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UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE DIREITO RAQUEL DA SILVA MARINHO - 85682 O MALLEUS MALEFICARUM COMO A EFETIVAÇÃO DA JURISDIÇÃO DA CONSCIÊNCIA DA IGREJA CATÓLICA: UM PERCURSO POLÍTICO TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO Orientação: Paulo César Pinto de Oliveira VIÇOSA MINAS GERAS 2020

O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

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Page 1: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE DIREITO

RAQUEL DA SILVA MARINHO - 85682

O MALLEUS MALEFICARUM COMO A EFETIVAÇÃO DA JURISDIÇÃO DA

CONSCIÊNCIA DA IGREJA CATÓLICA: UM PERCURSO POLÍTICO

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

Orientação: Paulo César Pinto de Oliveira

VIÇOSA – MINAS GERAS

2020

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RAQUEL DA SILVA MARINHO - 85682

O MALLEUS MALEFICARUM COMO A EFETIVAÇÃO DA JURISDIÇÃO DA

CONSCIÊNCIA DA IGREJA CATÓLICA: UM PERCURSO POLÍTICO

Monografia, apresentada ao Curso de Direito da

Universidade Federal de Viçosa como requisito

para obtenção do título de bacharel em Direito.

Orientador: Paulo César Pinto de Oliveira

VIÇOSA – MINAS GERAS

2020

Page 3: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

À Alpinia zerumbet,

Criação sagrada,

Pela alegria que me traz.

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Page 5: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente à vida, de importância incomparável. Na sinfonia das suas

contingências e das minhas escolhas me foi permitido concluir este trabalho e a Graduação em

Direito.

Aos professores do Departamento de Direito, pelos ensinamentos e pela acolhida.

Sobretudo à Professora Débora Madeira e aos Professores do Grupo de Pesquisa em Direito,

Política, Economia e Sociedade -GP DIPES: Fernando Laércio, Roberta Guerra, Davi Lélis, e

meu orientador, Paulo César Pinto de Oliveira, quem, junto ao Conselho Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPQ, me ofereceu a oportunidade de uma

profunda experiência de pesquisa. Cada um, a seu modo e área, incrementou minha formação

não só com maestria teórica, mas com incentivo ao questionamento e crítica.

À Universidade Federal de Viçosa, por seguir enfrentando os desafios impostos às

instituições públicas brasileiras, sempre acreditando no seu papel social e oferecendo a tríade

de Ensino, Pesquisa e Extensão.

À UFV cabe o eterno amor por nela ter conhecido os amigos que me acompanharam ao

longo do curso, a quem agradeço por fazerem brilhar a reta, o Ru, as salas de aula, o cinema, as

ruas de Viçosa com um mundo radiante que se construía a cada ideia trocada. Assim como

agradeço às amigas que se mantiveram presentes e queridas, mesmo com a distância que a ida

para Viçosa provocou.

À minha família, pelo apoio integral nos estudos, desde a primeira infância. Sobretudo

pela companhia e pela paciência na reta final deste trabalho, realizado sob o confinamento

imposto pelo ano de 2020.

Ao André, pelo carinho e pela braveza, pelas três cordas que soam juntas. Se chego a

feitos grandes, no cotidiano ou no mundo a ser desbravado, é com a força do nosso amor, que

carrego comigo.

Agradeço, por fim, à inspiração menina, “passado no meu presente, sol bem quente lá

no meu quintal”, que aos 10 anos de idade escandalizou-se e riu quando soube ter existido um

livro que efetivamente instruía perseguir bruxas. Mas que, mesmo descobrindo resquícios deste

absurdo na sociedade atual, não abandona os desafios de pesquisar, de pesquisá-lo e de crescer.

Page 6: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

“Estes gerais enormes, em ventos, danando em raios, e fúria, o armar do trovão, as

feias onças. O sertão tem medo de tudo. Mas eu hoje em dia acho que Deus é alegria e

coragem –que Ele é bondade adiante, quero dizer. O senhor escute o buritizal. E meu coração

vem comigo.”

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

Page 7: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

RESUMO

Este trabalho de conclusão de curso foi desenvolvido com o objetivo de descrever as

condições históricas e político-jurídicas que permitiram a formação de um tribunal de

consciências construído pela Igreja Católica na Europa, entre os séculos XIII e XV. Sob o

amparo da metodologia histórico comparativa, encontra na Reforma Gregoriana as origens do

delineamento deste foro cuja matéria competente dizia respeito ao íntimo do indivíduo, que era

julgado pelo código de conduta da moral cristã. E, a partir disto, analisa a inserção do livro

Malleus Maleficarum- O Martelo das Feiticeiras dentro deste foro interno, sob a ótica da Igreja

enquanto instituição política emanadora de Direito. Encontra na heresia como crime à ordem

social e na atribuição do combate desta pelos dominicanos, junto ao conceito do corpo feminino

como sede do pecado carnal, pontos decisivos. Como resultado, expõe um panorama sobre as

repercussões da identidade entre Direito e Moral na desconstituição do mundo Medieval e início

da Modernidade jurídica.

Palavras-chave: Foro da consciência; Reforma Gregoriana; Malleus Maleficarum, Direito e

Moral; Idade Média.

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ABSTRACT

This work was written with the main goal to describe the historical, political and legal

conditions that provided the creation of a forum of conscience by the Catholic Church among

the XIII and XV centuries. Supported by the historical comparative method, it has found in the

Papal Revolution the origins of this venue’s path, which jurisdiction meant about one’s inner

self being judged by the Christian moral’s code of conduct. From that view, taken the Church

as a political institution able to create and provide Law, the book Malleus Maleficarum is

analyzed as a product and species of the court of conscience. Thus, heresy as a crime against

the social order, as well as it’s dominican campaign against the heretics, combined with the

concept of the female body as a privileged place for the carnal sin has found to be decisive

points. As a result, this work exposes a panoramic view of the repercussions caused by the

identity between Law and Moral during the deconstruction of the Medieval world and

beginning of the Legal Modernity.

Keywords: Forum of conscience; Papal Revolution; Malleus Maleficarum; Law and Moral;

Middle Ages.

Page 9: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 8

2. O PROCESSO DE FORMAÇÃO DAS JURISDIÇÕES NA EUROPA A

PARTIR DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CRISTIANISMO .................................... 11

2.1. A História Externa do Direito Romano e o fim do Império Romano ................ 12

2.2. A justiça cristã e a institucionalização do cristianismo ....................................... 14

3. OS TRIBUNAIS NA ALTA IDADE MÉDIA A PARTIR DA RELAÇÃO

ENTRE O DIREITO CANÔNICO E O DIREITO SECULAR......................................... 20

3.1. O advento do Império de Carlos Magno .............................................................. 21

3.2. A ordem jurídica medieval .................................................................................... 22

3.3. Soberania medieval e Iurisdictio ............................................................................ 23

3.4. A transição para a Baixa Idade Média e a religião na disputa pela soberania . 25

4. A REFORMULAÇÃO JURISDICIONAL PROMOVIDA PELA REFORMA

GREGORIANA ...................................................................................................................... 28

4.1. A modificação jurisdicional da Reforma Gregoriana ......................................... 29

4.2. A queda da plenitude de poder idealizada pela Igreja: Séculos XIII e XIV ..... 32

4.2.1. A crise espiritual ....................................................................................................... 32

4.2.2. O desenvolvimento do Direito ante à multiplicidade de foros ................................. 34

5. A FORMAÇÃO DO TRIBUNAL DA CONSCIÊNCIA CRISTÃO .................. 39

5.1. Confissão e jurisdição ............................................................................................. 40

6. PECADO, INQUISIÇÃO E O MANUAL DE CAÇA ÀS BRUXAS .................... 44

6.1. A relação entre o laico e o religioso no século XV ............................................... 46

6.2. Surgia o Martelo das Feiticeiras............................................................................ 47

7. CONCLUSÃO ......................................................................................................... 54

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 59

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1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem origem nas pesquisas realizadas enquanto bolsista de iniciação

científica pelo CNPq, com o projeto “As raízes do legalismo jurídico contemporâneo: uma

análise a partir da dissolução do mundo jurídico medieval”, sob a orientação do Professor Paulo

César Pinto de Oliveira, durante o segundo semestre de 2018 e o primeiro semestre de 2019.

Foi oportunidade para, com as discussões teológicas, filosóficas e jurídicas que marcaram o

horizonte histórico da formação do direito no ocidente cristão, identificar as bases teóricas para

desenvolver este trabalho de conclusão de curso dentro da temática do livro “Malleus

Maleficarum, O Martelo das Feiticeiras”, lançado em 1487, como a efetivação da jurisdição da

consciência da Igreja Católica.

Para Walter Ullmann (1999, p.14-15) a história das ideias políticas na Idade Média se

define pela história do conflito entre as teorias ascendente e descendente sobre justificação do

poder. Primeiramente, porque o Cristianismo impôs-se sobre os povos germânicos mudando

sua estrutura política, na medida em que transforma a atribuição da origem do poder político,

antes baseado nas decisões de comunidades e de clãs (teoria ascendente), para concebê-lo

advindo de um poder supremo, ao qual toda a comunidade deveria obedecer (teoria

descendente), isto é, do alto ao chão. No caso, toda autoridade viria de Deus, sendo qualquer

forma política terrestre uma delegação ou representação do poder divino. E, com o decorrer do

tempo, a partir do século XIII, já no Baixo Medievo, a teoria descendente de governo começa

a observar o seu processo de enfraquecimento, até praticamente desaparecer na atualidade

(ULMANN, 1999, p.14-15).

Sob as diretrizes da teoria descendente sobre o poder e motivada por um ideal de

liberdade da Igreja em face da investidura dos príncipes, que representava o controle da política

secular sobre a composição do corpo eclesiástico, a Igreja Católica passa, no século XI, pela

chamada Reforma Gregoriana, desenvolvida sob a ideia de que o clero, enquanto autoridade

espiritual, tinha a missão de reformar o mundo secular, posicionando-se hierarquicamente

acima dele (BERMAN, 2006, p. 136-137). O que representou, sob a perspectiva do historiador

do Direito Harold J. Berman (2006, p. 142-145), não só uma reforma interna, mas uma

revolução, na medida em que a Igreja, ao atribuir ao Papa as qualidades de um soberano,

concedendo-lhe a capacidade de fazer leis e o atributo de juiz supremo, dentro de uma real e

hierarquizada estrutura judiciária composta pelas paróquias e dioceses; bem como por

Page 11: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

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incentivar a sistematização do Direito no seio das Universidades, lançou ao mundo as bases que

constituíram o Estado moderno.

Isto permite verificar, a partir da Reforma Gregoriana, o “itinerário moderno do Direito

à lei”, conforme identificado pelo historiador do Direito Paolo Grossi (2007, p. 25-46), em que

a lei toma para si a sacralidade outrora atribuída à ordem natural cristã, fazendo com que surja,

pela identificação do direito enquanto lei-vontade, o problema de abrir espaço para a

subordinação de todos a algo afastado de um conteúdo justo e adequado à vivência da

comunidade.

Embora já no nascedouro da modernidade jurídica, o conteúdo das regras emanadas

pelas autoridades civis ou eclesiásticas da Baixa Idade Média era um reflexo da intrincada

relação entre os pressupostos éticos e religiosos, que conferiam um caráter jurídico à moral

cristã dentro da sociedade medieval (GROSSI, 2018, p. 791-795).

Ainda, com o desenvolvimento da capacidade jurisdicional da Igreja pós-Reforma

Gregoriana, sob o conceito de heresia como crime lesa-majestade, permitiu-se que pensamentos

e desejos íntimos das pessoas fossem tidos como pecado oculto, passível de punição terrena

(PRODI, 2005, p. 97-100). O que, porque persistia a autoridade espiritual da Santa Sé em face

de toda a sociedade cristã, demonstra um campo de jurisdição exclusiva, isto é, dentro do foro

interno um sistema de justiça concorrente com os sistemas dos poderes terrenos (PRODI, 2005,

p.179-180).

Neste contexto, é visualizada hipótese de ter sido o Martelo das Feiticeiras, um manual

para inquisidores, elaborado por frades dominicanos, que, partindo-se da ideia de maior

predisposição à tentação e ao pecado, associava às mulheres a culpa pela disseminação do mal

no mundo (PORTELA, 2017, p. 252; 273), uma das últimas tentativas da Igreja Católica para

manter-se de pé como instituição política, diante do confronto com os poderes laicos.

O presente trabalho se justifica pela necessidade de elucidar como a perseguição e a

violência vêm inseridas na efetivação do poder estatal desde as mais remotas origens da tradição

jurídica ocidental, agora voltada à dualidade entre Igreja e poder político. Algo aqui

exemplificado pela caça aos hereges e, dentre eles, as bruxas, mas que revela a pertinência do

alerta aos Estados contemporâneos no sentido de ser permanente o risco de fundamentalismo,

ante a contínua sacralização da política1. Ainda, sob os olhos da deturpação que esta questão

1 Conforme pode-se perceber na minuciosa obra Uma história da Justiça, de Paolo Prodi (2005).

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representa sobre os preceitos do cristianismo originário, amor e caridade, o trabalho se justifica

também pela oportunidade de provocar reflexões sobre a corrente necessidade de uma

reformulação ética.

Diante disso, o objetivo geral deste trabalho de conclusão de curso é descrever as

condições históricas e político-jurídicas que permitiram a formação de um tribunal de

consciências na Europa entre os séculos XIII e XV, isto é, de um foro cuja matéria

competente dizia respeito ao íntimo do indivíduo, sob a normatividade do código de conduta

da moral cristã. Trata-se de uma obra de História do Pensamento Jurídico que, mais

especificamente, visa traçar um percurso em história da jurisdição.

Assim, são perpassados os objetivos específicos de investigar a formação das jurisdições

da Europa a partir da institucionalização do cristianismo; descrever os conteúdos jurídicos na

Alta Idade Média tendo em vista a relação entre o canônico e o laico; descrever a reformulação

jurisdicional provocada pela Reforma Gregoriana e, a partir da configuração política no

prenúncio da modernidade, descrever a formação do tribunal da consciência, analisando

também a inserção das noções sobre o pecado e o corpo feminino dentro deste foro.

Para atingir seu escopo a presente pesquisa foi realizada sob a metodologia histórico-

comparativa, que, a partir da seleção e fichamento dos textos, propõe a leitura cruzada de seus

conteúdos, com a finalidade de perceber os elementos comuns ou particularidades, a orientação

das ideias e como elas são conduzidas na história. Os textos são interpretados dentro da

abordagem hermenêutica da historiografia, que, nas lições de Pietro Costa (2010, p. 17-62),

consiste em assumir o trabalho do historiador do direito como interpretação e metalinguagem:

o campo lexical da cultura presente é colocado a dialogar e traduzir a linguagem do tempo

estudado a fim de se produzir uma narrativa, o discurso histórico-jurídico. E, nessa sistemática,

há o cuidado para não incorrer em anacronismos. Pois, quando se fala em linguagem do tempo

estudado é no sentido de reconhecer, dentro da delimitação temporal, os processos sociais

próprios e os discursos produzidos em relação a esses processos, em síntese, considerar práxis

e cultura de um período (COSTA, 2010, p. 63-78).

Portanto, o trabalho é dividido em três momentos principais, o de delineamento da

identidade da Igreja Católica como instituição política; a formação do tribunal das almas a partir

desta institucionalização e o processo de identificação da feitiçaria como um mal a ser

combatido pela Inquisição.

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2. O PROCESSO DE FORMAÇÃO DAS JURISDIÇÕES NA EUROPA A PARTIR

DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CRISTIANISMO

Para o historiador do direito Paolo Prodi, jurisdição ou foro é definido “como local físico

ou simbólico em que justiça como juízo sobre o comportamento humano é concretamente

exercida (...), lugar onde a lei e o poder se encontram com a realidade cotidiana dos homens”

(PRODI, 2005, p. 7-9).

Neste sentido, acata-se a atribuição das ordens política, moral e religiosa como origem

do foro, na medida em que “o elemento comum é o de tomar concreta uma norma (divina,

natural ou humana) num caso concreto mediante um poder de coerção” (PRODI, 2005, p.10).

Essa perspectiva de jurisdição encontra ressonância na definição de Direito apresentada

por Paolo Grossi: um fenômeno inserto na cultura, oriundo da sociedade, ordenador dela, que

adquire imperatividade se inserido em um aparato de poder e, porque originado na sociedade,

dotado de historicidade (GROSSI, 2006, p. 6-25). A respeito, preconiza o autor que:

O direito não é necessariamente coligado a uma entidade social e

politicamente autorizada, não tem como ponto de referência necessário aquele

formidável aparato de poder que é o Estado moderno, ainda que a realidade

histórica que nos circundou até hoje ostente o monopólio do direito operado

pelo Estado. O ponto de referência necessário do direito é somente a sociedade

como realidade complexa, articuladíssima, com a possibilidade de que cada

uma das suas articulações produza direito(...) (GROSSI, 2006, p.11).

Desta forma, pode-se afirmar pela existência de jurisdição ainda que não diga respeito

à aplicação de um direito positivado e inserido em uma ordem estatal.

Pode-se também enxergar um universo jurídico de outra realidade histórica, como o

período medieval, articulado por múltiplos entes, isto é, caracterizado por um pluralismo

jurídico, na medida em que conviviam o poder secular, com reinos, senhores locais, estatutos

de cidades e a Igreja (GROSSI, 2014).

Em outras palavras, conforme aduz Hespanha (2005, p. 62-69), antes do predomínio da

ideologia estatalista – como se deu no início do século XIX, a Europa era consciente da

multiplicidade política e jurídica que a compunha, por isto fala-se em pluralismo jurídico, no

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sentido de que eram reconhecidos centros autônomos de poder, cujos âmbitos normativos

tinham eficácia própria e cuja convivência era naturalizada pela sociedade1.

2.1. A História Externa do Direito Romano e o fim do Império Romano

Giordani, com base na divisão realizada por Leibniz sobre a história romana, define que

“a História Externa tem por objeto o estudo das instituições políticas e sua atuação como fontes

produtoras do direito; a História Interna visa a conhecer os institutos do direito privado em sua

formação e ulteriores desenvolvimentos” (GIORDANI, 1996, p. 2). Com base nesta

classificação, por ser capítulo cujo objeto abarca a institucionalização da Igreja e não a

designação da origem de institutos, pode-se afirmar que nos concerne apenas a história externa

do Direito Romano, que diz respeito à configuração política do Império e ao direito dela

emanado.

A história externa do Império Romano é subdividida em:

Realeza (da fundação de Roma até o início da República em 510 a.C.).

República (de 510 a. C. até a batalha de Actium, 31 a. C.). Império subdividido

em: a) Principado (do início do reinado de Augusto até o reinado de

Diocleciano). No principado o imperador é o “primeiro” (princeps) dos

cidadãos, mas submetido às leis como os demais. b) Dominato (do reinado de

Diocleciano (284-305) até a morte de Justiniano em 565) (GIORDANI, 1996,

p.2)

Considerando-se o enfoque deste trabalho, que parte do surgimento do cristianismo, nos

atemos ao período imperial. Destaca-se, porém, que seja na Realeza, seja na República, ou no

próprio Império, a experiência do estado romano não se dissociava da experiência religiosa. Os

Imperadores “eram os primeiros da res pública e sumos sacerdotes da religião do Estado”

(RIBEIRO, 1995a, p.14).

Dentro do período imperial, o Principado ou Alto Império é caracterizado pela

concentração dos poderes sobre o imperador, que intervinha sobre as outras instituições, como

o Senado; período marcado também pela expansão territorial e pela concessão da cidadania

1 Embora não seja o enfoque deste trabalho, afirma-se que o pluralismo jurídico não se trata de fenômeno

adstrito ao Medievo, mas que encontra manifestação contemporânea, porque oriundo da multiplicidade

de sistemas culturais da prática humana, de forma a ter morada também no convívio ou conflito entre o

Direito oficial e o tradicional ou oriundo das práticas locais (HESPANHA, 2005, p. 505).

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romana a todos dentro da vastidão do Império, que abrangia da Inglaterra ao Oriente Médio,

com o edito de Caracala, de 212 (GILISSEN, 2003, p. 83-84).

E por Dominato ou Baixo Império designa-se período de crises política, econômica e

religiosa, no qual o Imperador governava absoluto, como único legislador; foi também onde

houve o Edito de Milão (313), que instituiu a liberdade religiosa e inseriu a organização da

Igreja dentro do quadro político-administrativo do Império Romano (GILISSEN, 2003, p. 84-

85). Foi, ainda, no Dominato que se deu a bipartição em Império Oriental e Império Ocidental.

Há múltiplas teses a respeito da queda do Império Ocidental, em 476 a.c., apontando-se

como alguns fatores a insolvência do Estado romano, enfraquecimento militar, rebeliões

internas e o processo de substituição do modo de produção escravagista por economia agrária

e de escambo, baseada em trabalho servil, um prenúncio do feudalismo (WOLKMER, 2006,

p.104-107). Para Wolkmer, esses fatores fazem das invasões sofridas em 476 a.c. apenas “o

último passo do processo de desintegração” (WOLKMER, 2006, p. 105).

No século IV, dentro do Baixo Império, o cristianismo ganha espaço significativo,

considerando-se o Edito de Milão, de 313, que permite o culto cristão; o Concílio de Niceia, de

325, que estrutura a Igreja enquanto católica, apostólica e romana; e o Edito de Tessalônica, de

380, que afirma o cristianismo como religião de estado e abole o politeísmo (HORTA;

SALGADO, 2011, p. 10142 - 10143).

Junto à liberdade de culto instituída pelo Edito de Milão havia também o interesse do

Imperador Constantino em manter a unidade política do Império, ante a vitalidade do

cristianismo e a crise imperial, de modo que, embora cristãs, algumas correntes doutrinárias

foram tidas como hereges por ferirem a unidade religiosa e a ordem social, destacadamente o

arianismo, que entendia pela subordinação do Filho ao Pai (ROMAG, apud SOUZA, 1995a, p.

63). Por isso, em 325 o imperador convocou todos os bispos do Império para a realização do

Concílio de Nicéia, voltado a discutir e combater o arianismo e outras doutrinas do cristianismo

primitivo. Como resultado:

Pelo Concílio, ficou condenado o arianismo, reafirmando-se a

consubstancialidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, posição que se

consolidaria em definitivo pelo Edito Cunctos Populus. Para além do

problema do arianismo, o Concílio de Nicéia teve, ainda, um papel essencial

para a unidade da Igreja, tanto em plano doutrinário, quanto no que tange às

bases para a construção de sua estrutura. No Concílio, estabeleceramse as

bases centrais do Catolicismo: o Credo niceno, a estrutura (em conteúdo e em

ordem) da Bíblia Sagrada, as bases canônicas da Igreja. Eis uma síntese do

Page 16: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

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legado niceno: uma Igreja Una, Santa, Católica, Apostólica e especialmente

ungida como herdeira da cultura romana. Aí está a imensa riqueza do advento

niceno: ali, nascia um Cristianismo romanizado, na grande síntese cultural que

permitiria a permanência do antigo - sua sobrevivência - no tempo novo que

se iniciava (HORTA, SALGADO, 2011, p. 10143).

Isto é, ali, no seio de um evento mediado pelo imperador foi estabelecida a identidade

da Igreja: universal (significado da origem etimológica grega katholikós), fundada pelos

apóstolos, centralizada em Roma e herdeira dela, com fé na consubstancialidade de Pai, Filho

e Espírito Santo.

Deste modo, com o advento do Edito de Tessalônica (380), Horta e Salgado (2011)

concluem que a ordem da Igreja não se dissociava da ordem política romana, que, por sua vez,

repercutia na estrutura da organização religiosa. Neste sentido, apontam:

A confusão das ordens política e religiosa fatalmente levaria a uma inafastável

interferência do Direito Romano na futura formação do Direito Canônico. Se

por um lado o resgate da vitalidade do Direito Romano se dá apenas no século

XII, a partir do intenso trabalho das Universidades, por outro não se pode

desconsiderar que os laços estabelecidos entre o mundo pagão e o mundo

cristão, ainda na Antiguidade, deixariam marcas indeléveis na cultura cristã e

no Direito que esta construiu. Sendo assim, a posterior recepção do Direito

Romano, de extrema expressividade já na aurora renascentista, não deixou de

ser verificada, ainda que timidamente e, devido às contingências históricas,

muitas vezes precariamente ao longo de todo o Medievo. Seus reflexos se

fazem sentir, ecoam, vez ou outra na arquitetura jurídica medieval (HORTA,

SALGADO, 2011, p. 10143).

Assim, embora intrinsecamente atrelada a estrutura estatal, o fim do Império Romano

não significaria o fim da Igreja como instituição, mas um marco importante para a sua trajetória

enquanto tal, na medida em que nutriu-se do Direito Público e do Direito Privado Romano.

2.2. A justiça cristã e a institucionalização do cristianismo

A mensagem de Cristo ou, mais precisamente, os fundamentos da Igreja original, tinham

como campo a consciência dos indivíduos, marcada pelo amor a regê-los. A justiça para o grupo

dos cristãos originários era, então, uma máxima virtude, vivida de modo afastado da política

(KELLY, 2010, p.116), como determina a máxima em São Mateus (22:21),“dai, pois, a César

o que é de César e a Deus o que é de Deus”.

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15

Mas, enquanto organização, o corpo dos fiéis, isto é, a Igreja cristã não restou imune ou

de todo afastada das leis criadas pelos homens, já no início de sua história. Para o historiador

do Direito John Kelly (2010, p.116), isso teria se dado pela exigência, diante da convivência e

do conflito com o mundo pagão, de produzir, à luz da fé religiosa, a própria leitura jurídica e

política de categorias romanas e dos povos com que esta teve contato, a fim de perpetuar no

tempo. Nesse sentido:

Contudo, a ideia de normatividade, de regulamentação, de subordinação

[romanas] logo infiltrou-se na Igreja Cristã, mesmo porque a própria Igreja

era uma organização e, como tal, não podia deixar de ter regras. Porém, os

pontos de divergência entre os cristãos e o mundo pagão exigiam que eles

pensassem os axiomas intelectuais daquele mundo- a natureza do Estado, a

fonte do direito de governar, a lei da natureza, as instituições da propriedade

que as implicações da doutrina cristã puseram em questão- e, assim, o

cristianismo desenvolveu sua própria teoria do direito e teoria política. Ela não

era monolítica e uniforme, nem original em todos os aspectos, pois alguns de

seus conteúdos eram da filosofia antiga, relançada com trajes cristãos; mas

deu àquelas ideias antigas a força da fé religiosa e, desse modo, assegurou sua

sobrevivência ao longo dos séculos em que a fé religiosa foi o fator central

da vida ocidental (KELLY, 2010, p.116).

Outra perspectiva que se mostra é aquela que afirma a influência, já presente na tradição

bíblica, de uma lógica legalista na constituição da doutrina e dos dogmas cristãos, lógica que

se consolidou sob os moldes da estrutura de direitos e deveres da jurisprudência romana

(ULMANN, 1999, p. 23).

Para que essa difusão cultural do Cristianismo ocorresse, foi fundamental a

institucionalização da Igreja, que se deu por meio de sua incorporação ao Estado Romano já

decadente. Com o Edito de Milão (313) os cristãos, antes perseguidos, passam a ter sua religião

equiparada às demais religiões. Mas não só isso, de acordo com as lições de Ribeiro (1995a,

p.15), Constantino concebe seu imperium2 como advindo de Deus e a Igreja como um

instrumento da política imperial a ele subordinada, o que resultou no aumento progressivo do

2“Os mais altos magistrados [cargos] de Roma (ditadores, cônsules e pretores) dispunham de uma vasta

soma de poderes compreendida sob a designação de imperium. Segundo Homo, este poder ‘comportava

ao mesmo tempo a administração civil do território, o comando das tropas, o exercício da justiça, numa

palavra, o conjunto de atribuições civis, militares e judiciárias’” (GIORDANI, 1996, p.76). No

Principado houve a concentração dos poderes republicanos, isto é, do imperium, na pessoa do príncipe

e, no Dominato, uma centralização ainda maior no imperador, que deixa “de ser o princeps (primeiro

dos cidadãos) para tornar-se o dominus (o senhor)”(GIORDANI, 1996, p.88).

Page 18: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

16

privilégio político da Igreja, que adquiria templos, terras e funções de governo paralelamente à

sua liberdade de culto e ao seu ministério espiritual.

Ao final do século IV, Teodósio converte o Cristianismo em religião oficial do Império

e passa a conferir ao corpo eclesiástico competência administrativa e jurisdicional, relegando a

um plano inferior as demais religiões (RIBEIRO, 1995a, p. 15-16).

O Império Romano, cindido em Ocidental e Oriental, via crescer no Oriente sua raiz

bizantina, que se manifesta na forma de uma teocracia centralizada na figura do imperador,

denominada cesaropapismo e, no Ocidente, discutia-se o papel do Papa, enquanto autoridade

central, frente aos bipos, potestades locais (RIBEIRO, 1995b, p.46-47).

No início, a Igreja era composta por pequenas federações chefiadas por bispos e o bispo

de Roma era apenas um dentre os demais, porém, veio a se estabelecer a tese de soberania

Papal, apontando-se como causas históricas a peregrinação para os túmulos de Pedro e de Paulo

na cidade de Roma, a posição central da cidade e a incorporação da Igreja ao Império Romano

(RIBEIRO, 1995b, p.45-47). Tratava-se do primado de Pedro, elaborado pelo papa Leão I (440-

460), que consistia na tese de que os poderes papais existiam por investidura de Cristo a Pedro,

de modo que quem sucedesse o posto de São Pedro, adquiriria também a autoridade de Cristo

e não só a autoridade dos apóstolos, como ocorria com os bispos (RIBEIRO, 1995b, p. 45-60).

Para Walter Ulmann (1999, p. 26-28) o primado de Pedro significou uma abstração

jurídica de feitos bíblicos e históricos que conferiu ao Papado uma natureza monárquica, onde

os poderes outorgados eram os de atar e de desatar as chaves do céu, isto é, concernentes à

salvação, ao caminho do indivíduo, marcado pela mácula do pecado original, para se encontrar

com Deus.

Realizou-se também a distinção entre os atributos do cargo e aqueles de quem o ocupa,

de modo que não importaria a vida pregressa deste, “o importante era que exercia seu cargo

legitimamente e que seus decretos, leis e ordens, em outras palavras, seus atos de governo,

constituíam uma consequência das funções oficiais como papa”3(ULMANN, 1999, p. 28,

tradução nossa).

3“Lo importante era que ejercía su cargo legitimamente y que sus decretos,leyes y órdenes, en otras

palavras, sus atos de gobierno, constituían uma consequencia de sus funciones oficales como papa”.

Page 19: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

17

Deste modo, quando se finda o Império Romano do Ocidente, resta ali, em um mundo

ruralizado, somente a Igreja enquanto ente organizado, guiado pelo Papa. Ela concentrou em si

a autoridade de Roma em todos os seus atributos:

Em 476 caiu o Império e o Estado fracionou-se. Das ruínas restou a Igreja,

única força organizada. Ancorada no prestígio que lhe dava sua doutrina,

detentora da cultura, possuidora de bens e terras, pôde consolidar

progressivamente sua posição. Por isso, da autoridade soberana, imperial e

universal de Roma fez-se a herdeira presuntiva (RIBEIRO, 1995a, p. 21).

Eram autoritas, potestas e imperium4 conjugados com a liderança espiritual, agora

cristã. A posição de herdeiro de Roma veio a se tornar meio de legitimação política e, como se

verá adiante, centro da disputa entre os poderes espiritual e secular, tendo como significativo

exemplo a coroação de Carlos Magno como Imperador.

Pergunta-se, então: o que essa trajetória de institucionalização significou no campo da

jurisdição?

O corpo eclesiástico, desde o princípio, era competente para resolver os conflitos entre

cristãos, evitando que fossem dirigidos a foros romanos. E, com o crescimento da Igreja dentro

do Império Romano, consolidou-se um poder jurisdicional exercido pelos bispos, que aplicava

um Direito misto, romano e cristão (BACELAR, 2018, p. 46).

Deve-se destacar que congregação dos fiéis é, originariamente, também uma autoridade

jurídica, incumbida de regular todos os aspectos da vida da comunidade, e, por isso, dela

advinha o poder de produção normativa, de decisão e de sanção. Nesse sentido:

Nos primeiros séculos a autoridade jurídica da Igreja – assente, sobretudo, no

episcopado, participante do poder de Cristo (sacerdote, profeta e rei) –, se

afirma e exerce a partir de quatro grandes vertentes: a legiferação, a

administração da justiça, a aplicação de sanções e a intervenção papal. Com

efeito, no período a produção normativa ficava a cargo dos bispos; tanto na

atuação conciliar e sinodal, quanto na prescrição de condutas aos fiéis de cada

igreja particular. É preciso notar, contudo, que conquanto os concílios e

sínodos fossem dotados de autoridade, resulta difícil precisar o alcance

territorial das disposições legais, bem como as consequências decorrentes do

descumprimento destas determinações. A administração da justiça, nesse

momento, caracteriza-se primordialmente pela solução dos conflitos dentro e

entre as comunidades. Destaca-se desde muito cedo uma competência penal

4 Poderes que são, em apertada síntese, respectivamente, o poder ancião e consultivo que fundava o

Senado Romano e a própria cidade; o poder deliberativo oriundo do povo romano e o poder supremo,

civil e religioso, que chancelava o rei ou o imperador (GIORDANI, 1996, p. 62 e GILISSEN, 2003, p.

81-84).

Page 20: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

18

que abrange o julgamento de certos delitos especiais, próprios do campo

dogmático e doutrinal (BACELAR, 2018, p.44).

Aponta-se, portanto, que, embora não fosse senhora do poder de coerção tal qual o

Império detinha, houve um fortalecimento da Igreja enquanto julgadora de delitos definidos

pela ética cristã.

Para Paolo Prodi (2005, p. 24-26), o avanço da Igreja nos primeiros séculos não se deu,

porém, sem que ocorresse uma dualidade institucional, pois, para os cristãos, Cristo era o

máximo legislador, sendo as leis divinas expressas nas leis naturais, de modo que, como para

os estoicos, a ordem cósmica não era mais a mesma que a ordem política. Existia um direito

natural5 e, consequentemente, uma justiça superior, diversa das leis escritas, constituindo um

conjunto de comandos a ser administrado pela comunidade cristã, na figura da Igreja. Por sua

vez, em relação ao Estado Romano, “não se coloca em discussão a ordem estabelecida e não se

autoriza a revolta” (PRODI, 2005, p. 24-29).

Forma-se o que o autor denomina de dualismo de foro no Ocidente, caracterizado pela

coexistência entre o foro externo, secular, e o foro interno, onde reside a consciência, espiritual,

e onde a penitência é capaz de atingir; ainda que, muitas vezes, fosse uma mesma corte

julgadora. Em outras palavras, uma separação entre justiça de Deus e justiça dos homens, entre

jurisdição e sacramento, ambos incidentes na vida das pessoas. Separação essa que viria a se

desconstituir, numa tentativa de formação de uma única ordem, posteriormente, no século XI,

como efeito da Reforma Gregoriana (PRODI, 2006, p. 42- 53).

Findo o Império Romano do Ocidente, o Cristianismo, então, propagou-se pelo

continente europeu a partir da conversão dos povos germânicos. Conforme Berman (2006),

esses povos, regidos por direito costumeiro, guardavam forte ligação com os valores

comunitários, de modo que a ideia cristã de comunidade universal, que transcendia clãs, tribos

e territórios, foi fundamental para que tal expansão ocorresse.

Ainda, não havia intuito de reforma das instituições sociais, mas apenas a pregação da

moral cristã, para uma vida regida por trabalho e oração, em direção ao céu. E a moral cristã

era um recurso discursivo utilizado para que as instituições jurídicas germânicas fossem

5 É um termo polissêmico, porém, “(...) quem se inspira na tradição cristã identifica-o como uma

mensagem de Deus-pessoa instilado beneficamente no coração de todos os homens(...) A ideia do direito

natural deve[sempre] ser colocada em estreita dialética com aquela do direito positivo” (GROSSI, 2006,

p.70-77).

Page 21: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

19

desvalorizadas, contudo, os líderes germânicos continuavam líderes religiosos, capazes de

interferir na liturgia e na nomeação dos clérigos (BERMAN, 2006, p. 67-82).

Se, por um lado, os monastérios espalhavam-se, irradiando os preceitos cristãos para a

vida futura, por outro, permanecia o dualismo institucional entre Igreja e poder secular, dada a

sua integração à sociedade. Porque “a religião estava unida à política, à economia e ao Direito,

assim como estes estavam unidos entre si. As jurisdições secular e eclesiástica estavam

intrinsecamente juntas” (BERMAN, 2006, p. 81).

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3. OS TRIBUNAIS NA ALTA IDADE MÉDIA A PARTIR DA RELAÇÃO ENTRE

O DIREITO CANÔNICO E O DIREITO SECULAR

A Alta Idade Média, compreendida entre os séculos V a X, abrange o período de êxodo

rural e de invasões bárbaras, até a dissolução do Império Carolíngio e o chamado renascimento

do século X, marcado por um progresso econômico a partir de novas técnicas agrícolas e rotas

comerciais (LE GOFF, 2005, p. 31-55). Conforme explica Le Goff (2005), em um continente

inicialmente desorganizado e violento, a vida religiosa era elemento de coesão política:

Na desordem das invasões, bispos e monges - tais quais São Severino -

tornaram-se chefes polivalentes de um mundo desorganizado: ao seu papel

religioso agregaram um papel político ao negociar com os Bárbaros;

econômico, ao distribuir víveres e esmolas; social, ao proteger os pobres

contra os poderosos; até mesmo militar, ao organizar a resistência ou lutar

"com armas espirituais" quando as armas materiais não existiam. Por força das

circunstâncias, tinham feito o aprendizado do clericalismo, da confusão dos

poderes. Pela disciplina penitencial, pela aplicação da legislação canónica (o

princípio do século 6º é a época dos concílios e dos sínodos em paralelo aos

códigos civis), tentavam lutar contra a violência e moderar os costumes. (...)

Mas os próprios líderes eclesiásticos, barbarizados ou incapazes de lutar

contra a barbárie dos grandes e do povo, ratificam uma regressão da

espiritualidade e da prática religiosa, permitindo os juízos de Deus, o

desenvolvimento desenfreado do culto das relíquias, o reforço aos tabus

sexuais e alimentares - em que as tradições bíblicas mais primitivas se aliam

aos costumes bárbaros (LE GOFF, 2005, p.40).

A regressão da espiritualidade descrita pelo autor nos indica que, embora tenha

permanecido como autoridade religiosa, mais uma vez, agora em outro contexto, a Igreja

recolhia o efeito de sua inserção política. O poder canônico e o secular estavam umbilicalmente

ligados, na medida em que os bispos eram, em sua maioria, de origem das aristocracias dos

grandes proprietários de terras dos reinos, sendo investidos no cargo por elas e designados para

cumprirem a função administrativa ou de conselho no governo secular (LE GOFF, 2005, p.41).

Isto significa que, tendo por regra a intervenção do soberano, inclusive na investidura

do cargo eclesiástico, há influência direta na composição pessoal e no viés de atuação da Igreja.

Era comum a prática de simonia, compra e venda de cargos eclesiásticos e também do

nicolaísmo, casamentos e concubinatos clericais, uma forma de envolver bispos e padres a

vínculos mais estreitos com políticas locais e de clãs (BERMAN, 2006, p. 117). Nesse período,

assim, predominava a subordinação da Igreja ao poder secular.

Page 23: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

21

3.1. O advento do Império de Carlos Magno

A inserção definitiva da Igreja dentro do poder político medieval se dá com o modelo

do Império carolíngio, a partir da coroação de Carlos Magno, em 800, que instituiu o Sacro

Império Romano Germânico na medida em que seu imperador, Carlo, de origem germânica,

quando coroado pelo Papa Leão III, tomou para si a autoridade da cidade de Roma que a Igreja

vinha mantendo desde o fim do Império Romano, estabelecendo uma relação de controle e

proteção para com a Igreja (HORTA, SALGADO, 2011, p. 10145-10146).

Berman (2006, p. 84-85; 114) explica que caberia ao Imperador, em nome de Deus e

por investidura da Igreja, dirigir tanto a violência para proteger o império, a cidade ou a

jurisdição secular, quanto agir em defesa do Papa e da Igreja Católica contra a fé pagã. Já o

controle da Igreja pelo Império se dava pelo manipulação da estrutura interna por líderes leigos,

utilizando-se do bispado como principal instância da administração civil, e, principalmente,

pelo poder de veto do imperador em relação à nomeação do Papa, além de subordinação

político-econômica ao Império (BERMAN, 2006, p. 114-118).

Essa relação, porém:

(...) trazia o constrangimento de se tolerar, por meio da ideia medieval de

proteção, a constante interferência leiga em questões políticas da Igreja,

nascendo ali, portanto, a dualidade entre poder espiritual (do Papa, santidade

e bispo de Roma) e poder temporal (do Imperador, que também se faz romano

e sagrado) que marcará o milênio que se seguiria. (HORTA, SALGADO,

2011).

Com a morte de Carlos Magno, seus descendentes entraram em conflito e não

conseguiram manter a unidade do poder que havia se constituído, embora utilizassem o título

de Imperadores. Assim, pela fragmentação política fortaleceram-se os duques e condes em seus

poderes locais, e, somado a isso, com o cristianismo já enraizado na sociedade medieval,

consolidou-se a estrutura social do feudalismo (SOUZA, 1995b, p.211-234).

Ao mesmo tempo, sem a proteção do Imperador, a figura do Papa é politicamente

enfraquecida. A após o fim do Império carolíngio, a autoridade papal e a unidade da Igreja são

eclipsadas pelos poderes locais dos bispos e cardeais. Esses, por sua vez, dentro do movimento

de interiorização e pulverização do poder, são subordinados à nomeação dos cargos

eclesiásticos como prerrogativa dos senhores locais (BERMAN, 2006, p.117-118).

Page 24: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

22

3.2. A ordem jurídica medieval

O espaço em que as autoridades laicas e religiosas atuavam não poderia ser

compreendido sob os moldes de um Estado, mas, sim, com uma unidade universal, uma

comunidade cristã, a societas Cristiana, de modo que não era concebível entender Igreja e

Estado como corpos autônomos e independentes. Existia entre eles, sim, uma disputa de

soberania sobre qual a autoridade decidiria o caminho da comunidade cristã, se seria ela um

reinum ou um sacerdocium (ULLMANN, 1999, p. 18-19).

Conforme adverte Paolo Grossi (2014), existia então uma sociedade cristã dividida entre

os que guerreiam, de sangue nobre, senhores feudais que, em função do poder de proteção,

detinham o força violenta; os que rezam, os clérigos; e os que trabalham, pessoas pertencentes

às terras e submissas à autoridade dos senhores e dos reis. Fala-se de ordem jurídica medieval

na medida em que havia ali uma ordenação factual, pautada pelos costumes e pela religião

cristã, cujas pessoas nela inseridas viviam de modo a inferiorizar a posição do indivíduo em

relação à comunidade, tida como a própria cristandade, naturalizando-se a estratificação social

como parte da ordem divina (GROSSI, 2014, p. 47-106). Nos dizeres de Pietro Costa (2010, p.

104), “a ordem já está dada e a sua intrínseca e harmoniosa justiça coincide com a diferenciação

hierárquica dos seus componentes”.

Daí a peculiaridade da função do Príncipe (aquele que detém o poder secular): não será

legislador, mas será o intérprete legítimo dessa ordem, cuja autoridade é antecedente,

remetendo a Jesus Cristo. Daí o Príncipe, ao ler a ordem em que se apoiam as coisas, apreende

desta um direito tido como a ela dado, pré-constituído (GROSSI, 2014, p. 157-167).

A partir disso pode-se concluir que o direito é inerente à justiça, e ela se manifesta como

a ordenação imanente à realidade. Os ocupantes dos cargos judiciários medievais, ao exercerem

a justiça, manifestavam atributos latentes na própria realidade. Neste arranjo histórico:

O direito, aqui, é, sobretudo, ordo, ordem, não assegurada pela coerção de uma

ordem de polícia, mas em vigor nos estratos mais profundos da sociedade;

uma ordem que espera somente para ser lida, conhecida, manifestada, porque

já está escrita com características indeléveis (...) Entende-se porque o direito

medieval se encarna, sobretudo, naquela fonte intrínseca da terrestridade que

é o costume, e se compreende porque o direito consiste, sobretudo, em uma

interpretatio, interpretação de técnicos, ou seja, de juristas capazes de traduzir

em instrumentos apropriados de ordem as instâncias que o bruto magma

consuetudinário faz aflorar à superfície da experiência; protagonistas são um

Page 25: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

23

prático, o tabelião, no primitivismo da alta Idade Média (GROSSI, 2010, p.96-

97).

Indaga-se: existe na ordem medieval um poder superior entre os poderes, semelhante à

soberania moderna?

De acordo com a perspectiva de Grossi (2010, p. 93-96) sobre o direito medieval como

experiência ordenamental e não potestativa, já é possível afastar a ideia de soberania enquanto

manifestação do poder supremo, exercido por meio da vontade do príncipe, que se confunde

com a própria lei na modernidade.

O poder é exercido dentro do ordenamento social, onde o direito e não é produzido ou

engessado por um soberano, mas expressão da prática da vida social, sendo, repete-se, o

príncipe um dentre os demais intérpretes; assim, tendo em vista o pluralismo jurídico, admite-

se “-no interior do território de uma mesma entidade política, a coexistência e a covigência de

ordenamentos jurídicos que podem não ser expressões daquela entidade, mas de forças

diferentes que organizam aspectos diferentes da sociedade” (GROSSI, 2010, p. 98). Portanto,

em respeito à configuração consuetudinária, a busca por uma soberania medieval deve respeitar

também a autonomia das diversas comunidades que compõem a ordem jurídica medieval.

3.3. Soberania medieval e Iurisdictio

Diante do questionamento que se volta à existência ou não de uma soberania medieval,

ou seria a soberania uma categoria tipicamente moderna, Pietro Costa (2010, p. 99 e ss.) defende

a existência de uma soberania medieval. Para o autor, uma representação organizada na forma

de uma ordem política não precisa se moldar ao conceito moderno de Estado para que o discurso

sobre a soberania seja encontrado em sua constituição. Isso significa dizer que a representação

medieval já encarna “uma posição de excelência e de dominância na ordem política” (COSTA,

2010, p. 102). Para o historiador do direito italiano, o discurso medieval da soberania tem

origem no caráter involuntário, indisponível e hierárquico da ordem jurídica medieval, um

discurso que se expressa, sobretudo, na figura do rei-juiz, que deve desempenhar o papel sacro

e jurídico de ser, à imagem de Deus, um julgador justo (COSTA, 2010, p. 104-107).

A fundamentação do poder soberano, no entanto, não se dava apenas sob uma

estruturação teológica, pois o direito romano ainda permanecia como fonte do direito, embora

dissociado da sociedade que o fundara. Trata-se, portanto, de um direito romano vulgar

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24

(HESPANHA, 2005, p. 125-126). Tal qual ocorria no Corpus Iuris Civilis, iurisdictio era o

poder exercido pelo soberano, porém, dentro da hierarquia da ordem jurídica medieval:

O soberano ocupa posição culminante em uma série de relações de poder

percorríveis “longitudinalmente” recorrendo a uma palavra-chave do léxico

político-jurídico: iurisdictio. Iurisdictio não é tão somente uma palavra

familiar à cultura medieval, não é apenas um termo técnico do léxico

justianeu, mas é também capaz de evocar associações entre realeza e justiça,

entre poder e juízo, que são tramas sensíveis no imaginário medieval. (...) O

rei é juiz, o soberano tem a iurisdictio: uma iurisdictio que deve dizer-se

pleníssima antes de tudo porque subtraída a qualquer controle e juízo superior.

A iurisdictio, porém, não se exaure no poder culminante do imperador, mas

articula-se em graus diversos: ela – escreve Azzone - “pleniíssima est in solo

principe” enquanto apresenta um raio de poderes menor nos diversos

magistrados (COSTA, 2010, p. 110-111).

Essa posição culminante se dava, pois, ao rei, uma vez que, na Alta Idade Média,

atribuía-se a dupla natureza de ser humano e ser divino à sua figura, porque concebia-se o rei

consagrado ou investido por Deus para desempenhar o papel de Cristo, realizando a mediação

entre o céu e a Terra. Tal mediação representa aquilo que se denominou de “os dois corpos do

rei” (KANTOROWICZ, 1998, p. 72-73). A imagem do Cristo transposta ao rei, portanto,

permitia que este apresentasse seu atributo sacro-ontológico, ao mesmo tempo em que exercia

as funções jurídica e administrativa de vigário de Cristo na Terra, características que, durante a

Baixa Idade Média, viriam a ser reivindicadas exclusivamente pelo Papa (KANTOROWICZ,

1998, p.73).

Assim, embora existissem tensões entre Papas e Imperadores, na Alta Idade Média “o

clero legitimava o conceito imperial, inclusive de governo da própria Igreja” (BERMAN, 2006,

p. 84-85). Isto é, ainda que outros agentes exercessem a iurisdictio dentro do pluralismo jurídico

medieval, o Imperador na Alta Idade Média detinha uma representação política próxima à

soberania, na medida em que pretendia exercer uma autoridade universal sobre o cristianismo,

desde que investido pela autoridade religiosa.

Porém, é preciso acrescer, conforme ensina a cientista política Raquel Kritsch (2010, p.

264), que a ideia de soberania, caso entendida como supremacia no confronto com outro

disputante, naquele momento, mesmo reivindicada por poderes que não o Imperador ou o Papa,

continuava compatível com a ideia de uma comunidade universal cristã, que permanecia sólida

diante das disputas por competência jurisdicional.

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25

3.4. A transição para a Baixa Idade Média e a religião na disputa pela soberania

A partir do vínculo da Igreja com os vários reinos após o desmembramento do Império

Carolíngio, pode-se dizer que, se por um lado observou-se maior subordinação ao poder secular,

por outro notou-se que, “ a influência da Igreja, não apenas no aspecto religioso e moral, mas

também em todas as atividades sociais, tornou-se uma realidade cada vez mais intensa”

(SOUZA, 1997, p. 17). Abriu-se espaço para uma disputa política entre clérigos e príncipes,

que se delineou sobre quem era o detentor de um poder universal sobre os cristãos: o Rei ou o

Papa, pela oposição entre as teses da hierocracria e da teocracia régia.

A teocracia régia, marcante no Alto Medievo, apoia-se na tese da concessão direta do

poder político de Deus para o príncipe, que, uma vez dotado da legitimação divina, terá sua

autoridade inconteste; assim seus erros e pecados, sua vida espiritual concernem a Deus

diretamente, não cabendo ao Papa interferir nessa prestação de contas (SOUZA, 1995b, 211-

234).

Já a hierocracia se baseia no primado papal, advindo da investidura de Pedro por Cristo,

que é a responsável para conferir a quem ocupa o seu cargo apostólico não só a solicitudo, que

corresponde aos deveres de pastor para com os fiéis, mas também o primatus, que é ser a

autoridade dentre as demais autoridades (RIBEIRO, 1995b, p. 49-50).

Trata-se de uma doutrina e de um regime político que tem por expoente a obra “De

Institutione Regia”, de Jonas de Orleans, do século VIII, e que foi aperfeiçoada e ampliada na

Baixa Idade Média (SOUZA, 1995c, p. 151). Para o Professor José Antônio de C. R. Souza

(1995c, p. 171), tal doutrina tem por base conferir à Igreja uma posição política,

hierarquicamente superior em relação aos reis na medida em que é sua missão cuidar do

caminho de toda a sociedade cristã, inclusive dos líderes temporais, em direção à salvação, e,

por administrar esta única instância a que se reportam os reis: seria dela, portanto, o domínio

dos poderes secular e sacerdotal. O papel da Igreja enquanto pastora de todos os fiéis, mostra-

se no próprio modo como a sociedade cristã e o corpo místico de Cristo, liderada pela Igreja,

atuam no campo político: A Igreja é supervisora e vigilante da atuação política dos reis, como

também da vida dos demais homens. É a isto que se denomina hierocracia (SOUZA, 1995c,

p.171).

Conforme narra o historiador francês Marc Bloch (2001, p.86-87), referência medieval

da Escola dos Annales francesa, a relativa paz, em meio à diminuição das invasões e ao aumento

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do cultivo agrícola, há no início da segunda idade feudal uma expansão demográfica que

facilitou a comunicação e uniu distâncias. Como consequência, a atividade comercial é

fortalecida, assim como a efetividade do domínio político, seja o secular ou o eclesiástico

(BLOCH, 2001, p.87).

É um período em que, mudada a configuração política, há também a demanda de

alteração jurídica para atender às novas práticas e às forças da sociedade, mudanças essas que,

porém, para a maioria das pessoas, principalmente para os camponeses, chegavam lentamente,

porque predominava o vínculo jurídico-político local (BLOCH, 2001, p. 88-90).

No que concerne à vida da Igreja, era, já ao final do Alto Medievo, crescente a

insatisfação dentro do clero em relação ao predomínio do simonismo e do nicolaísmo, por uma

necessidade de purificar e espiritualizar a classe, e, por isso, desde meados do século IX

fortalecia-se um anseio reformista da Igreja, encabeçado pelos monges da abadia de Cluny, que,

com o tempo, irradiou-se por todo o continente (SOUZA, 1997, p.18).

Era considerado maculado e inapto ao exercício clerical aquele que viveu o pecado da

carne, discurso, assim, dirigido aos bispos e padres casados (BLOCH, 2001, p.124). Essa

mácula, porém, significava sobretudo a possibilidade de fortalecimento da hierocracia a partir

da inferiorização e da subordinação do poder secular diante do espiritual. Isto porque, para os

reformistas, tal qual a alma deve prevalecer sobre o corpo e sobre a matéria (símbolos de

degradação e pecado para a mentalidade medieval), a Igreja deverá prevalecer sobre o Império

(SOUZA, 1997, p.21).

Em decorrência desta mentalidade, tornava-se inadmissível a nomeação para os cargos

eclesiásticos de alguém alheio ao clero. Isto foi o plano de fundo para, a partir da segunda

metade do século XI, sucederem-se consecutivamente somente Papas reformistas na Cátedra

de Pedro, ocorrendo, assim, a chamada Reforma Gregoriana.

Embora tenha se perpetuado no tempo, considerando-se a hegemonia política da Igreja

até o século XIV, pode-se dizer que a Reforma foi cunhada pela figura de Hidelbrando, o Papa

Gregório VII, que apoiou fortemente o movimento reformista dos Papas anteriores e, enquanto

pontífice, com o apoio dos normandos, levou a cabo a Querela das Investiduras, a guerra com

o rei germânico Henrique IV, que não admitia perder o poder de investir os bispos em suas

funções, pois eram estes a base da administração imperial em cada território, e portanto,

sustentáculo do próprio poder imperial (SOUZA, 1997, p. 22-36).

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27

Para o discurso da reforma da Igreja, na disputa política, por envolver a salvação das

almas, o poder supremo poderia estar confiado somente ao Papa, que “anteriormente se

autodenominava ministro de São Pedro, e clamava ser o único ministro de Cristo, com a

responsabilidade de responder pelas almas de todos os homens no dia do julgamento final”

(BERMAN, 2006, 125). Nestes termos, o ocupante do poder secular perdia o posto de vigário

de Cristo. A Reforma Gregoriana ao fazer a oposição e a hierarquização entre o clérigo o leigo,

que, por não ser ordenado, não poderia ocupar um cargo clerical, inovava e trazia consigo um

novo modelo de Estado, uma vez tal “argumento deixou imperadores e reis sem base para

legitimidade, pois a ideia de um Estado secular, isto é, de um Estado sem funções eclesiásticas,

ainda não tinha nascido- na verdade, estava nascendo exatamente naquela época” (BERMAN,

2006, p.125). Com base em Berman, portanto, pode se afirmar que o Estado nascido da

Reforma Gregoriana se tratava do primeiro Estado europeu.

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4. A REFORMULAÇÃO JURISDICIONAL PROMOVIDA PELA REFORMA

GREGORIANA

A Querela das Investiduras só terminaria na geração seguinte, em 1122, com a assinatura

da Concordata de Worms pelo Papa e pelo Imperador que ascenderam ao poder, Calixto e

Henrique V, respectivamente. A Concordata de Worms evidenciava a vitória da Igreja sobre os

Imperadores, na medida em que nela o Império permitia a todas as Igrejas de seu território a

realização de eleições canônicas e da liturgia de modo livre, isto é, sem a sua intervenção, sem

simonia e também sem violência (ALEMEIDA, 2013, p. 127-128).

Harold J. Berman (2006, p. 20-21) descreve a Reforma Gregoriana como uma revolução

que fundou a tradição jurídica ocidental porque, para atender a uma pluralidade de jurisdições

e de sistemas jurídicos que ela havia propiciado, tornou a supremacia do Direito possível e

necessária. Considerando-se a profundidade com a qual o autor trata da temática, muito do aqui

exposto se baseará em sua monumental obra.

A Reforma Gregoriana, impulsionada pelo ideal de liberdade da Igreja, conseguiu

efetivar sua unidade política e, com isso, fortalecer uma “autoconsciência corporativa do clero”,

ou consciência de classe, pois fazia deste a primeira classe europeia “ translocal, transfeudal,

transtribal, transnacional” (BERMAN, 2006, p. 136-137). Para o Para Gregório VII, em uma

radicalização da hierocracia, o clero não tinha só a missão de reformar a Igreja, mas de reformar

o mundo e, assim, colocava sob a tutela papal o destino da sociedade (BERMAN, 2006, p. 139-

140).

Em termos de soberania, identificada a hierarquia com o ordenamento eclesiástico e o

vértice com o seu chefe, deflagra-se um conflito entre diferentes discursos soberanos no mesmo

espaço, ocupados por duas cadeias de iurisdictiones análogas (COSTA, 2010, p. 116-117). À

diferença que a soberania papal, ou plenitudo potestatis, não só se identifica com a iurisdictio

o imperador-juiz medieval, mas a excede em poder, porque, mais que um legitimado para

representar a ordem divina ou costumeira, o Papa tem um efetivo poder de governo, que inovava

a experiência jurídica por seu caráter voluntarista apresentado, de vocação absolutista (COSTA,

2010, p.116-120). Assim, “os ocupantes da cadeira pontifícia passaram a reivindicar, com maior

ou menor coerência, a supremacia e o controle das duas espadas: a espiritual e a temporal. O

sumo sacerdote reclamava a jurisdição de facto e de iure sobre a comunidade cristã”

(KRITSCH, 2010, p. 265).

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O desenvolver e o final da Querela das Investiduras demonstram, portanto, que:

(...) é Henrique IV que continua preso ao antigo modelo jurídico-político, no

qual o Direito é coisa devida, relação imperativo-atributiva surgida

espontaneamente, e que reproduz, no âmbito social, a estrutura ordenada do

cosmos. Gregório VII, em contrapartida, entra em cena como o protótipo do

príncipe moderno, reivindicando a criação de uma instituição que se constitua,

sozinha, no foco irradiador do jurídico, em si e por si capaz de fundamentar

um Direito entendido, não mais como coisa devida, mas como norma

estabelecida (ALMEIDA, 2013, p. 128).

Dessa forma, a Reforma Gregoriana implementa uma radical mudança no mundo

jurídico e político Medieval ao transferir a autoridade, antes imanente à ordem social e ao papel

do Príncipe nesta, agora da Igreja enquanto instituição irradiadora do Direito.

4.1. A modificação jurisdicional da Reforma Gregoriana

Berman (2006, p.147) salienta que a revolução papal consolidou um novo sistema de

Direito Canônico e, na sua esteira, surgiram novos sistemas de direito secular para se adequarem

à dualidade entre o laico e o espiritual na nova ordem política. Neste sentido:

O dualismo dos sistemas jurídicos secular e eclesiástico levou a um pluralismo

de sistemas jurídicos seculares no interior da ordem jurídica eclesiástica e,

mais especificamente, à jurisdição concorrente das cortes eclesiástica e

secular. Além do mais, a sistematização e racionalização do Direito eram

necessárias para a manutenção do complexo equilíbrio dos diversos sistemas

jurídicos concorrentes. Finalmente, a ordem correta das coisas [a correção

moral do mundo] introduzida pela Revolução Papal significou o tipo de

sistematização e racionalização do Direito que permitiria a reconciliação das

autoridades em conflito por meio da síntese de princípios: onde fosse possível,

as contradições deveriam ser resolvidas sem destruir os elementos envolvidos

(BERMAN, 2006, p. 147).

Por isso, considerando-se os interesses da Igreja, era deliberado e programático

implementar uma hierarquia de cortes e também desenvolver os princípios e os procedimentos

de um de Direito como um corpo integrado e autônomo, além de se formar uma classe de

advogados e juízes, bem como formar as escolas de Direito - as primeiras universidades, pois

se tratava de um modo de capacitar as autoridades seculares para implementarem a missão de

impor a paz e a justiça em suas jurisdições, desde que, claro, dentro da interpretação da Sé, sob

pena de se configurar heresia (BERMAN 2006, p. 147-148; 198-199).

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E, de fato, entre os séculos IX e XII o Direito Canônico tornou-se sinônimo de

ordenamento, um sistema jurídico orgânico e auto referente, consubstanciado na compilação do

Decretum de Graciano, feito em 1140 aproximadamente, na Universidade de Bolonha (PRODI,

2005, p. 63-64). Ressalte-se que Bolonha foi fundada por uma apoiadora de Gregório VII, a

Duquesa Matilde de Toscana, quem convidou o vassalo Irineu para ensinar Direito Romano,

como o objetivo de “desenvolvimento de instrumentos que conferissem legitimidade e eficácia

ao novo modelo de exercício de poder aberto pela Reforma Gregoriana” (ALMEIDA, 2013, p.

160).

A nova estrutura judiciária se inseria, então, em um sistema cuja maior autoridade seria

o Sumo Pontífice, um retrato do poder central e hierarquizado da Igreja pós Gregório VII, que,

ao constituir-se pelo acúmulo dos poderes legislativo, executivo e jurisdicional, cumpriu o

paradoxal marco de primeiro Estado europeu, distinguindo-se dos que dela sucederam pelo

único e crucial aspecto da ausência do caráter secular em seu interior:

Ela chegava a ser uma autoridade independente, hierárquica e pública. Seu

líder, o papa, tinha o direito de legislar, e de fato os sucessores de Gregório

promulgaram uma série de novas leis, às vezes por sua própria autoridade, às

vezes com o auxílio dos concílios convocados por eles. A Igreja também

aplicava suas leis por meio de uma hierarquia administrativa, por intermédio

da qual o papa governava, como um soberano moderno, através de seus

representantes. Ademais, a Igreja interpretava suas leis e aplicava-as, por meio

de uma hierarquia judicial que culminava na cúria papal em Roma (...). Além

disso, ela aderiu a um sistema racional de jurisprudência: o Direito Canônico.

Ela impunha taxas aos seus subordinados na forma de dízimos e outras

arrecadações, com certificados de batismo e de óbito ela mantinha uma

espécie de registro civil. O batismo conferia cidadania, que era mantida pela

exigência- formalizada em 1215- de todo cristão deveria confessar sus

pecados e tomar a comunhão sagrada pelo menos uma vez ao ano, na Páscoa.

Um indivíduo poderia ser privado de sua cidadania por meio da excomunhão.

Ocasionalmente, a Igreja até mesmo organizava exércitos (BERMAN, 2006,

p. 142-143).

Percebe-se que, assim como o discurso de soberania é identificado por Pietro Costa

dentro do Medievo, várias outras categorias fundantes do Estado moderno são identificáveis

como constituintes da Igreja durante a Baixa Idade Média.

O Papa, senhor da cristandade, era um juiz supremo, que poderia, sozinho, elaborar leis,

as bulas e decretais papais, cujo conteúdo se tornava a interpretação oficial, a única baliza dos

preceitos cristãos, fazendo confundir e coincidirem sacramento e poder de jurisdição, isto é, em

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decorrência do novo caráter institucional da Igreja, o foro interno, que diz da relação do cristão

e seus pecados para com Deus, ganhava nota de foro externo, secular (PRODI, 2005, p. 61-62).

Algumas matérias eram declaradas pela Igreja como de jurisdição exclusiva dos

tribunais eclesiásticos, e outras de jurisdição concorrente, aplicando-se o direito eclesiástico;

assim como o próprio poder secular, partindo-se de uma manifestação particularista, refletia um

localismo jurídico em cada sistema do pluralismo medieval, que encontraria o foro próprio.

(GROSSI, 2014, p. 273-278). Significa dizer que havia uma multiplicidade de direitos

particulares que replicavam esta dinâmica: Direito do rei, da cidade, mercantil, eclesiástico,

feudal e senhorial. Neste contexto:

Leigos, apesar de governados no geral pelo Direito secular, estavam sujeitos

ao Direito eclesiástico e à jurisdição dos tribunais eclesiásticos no que se

referia a questões sobre casamento e relações familiares, Direito sucessório,

crimes espirituais, relações contratuais onde a fé era invocada, entre outros

assuntos. Inversamente, o clero, apesar de geralmente ser regido pelo Direito

eclesiástico, estava sujeito ao Direito secular e às suas cortes, em relação a

certos tipos de crimes, certos tipos de disputas de propriedades, entre outros

(...). O pluralismo do Direito ocidental, que reforçou e refletiu o pluralismo da

vida econômica e política do Ocidente, era, ou algum dia foi, fonte de

desenvolvimento e crescimento - crescimento jurídico, assim como

econômico e político. Também era, ou algum dia foi, fonte de liberdade. Um

servo podia acorrer à corte da cidade contra o seu mestre. Um vassalo podia

socorrer-se na corte do rei contra o seu senhor. Um clérigo podia defender-se

do rei na corte eclesiástica (BERMAN, 2006, p.21).

Há, portanto, no concreto exercício da jurisdição, um campo de manifestação das

tensões daquela sociedade, inclusive aquela situada entre os poderes dos homens e os

espirituais.

Nesse contexto, pode-se afirmar que um importante recurso para instrumentalizar a

jurisdição, com vistas a efetivar a hegemonia política era, ao molde de um tipo penal, a heresia.

Isto porque o herege, mais do que ferir uma categoria teológica, era um dissidente da dimensão

político-social e ideológica, seja da Igreja, seja do Império, tornando-se a perseguição

herética um ato de dominação territorial e a heresia um instrumento retórico para atacar

qualquer ameaça à hierarquia social constituída (ALMEIDA, 2013, p. 144). Em relação à

Igreja, na prática, a heresia:

É uma justificativa para a invasão das muralhas citadinas. Uma cidade herética

é a que se emancipa, enquanto uma cidade ortodoxa é que a permanece

submetendo seus estatutos às decisões tomadas pela Santa Sé. A campanha

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anti-herética pretendia colocar as cidades sobre o controle dos bispos, e os

bispos sobre o controle do papa (ALMEIDA, 2013, p. 144).

Assim, a heresia, mais do que uma adequação aos dogmas pela Igreja estabelecidos, é

meio para se conduzirem os interesses da dominação e da organização política,

independentemente de o grupo, a pessoa ou a cidade estarem adequados às postulações

teológico-metafísicas defendidas pela ordem eclesiástica (ALMEIDA, 2013, p. 144).

4.2. A queda da plenitude de poder idealizada pela Igreja: Séculos XIII e XIV

A perspectiva de Harold J.Berman sobre a Revolução Papal ter feito surgir o Estado

moderno Ocidental guarda em si duas perspectivas fundamentais, efeitos involuntários das

intenções de centralização e de plenitude de poder que os empreendedores da Reforma do clero

detinham. Uma, a partir da estrutura jurídica por ela propiciada; outra, a partir da inovação

discursiva que representava separação entre o leigo e o espiritual. Questões estas que foram

propulsoras da ascensão da Igreja como instituição política, e, ao mesmo tempo, figuraram

como os motivos de queda desta finalidade. Vejamos.

4.2.1. A crise espiritual

Com o desenvolvimento da Igreja enquanto um corpo político, o seu sentido místico

como o Corpo de Cristo se esvai, de modo que o termo corpus mysticum deixava de ter um

sentido sacramental e litúrgico como se notava no Alto Medievo, tornando-se parte do léxico

dos juristas, desde o século XIII, inclusive do Papa Bonifácio VIII (1294-1303) e de São Tomás

de Aquino, para designar a organização da Igreja, cujo corpo tinha como membros efetivamente

os seus cargos administrativos, constituídos de bispos, padres, abades e frades

(KANTOROWICZ, 1998, p. 126-133). Isto não significava, porém, um abandono do plano

gregoriano.

Enquanto a Igreja se institucionalizava vertiginosamente, propiciava também a

insatisfação de parte dos fiéis, que viam a organização agora política afastada do

verdadeiramente espiritual, distante, portanto, dos preceitos do cristianismo originário. Neste

contexto, no século XIII emergem, em torno da pobreza, novas interpretações e modos de

pregação, isto é, a vida religiosa ganhava novas nuances.

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Conforme aponta Souza Neto (2017, p. 201-202), em minucioso trabalho sobre o

desenvolvimento filosófico da Igreja, São Francisco de Assis enunciava um ideal de oração e

voto de vida na pobreza evangélica, pregando o amor caritativo, principalmente entre os mais

pobres e, com isso, inovava, porque, enquanto religioso, não se colocava em posição superior

a dos outros modos de vida, mas assumia a igualdade entre as pessoas. Inovava também do

ponto de vista comunitário, pois, diferente do modelo dos monastérios, que fugiam do mundo

em reclusão religiosa, a ordem franciscana ia ao mundo pregar e doar-se aos necessitados

(SOUZA NETO, 2017, p. 203).

Em busca desse retorno a um cristianismo embrionário idealizado, ou simplesmente por

falta de acesso à doutrina canônica, em um universo em que predominava o analfabetismo,

surgiam também grupos voltados à penitência, às confrarias e às leituras que, se fugissem à

ortodoxia, eram considerados hereges, ameaças à unidade cristã, como se deu com os cátaros1

na região do atual sul da França (SOUZA NETO, 2017, p. 207-208).

Contemporâneo a Francisco de Assis, o cônego Domingos e seus discípulos eram cultos

e, ao mesmo tempo, viviam a pobreza, de modo que suas pregações tinham mais sucesso na

conversão de dissidentes religiosos que a dos bispos comuns, o que motivou a autorização papal

para a fundação da ordem dos Dominicanos em 1216 (SOUZA NETO, 2017, p.

209-210). São Domingos trabalhou didaticamente com os cártaros, aproveitando a

grande devoção que tinham à Virgem Maria, sendo contrário às Cruzadas investidas contra eles.

No entanto, sua ordem não perderia a vocação anti-herética: deu autorização para que seus

frades compusessem tribunais da Inquisição (SOUZA NETO, 2017, p. 211-212).

Essas duas ordens, chamadas ordens mendicantes, mostravam-se interessantes à Igreja

porque faziam a religião chegar às camadas mais pobres da sociedade, tornando o poder papal

mais próximo do cotidiano dos fiéis e afastando, naquele momento, uma possível fragmentação

(SOUZA NETO, 2017, p. 217). Assim, os Papas:

Inocêncio III e Gregório IX preocupavam-se em estruturar juridicamente a

supremacia pontifícia. O trabalho dos mendicantes seria imprescindível para

estruturar a centralização romana frente às contestações, centralizar as

decisões eclesiais na pessoa do papa e afastar o poder temporal das decisões

eclesiásticas. (SOUZA NETO, 2017, p. 219).

1 Em uma perspectiva maniqueísta, o catarismo fundava uma igreja própria e colocava a Igreja Católica

e seus agentes como pertencentes ao lado do mal (LE GOFF, 2005, p. 81-82).

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Porém, com o falecimento do fundador, a ordem franciscana ganharia presença de seus

frades nas Universidades europeias, não restando afastada do fenômeno da ciência jurídica

(VILLEY, 2006, p. 216-220), e a dominicana, já nascida sob uma cultura de estudos,

apresentando entre seus membros “grandes estudiosos das sagradas escrituras, bem como os

mais respeitados tradutores, hermeneutas e teólogos que passariam a povoar as universidades

europeias.” (SOUZA NETO, 2017, p, 210-211). Assim, não se olvida que a Escolástica e o

Nominalismo2, escolas filosóficas com repercussões contrárias à supremacia da Igreja, têm por

mestres membros de ordens mendicantes, “elas próprias frutos da crise espiritual desencadeada

pela Reforma Gregoriana.” (ALEMEIDA, 2013, p. 166-167).

Le Goff (2005, p.80-81), tendo em vista as dissidências religiosas do século XII, aduz

que o monopólio ideológico da Igreja tinha sido gravemente afetado, pois, ainda que tenha

submetido estas duas ordens mendicantes e enfrentado diversos movimentos hereges, “a Igreja

seguia a evolução da Cristandade e não mais a guiava, como tinha feito na Alta Idade Média”.

4.2.2. O desenvolvimento do Direito ante à multiplicidade de foros

A autonomia intelectual que o Direito ganhava, seja como instituição jurídica, seja como

ciência, era resultado do trabalho desenvolvido dentro das Universidades europeias, do final do

século XI ao século XIII (BERMAN, 2006, p.112). Isso ocorreu com o auxílio da redescoberta

do Direito Romano, a partir de trechos da compilação de Justiniano, bem como pelo

desenvolvimento do método escolástico de análise e síntese3, que era ensinado dentro das

Universidades e aplicado sobre os textos canônicos e clássicos (BERMAN, 2006, p.158). Por

esta via se daria também a redescoberta de textos de Aristóteles.

2A Escolástica, em referência à obra se seu maior exponente, São Tomás de Aquino, um dominicano

que, em diálogo da teologia com Aristóteles, elabora a doutrina de Direito Natural Divino, que, em

apertada síntese, validava a lei positiva enquanto expressão da razão humana, admitindo-se o homem

como ser político, sem negar a ordenação do mundo por Deus (GILSON, 1995, p. 652-683). E o

nominalismo, que negava os universais, isto é, nega a ordenação fixa da natureza, por acreditar somente

na vontade-ação direta de Deus e na vontade de cada indivíduo como algo ordenador e, assim, abalava

a autoridade do dogma cristão sobre a filosofia e sobre a política; escola que encontra no franciscano

Guilherme de Ockham o principal ou mais radical representante. (GILSON, 1995, p. 288-290; 794-816). 3 O método escolástico, partindo da autoridade absoluta dos textos religiosos e do Direito Romano,

buscava superar lacunas e contradições entre os textos, harmonizando-os por meio de justificações

racionais (BERMAN, 2006, p. 168).

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Nesta conjuntura, ao fim do século XIII ocorre uma harmonização das ordenações

canônicas, romanas e locais, produzindo-se um direito uno e subsidiário, isto é, aplicável diante

de lacunas normativas de algum dos outros sistemas jurídicos. Esse Direito se denominou ius

comune, o direito comum europeu, ou, a título de não ser confundido com os direitos locais e

das cidades burguesas que se formavam, chamara-se também utrunquen ius (PRODI, 2006, p.

128-132).

As lições de Paolo Prodi (2006, p. 136-140) lembram que essa construção não provinha

de abstração científica, mas antes era resultado da reflexão sobre a prática dos tribunais, que

aplicavam, ao mesmo tempo, institutos romanos e institutos canônicos diante dos casos locais,

nas diversas jurisdições existentes. Em razão da força que ganhavam os agentes políticos e

econômicos no pluralismo daquela realidade, o ius commune foi submetido ao papel de

harmonização destes múltiplos direitos particulares, os iura proépria, e, assim, propiciou que

seu modo de racionalização jurídica adentrasse os ordenamentos dos estados nacionais

nascentes (SALGADO, 2010, p. 92-93).

Tanto para o poder religioso como para o secular, o surgimento do ius commune

significava um efetivo desenvolvimento de seus sistemas jurídicos e de suas estruturas políticas

a partir da incorporação de estudiosos às respectivas administrações (BERMAN, 2006, p.155).

Neste sentido:

O direito romano não foi estudado apenas como direito erudito, mas

efetivamente muda a realidade do direito medieval. Os legistas, juristas

formados nas universidades, estudam direito romano e passam a ocupar cargos

importantes junto à estrutura política. Os comentadores se transformaram nos

conselheiros reais. Dão pareceres e contribuem para a superação dos

problemas pertinentes à pluralidade normativa (SALGADO, 2010, p.90)

Assim, por ter se desenvolvido servindo à justificação e à edificação de poderes

concorrentes, fomentava-se o Direito como um instrumento da disputa entre o poder e a

jurisdição da Igreja e as entidades seculares. Isto se torna mais nítido quando se nota que, ao

mesmo tempo em que o sistema canônico estruturava a Igreja, o desenvolvimento do Direito é

marcado pelas teses construídas por figuras como Santo Tomás de Aquino, Marsílio de Pádua,

João Quidort e Guilherme de Ockham.

Santo Tomás (1225-1274) afirma a autonomia do conhecimento da lei natural, numa

retomada da visão clássica de natureza, em que cada coisa obedece ao próprio fim,

estabelecendo uma filosofia do direito natural que não só propicia a busca por olhar a natureza

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como ela é, mas estabelece na razão a realização da finalidade do homem e na lei positiva

humana uma expressão da lei natural divina (VILLEY, 2006, p.181-187). Conforme destaca o

filósofo do Direito francês Michel Villey (2006, p. 191), o aquinense, com isso, incentiva o

desenvolvimento da Escolástica e do Direito, e, dentro destas balizas, encorpa, não só as

decretais papais, mas, sobretudo, fortalece as ordens laicas. Ao resgatar a ideia aristotélica do

homem enquanto animal político, Santo Tomás de Aquino naturaliza os poderes laicos,

libertando-os do discurso hierocrático, pois:

Professa que as soberanias são naturais, e não um simples remédio para o

pecado dos homens, como ensinava o agostinismo: também os infiéis podem

desfrutar da soberania; não é mais preciso buscar para ela uma origem

sobrenatural; isso permite dispensar a concepção sacramentada da monarquia

de direito divino, imposta de cima para baixo, que era entendida como

princípio único para toda a humanidade, e abrir as portas para o declínio da

hierocracia medieval (VILLEY, 2006, p. 193-194).

O pensamento de João Quidort, de Marsílio de Pádua e de Ockham, na classificação de

Walter Ullmann tratam-se de representações da teoria ascendente para a justificação do poder.

Vejamos.

O dominicano João Quidort criticava a pretensão de universalidade do poder temporal

da Igreja, que criava uma unificação jurídica que, por sua vez, desrespeitava a característica da

comunidade constituinte de cada Estado, produzindo, portanto, leis destacadas da identidade e

da natureza política de cada povo (ULLMAN, 1999, p.192). Para Quidort o Sumo Pontífice

continuava detentor universal do poder espiritual, investido para atender à necessidade de

salvação que todas as almas compartilham igualmente, inexistindo qualquer justificação para

que outros viessem a concorrer como detentores do poder sagrado (VEYL, 2018, p. 49). Isto é,

em apertada síntese, Quidort defendia a estrita separação das esferas religiosa e secular.

Já Marsílio de Pádua (1275-1342), apoiador do Imperador germânico Luís da Baviera,

era contra a intervenção clerical sobre o exercício dos poderes laicos. Essa intervenção é

descabida na medida em que o caráter obrigatório das leis vem da vontade do povo, e têm a

destinação de organizar a vida pública, não atreladas, assim, à moral ou à salvação

(VOEGELIN, 2013, p. 110). Além disso, a forma de governo também deveria ser definida pelo

povo, e o governante deveria ser passível de ser responsabilizado diante dele (ULLMAN,1999,

p.194-199). De acordo com Ullmann, Marsílio de Pádua é expressão da realidade concreta do

século XIV, na qual os crentes se sentiam traídos pela subversão da fé e dos ideais cristãos

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cometida pelo Papa ao se colocar como legislador e juiz da sociedade. Para Marsílio de Pádua

a supremacia papal, baseada na primazia de Roma - de Pedro investido por Cristo - era um mero

conto falacioso, e consequentemente, o papado deveria deixar de ser instituição de governo,

devendo ser eleito por um corpo de civis, fazendo da Igreja não um Estado à parte, mas o corpo

dos crentes (ULLMAN, 1999, 201-203).

No nominalismo de Ockham (1285-1347), que também apoiava Luís da Baviera contra

o poder papal, lutando a favor da ordem franciscana, vontade é sinônimo de poder, e o Direito

é pura expressão da vontade. Então, se existe um direito natural do homem, este é o direito de

escolher, porque o homem é dotado por Deus de vontade. Ius, portanto, será o poder de se

escolher, inclusive as autoridades. Tal posição, segundo Michel Villey, é capital para o

desenvolvimento tanto da teoria dos direitos subjetivos, como para a ideia de contrato social,

pois passa-se a ter o direito de se escolher o próprio Imperador, que, através de sua vontade,

posicionará o direito (VILLEY, 2006, p. 237-240).

Nas lições de Michel Bastit (2006, p. 303-312), Ockham determina que a Igreja cuide

somente de questões espirituais, pois a vontade divina se expressaria somente pelas escrituras,

pela liberdade e pelo poder dos indivíduos de escolha, de modo que o poder papal, por si só,

não seria diretamente investido por Deus, mas, assim como se dá com os outros poderes

seculares, o poder papal refere-se artificialmente à capacidade de se ordenar o público, era uma

simples instituição humana, portanto, à semelhança das demais. Ockham, ao defender a

liberdade dos homens, à imagem e semelhança da liberdade Divina, rompe o cosmos ordenado

e hierarquizado em que os medievais viviam, faz uma ruptura da tradição política medieval

(ESTÊVÃO, 2014, p. 05-27). Portanto, sem a hierarquia divina a operar sobre a sociedade, sem

a unicidade da escada aos céus que representava a realidade Medieval, não haveria lugar ao

poder papal como preconizado pela Reforma Gregoriana.

Deste modo, voltando-se à teoria de Berman, pode-se dizer que a Igreja, ao efetuar uma

separação entre o leigo e o espiritual como forma de estruturar a sociedade, embora tivesse

nítido o objetivo hierocrático, com o surgimento das cidades-burgos europeias, somado ao

fortalecimento cívico impulsionado pela força das companhias de comércio, isto é, com o

fortalecimento do poder secular, abriu margem à possibilidade de o poder secular desenvolver-

se sem a chancela direta da Igreja.

O fortalecimento cívico da Baixa Idade Média reflete-se diretamente na configuração

jurídica do período. À exemplo do pluralismo de ordens na sociedade do século XIII,

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respeitando-se a fragmentação dos poderes que administravam a justiça, eram múltiplos os

foros de aplicação do Direito (PRODI, 2005, p.138). Em cada foro não se aplicava somente o

ordenamento da respectiva jurisdição, tampouco este teria necessariamente ordem de

preferência perante os demais, mas, de modo equitativo, aplicavam-se fragmentos de sistemas

diversos que se demonstravam mais adequados às características daquele caso concreto naquele

foro analisado e, desta forma, como regra, cada tribunal discutia uma causa a partir do princípio

da prevenção, que consiste em atribuir como competente o foro em que se inicia a demanda

judicial (PRODI, 2005, p. 136-137). Por exemplo, em torno do matrimônio:

paralelamente ao reconhecimento da jurisdição eclesiástica surge uma

atividade legislativa e jurisdicional de origem secular, que concerne às

formalidades contratuais, aos dotes, ao reconhecimento da prole legítima e a

problemas afins; paralelamente às causas civis de adultério surgem ou ligam-

se as causas de direito canônico quando é implicada uma separação; ao foro

eclesiástico vincula-se o foro penitencial extrasacramental quando são

implicadas dispensas e concessões relativas aos votos religiosos, aos

impedimentos matrimoniais etc. Para discutir esses problemas, é necessário

percorrer caminhos transversais às especializações, estendendo o olhar para o

funcionamento efetivo da justiça, abraçando tanto o direito civil quanto o

canônico, tanto a jurisprudência quanto o direito penitencial e a teologia

(PRODI, 2005, p.140)

Do excerto de Prodi, nota-se que, o efetivo funcionamento da justiça no Baixo Medievo

abarcava uma integração de múltiplos sistemas, não se afigurando, de antemão, uma ordem

preponderante frente às demais. A mesma dinâmica que fomentava o Direito comum revelava

que no cotidiano medieval inexistia uma só instância que conseguisse reger toda a comunidade

cristã.

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5. A FORMAÇÃO DO TRIBUNAL DA CONSCIÊNCIA CRISTÃO

Em um cenário de crescente racionalização do Direito, aliado, por outro lado, à

mentalidade cristã que encarava o crime como uma espécie de pecado, nocivo à ordem social e

à religiosa, nascia o processo inquisitorial, que representou também o surgimento do Direito

Penal Público, mais uma influência da Igreja ao Estado moderno, capaz de satisfazer a demanda

de clareza e ordem que as cidades e o comércio em desenvolvimento exigiam (PRODI, 2005,

p. 141).

Tratava-se de um abandono do processo acusatório romano1 pelo foro eclesiástico,

elaborando um novo processo penal, em recusa da vingança privada e da irracionalidade dos

juízos de Deus2 para, em nome da paz, efetivar o conteúdo ético-religioso daquela sociedade3

(PRODI, 2005, p. 143). Assim, “sob a influência dos canonistas, no momento em que a

Inquisição era instalada, a heresia passou a ser definida como um crime lesa-majestade, como

um atentado ao "bem público da Igreja", à "boa ordem da sociedade cristã" (LE GOFF, 2005,

p.315).

O processo inquisitório era escrito, iniciado por delações ou de ofício por parte da

autoridade religiosa confessional, cuja acusação era mantida em segredo para o acusado, sendo

ausente qualquer contraditório, e cujo julgador era, simultaneamente, quem inquiria, acusava,

torturava e julgava em busca de uma verdade absoluta, sempre harmônica com a doutrina da

Igreja (POLI, 2016, p. 93-97). Nele, cada bispo “ao visitar as localidades sob sua jurisdição,

questionava o que havia ocorrido em sua ausência (inquisitivo generalis). Descoberto algum

fato grave, procedia ao inquérito a fim de determinar quem o praticou (inquisitivo specialis)”

(BACELAR, 2018, p. 149).

1 Em referência à iniciativa por parte de um cidadão ofendido, para a resolução do conflito particular

por parte do órgão estatal competente. Para um aprofundamento sobre o desenvolvimento histórico dos

modelos de processo penal, conferir AMBOS (2008). 2 Juízos de Deus e ordálios dizem deum meio jurídico de prova, oriundo da crença germânica em um

destino inexorável, performado ritualisticamente com algum elemento da natureza, que propicia a

leitura, pela comunidade, do que seria a vontade divina, a partir dos fatos ocorridos durante suas sessões,

por exemplo, estabelecer a culpa do acusado por ter sido queimado ou não, afundar ou não em um rio,

engolir ou não um pedaço de pão. Acatado pela Igreja, porém, abolido no século XIII, substituído pelo

processo inquisitorial (BERMAN, 2006, p. 74-75). 3 O autor exemplifica a origem eclesiástica do sistema inquisitório com o relato de que em 5 de abril de

1289 um juiz criminal de Bolonha, Alberto Gaudino, ordena uma investigação ex officio, que durou um

mês, em cada paróquia do território, procedendo interrogatórios para investigar a presença de atividades

como prostituição, jogos de azar, trapaça.

Page 42: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

40

E as penas aplicadas acompanhavam a dualidade de foros e de ordenamentos em que os

fiéis eram inseridos. Embora a partir do século XIV tenham sido melhor delimitadas as

competências jurisdicionais entre os poderes laicos e a Igreja, salienta-se que, por muito, essas

jurisdições e o estabelecimento das penas espiritual e temporal permaneceram unidos; porém,

sobre um mesmo ato delitivo e sobre a mesma pessoa, dois foros já se mostravam incidentes, o

externo, que diz da punição terrena ao delinquente e o interno, sobre condenação ao fogo eterno

ou à salvação divina diante do arrependimento do indivíduo (PRODI, 2005, p. 144-145). Deste

modo, uma pena de morte ganhava, no mínimo, estes dois significados.

5.1. Confissão e jurisdição

Primeiramente, cabe mencionar que concomitantemente à Reforma Gregoriana houve

uma mudança de ordem teológica em torno do conceito de juízo final ou, mais precisamente,

do caminho percorrido pelo cristão até a chegada do julgamento final: surgiu a figura do

purgatório4, um lugar entre céu e inferno, destinado à punição dos pecados remanescentes. Sob

a perspectiva jurídico-política da Igreja, tratava-se da incorporação do purgatório enquanto

sistema de regras e de padrões a serem seguidos para a prestação de contas no juízo final

(BERMAN, 2006, p. 218). E essas regras não deixariam de fazer a salvação e o conceito de

pecado passarem por uma interface institucional:

Toda a vida de um indivíduo é algo de que se deve prestar contas no dia do

juízo final. Mas o relato não necessariamente procede de acordo com um

sistema elaborado de regras e padrões. Já a idéia de um purgatório pressupõe

que o relato proceda de acordo com um elaborado sistema de regras e padrões.

Pecados individuais devem ser pesados e as penalidades devem ser

distribuídas de acordo com a gravidade de cada pecado. Além disso,

considera-se que a Igreja, e mais especificamente o papa, tenha jurisdição

sobre o purgatório(...) O pecado era anteriormente entendido como uma

condição de alienação, uma diminuição do ser de uma pessoa; agora passara

a ser compreendido em termos jurídicos como atos, desejos ou pensamentos

incorretos específicos, pelos quais várias penas podem ser pagas durante o

sofrimento temporal, quer nesta vida ou na próxima. A compreensão mais

fundamental do pecado como um afastamento de Deus e do próximo passou a

desempenhar papel secundário. Quais atos, desejos ou pensamentos

pecaminosos deveriam ser punidos e quais tipos e graus de sofrimento

temporal deveriam ser estabelecidos primariamente pelo Direito moral,

revelado por Deus primeiramente na Escritura (Direito Divino) e depois nos

4 Para um aprofundamento nesta questão teológica, conferir a obra homônima em LE GOFF(1995).

Page 43: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

41

corações e mentes dos homens (Direito Natural); porém isso deveria ser

posteriormente definido pelos direitos positivos da Igreja (BERMAN, p. 218-

219).

Ainda, os delitos julgados pela Igreja adquiriam, cada vez mais, um caráter público, isto

é, diziam respeito à vida comum, ao pertencimento do indivíduo à comunidade. Por isso, Prodi

(2005, p. 29-33) assinala que a penitência tinha não apenas o aspecto sacramental e íntimo, da

reconciliação da consciência individual para com Deus, mas, aplicada conforme a gravidade

delitiva, a penitência tinha a função de reinserção social. E a excomunhão, o banimento

temporário ou definitivo, sanções para os pecados mais graves, significavam a exclusão do

transgressor da comunidade cristã. Há aí um processo penitencial, cuja jurisdição competia aos

bispos, definido pelo conjunto de prescrições necessárias para reinserir o culpado no grupo

(PRODI, 2005, p. 29-33).

Além do mais, com a reformulação jurisdicional da Reforma Gregoriana e com os

tumultos causados pelos hereges, a absolvição de pecados por um bispo, mais do que a expiação

de quem peca e confessa, significará uma sentença, “um ato judiciário considerado válido em

si mesmo”, capaz de provocar a remissão dos pecados (PRODI, 2005, p. 72-74). Isso faz com

que a confissão ao sacerdote seja identificada com a penitência, e a Igreja passa a ostentar o

poder de antecipação para serem cumpridas no plano terreno as penas individuais do purgatório

(PRODI, 2005, p. 75). É a absolvição revestida de legalismo e o indício do desejo de ter a

consciência do cristão controlada por um Tribunal.

Em 1215, é convocado pelo papa Inocêncio III o IV Concílio de Latrão, onde se

estabelecia a obrigatoriedade da confissão privada anual, visando efetivar e uniformizar o

combate aos hereges (POLI, 2016, p. 86). Tratava-se de uma tentativa de criar um sistema

jurisdicional orgânico e integrado, em que, pelo critério territorial, cada pessoa teria o sacerdote

legitimado para ouvir a confissão, em outras palavras, a partir do foro sacramental a Igreja

tentava controlar a ordem pública impondo o princípio do juízo natural (PRODI, 2005, p. 79-

84).

No entanto, à época, como visto anteriormente, as paróquias e dioceses, por despreparo

intelectual e por não conhecerem a pobreza, não conseguiam atingir a população como as

ordens mendicantes conseguiam. Isto provocou o fracasso do sistema objetivado pelo IV

Concílio de Latrão, na medida em que em 1221 o Papa sucessor, Horácio III, confia

universalmente a prática de confissão aos dominicanos, estabelecendo-se outra forma de

Page 44: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

42

efetivação do plano do Concílio e constituindo-se uma disputa interna que se estenderia dentro

da Igreja, pela dualidade da administração do sacramento da penitência entre frades

mendicantes e o clero secular das dioceses (PRODI, 2005, p. 86-88).

A partir da obrigatoriedade da confissão anual nascem os manuais de confissão, as

summae confesorum, com predisposição de interrogatórios aos confessores, um gênero literário

amplamente difundido até o século XVI , quando, a mando de Lutero é queimado o manual

mais difundido neste gênero, a Summa angelica, de Ângelo de Chivasso (PRODI, 2005, p. 88-

90). Para o reformador alemão, o exemplar era um vigoroso e nefasto símbolo do sufocamento

do místico pela preponderância da forma canônica (GROSSI, 2018, p. 780).

Os manuais de confissão são expressão de uma sociedade na qual o civil era identificado

com o fiel, o Direito com a teologia, e, sobretudo, com a moral (GROSSI, 2018, p. 796). Neste

sentido, Grossi discorre sobre a inserção histórica do foro penitencial, que fazia confundir o

foro da consciência e com o foro contencioso, foro interno e externo:

É uma tomada de contato global com a sociedade na sua integralidade.

Nenhum aspecto desta é julgado irrelevante pelo foro penitencial. Todo ato

social, enquanto tal, é suscetível de incriminação no tribunal da penitência,

enquanto os traços que distinguem entre forum conscientiae e foro externo se

tornam pouco precisos e se confundem(...)O discurso dos autores das sumas é

inequivocadamente jurídico; só que o direito sobre o qual se discorre tem

sólidas fundações teológicas, é um direito cujo traço que o distingue e até

mesmo o tipifica é a moralidade. Que se desenvolve como aplicação sobre o

terreno social de determinadas regras morais. O interesse dos autores das

sumas é pelas relações intersubjetivas, só que sobre estas relações eles não

inserem operadores sociais desqualificados nas sim operadores com uma alma

a ser salva, com uma eternidade a ser conquistada. Toda relação terrena, longe

de se esgotar na imediatez dos eventos contingentes, tem uma finalidade

ulterior. É, em suma, um instrumento para obter a salus aeterna (GROSSI,

2018, p. 796).

O foro penitencial e o processo inquisitorial se interligam pelo conceito de pecado

oculto, ou pecado do pensamento, considerando-se que já em Graciano se admitia julgar a

intenção do indivíduo em casos extremos, no caso, na perseguição às heresias, que, enquanto

lesa-majestade, eram crimes maiores sobre a ordem social. (PRODI, 2005, 97-100). Estes

pecados secretos, do íntimo dos desejos, a princípio, revelavam uma distinção entre pecado e

crime mundano na medida em que que teólogos e juristas dos séculos XI e XII apontavam-nos

como ofensas somente contra Deus e, portanto, somente julgáveis por ele (BERMAN, 2006, p.

237). Porém, desrespeitada a instituição da Igreja, eles seriam matérias de suas cortes. Tinha-

Page 45: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

43

se, assim, a partir do artifício do medo, um sistema de justiça concorrente com o do Estado

secular (PRODI, 2005, p. 179-180), ao mesmo passo em que a Igreja voltava a pleitear o

protagonismo no tabuleiro do xadrez político medieval.

Page 46: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

44

6. PECADO, INQUISIÇÃO E O MANUAL DE CAÇA ÀS BRUXAS

Mantidas as perspectivas teológicas e jurídicas já tratadas, é preciso revelar também

como a estratificada sociedade da Europa medieval percebia a mulher e o corpo feminino,

considerando-se o caráter fundante destas definições sobre a vivência daquela sociedade.

Assim, conhecidas as normas que disciplinavam tais questões, será possível identificar o que

se mostrava destoante e, portanto, herético ao olhar do fortalecimento do processo inquisitório.

A historiadora Cristiane Klapisch-Zuber (1989, p. 193) adverte que na concepção

tripartite da sociedade cristã, entre cavaleiros, clérigos e camponeses, não há um recorte para a

condição feminina. Isto porque:

Antes de ser camponesa, castelã ou santa, a «mulher» foi caracterizada pelo

seu corpo, pelo seu sexo e pelas suas relações com os grupos familiares. Quer

se trate de esposas, viúvas ou virgens, a personalidade jurídica e a ética

quotidiana foram delineadas em função de um homem ou de um grupo de

homens (KLAPISCH-ZUBER, 1989, p. 193).

A partir da função reprodutora dada à mulher - para parir, criar e manter a linhagem-,

pela perspectiva política, atribuía-se ao feminino o símbolo de paz, na medida em que

casamentos significavam uniões duradouras entre as famílias dos nubentes (KLAPISCH-

ZUBER, 1989, p. 194-195). A autora (1989, p. 200-201) destaca ainda que, pelo fato de a morte

se abater com frequência em um mundo em que o combate e as guerras apresentavam caráter

ético, deixar herdeiros era um desafio como qual conviviam as famílias, de modo que, no século

XIII, dentro da lógica mulher-reprodução, casamentos hoje vistos como infantis eram

frequentes nas classes nobres, sendo celebrados entre homens em idade madura e meninas de

12 ou 13 anos. As camponesas, por sua vez, casavam-se por volta dos 18 anos.

Símbolo de paz no interior dos lares – a exemplo da Virgem Santíssima, a

insubordinação das mulheres à autoridade dos maridos, mais do que uma ofensa a eles, atingia

a reprovação coletiva, por representar a ruptura da ordem natural (KLAPISCH-ZUBER, 1989,

p. 205-206). A fuga do papel matrimonial era vista com desconfiança, causando efetiva

marginalização em caso de autonomia voluntária ou involuntária:

Para a maior parte, a necessidade de trabalhar está directamente ligada à sua

situação matrimonial ou à perda de protecção familiar. (...)São mulheres sem

família as que se colocam fora da ordem «natural» atribuída ao sexo feminino

pela sociedade medieval. Por isso são muito mais vulneráveis e a sua

Page 47: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

45

reputação fica imediatamente manchada. Viúvas sós, mendigas que ganham o

seu sustento fiando, criadas de servir, reclusas que vivem fora de uma

comunidade religiosa, todas são suspeitas de mau comportamento e

facilmente acusadas de prostituição. As mulheres sem raízes que, no século

XI, seguem santos homens como Robert d’Arbrissel, o fundador de um

mosteiro «misto» cuja direcção confia a uma mulher, as que, no século XIV,

se juntam aos bandos de flagelados, recrutam-se entre aquelas que têm uma

situação matrimonial, um tipo de vida e, por vezes, uma independência

económica que são suficientes para as designar como elementos à margem. O

descrédito do trabalho fora de casa, das manifestações de devoção demasiado

autónomas e da vagabundagem das mulheres mostra à evidência que as

sociedades de finais da Idade Média dificilmente conceberam a «condição

feminina» fora do enquadramento matrimonial (KLAPISCH-ZUBER, 1989,

p. 208).

Somado a isso, tal comportamento feminino configurava a recusa da sacralidade do

corporal, o que gerava a ojeriza social, pois o corpo era visto como um espaço de disputa entre

o profano e o divino, o corpo deveria ser santificado afastando-se qualquer elemento de

remissão à carne e, por isso, as expressões físicas de adoecer, envelhecer ou de prazer, como

fluidos, sangue e chagas, eram tidas como prova desta degradação (LE GOFF, 2010, p. 53-54).

Significa isso dizer que o corpo, para a mentalidade medieval, seja para homens ou para as

mulheres, por uma sobrevalorização do espiritual em oposição ao físico, era algo

constantemente recusado. No entanto, a partir do pecado original de Eva, elegia-se a

sexualidade, consubstanciada principalmente no corpo feminino, como o lugar maior desta

aversão, por representar, em última instância, um lugar onde concretamente se subverteu a

ordem do criador. É o que brilhantemente expõe Le Goff:

A encarnação é humilhação de Deus. O corpo é a prisão (ergastulum- prisão

para escravos) da alma e esta, mais ainda que sua imagem habitual, é a sua

definição. O horror pelo corpo atinge o auge nos seus aspectos sexuais. O

pecado original, pecado de orgulho intelectual, de desafio intelectual a Deus,

é transformado pelo cristianismo em pecado sexual. O desprezo pelo corpo e

pelo sexo toca assim o seu ponto máximo no corpo feminino. Desde Eva até

a bruxa dos fins da idade média, o corpo da mulher é o lugar de eleição do

diabo (LE GOFF, 2010, p. 53-54).

Assim, o agir humano deveria corresponder ao sentido de castidade, seguindo-se o

sentido escatológico cristão, em que o temporal deveria se direcionar à salvação espiritual. Isto

era algo tão cotidiano que se impunha à gestualidade das pessoas: o gesticular também

denunciava a normatividade no espaço social e, consolidado o corpo clerical em hierarquia

superior, tinha-se em sua forma contida e reta de expressar-se o modelo a ser seguido e, mais

Page 48: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

46

que isso, gestos libertos, largos, não castos eram taxados de pagãos, loucos e, logicamente, não

pertencentes à Igreja universal e passíveis de linchamento ( LE GOFF, 2010, p. 55-57, 162).

O historiador francês (2010, p. 58-60), para exemplificar esta lógica de controle

ideológico da Igreja sobre os gestos, em análise à iconografia do século XIII, aponta que nas

figuras diferenciavam-se as almas do purgatório das do inferno pela postura de joelhos e mãos

juntas, suplicando a Deus, sem que se possa ignorar que o purgatório era tido como lugar de

tortura do corpo para viabilizar uma purificação que levaria aos céus. Significa dizer que a alma

que tem essa reta postura, imagem da reta conduta, vence as torturas do corpo, se purifica e,

assim, ascende.

6.1. A relação entre o laico e o religioso no século XV

Se crime e pecado convergiam ao mesmo tempo em que se reconhecia a autonomia do

homem para criar o Direito, com base na doutrina tomista do direito natural, era do interesse

tanto de Príncipes quanto da Igreja que a lei positiva conseguisse atingir a consciência do fiel,

isto é, dizer sobre o caminho que levaria à salvação eterna, de modo a se poder afirmar que “ a

verdadeira força da lei positiva, a vis legis, consiste no poder de vincular a consciência do

homem ao foro interno” (PRODI, 2005, p. 208-216). E isto faz com que, com o processo de

nacionalização dos Estados europeus e a respectiva nacionalização das Igrejas ao final do século

XV, seja priorizada pelo poder secular a lógica de que crimes, definidos pela vontade do

soberano, levam ao pecado. Com isso, predomina a lógica dos manuais de confessores, a tese

de que os pecados seriam crimes passíveis de punição terrena como também pela prescrição do

sacerdote (PRODI, 2005, p. 213-217).

O cristão, ao final do período medieval e no início da Idade Moderna é chamado a ter

suas ações e seus pensamentos julgados pela Igreja e pelo Estado, “seja por se tratar de uma

antecipação misericordiosa do juízo universal, seja por se tratar da condenação a uma pena

temporal que ainda é concebida como um instrumento para evitar a pena eterna.” (PRODI,

2005, p. 231). E isto significa implantar um ambiente de medo, não apenas pela perspectiva do

efetivo uso político dele, mas porque um mundo se dissolvia aos olhos do cristão: a

obrigatoriedade da lei positiva evidenciava a dissolução da ordem jurídica medieval amparada

na pluralidade de manifestação do jurídico, e, considerando-se o caráter sagrado a ela atribuído,

Page 49: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

47

consequentemente, o cristão se afastava da sensação de proximidade com o divino (PRODI,

2005, p. 232-234).

Ao fim do medievo numerosas eram as investidas que regiam e eram regidas pelo medo:

Os últimos séculos do período medieval vivenciaram diversos eventos que

direcionaram a sociedade europeia a um medo apocalíptico. O medo constante

de guerras, da fome e da peste e os cismas que estavam acontecendo na Igreja

Católica assombravam a sociedade(...)Exemplos são: Peste Negra, o Grande

Cisma (Igreja Ocidental com duas sedes: uma em Roma, Papa Urbano VI,

uma em Avinhão, Antipapa ClementeVII, ocorrido na transição dos século

XIV-XV), a Guerra dos Cem Anos, as lutas das Cruzadas e o avanço turco, a

decadência moral do papado provocando a Reforma, entre outros

(HAVRECHAK, 2014, p. 9).

Por conseguinte, encontra correspondência histórica a conclusão a que chegou Paolo

Prodi, às vésperas da Reforma Protestante, viviam-se dores de uma ordem balançada pelo

processo de reformulação entre os poderes político e religioso.

6.2. Surgia o Martelo das Feiticeiras

Primeiramente, deve-se lembrar que, com a perspectiva de universalidade e de

divindade da comunidade cristã, havia dentro dela constantes oposições entre cristão e herege,

sagrado e profano, corpo e alma, onde o outro era motivo de medo, de modo que a

marginalização era imanente à sociedade medieval, estruturando-a (LE GOFF, 2005, p. 314-

323). Esta dinâmica pode ser descrita da seguinte forma:

A sociedade medieval tem necessidade destes párias postos à margem, porque

perigosos, mas visíveis para que, graças aos cuidados que lhe dispensa [por

uma perspectiva de caridade] ela possa ficar-se na sua boa consciência e, mais

ainda, projeta e fixa neles, magicamente, todos os males que afasta de si

(MOLLAT apud LE GOFF, 2010, p. 162-163).

E isto persistiria mesmo com a crise que se abatia sobre o Medievo. Acresce-se que a

inquisição, por meio de manuais de processos, conseguia identificar e colocar minuciosamente

em palavras as formas de taxação e de identificação dos gestos daqueles que, segundo ela,

deveriam ser excluídos, ao mesmo tempo em que penas eram impostas, seja pela colocação de

símbolos infames às pessoas ou por meio da espetacularização da redenção na condenação às

fogueiras (LE GOFF, 2010, p. 162).

Page 50: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

48

Dentro do Tribunal do Santo Ofício, os dominicanos persistiam como protagonistas na

lida com os hereges, num monopólio que só terminaria com a concorrência da Companhia de

Jesus, criada no século XVI (SOUZA, 2016, p. 9). Esta função de guarda que a ordem

dominicana adquiriu é o que autoriza César Cardoso de Souza Neto (2017, p. 211). a comentar

que “fato interessante é que o termo dominicanos advém não somente do nome do santo

fundador, Domingos, mas, sobretudo da junção de dois termos latinos Domini e canis, ou seja,

cães do Senhor”, referindo-se não só à etimologia, mas à alcunha que ganhava a ordem.

Desta forma, compreende-se porque em 1484 o papa Inocêncio VIII, por meio da bula

Summis desiderantes affectibus, reconhece a bruxaria como uma realidade a ser combatida na

Alemanha e elenca os dominicanos Henry Kramer (1430-1505) e James Sprenger (1435-1495)

a tarefa de caçá-las (SOUZA, 2016, p. 5). No cumprimento desta tarefa, em 1487, os dois

dominicanos lançaram o Malleus Maleficarum ou “O Martelo das Feiticeiras”, seguindo-se a

tradição consagrada, um manual de caça às bruxas que trazia como prefácio a referida bula, que

extrapolaria a Alemanha, no século XV, bem como o Continente europeu, ao longo de toda a

trajetória inquisitorial. Reforçando a origem terminológica da ordem, no Manual é feita

referência ao latir de São Domingos enquanto capaz de afastar “os lobos hereges do rebanho

das ovelhas de Cristo” (KRAMER; SPRENGER, 2015, p. 682).

Esta bula papal estabelecia quais seriam as regiões mais afetadas por esse mal diabólico,

apontando as dioceses de Mainz, de Colônia, de Tréves, de Salzburgo, de Bremen e, ainda, a

região da Alemanha do Norte, de forma geral, como as mais atuadas pela bruxaria (SOUZA,

2016, p. 10). A grande questão é justamente se indagar a respeito dos motivos de eleição destas

localidades como tais, diante do vasto território capaz de ser alcançado pelo Tribunal do Santo

Ofício. A resposta para tanto abarca três correntes historiográficas:

A primeira diz que a causa primordial do predomínio da bruxaria na Alemanha

é a miséria generalizada, reinante naquela região. Outra tese afirma que a

causa do predomínio da bruxaria naquela região é causado pela insuficiente

cristianização. E por último, há tese de que a fiscalização inquisitorial na

Alemanha foi mais descontínua e atenuada que em outras partes da Europa

(SOUZA, 2016, p. 10).

Neste cenário, surgia um livro cuja primeira parte, denominada Das três condições

necessárias para a bruxaria: o Diabo, a bruxa e a permissão de Deus Todo Poderoso, é voltada

a uma argumentação teológica para convencer a sobre a existência de bruxaria no mundo. A

segunda parte, Dos métodos pelos quais se infligem os malefícios e de que modo podem ser

Page 51: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

49

curados, é aquela em que é estreitada a argumentação sobre a relação do diabo com as mulheres

e a identificação das ações dessas duas figuras em direção ao mal. Já a terceira parte, Que Trata

das Medidas Judiciais no Tribunal Eclesiástico e no Civil a Serem Tomadas Contra as Bruxas

e Também Contra Todos os Hereges – Que Contém XXXV Questões Onde São Clarissimamente

Definidas as Normas Para a Instauração dos Processos e Onde São Explicados os Modos Pelos

Quais Devem Ser Conduzidos, e os Métodos Para Lavrar as Sentenças, apresenta a definição

do julgamento das bruxas pelos inquisidores e elabora o procedimento deste, que, note-se, é

incentivado a ser aplicado seja na jurisdição eclesiástica, seja na jurisdição civil.

Ao dizer sobre a tortura como modo de extrair a verdade real dentro do Tribunal do

Santo Ofício, o Professor Felipe Martins Pinto (2010, p. 202) adverte que o processo

inquisitório era uma engenhosa estrutura alimentada pela erudição filosófica e teológica,

forjado na elaboração de um discurso que, em nome da purificação da alma ao encontro com

Deus, atribuía à tortura um caráter bendito. Neste sentido:

Sob a manipulação desse discurso, a tortura adquiriu um caráter medicinal

para a alma, pois mesmo que o acusado fosse inocente das imputações, a sua

submissão aos suplícios, enquanto expiação de seus pecados, o aproximaria

da divindade celestial e, dessa forma, todos os martírios, todas as dores, todas

as angústias e até mesmo as marcas deixadas nos corpos (sinais externos da

purificação), passaram a gozar de uma conotação benéfica (PINTO, 2010, p.

202).

E o Martelo das Bruxas é expressão pura desta dinâmica. Nele a erudição se faz notar à

primeira vista. Primeiro, sob a perspectiva formal, porque estruturado em tópicos e sob

elaboração e resolução de questões, revelando-se didático e voltado a convencer. E, além disto,

é construído sobre o amparo da doutrina canônica e das escrituras, referindo-se com frequência,

ou, a todo momento, às autoridades das obras de doutores da Igreja Católica, como Santo

Agostinho, Santo Anselmo, Santo Isidoro, São Jerônimo, Santo Antônio, Santo Antonino,

Santo Alberto, São Bernardo, São Crisóstono, São Tomás de Aquino, sobretudo. São setenta e

oito autores citados ao total, destacando-se o uso do método escolástico e o objetivo de

demonstrar ortodoxia no conteúdo trazido (MACKAY, 2009, p. 16-17).

Por exemplo, na Questão VI Sobre as bruxas que copulam com Demônios. Por que

principalmente as mulheres se entregam às superstições diabólicas, depois de defender a

fraqueza física e intelectual das mulheres, bem como uma maior presença do carnal nestas como

Page 52: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

50

a causa de maior suscetibilidade ao mal (KRAMER; SPRENGER, 2015, p. 673-698),

argumenta-se a partir das escrituras:

Os pregadores devem ficar muito atentos para a forma como as utilizar. É

verdade que no Antigo Testamento as Escrituras têm muito a dizer sobre a

malevolência das mulheres, e isso em virtude da primeira mulher sedutora,

Eva, e de suas imitadoras; depois, contudo, no Novo Testamento, há uma

mudança do nome de Eva para Ave (conforme nos diz São Jerônimo), e todo

o pecado de Eva é expungido pela bem aventurança de Maria. Portanto, cabe

aos pregadores muito louvá-las sempre que possível. Porém, como nos nossos

tempos essa perfídia é mais encontrada em mulheres do que em homens,

conforme nos ensina a experiência, para os ainda mais curiosos a respeito da

razão do fenômeno, acrescentamos o que já foi mencionado: por serem mais

fracas na mente e no corpo, não surpreende que se entreguem com mais

frequência aos atos de bruxaria. Pois no que tange ao intelecto, ou ao

entendimento das coisas espirituais, parecem ser de natureza diversa da do

homem; fato que é defendido pela lógica das autoridades respaldadas em

vários exemplos das Escrituras. Diz-nos Hecira: “As mulheres,

intelectualmente, são como crianças.” E declara-nos Lactâncio (Institutiones,

III): “Nenhuma mulher chegou a compreender a filosofia, exceto Temeste.” E

nos Provérbios, 11 há esta passagem descrevendo uma mulher: “Um anel de

ouro no focinho de um porco, tal é a mulher formosa e insensata.” Mas a razão

natural está em que a mulher é mais carnal do que o homem, o que se evidencia

pelas suas muitas abominações carnais (KRAMER; SPRENGER, 2015, p.

698-701).

Pela pungência destas palavras, como pela sistematização de todo o manual, trata-se de

obra destinada a mostrar a bruxaria como a pior das heresias, o pior dos males da sociedade, a

tal ponto que o Malleus faz uma imputação mais grave às feiticeiras, a de apostasia:

Os hereges deveriam ser punidos de diversas formas conforme o grau da

heresia e a possibilidade de arrependimento e reintegração na comunidade

cristã, e poderiam sofrer: excomunhão, deposição, confisco de bens, prisão

perpétua ou a morte. Mas sendo as feiticeiras consideradas, além de hereges,

apóstatas – que seria o afastamento temerário de Deus e da religião – a punição

deveria ser muito maior devido ao enorme grau de malignidade

(HAVRECHAK, 2017, p. 17).

Desta forma, todas as torturas prescritas na terceira parte do livro se encontrariam

justificadas. A alma da acusada ou do acusado que não resistiu à tentação feminina e o corpo

social agradeceriam pelo método de expurgar o mal.

Pode-se dizer que este reconhecimento foi verificado de fato. Houve uma ratificação do

livro pelos doutos de Colônia, escrita por Lambertus de Monte e aprovada por outros

professores, na qual o método de inquisição à feitiçaria instituído pelo Maleus era recomendado

Page 53: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

51

aos demais padres e Príncipes, porque erradicaria a presença do Diabo, que as bruxas

representavam na sociedade, levando justiça, misericórdia e graça (MONTE, 2015, p 3139).

Pela clareza com que isto se evidencia em suas palavras, é preciso trazê-las à discussão:

Ademais, na minha opinião, a terceira parte há de ser inteiramente aprovada,

e há de ser colocada em prática, já que no julgamento e na punição de tais

hereges, matéria de que trata, nada é recomendado que possa infringir a Lei

Canônica. E uma vez mais, em virtude dos valiosíssimos e salutares assuntos

que se acham ali contidos, mesmo que só por causa do grande conhecimento

e da boa reputação desses valorosos e honrados Inquisidores, poderia a obra

ser vista como necessária e de grande utilidade, e haveremos de ter o diligente

cuidado de distribuí-la entre homens eruditos e zelosos, que com grande

vantagem nela encontrarão variadas e ponderadas orientações para o

extermínio das bruxas. Além disso, haveremos de levá-la às mãos de todos os

reitores das igrejas, particularmente às mãos daqueles que são honestos, ativos

e que temem a Deus, e que poderão, lendo o livro, sentir-se encorajados para

despertar o ódio no coração das pessoas contra essa pestilenta heresia maléfica

e contra todos os atos hediondos de bruxaria, para que todos os homens de

bem possam ser advertidos e salvaguardados e para que todos os malfeitores

possam ser descobertos e punidos (MONTE, 2015, p. 3136-3139).

A historiadora Ludmila Portela adverte que a historiografia ainda não consegue afirmar

se o Malleus representa apenas o pensamento e a histeria dos seus autores ou o afã de toda a

coletividade sobre a mulher e sobre a bruxa (2017, p. 278). Porém, não poderia deixar de ser

observado que a leitura do Martelo das Feiticeiras evidencia o discurso de que:

Como instrumento de cristianização, o controle da sexualidade medieval passa

também pelo controle da mulher, veículo primeiro da tentação e do pecado.

Teme-se a mulher na mesma medida em que teme-se a sexualidade. O

cristianismo deixa de obedecer essencialmente as questões de observância aos

ritos para pautar-se na observância da conduta e da moral. (PORTELA, 2017,

p. 273).

O discurso é radicalizado ao ponto de taxar como diabólicas as atividades que

demonstravam conhecimentos passados de geração em geração entre mulheres, como os das

parteiras e das curandeiras, mesmo que servissem de assistência no nascedouro e no cuidado

das dores diante de doenças, “onde o curandeirismo muitas vezes o único caminho de acesso

ao alívio dos males físicos do corpo, especialmente entre os estratos sociais mais

baixos”(PORTELA, 2017, p. 274). Isto pois, de acordo com o Malleus, as parteiras, dentre

todas as bruxas, eram as mais perigosas, uma vez que eram capazes de oferecer ao Demônio

até mesmo crianças de mães honestas, que, por sua vez tinham a missão de levar os filhos à

graça, em um espaço para cultivar as próprias virtudes (KRAMER; SPRENGER, 2015, p. 698-

Page 54: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

52

701). Era, ao mesmo tempo, uma demonização da autonomia feminina e uma instrução sobre o

único papel aceitável relegado à mulher. O que ocorria sem receio de impor o medo de bruxas

também entre mulheres, como lecionado pela oposição de mãe e feiticeira1.

As parteiras circulavam desde os níveis mais altos da hierarquia social até o campesinato

(PORTELA, p. 274), o que é expressamente percebido pelos autores do Manual. Por isto, o

controle sobre estas mulheres apresentava-se, em síntese, como mais um espaço à efetivação

do domínio clerical, considerando-se a presença das parteiras sobre todos os territórios:

E são em tão grande número que, conforme se descobriu por suas confissões,

acredita-se que dificilmente exista alguma aldeia em que pelo menos uma não

seja encontrada. E para que os magistrados possam enfrentar esse perigo em

certa medida, não devem permitir que nenhuma parteira pratique o ofício sem

antes prestar juramento como boas católicas (KRAMER; SPRENGER, 2015,

p. 3060-3061)

Por todos esses motivos, com o Malleus Maleficarum, de modo além do habitual,

mulheres eram colocadas às margens da sociedade cristã. Em discussão sobre o fenômeno da

marginalização e da exclusão social, Jacques Le Goff (2010, p. 158) provoca pesquisadores a

questionarem-se se a mudança histórica se opera na figura dos marginalizados ou na

consideração que a sociedade tem por eles. O historiador chama a atenção para a eleição de

qual hipótese teve maior importância e, nesta toada, torna possível analisar a perspectiva de que

não foram as mulheres ou as bruxas que se tornaram mais agressivas, mas sim a postura da

Igreja, o verdadeiro elemento que fomentou a perseguição.

Esta perspectiva converge para a análise do Martelo das Feiticeiras sob a ótica de

religião, do poder e do gênero, ressaltada pela historiadora Juliana Havrechak:

Durante toda a terceira parte do manual [aquela efetivamente dedicada ao

processo inquisitorial] os autores revezavam as denominações para as pessoas

examinadas: ora eram chamadas de “acusadas” ora de “bruxas”. O que nos

leva a refletir sobre a pretensa busca pela verdade, já que apenas pelas

acusações as investigadas já eram tidas por “bruxas”. E de modo especial a

atenção voltada às mulheres. Estas eram o objeto a ser transformado pela

pedagogia incisiva de medo e ordem. O que observamos foi a luta pelos

preceitos religiosos da Igreja Católica. Quem quer que fosse que agisse contra

as regras determinadas seria duramente punido, tanto pela Igreja quanto pelo

poder secular, ou seja, pelos homens retos que compunham a sociedade cristã

Católica (HAVRECHAK, 2014, p.19).

1 Lembrando-se que não existia à época a mulher como categorização independente, como tratado na

primeira parte deste capítulo.

Page 55: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

53

O livro, enquanto manual de inquisição, padecia da mesma falha do processo

inquisitorial em geral, a de identificar a hipótese inicial da acusação com a verdade real e

absoluta que constitui, ao mesmo tempo, a busca e a conclusão no julgamento pelo juiz

inquisidor (COUTINHO, 2009, p. 105), o que significa algo que não evitava o uso deste

processo, mas promovia a inquisição, na mesma medida em que promovia o uso do Malleus

Maleficarum como um instrumento político. Aos poderes laicos e à Igreja, a categorização

de feitiçaria e de bruxaria como forma acentuada de heresia servia para uma

intensificação do tribunal da consciência.

Porém, embora em última instância fundamentado na autoridade e na vontade papal a

partir da bula Summis desiderantes affectibus, as transformações políticas do final da Idade

Média e no início da Idade Moderna mostram que o Martelo das Bruxas, mesmo amparado na

lógica legalista e jurisdicional implementada pela hierocracia da Reforma Gregoriana, não

conseguiu acrescer à efetividade da soberania universal intentada pela Igreja Católica. O que,

por sua vez, não foi empecilho para que o Malleus Maleficarum servisse à efetivação de

um produto dela, o julgamento do foro interno, de conteúdo moral e religioso, punindo

não só o crime, mas também o pecado, como prática inerente ao Estado Moderno.

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54

7. CONCLUSÃO

O presente trabalho encontra na Jurisdição uma parte importante do caminho de

institucionalização da Igreja Católica, especialmente dentro dos acontecimentos que marcaram

o período entre os séculos XIII e XV, na transição da Baixa Idade Média à Modernidade.

Encontrou sua origem a partir da associação entre a universalidade do poder do Império

Romano e a christianitas, comunidade cristã, com o auxílio da organização da Igreja Católica

Apostólica Romana, chefiada pelo Papa. Este, por sua vez, tinha o fundamento de legitimidade

da liderança sobre os demais bispos na investidura de Cristo a São Pedro, atribuindo-lhe a

capacidade de prover o acesso aos céus. O primado de Pedro como afirma Walter Ulmann

(1999, p. 26-28), por meio de abstração jurídica de feitos bíblicos e históricos, conferia ao Papa

uma natureza monárquica. Uma tese que, por séculos, perderia força política devido ao

esfacelamento do Império Romano, na interface da Igreja com os clãs bárbaros e,

posteriormente, pelo marco das modificações políticas e administrativas realizadas pelo

Império de Carlos Magno. Sobretudo pela subordinação do clero ao poder régio, que escolhia

quem comporia os cargos eclesiásticos sob um discurso de proteção da Igreja.

No seio da sociedade medieval, encontra-se um arranjo histórico que, a partindo-se da

perspectiva de ordenação do mundo por Deus, percebe o Direito de forma inerente à justiça, e

ela, por sua vez, se manifesta como a ordenação imanente à realidade. Há, assim, uma

equiparação de Direito e ordenamento social, a espera de ser lido (GROSSI, 2010, p.96-97).

Esta perspectiva de ordem jurídica medieval faz com que se atribua ao Príncipe, quem detém o

poder secular, não a função de legislador, mas de ser o legítimo intérprete dessa ordem pré-

constituída, portanto, um juiz (GROSSI, 2014, p. 157-167). Verifica-se na missão do rei-juiz,

que deve ser, à imagem de Deus, um julgador justo, junto à hierarquização presente na

sociedade medieval, a existência do discurso de soberania, expressada pelo poder de iurisdictio

pleníssima (COSTA, 2010, p. 104-111). Poder que irradiava sobre os demais magistrados, em

respeito à ideia de dois corpos do rei, um corpo terreno, que provém a paz pela espada e um

corpo divino, que, investido por Deus, deve desempenhar o papel de Cristo (KANTOROWICZ,

1998, p. 72-73).

Isto permitiu constatar que o centro da disputa entre a Igreja Católica e o Imperador

Henrique IV pelo poder de investir os cargos da Igreja, no século XI, era uma disputa por

soberania. Pois o corpo que conseguia adentrar cada localidade dos territórios era o corpo

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55

eclesiástico (SOUZA, 1997, p. 21-36). E este moveu-se imbuído na tarefa de purificar não só o

clero em relação ao poder secular, mas toda a sociedade cristã, que, aos olhos reformadores,

num resgate do primado de Pedro aliado à atribuição de superioridade do espiritual sobre o

carnal, visava efetivar o ideal de hierocracia, subordinando-se a universalidade do cristianismo

ao Papa (BERMAN, 2006, p. 136-140). É o espírito da Reforma Gregoriana.

Aos olhos desta reforma o juiz supremo passou a ser o Papa, à fundamental diferença

que agora amparado pelo poder legiferante que tinha sua vontade, pelo desenvolvimento do

sistema de Direito Canônico e pela estrutura hierarquizada de cortes eclesiásticas. Foi

identificado que isto significou, sobretudo, a capacidade de a Igreja agir em disputa com o poder

secular, enquanto instituição política concorrente. E, enquanto tal, por ter permanecido

detentora da chave dos céus, mostrou ter provocado não só uma dualidade entre o foro externo

– terreno, contencioso ou civil, e o foro interno - espiritual, uma vez que opunha a todo

momento o laico e o clero; quanto, principalmente, deu natureza de foro externo ao foro interno,

isto é, fez com que os sacramentos fossem confundidos com poder de jurisdição (PRODI, 2005,

p. 61-62).

Neste contexto, a partir da mudança teológica dada sobre conceito de purgatório, a Igreja

poderia aplicar na esfera temporal os sofrimentos que purgariam os pecados cometidos, isto é,

conferia-se estrutura jurídica aos pecados que, antes um afastamento de Deus, passavam a ser

então delimitados por atos, desejos e pensamentos não condizentes com a doutrina eclesiástica

(BERMAN, p. 2018-2019). Eram, a depender da gravidade, somente passíveis de penitência ou

crimes à comunidade cristã, que deveriam ser punidos no tribunal da consciência. Dentre estes

crimes, o maior a que se poderia referir era a heresia, porque representava o intento direto de

dissolução da ordem e, pela perspectiva papal, um crime lesa-majestade (LE GOFF, 2005,

p.315).

Verificou-se que o tribunal da consciência era fortalecido em torno da prática de

confissão, na medida em que este espaço de encontro do cristão com Deus não estava imune à

busca por pecados ocultos em seus pensamentos. Sobretudo pela instituição da obrigatoriedade

da confissão anual em 1215, logo seguida pela conferência da competência confessional aos

dominicanos, uma ordem destinada ao combate à heresia. Concomitantemente, os manuais de

confissão espalhavam-se, revelando-se, a partir da fundação teológica de que toda relação

terrena tem finalidade ulterior, a identidade que o direito guardava com a moralidade (GROSSI,

2018, p. 796).

Page 58: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

56

À vista disso, foi delineado, sob a perspectiva do tribunal da consciência, o quadro

histórico do surgimento do Tribunal do Santo Ofício, que inovava pela criação do processo

inquisitorial. Um procedimento racional que permitia a um mesmo clérigo, enquanto juiz,

acusar, investigar e torturar em busca da verdade real, que seria sempre condizente com a

doutrina corrente da Organização Católica (POLI, 2016, p. 93-97). Ao fim deste processo,

constatada a culpa, penas terrenas seriam imputadas. Verificou-se também que a Inquisição foi

lugar de forte atuação dominicana.

Conclui-se, portanto, que, por meio da punição, o tribunal da consciência consolidou-se

como modo de efetivação das regras da teologia moral.

O projeto gregoriano sobre a soberania, porém, não conseguiu transpor as barreiras que

o desenvolvimento das cidades comerciais, da Escolástica e do Ius comune propiciaram. Em

alguma medida, a Igreja, como nos faz perceber Berman, provava contra si uma estrutura

jurídica que ela mesma criara. Tampouco se eximiria das crises espirituais que provocara. Seja

pela contradição do predomínio do caráter de organização política em face da legitimação de

seu poder sobre uma religião que pregava a caridade, seja porque o predomínio da lei positiva

como constituidor dos sistemas jurídicos, dentro do pluralismo jurídico da Baixa Idade Média,

revelava ao cristão a ruptura da imanência do divino na sociedade e, por isso, revelava o medo

do distanciamento de Deus (PRODI, 2005. p. 232- 234). Constatam-se, em outras palavras, as

perturbações e as dores provocadas pela ruptura da ordem jurídica medieval no prenúncio da

Modernidade.

No entanto, isto não significou um enfraquecimento do tribunal da consciência, na

medida em que, embora criado pela Igreja Católica, este serviu de base à política estatal por

meio da equiparação entre o crime -descumprimento da ordem do soberano, e o pecado. Desta

maneira, em movimento de sacralização da lei, o espaço de maior efetividade desta seria na

relação de cada indivíduo com Deus, isto é, no foro da consciência, posto que cada pessoa era,

ao mesmo tempo, súdito e fiel. Assim, constatou-se o que Prodi denomina obrigatoriedade em

consciência da lei positiva.

Em vista disso, o fenômeno do legalismo ainda não era capaz de dissolver a união entre

Direito e Moral. Tinha-se, ao século XV, sob os preceitos teológicos da dualidade entre a

Virgem Santíssima e o pecado de Eva, na retidão moral que significava o papel de esposa e

mãe, o único espaço aceito para a mulher dentro da sociedade; que a todo tempo inquiria no

corpo feminino a sede maior do pecado carnal.

Page 59: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

57

Com base no exposto, é neste cenário crítico, embebido em medo - que, por sua vez, era

algo regente das políticas seculares e eclesiásticas-, que na Alemanha do século XV é divulgado

o “Malleus Malleficarum- O Martelo das Feiticeiras”, obra que fundamentava sua autoridade

na bula papal Summis desiderantes affectibus e nas obras dos santos da Igreja. Verifica-se nele

um manual de inquisição direcionado a provar a existência da bruxaria no mundo, ali eleita

como o pior dos males que afligiam a sociedade, a pior das heresias, na medida em que

representava um lugar de ação direta do Diabo e que, portanto, deveria ser combatida. Por isto,

o Livro desenvolve um processo inquisitorial especial.

E, neste processo, revelava-se o discurso do controle da sexualidade medieval como

instrumento de cristianização, que passa pelo controle da mulher, tida como mais atrativa à

tentação, para temer a mulher como se temia a sexualidade, revelando-se a predominância da

pauta sobre a observância da conduta e da Moral sobre os ritos da religião cristã (PORTELA,

2017, p. 273).

O Malleus, tanto no interior do seu texto, quanto na ratificação do livro pelos doutores

da Universidade de Colônia, conforme identificado, faz menção direta à necessidade de sua

efetivação também pelo poder secular. Por conseguinte, foi consciente e expressamente um

incentivo à consolidação do tribunal da consciência, tendo recebido o reconhecimento disto.

Conforme averiguado, por meio do Manual de inquisição às bruxas, buscava-se efetivar

a doutrina oficial da Igreja em detrimento do aumento do processo de exclusão social das

categorias já marginalizadas na sociedade medieval, como eram as mulheres. Deste modo,

verificado o caráter jurídico do conteúdo do Malleus, abre-se o questionamento sobre a

instrumentalização política da marginalização e sobre o Direito como forma de propiciá-la.

Verifica-se também, a partir da força com que o Malleus ganhou na Alemanha, a

abertura ao questionamento se haveria ligação entre a tese de que a Jurisdição Civil não é a

competente para julgar o pecado oculto- julgado por clérigos, e o aparecimento da Reforma

Protestante com Lutero. Ora, se só Deus pode punir a consciência, deve-se reportar-se a ele, em

última instância, de forma direta, e não mais pela mediação do corpo da Igreja. O que encontra

ressonância na perspectiva de Berman (2003, p. 6), no segundo volume de Direito e Revolução,

de que a Reforma Luterana foi uma reivindicação do fim da jurisdição eclesiástica.

Ainda, o desenvolvimento desta pesquisa possibilitou perceber, dentro do processo de

fortalecimento da tese de que somente Deus poderia expurgar o pecado, a permissão para que

se separassem as esferas do Direito e da Moral. Isto é, converge para a perspectiva do iluminista

Page 60: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

58

alemão Thomasius, que se opõe ao tribunal da consciência para definir a ação humana como

dividida entre a vida interior e a vida externa; onde a primeira demonstra o homem como juiz

interior de sua conduta, inexistindo, por isto, um foro externo a se recorrer, mas somente o

interno, da Moral; e a segunda representa a vida em sociedade, a harmonização do agir dos

indivíduos sob tutela da autoridade superior, ou seja, o Direito, com a exterioridade como

atributo (REALE, 1999, p. 653-654).

O Malleus Maleficarum, então, representa o apogeu do poder da Igreja, mas abre

caminho para a sua derrocada no século XVI com a Reforma Protestante e, no século XVII,

para fomentar a separação, como em Thomasius, entre Direito e Moral.

Page 61: O Malleus Maleficarum como efetivação da jurisdição da

59

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