cunha Ribeiro de Oliveira (1996), A chave do tamanho: um mundo s avessas.

    Adriana Silene Vieira (2001), A chave do tamanho e as Viagens de Gulliver.

    Regina Zilberman (1982), Monteiro Lobato e a aventura do imaginrio.

    Pelo levantamento de dados, nota-se a preponderncia de trabalhos voltados para a anlise de contedos ideol-

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    gicos da obra, especialmente em estudos acadmicos. As questes estticas aparecem na maioria das vezes de forma perifrica. A quase totalidade dos textos produzida a partir dos anos 1980, momento em que obras fundamentais para os estudos na rea de literatura infantil brasileira aparecem com grande apelo ao pblico acadmico e escolar. Ou seja: a partir dos anos 1980 que se encontra uma crtica estabelecida em relao aos estudos dos textos de Lobato, como A chave do tamanho.

    Observando somente os trabalhos acadmicos e teses em que a obra citada de alguma forma (considerando os trabalhos como foram consultados durante a pesquisa), tm-se os seguintes dados (at 2004):

    Dissertaes Mestrado

    Sandra M. Giovanetti Bertozzo (1996), Revendo Monteiro Lobato vida e obra de Edgar Cavalheiro: uma leitura de Monteiro Lobato.Carlos Ziller Camenietzki (1988), O saber impotente. Ana Amlia Vianna Gouva (2003), O poo e a chave: progresso e guerra na obra infanto-juvenil de Monteiro Lobato.Carmem Silva Martins Leite (1998), Anlise da narrativa carnavalizada A chave do tamanho, de Monteiro Lobato. Sandra Arajo de Lima (2002), Mulheres em Lobato: uma leitura feminista das obras Reinaes de Narizinho e A chave do tamanho. Jucimar Cunha Ribeiro de Oliveira (1996), A chave do tamanho: um mundo s avessas. Llian Starobinas (1992), O caleidoscpio da modernizao: discutindo a atuao de Monteiro Lobato.

    Teses Doutorado

    Mary de Andrade Arapiraca (1996), Prlogo de uma paideia lobatiana fundada no fazer especulativo: A chave do tamanho. Rosa Maria Melloni (1995), O imaginrio e o iderio de Monteiro Lobato: um estudo antropolgico.Adriana Silene Vieira (2004), Viagens de Gulliver ao Brasil: estudo das adaptaes de Gullivers Travels por Carlos Jansen e por Monteiro Lobato.

    Podem-se ainda acrescentar aos ttulos citados na tabela os trabalhos de Vasconcellos (1982) e Penteado (1997), j publicados em livro o que daria um total de 12 pesquisas

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    entre produes de mestrado e doutorado. Desse conjunto, porm, somente trs trabalhos tm A chave do tamanho como objeto central de anlise, as pesquisas de Arapiraca (1996), Oliveira (1996) e Leite (1998) a primeira com uma abordagem temtica e as outras duas com um foco de anlise muito prximo (carnavalizao, mundo s avessas).

    Considerada em sua totalidade, a constituio dessa crtica mostra-se atrelada a ideias veiculadas por contem-porneos de Lobato, como Lo Vaz e Edgar Cavalheiro, cujos comentrios so retomados at o momento. Se isso confere certa legitimidade aos estudos, pois recorrem a fontes prximas do escritor, tambm acaba por configu-rar uma certa acomodao, levando os pesquisadores a se dedicarem a um grupo restrito de temas o relativismo, a Segunda Guerra Mundial, o discurso cientfico.

    Pensar a figura de Monteiro Lobato no contexto da produo de livros para crianas leva ao reconhecimento da importncia de seu trabalho tanto no que diz respeito quantidade quanto no que se refere aos aspectos ineren-tes qualidade de seus textos. Em relao quantidade, observa-se na organizao que realiza para as Obras com-pletas, 1947, uma vasta obra para o pblico infantil so mais de vinte livros destinados a um pblico com grande potencial de crescimento em relao a aumento do nmero de crianas inseridas no universo da leitura pela escola. A qualidade, por sua vez, iria ser o elemento decisivo para a permanncia dessas obras no circuito literrio destinado s crianas brasileiras.

    Entre os ttulos lanados, primeiro, pela Cia. Editora Nacional e, depois, pela Editora Brasiliense, encontram-se obras de carter eminentemente didtico, como Aritmtica da Emlia (1935), adaptaes de clssicos infantis, como Peter Pan (1930) e, por ltimo, textos em que a fantasia se sobrepe aos ensinamentos e discursos pedagogizantes, o caso de A chave do tamanho (1942).

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    Como em outras histrias com a turma do Picapau Amarelo, em A chave do tamanho, depara-se uma aventura cheia de surpresas, pontilhada de nonsense, ironia, fan-tasia, elaborada com uma linguagem coloquial, prxima do pblico a que se destinava, tratando de temas tidos como srios, mas dos quais Lobato no poupava seu pblico. Mas a obra em questo tem suas peculiaridades, caractersticas que levaram crticos a consider-la como escatolgica, pitoresca, elixir filosfico, obra--prima da literatura infantil.

    O papel de destaque que A chave do tamanho acaba ocupando, seja no contexto da obra lobatiana seja no con-texto da produo nacional, pode ser constatado nas mais diversas abordagens realizadas por estudos que, em geral, tm por objetivo a(s) ideologia(s) presentes no texto. Essas abordagens, cujos estudos certamente comprovam a riqueza do objeto a que se dedicam, configuram um quadro que, se, por um lado, abre novas perspectivas para a leitura e compreenso da obra, por outro, encerram em si, por vezes, uma viso parcial do texto, cuja maior e melhor contribui-o se d quando colocada no conjunto da fortuna crtica.

    Essa fortuna crtica revela, ainda, a necessidade de se empreender uma anlise textual em que os elementos estruturais da narrativa possam ser compreendidos em sua funcionalidade na construo da obra, o que permite o tratamento de temas e ideologias j percebidas e analisadas em outros estudos.

    Cotejo de edies

    A primeira edio de A chave do tamanho saiu em 1942, pela ento existente Companhia Editora Nacional, fazen-do parte da chamada 1a srie, literatura infantil, como volume 33. Seu tamanho de 15 cm x 22 cm (medidas

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    aproximadas), com 161 pginas. A capa e a contracapa so coloridas, formando uma s ilustrao, realizada, tal como os outros desenhos do texto, por J. U. Campos. Abaixo do ttulo, h o subttulo A maior reinao do mundo, e, aps a pgina de rosto, novamente o ttulo com a seguinte mensagem:

    Histria da maior reinao do mundo, na qual Emilia, sem querer, destruiu temporariamente o tamanho das criaturas humanas.

    Ainda, antes de se iniciar a narrativa, consta uma ex-plicao necessria (registrada a seguir com a ortografia original):

    Os personagens deste livro vm de obras anteriores. Todos nascem em Reinaes de Narizinho e aparecem em O Saci, Viagem ao Cu, Caadas de Pedrinho, Emilia no Pas da Gramtica, Geografia de Dona Benta, Aritmtica da Emilia, O Poo do Visconde, O Picapau Amarelo, O Minotauro e outros.

    Dona Benta, av de Pedrinho e Narizinho, vive com eles no sitio do Picapau Amarelo, em companhia de tia Nastcia, uma preta cozinheira, e mais o visconde de Sa-bugosa, que um sabugo de milho muito sbio, Quindim, que um rinoceronte domesticado, o Conselheiro, que um admiravel burro falante e a Emilia, uma ex-boneca de pano, antiga esposa do celeberrimo Marqus de Rabic. Emilia foi evoluindo e insensivelmente passou de boneca a gente de verdade, conservando o tamanho inicial 40 cen-timetros de altura. o simbolo da independencia mental e da habilidade para enfrentar todas as situaes. Pratica-mente quem governa o sitio de Dona Benta e sempre exerceu uma completa ascendencia sobre o visconde.

    A vida no Picapau Amarelo um interminavel suceder de reinaes maravilhosas, nenhuma das quais equivale em

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    originalidade e imprevistas consequencias para o mundo descrita nesta obra. Emilia excedeu-se, como disse o vis-conde e por um triz no determinou no gnero humano a mais radical das mudanas como o leitor ver.

    Antes do cotejo entre a primeira edio e a de 1947, a qual se mantm em circulao, torna-se necessrio fazer algumas consideraes sobre as indicaes bibliogrficas sobre A chave do tamanho. Diante das alteraes perce-bidas na obra, buscou-se encontrar o momento em que teriam sido realizadas. Em geral, as buscas resultaram em poucas pistas, e a maior contribuio veio do trabalho de Bertozzo (1996), cujas informaes permitiram o quanto foi possvel melhor situar as edies da obra.

    Entre 1946 e 1947, Lobato realiza uma reviso de toda sua obra para a Editora Brasiliense; inferiu-se, a partir dos dados levantados, que as mudanas foram realizadas nesse momento. Ainda pode-se constatar, a partir do co-tejo da 1a, da 17a, da 42a edies e da edio de 1947 que modificaes ortogrficas (alterao de letras, colocao ou retirada de artigos, substituio de travesso por dois pontos e vice-versa, utilizao ou no de letra maiscula visconde/Visconde, por exemplo) esto ligados forma adotada pela editora para a publicao lobatiana, pois muitas alteraes no so encontradas nos livros con-temporneos do escritor.

    O subttulo e a explicao necessria, por exemplo, ora apareceriam ora no nas edies posteriores na 42a, utilizada neste trabalho, no aparece nem uma nem outra dessas partes, e na capa, no consta o subttulo A maior reinao do mundo.

    Mas, a alterao mais importante verificada entre essas duas edies a reduo do nmero de captulos, de 28 (1942), para 25 (1947). A seguir, captulos da 1a edio (os trechos alterados esto em itlico) que foram modificados ou suprimidos posteriormente:

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    Captulo XIXViagem a Europa

    Tudo estava pronto para a viagem. No ultimo momento o visconde achou melhor desistirem do plebiscito e, em vez do passeio pelo mundo, tocarem diretamente para a Casa das Chaves. Alegou que cada minuto de demora eram mais milhes de seres humanos que pereciam em todos os continentes.

    E no se perde grande coisa respondeu Emlia. O infinito um colosso, visconde. H l pelos cus milhes e milhes de astros muitssimas vezes maiores que esta pul-guinha da Terra. E nesta pulguinha da Terra a humanidade uma poeirinha malvada. Para o Universo tanto faz que essa poeirinha exista como no exista.

    Aquele pouco caso da Emilia pela humanidade no im-pressionou o visconde. Ele viu no fundo que no era pouco caso, e sim muito caso. Emilia revoltava-se com as guerras e as outras formas de crueldade dos seres humanos. O apequenamento causado pela sua reinao evidentemente no fora de propsito. Quando Emilia virou a chave, sua inteno no fora fazer mal a ningum, e sim bem: acabar com as guerras. Havia de haver uma chave da guerra, e o seu pensamento foi ir experimentando todas as chaves at acertar. Mas assim que virou a primeira, aconteceu o tal apequenamento, e ela nem sequer pde suspender outra vez a chave, quanto mais experimentar as outras. Emilia filsofa, pensou o visconde, e quando se pe a filoso-far parece que tem corao duro mas no tem. Emilia filosoficamente boa.

    Depois de tudo bem combinado, e de tomadas l na cmoda todas as providncias, partiram. O fiun foi formi-dvel, porque quanto mais novo o superp, mais forte. Emilia, coitadinha, perdeu completamente os sentidos, e o visconde ficou mais tonto que das outras vezes.

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    Por fim chegaram. O visconde levou minutos sentado, de pernas estiradas, olhando sem ver, ouvindo sem ouvir. Quando se ps de p, quase caiu, de to tonto.

    Emilia! chamou ele, e repetiu trs vezes o chamado.Como no obtivesse resposta, tirou a cartola e espiou

    pela janela. A coitadinha estava desacordada. O visconde despejou-a na palma da mo, cuidadosamente, e soprou-a de leve. Nada. Soprou mais forte. Nada.

    Parece incrvel murmurou ele que essa grande coi-sa chamada humanidade dependa desta formiguinha sem sentidos que eu tenho na palma da mo! Se Emilia voltar a si, tudo poder ser salvo; mas se morrer, bem provvel que estes insetos descascados tambm morram todos, e s fiquemos no mundo eu, o Conselheiro e o Quindim os nicos seres falantes e escreventes e que adiantar a Histria do Grande Desastre que eu possa escrever em minhas memrias? No existir ningum para l-la. E o curioso que o mundo continuar [no tem a expresso a rodar] como se no tivesse havido nada. O burro, Quindim e todos os mais rinocerontes e hipoptamos e lees e tigres e a bicharada inteira desde os pintos suras at os micrbios, continuaro a existir como at hoje e at ficaro muito contentes com o sumio do Homo sapiens. Porque o Homo sapiens era o que mais atrapalhava a vida natural dos bichos. At Rabic, aquele patife, continua-r a fossar os brejos em busca de minhocas e j sem medo nenhum do bodoque de Pedrinho ou das ameaas de Emilia.

    Estava nesse ponto da conversa consigo mesmo, quan-do a formiguinha desmaiada fez um leve movimento e logo em seguida outro. O visconde respirou aliviado.

    Ora graas que est acordando.Emilia despertou e sentou-se. Passou a mo pelos olhos

    ainda turvos. Onde estou?

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    Aqui comigo, na palma da minha mo, em qualquer parte da Europa disse o visconde.

    Emilia sorriu e ps-se de p, ainda tontinha; firmou-se logo, porm, e pediu a cartola.

    Erga-me para a cartola, visconde. Sua mo est muito quente e suada.

    Assim foi feito. Onde ser que estamos? perguntou, logo que re-

    apareceu em sua janelinha. Isto aqui parece um campo de trigo sem trigo, mas de que pas?

    Os campos de trigo sem trigo so todos semelhantes, de modo que por meio deles ningum consegue identificar um pas. Para isso, s as cidades.

    Vamos tomar por aquele caminho, visconde disse ela referindo-se estrada que se via dali. Todo caminho d em cidade.

    O visconde dirigiu-se para a estrada e ps-se a cami-nhar. Uma larga estrada deserta, com sinais de trfego nas curvas e pontos perigosos. Esses sinais tambm no permitiram a identificao do pas, porque so os mesmos em toda parte. S quando chegaram a um cruzamento puderam ler a tabuleta indicadora da direo. Havia de cada lado uma flecha com um nome embaixo. O viscon-de viu imediatamente que o superp os havia largado na Alemanha.

    Muito bem, este nome de Furstenwalde mostra que estamos perto de Berlim. O melhor irmos diretamente para l.

    timo concordou Emilia. Com a cheirada de alguns gros de superp, estaremos em Berlim em meio segundo.

    Mas no v perder os sentidos outra vez disse o visconde, dando-lhe apenas meio grozinho de superp e aspirando um inteiro.

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    Captulo XXEm Berlim

    O passeio do visconde e da Emilia pela cidade de Ber-lim dava assunto para um livro inteiro. Quanta coisa obser-varam! A capital da Alemanha pareceu-lhes perfeitamente morta. A enorme quantidade de montinhos de roupa em todas as ruas revelava a sua grande populao. Na maioria eram montinhos de farda, com um capacete ou quepe em cima. Inmeros automveis despedaados, quase todos militares. O apequenamento havia acontecido s 4 hora, que a hora de Berlim correspondente s 10 da manh l no stio. A populao estava em plena atividade nas ruas, quando subitamente desapareceu. O que de fato havia acontecido humanidade inteira fora isso um desapa-recimento. No mesmo instante, em todos os continentes, em todas as cidades, em todas as casas e ruas, em todos os navios e trens, os seres humanos derreteram-se como sorvete, dentro das roupas, mas de modo instantneo, e as roupas ficaram no lugar, em montinhos largados, quase sempre com um chapu em cima. E em substitui-o de cada criatura apareceu dentro de cada montinho de roupa um inseto bpede de vrias cores uns cor-de--rosa, outros amarelos, outros cor de cobre, outros pretos como carvo.

    Foi isso o que se deu: completa extino da Humani-dade, porque os insetos de dois ps que a substituram j no eram propriamente a Humanidade eram a Bichidade, como a Emilia classificou. E, portanto, ela, a Emilia, a Emi-linha do stio de Dona Benta, havia realizado um prodgio sem nome: suprimido a Humanidade! O que os gelos dos perodos glaciais no conseguiram e o que no conseguiram as erupes vulcnicas, e os terremotos, e as inundaes, e as grandes fomes, e as grandes pestes, e as grandes guerras, a marquesinha de Rabic havia conseguido da maneira mais

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    simples com uma virada de chave! Aquilo era positiva-mente o Himalaia dos assombros.

    Todas as casas de Berlim estavam abertas e desertas. Ningum, de ningum , de ningum. S cachorros e gatos. Esses novos antropfagos andavam livremente por toda parte; os ces tinham aprendido a revolver os montinhos de roupa e os gatos pescavam com a mo os insetos mal escondidos nas frestas. Muitos passarinhos do campo tambm vieram caar em Berlim. Emilia recordou o tem-po da sada de is l no stio em outubro, coisa que tanto assanhava os passarinhos e as aves domsticas.

    Veja! exclamou o visconde filosoficamente. Esta gente, que era a mais terrvel e belicosa do mundo e estava empenhada numa guerra para a conquista do planeta, ainda mentalmente a mesma quero dizer, ainda sente e pensa da mesma maneira. E ainda sabe tudo quanto aprendeu. Os qumicos sabem fazer prodgios com a com-binao dos tomos. Os fsicos e mecnicos sabem todos os segredos da matria. Os militares sabem todos os segredos da arte de matar. Mas como perderam o tamanho, j no podem coisa nenhuma. Sabem, mas no podem. Que coisa terrvel para eles!

    Estou vendo que a grande fora dos homens estava no tamanho disse Emilia. O tamanho era como o cabelo de Sanso. Quando Dalila cortou o cabelo de Sanso, o coitado perdeu toda a fora.

    Exatamente concordou o visconde. O tamanho era tudo, isto , todo o aparelhamento mecnico da hu-manidade fora feito para os homens daquele tamanho. Assim que aquele tamanho mudou, adeus viola! Tudo ficou absolutamente intil. At as invenes dependem do tamanho. Agora compreendo porque as formigas no inventam nada. No podem, por falta de tamanho. Que coisa tremenda o tamanho! Est a uma idia que nunca me passou pela cabea.

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    E realmente era assim. Aquela grande cidade com todas as suas mquinas e veculos e organizaes, valia menos, para os novos insetos louros, do que um buraquinho na terra (dos sem dono dentro) ou uma fresta de rodap.

    O visconde parou diante do palcio do governo e ficou a balanar a cabea filosoficamente.

    Aqui morava o ditador que levou o mundo inteiro maior das guerras, e destrua cidades e mais cidades com seus avies, e afundava os navios com os seus submarinos, e matava milhares e milhares de homens com seus canhes e as suas metralhadoras o homem mais poderoso que j existiu. Tudo isso por qu? Porque tinha oito palmos e meio de altura. Assim que foi reduzido a quatro centme-tros, todo o seu poder evaporou-se. Ele, se que ainda no foi para o papo de algum pinto sura, permanece o mesmo, com a mesma energia mental, a mesma disposio destrui-dora e a mesma vontade de ao mas no pode mais nada.

    Ah, se ns consegussemos encontra-lo! suspirou Emilia.

    Quem sabe? possvel que ainda esteja dentro deste palcio.

    O visconde subiu as escadarias e entrou. Enormes sales desertos, com o cho coalhado de montinhos de farda. Aqui e ali, um gato ou cachorro vagabundo. O silncio era impressionante. O visconde lembrou-se de sacudir um dos montinhos de farda e viu cair pela manga um inseto louro, nu, mortssimo. O pano amontoara-se de mal jeito em cima dele; o inseto, que no pudera sair, mor-rera abafado. Examinando os bolsos da blusa, o visconde encontrou a carteira de identificao do falecido. Era um grande general, famoso pelas destruies feitas na Polnia. Emilia ficou a olhar para aquela tripinha que o visconde erguia no ar por um p.

    Extraordinrio! disse ela. Esta simples tripinha foi um dos terrores do mundo, s porque era dotado de

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    tamanho. Estou vendo, visconde, que o tamanho dos ho-mens era realmente a pior coisa que havia e fiz muito bem de acabar com ele. O melhor ser irmos Casa das Chaves e tambm suprimirmos o tamanho de todos os outros animais. Para que tamanho? Um micrbio vive perfeitamente e pequenininho a ponto de ser invisvel.

    Outros montes de farda foram sacudidos sem que nada casse de dentro.

    Os insetos destas roupas puderam safar-se, disse Emi-lia mas onde andam?

    No tardaram a descobri-los. Embaixo dos moveis, nos caminhos mais escuros, nas frestas, por toda parte onde houvesse minsculos abrigos naturais, o visconde desco-briu medrosos ajuntamentos de insetos louros. Inmeros j estavam no papo da gataria invasora e dos ces. Co no come inseto, mas inseto feito de carne humana petisco diferente e raro. Alm disso, os gatos e ces da Alemanha andavam com raes muito curtas de modo que se apro-veitavam daquela imprevista oportunidade.

    O visconde foi andando de sala em sala. Uma delas parecia a do Grande Ditador.

    Era aqui disse Emilia que ELE mandava e des-mandava. Agora, com certeza, anda escondido nalgum buraquinho.

    Mas como poderemos reconhece-lo?Pelo bigode. Nada mais fcil.Com um pauzinho o visconde comeou a tirar os aria-

    nos escondidos nas frestas ou debaixo dos mveis. De sob a secretria do Grande Ditador saram vrios, eviden-temente generais e homens de governo. Um deles tinha bigodinho.

    A entrevista de Emilia com o Grande Ditador dava um livro de mil pginas, mas temos de resumir. A pedido dela o visconde ergueu-o at a altura da janelinha para que pudesse ouvir o seu discurso.

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    Meu senhor disse ela tenho a honra de apresen-tar a Vossa Excelncia o visconde de Sabugosa, o milho falante l do stio de Dona Benta. E tambm me apresen-to a mim mesma frau Emilia, Marquesa von Rabic. Viemos dar uma vista dolhos pelas Europas e o acaso nos largou nesta Alemanha de Vossa Excelncia. Mas estou admirada do que vejo. Esperei encontrar o grande arsenal das ditaduras dando tiros de canho e espirrando fogo, e o que no prprio palcio do Grande Ditador eu vejo so montinhos de fardas vazias e arianos insetiformes, tmidos, nus, escondidos pelos cantos e vos e frestas. Que foi que aconteceu, Excelncia?

    Para uma criaturinha de quatro centmetros, um mi-lho como o visconde, de dois palmos de altura, equivalia a um formidvel gigante. Nada mais natural, pois, que o Grande Ditador se encolhesse todo, sem nimo de soltar uma s palavra. Mas Emilia o sossegou.

    No se assuste, Excelncia. O visconde o maior gigante do mundo, mas tambm milho um vegetal ex-tremamente pacato. Alm disso um grande sbio hoje o maior sbio do mundo. E no judeu, no, Excelncia. No tenha medo. O visconde arianssimo. Quando esteve no milharal que foi o seu bero, o vento dava na sua linda cabeleira platinum blonde. Hoje est velho e careca e anda sempre com o meu stio na cabea. No entende? Meu stio esta cartola. Pois bem, Excelncia. Cheguei at c para dizer uma coisa s que o Tamanho morreu. E quem acabou com o Tamanho eu sei quem foi, e sei tambm que essa pessoa a nica que pode novamente restituir aos homens o antigo e querido tamanho aquele tamanho malvado, porque se no fosse ele os homens no teriam sido maus como foram, fazedores de guerras, incendiadores de cidades, afundadores de navios, judiadores de judeus. Mas esse misterioso algum s restaurar o tamanho perdido se tiver a certeza de que Vossa Excelncia vai fazer a paz,

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    e botar fora todas as horrendas armas que andou amon-toando, e desse momento em diante viver na mesma paz e harmonia com o mundo em que vivem as formigas e abelhas. Se o Tamanho voltar e tudo ficar como estava, quero vida nova, sem guerras, sem dios, sem matanas, sem armas, est entendendo? E se por acaso algum dos futuros poderosos romper o trato, o castigo ser terrvel. Sabe qual ser o castigo? O tal algum desce a chave duma vez, e o Tamanho fica reduzido a zero. Em vez de 4 centimetros, como Vossa Excelncia tem hoje, passar a ter 4 milimetros, ou menos, e ser devorado at pelas moscas e pulgas. Est entendendo? Claro que estava entendendo. Quem no entenderia uma linguagem to po po queijo queijo como aquela?

    O Grande Ditador animou-se e quis falar. Emilia o deteve com um gesto.

    No diga nada, meu senhor. J houve falao demais. Quem fala agora sou eu. Quero todos muito direitinhos e humildes. Esta semana de reduo no passa duma ad-vertncia que o tal algum faz ao mundo. Compreende?

    Assim terminou Emilia o seu sermo ao chefe do Eixo. Depois ordenou ao visconde:

    Enfie-o no buraquinho onde estava e vamos ver o outro.

    O visconde enfiou o Grande Ditador na fresta do ro-dap, de onde seu Estado Maior espiava com os olhos arregalados. Em seguida cheirou o gro de superp que os iria levar Itlia.

    Captulo XXINa Itlia e na Inglaterra

    Em Roma o super-p largou o visconde diante do palcio do outro Grande Ditador. O visconde foi entrando. Viu l a mesma coisa: fardas e mais fardas aos montinhos e tambm

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    montinhos de roupas civis as dos funcionrios do palcio. Por mais que procurasse, entretanto, no conseguiu descobrir o paradeiro do Ditador nmero dois. Uma galinha leghorn que passava por ali chamou a ateno de Emlia. Estava de papo cheio.

    Hum! fez Emilia. J sei o destino que ele levou.Como nada mais houvesse a fazer na Itlia, partiram

    para a Inglaterra.Em Londres tiveram a sorte de descobrir o tremendo

    velho que dirigia os destinos do mundo britnico durante a catstrofe mundial. Era um homem de 70 anos, mais rijo que um couro cru. E grande fumante. Andava sempre com um enorme charuto na boca, e foi exatamente esse charuto o que o denunciou numa das salas do palcio do governo. O visconde viu no cho um grande charuto apagado e sentado perto dele um homenzinho gordo. Como por muito tempo o seu retrato houvesse aparecido em todos os jornais do mundo, foi fcil a identificao.

    Emilia fez o visconde descer a cartola. Ficou de p no alto e pronunciou um discurso um pouco diferente do pronunciado em Berlim. O Primeiro Ministro ingls no revelava medo nenhum do gigantesco visconde. Parecia um homem com-pletamente livre de todos os medos possveis e imaginveis.

    Meu senhor, disse ela por fim, o que houve foi um castigo por causa do crime da guerra. E nem haver mais necessidade disso. A verdadeira causa das guerras sempre foi o excesso de gente, diz dona Benta. Ora, este mal est remediado. Com dois dias de apequenamento, as galinhas, pintos suras, os pardais e os galos j devem ter posto a pique mais de um tero da tonelagem humana. Quer dizer que se o Tamanho reaparecer, haver espao vital para todos. Mas se apesar disso os homens teimarem em resolver os problemas humanos a tiros de canho em vez de acordos, o remdio eu j sei: uma voltinha na Chave do Tamanho e mais uns dias de novo apequenamento.

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    O Primeiro Ministro do Imprio Britnico franziu a testa. No estava compreendendo nada, nem podia com-preender. Era um homem extremamente simptico e inteli-gente. Emilia concordou com a admirao que dona Benta sentia por ele.

    Um dos mais interessantes aspectos mundo novo era o da enorme quantidade de avies despedaados. Todos os aparelhos que haviam erguido vo no dia do apeque-namento ficaram sem governo e foram caindo aqui e ali. O mesmo sucedeu aos trens e navios. Os trens em movi-mento descarilaram todos, depois que seus maquinistas viraram insetos. O mesmo desastre nos oceanos. Os navios transformaram-se em navios fantasmas, isto , que an-dam soltos pelo mar ao sabor dos ventos sem tripulao que os dirija. A cada passinho as ondas arremessavam um deles praia.

    Depois de longo passeio pelas ruas de Londres, muitas delas reduzidas a montes de runas, o visconde foi para o Japo.

    O aspecto das cidades japonesas era o mesmo das eu-ropias. Montinhos de roupa por toda parte, fardas, e tambm quimonos. Automveis escangalhados, trens arrebentados, avies despedaados.

    Onde o palcio do Imperador? quis saber Emilia. Em Tkio, respondeu o visconde e foram para l.Foi fcil em Tkio darem com o palcio do Imperador,

    e por mero acaso descobriram o soberano amarelo. O visconde vira numa das salas um gato brincando de dar tapinhas numa tampa de caneta-tinteiro cada no cho. Era o Gato Imperial o gato de estimao de Sua Majestade. Evidentemente havia dentro da tampa qualquer coisa que o interessava. No conseguindo fazer com que essa qualquer coisa sasse l de dentro, o gato ficou de banda, imvel, como fazem os gatos do mundo inteiro quando encontram um buraquinho de camundongo.

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    O visconde espantou o Gato Imperial e tomando a tampa da caneta virou-a de boca para baixo, sacudindo-a. Caiu de dentro uma tripinha cor de cuia. Era o Imperador do Japo, o filho do Sol.

    Captulo XXVIINo Kremlin

    A viagem Rssia foi a mais trgica de todas. O vis-conde parou na zona da guerra e assombrou-se. O frio era horrvel, muitos graus abaixo de zero, e aqueles mi-lhes de homens que os Ditadores tinham remetido para os gelos estavam todos mortos. Ao lado dos tanques e canhes viam-se montinhos de fardas em quantidade incrvel, em muitos pontos j totalmente recobertos pela neve. Nenhum inseto beligerante pde salvar-se depois do apequenamento. Nem procuraram sair de dentro das roupas desabadas, porque ento morreriam ainda mais de-pressa no entanguimento do frio exterior. Ficaram dentro das roupas e capotes, aproveitando o ltimo calorzinho. Em minutos, porm, os exrcitos alemes e soviticos viraram picols.

    Parece incrvel, mas no se salvou ningum, nem mes-mo os que estavam dentro das casas ainda de p, porque logo que os fogos acesos se apagaram o congelamento foi geral.

    O palcio do governo era o celebre Kremlin, onde haviam residido tantos tzares da Rssia antiga.

    O chefe sovitico deve estar ali, disse o visconde. um que tambm usa bigodes no bigodinhos, mas bigodes.

    O nmero de insetos existentes naquele ponto devia ser grande, no s por causa da imensido do palcio como pelos bons abrigos que os inmeros montes de peles proporcionavam aos insetos russos. Os russos sempre

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    se defenderam do frio por meio de roupas e capotes de peles e dos plos que deixavam crescer na cara as formidveis barbas e os bigodes. Cada monte de pele em que o visconde mexia, levantando uma aba ou manga de capote, punha mostra vrios insetos apavorados que corriam a esconder-se.

    Emlia lembrou-se dos tatuzinhos ou bichos-de-conta que vivem debaixo dos vos de pedra ou tijolo: assim que a gente ergue o tijolo, eles correm a esconder-se no escurinho mais prximo.

    Como fosse difcil, daquele modo, encontrar o Ditador, Emilia fez aplicao do faz-de-conta. Mandou que o vis-conde agarrasse um dos insetos mais bigodudos e, fazendo de conta que ele era o Ditador, disse-lhe:

    Senhor Ditador, isto que houve foi uma simples amos-tra do fim do mundo, mas estou inclinada a garantir que o mundo vai recomear com os mesmos tamanhos antigos. J estive em Berlim, onde intimei o Grande Ditador a parar com sua mania de matar gente. O Grande Velho de Londres tambm est avisado, e tambm o Filho do Sol, no Japo. Com o Ditador da Itlia no pude falar porque estava oculto num papo de galinha. Mas a verdade que o perodo de guerras da humanidade chegou ao fim. Daqui por diante s haver paz, paz e mais paz. Paz e amor. Paz e beijos. Paz e bigodes. Paz e bolinhos de Tia Nastcia. No sabe quem ? Aparea um dia l no sitio para conhecer essa ditadora do sal e da pimenta.

    O bigodudo inseto olhava, olhava, sem entender coisa nenhuma.

    Pois , continuou Emilia. Isso de ordens novas est muito bem. Faam quantas ordens novas quiserem, mas sem bombardeios de cidades, sem destruio de inocentes. Ns vivemos muito felizes no sitio do Picapau Amarelo, sem incomodar pessoa alguma, brincando de todos os brinquedos imaginveis. Somos a prpria felicidade em pessoa. Mas

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    imagine que um dia os senhores brigam e mandam os seus avies despejar bombas por l, a torto e a direito. E uma cai em nossa casa, e mata dona Benta, e explode tia Nastcia, e deixa Narizinho sem nariz, e Pedrinho sem mo para esticar o bodoque, e queima as barbas de milho aqui do meu amigo visconde. Ento isso direito?

    O inseto russo fez uma cara esquisita, que Emilia inter-pretou a seu modo.

    Sim, bem sei que no foram vocs que comearam. Quem comeou, quem botou fogo no mundo, foi o de bigodi-nho. Mas j estive l e passei-lhe um bom pito. Garanto que no se mete em outra. Esta lio do apequenamento foi uma lio de mestre. E se depois que o Tamanho volta (se voltar) os senhores Ditadores cometerem a asneira de nova guerra, sabe o que acontece? Uma certa pessoa vai ao Chavorio e desce a chave at o ltimo ponto o ponto do micrbio. Que chave? A Chave do Tamanho, homem. A chave que reduziu o seu bigode a esse tamanho e que pode tambm aumenta-lo ao tamanho antigo.

    Nesse momento Emilia firmou melhor a vista e comeou a lembrar-se dum general russo cujo retrato aparecera em muitas revistas, um general de bigodes to grandes que at espantava os inimigos.

    Espere. No estarei falando com o general Budieni, o bigodudo? Que acha visconde?

    O visconde achou que podia ser. Pois muito bem, concluiu Emilia. Se Vossa Excelncia

    no quem penso e sim o general do bigodo, faa o obsequio de dizer ai Ditador que senti muito no encontra-lo no Kre-mlin, e repita-lhe as minhas palavras. O Tamanho talvez volte, mas as guerras acabaram-se para sempre, seno...

    E voltando-se para o visconde: Podemos embarcar numa pitada para os Estados Unidos.O visconde enfiou o general sob uma manga de pele e

    pitadeou um fiunnnn para Califrnia.

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    Hipteses para as modifi caes

    Instigados pelas modificaes observadas no cotejo, podem-se levantar algumas hipteses que, embora de di-fcil comprovao, mostram-se amparadas pela histria da produo infantil de Monteiro Lobato, bem como pelas opinies manifestadas pelo prprio escritor a respeito da literatura endereada s crianas.

    As alteraes que poderiam ser associadas a um processo comum de lapidao do texto esto ligadas a preocupa-es que o autor demonstrava sobre o modo de se fazer textos literrios. Numa carta a Rangel, por exemplo, Lobato comenta o emprego adequado dos adjetivos em textos lite-rrios e, em A chave do tamanho, nota-se a reduo desses na edio de 1947, como no captulo intitulado Berlim, momento em que o discurso de Emlia sofre um enxu-gamento: em vez de as grandes fomes e as grandes pestes, o autor prefere fomes e pestes. Observe-se um trecho da correspondncia enviada ao amigo mineiro em 19 de agosto de 1905:

    A observao sobre os teus adjetivos pode ser genera-lizada. Apliquei-a aos teus porque me veio enquanto te lia. Nos grandes mestres o adjetivo escasso e sbrio vai abundando progressivamente proporo que descemos a escala dos valores. Um jornalistazinho municipal, coitado, usa mais adjetivos no estilo do que Pilogenio na caspa. (Lobato, A barca de Gleyre, 1956a, p.106)

    O cuidado com a confeco do texto seria por vezes assunto de discusses com seus contemporneos, compa-rando obras, recebendo e fazendo crticas de conhecidos, como faz com Rangel, comentando com muito bom humor o apuro estilstico do amigo:

    Mo