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UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE DIREITO
RAQUEL DA SILVA MARINHO - 85682
O MALLEUS MALEFICARUM COMO A EFETIVAÇÃO DA JURISDIÇÃO DA
CONSCIÊNCIA DA IGREJA CATÓLICA: UM PERCURSO POLÍTICO
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
Orientação: Paulo César Pinto de Oliveira
VIÇOSA – MINAS GERAS
2020
RAQUEL DA SILVA MARINHO - 85682
O MALLEUS MALEFICARUM COMO A EFETIVAÇÃO DA JURISDIÇÃO DA
CONSCIÊNCIA DA IGREJA CATÓLICA: UM PERCURSO POLÍTICO
Monografia, apresentada ao Curso de Direito da
Universidade Federal de Viçosa como requisito
para obtenção do título de bacharel em Direito.
Orientador: Paulo César Pinto de Oliveira
VIÇOSA – MINAS GERAS
2020
À Alpinia zerumbet,
Criação sagrada,
Pela alegria que me traz.
AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente à vida, de importância incomparável. Na sinfonia das suas
contingências e das minhas escolhas me foi permitido concluir este trabalho e a Graduação em
Direito.
Aos professores do Departamento de Direito, pelos ensinamentos e pela acolhida.
Sobretudo à Professora Débora Madeira e aos Professores do Grupo de Pesquisa em Direito,
Política, Economia e Sociedade -GP DIPES: Fernando Laércio, Roberta Guerra, Davi Lélis, e
meu orientador, Paulo César Pinto de Oliveira, quem, junto ao Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPQ, me ofereceu a oportunidade de uma
profunda experiência de pesquisa. Cada um, a seu modo e área, incrementou minha formação
não só com maestria teórica, mas com incentivo ao questionamento e crítica.
À Universidade Federal de Viçosa, por seguir enfrentando os desafios impostos às
instituições públicas brasileiras, sempre acreditando no seu papel social e oferecendo a tríade
de Ensino, Pesquisa e Extensão.
À UFV cabe o eterno amor por nela ter conhecido os amigos que me acompanharam ao
longo do curso, a quem agradeço por fazerem brilhar a reta, o Ru, as salas de aula, o cinema, as
ruas de Viçosa com um mundo radiante que se construía a cada ideia trocada. Assim como
agradeço às amigas que se mantiveram presentes e queridas, mesmo com a distância que a ida
para Viçosa provocou.
À minha família, pelo apoio integral nos estudos, desde a primeira infância. Sobretudo
pela companhia e pela paciência na reta final deste trabalho, realizado sob o confinamento
imposto pelo ano de 2020.
Ao André, pelo carinho e pela braveza, pelas três cordas que soam juntas. Se chego a
feitos grandes, no cotidiano ou no mundo a ser desbravado, é com a força do nosso amor, que
carrego comigo.
Agradeço, por fim, à inspiração menina, “passado no meu presente, sol bem quente lá
no meu quintal”, que aos 10 anos de idade escandalizou-se e riu quando soube ter existido um
livro que efetivamente instruía perseguir bruxas. Mas que, mesmo descobrindo resquícios deste
absurdo na sociedade atual, não abandona os desafios de pesquisar, de pesquisá-lo e de crescer.
“Estes gerais enormes, em ventos, danando em raios, e fúria, o armar do trovão, as
feias onças. O sertão tem medo de tudo. Mas eu hoje em dia acho que Deus é alegria e
coragem –que Ele é bondade adiante, quero dizer. O senhor escute o buritizal. E meu coração
vem comigo.”
João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
RESUMO
Este trabalho de conclusão de curso foi desenvolvido com o objetivo de descrever as
condições históricas e político-jurídicas que permitiram a formação de um tribunal de
consciências construído pela Igreja Católica na Europa, entre os séculos XIII e XV. Sob o
amparo da metodologia histórico comparativa, encontra na Reforma Gregoriana as origens do
delineamento deste foro cuja matéria competente dizia respeito ao íntimo do indivíduo, que era
julgado pelo código de conduta da moral cristã. E, a partir disto, analisa a inserção do livro
Malleus Maleficarum- O Martelo das Feiticeiras dentro deste foro interno, sob a ótica da Igreja
enquanto instituição política emanadora de Direito. Encontra na heresia como crime à ordem
social e na atribuição do combate desta pelos dominicanos, junto ao conceito do corpo feminino
como sede do pecado carnal, pontos decisivos. Como resultado, expõe um panorama sobre as
repercussões da identidade entre Direito e Moral na desconstituição do mundo Medieval e início
da Modernidade jurídica.
Palavras-chave: Foro da consciência; Reforma Gregoriana; Malleus Maleficarum, Direito e
Moral; Idade Média.
ABSTRACT
This work was written with the main goal to describe the historical, political and legal
conditions that provided the creation of a forum of conscience by the Catholic Church among
the XIII and XV centuries. Supported by the historical comparative method, it has found in the
Papal Revolution the origins of this venue’s path, which jurisdiction meant about one’s inner
self being judged by the Christian moral’s code of conduct. From that view, taken the Church
as a political institution able to create and provide Law, the book Malleus Maleficarum is
analyzed as a product and species of the court of conscience. Thus, heresy as a crime against
the social order, as well as it’s dominican campaign against the heretics, combined with the
concept of the female body as a privileged place for the carnal sin has found to be decisive
points. As a result, this work exposes a panoramic view of the repercussions caused by the
identity between Law and Moral during the deconstruction of the Medieval world and
beginning of the Legal Modernity.
Keywords: Forum of conscience; Papal Revolution; Malleus Maleficarum; Law and Moral;
Middle Ages.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 8
2. O PROCESSO DE FORMAÇÃO DAS JURISDIÇÕES NA EUROPA A
PARTIR DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CRISTIANISMO .................................... 11
2.1. A História Externa do Direito Romano e o fim do Império Romano ................ 12
2.2. A justiça cristã e a institucionalização do cristianismo ....................................... 14
3. OS TRIBUNAIS NA ALTA IDADE MÉDIA A PARTIR DA RELAÇÃO
ENTRE O DIREITO CANÔNICO E O DIREITO SECULAR......................................... 20
3.1. O advento do Império de Carlos Magno .............................................................. 21
3.2. A ordem jurídica medieval .................................................................................... 22
3.3. Soberania medieval e Iurisdictio ............................................................................ 23
3.4. A transição para a Baixa Idade Média e a religião na disputa pela soberania . 25
4. A REFORMULAÇÃO JURISDICIONAL PROMOVIDA PELA REFORMA
GREGORIANA ...................................................................................................................... 28
4.1. A modificação jurisdicional da Reforma Gregoriana ......................................... 29
4.2. A queda da plenitude de poder idealizada pela Igreja: Séculos XIII e XIV ..... 32
4.2.1. A crise espiritual ....................................................................................................... 32
4.2.2. O desenvolvimento do Direito ante à multiplicidade de foros ................................. 34
5. A FORMAÇÃO DO TRIBUNAL DA CONSCIÊNCIA CRISTÃO .................. 39
5.1. Confissão e jurisdição ............................................................................................. 40
6. PECADO, INQUISIÇÃO E O MANUAL DE CAÇA ÀS BRUXAS .................... 44
6.1. A relação entre o laico e o religioso no século XV ............................................... 46
6.2. Surgia o Martelo das Feiticeiras............................................................................ 47
7. CONCLUSÃO ......................................................................................................... 54
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 59
8
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem origem nas pesquisas realizadas enquanto bolsista de iniciação
científica pelo CNPq, com o projeto “As raízes do legalismo jurídico contemporâneo: uma
análise a partir da dissolução do mundo jurídico medieval”, sob a orientação do Professor Paulo
César Pinto de Oliveira, durante o segundo semestre de 2018 e o primeiro semestre de 2019.
Foi oportunidade para, com as discussões teológicas, filosóficas e jurídicas que marcaram o
horizonte histórico da formação do direito no ocidente cristão, identificar as bases teóricas para
desenvolver este trabalho de conclusão de curso dentro da temática do livro “Malleus
Maleficarum, O Martelo das Feiticeiras”, lançado em 1487, como a efetivação da jurisdição da
consciência da Igreja Católica.
Para Walter Ullmann (1999, p.14-15) a história das ideias políticas na Idade Média se
define pela história do conflito entre as teorias ascendente e descendente sobre justificação do
poder. Primeiramente, porque o Cristianismo impôs-se sobre os povos germânicos mudando
sua estrutura política, na medida em que transforma a atribuição da origem do poder político,
antes baseado nas decisões de comunidades e de clãs (teoria ascendente), para concebê-lo
advindo de um poder supremo, ao qual toda a comunidade deveria obedecer (teoria
descendente), isto é, do alto ao chão. No caso, toda autoridade viria de Deus, sendo qualquer
forma política terrestre uma delegação ou representação do poder divino. E, com o decorrer do
tempo, a partir do século XIII, já no Baixo Medievo, a teoria descendente de governo começa
a observar o seu processo de enfraquecimento, até praticamente desaparecer na atualidade
(ULMANN, 1999, p.14-15).
Sob as diretrizes da teoria descendente sobre o poder e motivada por um ideal de
liberdade da Igreja em face da investidura dos príncipes, que representava o controle da política
secular sobre a composição do corpo eclesiástico, a Igreja Católica passa, no século XI, pela
chamada Reforma Gregoriana, desenvolvida sob a ideia de que o clero, enquanto autoridade
espiritual, tinha a missão de reformar o mundo secular, posicionando-se hierarquicamente
acima dele (BERMAN, 2006, p. 136-137). O que representou, sob a perspectiva do historiador
do Direito Harold J. Berman (2006, p. 142-145), não só uma reforma interna, mas uma
revolução, na medida em que a Igreja, ao atribuir ao Papa as qualidades de um soberano,
concedendo-lhe a capacidade de fazer leis e o atributo de juiz supremo, dentro de uma real e
hierarquizada estrutura judiciária composta pelas paróquias e dioceses; bem como por
9
incentivar a sistematização do Direito no seio das Universidades, lançou ao mundo as bases que
constituíram o Estado moderno.
Isto permite verificar, a partir da Reforma Gregoriana, o “itinerário moderno do Direito
à lei”, conforme identificado pelo historiador do Direito Paolo Grossi (2007, p. 25-46), em que
a lei toma para si a sacralidade outrora atribuída à ordem natural cristã, fazendo com que surja,
pela identificação do direito enquanto lei-vontade, o problema de abrir espaço para a
subordinação de todos a algo afastado de um conteúdo justo e adequado à vivência da
comunidade.
Embora já no nascedouro da modernidade jurídica, o conteúdo das regras emanadas
pelas autoridades civis ou eclesiásticas da Baixa Idade Média era um reflexo da intrincada
relação entre os pressupostos éticos e religiosos, que conferiam um caráter jurídico à moral
cristã dentro da sociedade medieval (GROSSI, 2018, p. 791-795).
Ainda, com o desenvolvimento da capacidade jurisdicional da Igreja pós-Reforma
Gregoriana, sob o conceito de heresia como crime lesa-majestade, permitiu-se que pensamentos
e desejos íntimos das pessoas fossem tidos como pecado oculto, passível de punição terrena
(PRODI, 2005, p. 97-100). O que, porque persistia a autoridade espiritual da Santa Sé em face
de toda a sociedade cristã, demonstra um campo de jurisdição exclusiva, isto é, dentro do foro
interno um sistema de justiça concorrente com os sistemas dos poderes terrenos (PRODI, 2005,
p.179-180).
Neste contexto, é visualizada hipótese de ter sido o Martelo das Feiticeiras, um manual
para inquisidores, elaborado por frades dominicanos, que, partindo-se da ideia de maior
predisposição à tentação e ao pecado, associava às mulheres a culpa pela disseminação do mal
no mundo (PORTELA, 2017, p. 252; 273), uma das últimas tentativas da Igreja Católica para
manter-se de pé como instituição política, diante do confronto com os poderes laicos.
O presente trabalho se justifica pela necessidade de elucidar como a perseguição e a
violência vêm inseridas na efetivação do poder estatal desde as mais remotas origens da tradição
jurídica ocidental, agora voltada à dualidade entre Igreja e poder político. Algo aqui
exemplificado pela caça aos hereges e, dentre eles, as bruxas, mas que revela a pertinência do
alerta aos Estados contemporâneos no sentido de ser permanente o risco de fundamentalismo,
ante a contínua sacralização da política1. Ainda, sob os olhos da deturpação que esta questão
1 Conforme pode-se perceber na minuciosa obra Uma história da Justiça, de Paolo Prodi (2005).
10
representa sobre os preceitos do cristianismo originário, amor e caridade, o trabalho se justifica
também pela oportunidade de provocar reflexões sobre a corrente necessidade de uma
reformulação ética.
Diante disso, o objetivo geral deste trabalho de conclusão de curso é descrever as
condições históricas e político-jurídicas que permitiram a formação de um tribunal de
consciências na Europa entre os séculos XIII e XV, isto é, de um foro cuja matéria
competente dizia respeito ao íntimo do indivíduo, sob a normatividade do código de conduta
da moral cristã. Trata-se de uma obra de História do Pensamento Jurídico que, mais
especificamente, visa traçar um percurso em história da jurisdição.
Assim, são perpassados os objetivos específicos de investigar a formação das jurisdições
da Europa a partir da institucionalização do cristianismo; descrever os conteúdos jurídicos na
Alta Idade Média tendo em vista a relação entre o canônico e o laico; descrever a reformulação
jurisdicional provocada pela Reforma Gregoriana e, a partir da configuração política no
prenúncio da modernidade, descrever a formação do tribunal da consciência, analisando
também a inserção das noções sobre o pecado e o corpo feminino dentro deste foro.
Para atingir seu escopo a presente pesquisa foi realizada sob a metodologia histórico-
comparativa, que, a partir da seleção e fichamento dos textos, propõe a leitura cruzada de seus
conteúdos, com a finalidade de perceber os elementos comuns ou particularidades, a orientação
das ideias e como elas são conduzidas na história. Os textos são interpretados dentro da
abordagem hermenêutica da historiografia, que, nas lições de Pietro Costa (2010, p. 17-62),
consiste em assumir o trabalho do historiador do direito como interpretação e metalinguagem:
o campo lexical da cultura presente é colocado a dialogar e traduzir a linguagem do tempo
estudado a fim de se produzir uma narrativa, o discurso histórico-jurídico. E, nessa sistemática,
há o cuidado para não incorrer em anacronismos. Pois, quando se fala em linguagem do tempo
estudado é no sentido de reconhecer, dentro da delimitação temporal, os processos sociais
próprios e os discursos produzidos em relação a esses processos, em síntese, considerar práxis
e cultura de um período (COSTA, 2010, p. 63-78).
Portanto, o trabalho é dividido em três momentos principais, o de delineamento da
identidade da Igreja Católica como instituição política; a formação do tribunal das almas a partir
desta institucionalização e o processo de identificação da feitiçaria como um mal a ser
combatido pela Inquisição.
11
2. O PROCESSO DE FORMAÇÃO DAS JURISDIÇÕES NA EUROPA A PARTIR
DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CRISTIANISMO
Para o historiador do direito Paolo Prodi, jurisdição ou foro é definido “como local físico
ou simbólico em que justiça como juízo sobre o comportamento humano é concretamente
exercida (...), lugar onde a lei e o poder se encontram com a realidade cotidiana dos homens”
(PRODI, 2005, p. 7-9).
Neste sentido, acata-se a atribuição das ordens política, moral e religiosa como origem
do foro, na medida em que “o elemento comum é o de tomar concreta uma norma (divina,
natural ou humana) num caso concreto mediante um poder de coerção” (PRODI, 2005, p.10).
Essa perspectiva de jurisdição encontra ressonância na definição de Direito apresentada
por Paolo Grossi: um fenômeno inserto na cultura, oriundo da sociedade, ordenador dela, que
adquire imperatividade se inserido em um aparato de poder e, porque originado na sociedade,
dotado de historicidade (GROSSI, 2006, p. 6-25). A respeito, preconiza o autor que:
O direito não é necessariamente coligado a uma entidade social e
politicamente autorizada, não tem como ponto de referência necessário aquele
formidável aparato de poder que é o Estado moderno, ainda que a realidade
histórica que nos circundou até hoje ostente o monopólio do direito operado
pelo Estado. O ponto de referência necessário do direito é somente a sociedade
como realidade complexa, articuladíssima, com a possibilidade de que cada
uma das suas articulações produza direito(...) (GROSSI, 2006, p.11).
Desta forma, pode-se afirmar pela existência de jurisdição ainda que não diga respeito
à aplicação de um direito positivado e inserido em uma ordem estatal.
Pode-se também enxergar um universo jurídico de outra realidade histórica, como o
período medieval, articulado por múltiplos entes, isto é, caracterizado por um pluralismo
jurídico, na medida em que conviviam o poder secular, com reinos, senhores locais, estatutos
de cidades e a Igreja (GROSSI, 2014).
Em outras palavras, conforme aduz Hespanha (2005, p. 62-69), antes do predomínio da
ideologia estatalista – como se deu no início do século XIX, a Europa era consciente da
multiplicidade política e jurídica que a compunha, por isto fala-se em pluralismo jurídico, no
12
sentido de que eram reconhecidos centros autônomos de poder, cujos âmbitos normativos
tinham eficácia própria e cuja convivência era naturalizada pela sociedade1.
2.1. A História Externa do Direito Romano e o fim do Império Romano
Giordani, com base na divisão realizada por Leibniz sobre a história romana, define que
“a História Externa tem por objeto o estudo das instituições políticas e sua atuação como fontes
produtoras do direito; a História Interna visa a conhecer os institutos do direito privado em sua
formação e ulteriores desenvolvimentos” (GIORDANI, 1996, p. 2). Com base nesta
classificação, por ser capítulo cujo objeto abarca a institucionalização da Igreja e não a
designação da origem de institutos, pode-se afirmar que nos concerne apenas a história externa
do Direito Romano, que diz respeito à configuração política do Império e ao direito dela
emanado.
A história externa do Império Romano é subdividida em:
Realeza (da fundação de Roma até o início da República em 510 a.C.).
República (de 510 a. C. até a batalha de Actium, 31 a. C.). Império subdividido
em: a) Principado (do início do reinado de Augusto até o reinado de
Diocleciano). No principado o imperador é o “primeiro” (princeps) dos
cidadãos, mas submetido às leis como os demais. b) Dominato (do reinado de
Diocleciano (284-305) até a morte de Justiniano em 565) (GIORDANI, 1996,
p.2)
Considerando-se o enfoque deste trabalho, que parte do surgimento do cristianismo, nos
atemos ao período imperial. Destaca-se, porém, que seja na Realeza, seja na República, ou no
próprio Império, a experiência do estado romano não se dissociava da experiência religiosa. Os
Imperadores “eram os primeiros da res pública e sumos sacerdotes da religião do Estado”
(RIBEIRO, 1995a, p.14).
Dentro do período imperial, o Principado ou Alto Império é caracterizado pela
concentração dos poderes sobre o imperador, que intervinha sobre as outras instituições, como
o Senado; período marcado também pela expansão territorial e pela concessão da cidadania
1 Embora não seja o enfoque deste trabalho, afirma-se que o pluralismo jurídico não se trata de fenômeno
adstrito ao Medievo, mas que encontra manifestação contemporânea, porque oriundo da multiplicidade
de sistemas culturais da prática humana, de forma a ter morada também no convívio ou conflito entre o
Direito oficial e o tradicional ou oriundo das práticas locais (HESPANHA, 2005, p. 505).
13
romana a todos dentro da vastidão do Império, que abrangia da Inglaterra ao Oriente Médio,
com o edito de Caracala, de 212 (GILISSEN, 2003, p. 83-84).
E por Dominato ou Baixo Império designa-se período de crises política, econômica e
religiosa, no qual o Imperador governava absoluto, como único legislador; foi também onde
houve o Edito de Milão (313), que instituiu a liberdade religiosa e inseriu a organização da
Igreja dentro do quadro político-administrativo do Império Romano (GILISSEN, 2003, p. 84-
85). Foi, ainda, no Dominato que se deu a bipartição em Império Oriental e Império Ocidental.
Há múltiplas teses a respeito da queda do Império Ocidental, em 476 a.c., apontando-se
como alguns fatores a insolvência do Estado romano, enfraquecimento militar, rebeliões
internas e o processo de substituição do modo de produção escravagista por economia agrária
e de escambo, baseada em trabalho servil, um prenúncio do feudalismo (WOLKMER, 2006,
p.104-107). Para Wolkmer, esses fatores fazem das invasões sofridas em 476 a.c. apenas “o
último passo do processo de desintegração” (WOLKMER, 2006, p. 105).
No século IV, dentro do Baixo Império, o cristianismo ganha espaço significativo,
considerando-se o Edito de Milão, de 313, que permite o culto cristão; o Concílio de Niceia, de
325, que estrutura a Igreja enquanto católica, apostólica e romana; e o Edito de Tessalônica, de
380, que afirma o cristianismo como religião de estado e abole o politeísmo (HORTA;
SALGADO, 2011, p. 10142 - 10143).
Junto à liberdade de culto instituída pelo Edito de Milão havia também o interesse do
Imperador Constantino em manter a unidade política do Império, ante a vitalidade do
cristianismo e a crise imperial, de modo que, embora cristãs, algumas correntes doutrinárias
foram tidas como hereges por ferirem a unidade religiosa e a ordem social, destacadamente o
arianismo, que entendia pela subordinação do Filho ao Pai (ROMAG, apud SOUZA, 1995a, p.
63). Por isso, em 325 o imperador convocou todos os bispos do Império para a realização do
Concílio de Nicéia, voltado a discutir e combater o arianismo e outras doutrinas do cristianismo
primitivo. Como resultado:
Pelo Concílio, ficou condenado o arianismo, reafirmando-se a
consubstancialidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, posição que se
consolidaria em definitivo pelo Edito Cunctos Populus. Para além do
problema do arianismo, o Concílio de Nicéia teve, ainda, um papel essencial
para a unidade da Igreja, tanto em plano doutrinário, quanto no que tange às
bases para a construção de sua estrutura. No Concílio, estabeleceramse as
bases centrais do Catolicismo: o Credo niceno, a estrutura (em conteúdo e em
ordem) da Bíblia Sagrada, as bases canônicas da Igreja. Eis uma síntese do
14
legado niceno: uma Igreja Una, Santa, Católica, Apostólica e especialmente
ungida como herdeira da cultura romana. Aí está a imensa riqueza do advento
niceno: ali, nascia um Cristianismo romanizado, na grande síntese cultural que
permitiria a permanência do antigo - sua sobrevivência - no tempo novo que
se iniciava (HORTA, SALGADO, 2011, p. 10143).
Isto é, ali, no seio de um evento mediado pelo imperador foi estabelecida a identidade
da Igreja: universal (significado da origem etimológica grega katholikós), fundada pelos
apóstolos, centralizada em Roma e herdeira dela, com fé na consubstancialidade de Pai, Filho
e Espírito Santo.
Deste modo, com o advento do Edito de Tessalônica (380), Horta e Salgado (2011)
concluem que a ordem da Igreja não se dissociava da ordem política romana, que, por sua vez,
repercutia na estrutura da organização religiosa. Neste sentido, apontam:
A confusão das ordens política e religiosa fatalmente levaria a uma inafastável
interferência do Direito Romano na futura formação do Direito Canônico. Se
por um lado o resgate da vitalidade do Direito Romano se dá apenas no século
XII, a partir do intenso trabalho das Universidades, por outro não se pode
desconsiderar que os laços estabelecidos entre o mundo pagão e o mundo
cristão, ainda na Antiguidade, deixariam marcas indeléveis na cultura cristã e
no Direito que esta construiu. Sendo assim, a posterior recepção do Direito
Romano, de extrema expressividade já na aurora renascentista, não deixou de
ser verificada, ainda que timidamente e, devido às contingências históricas,
muitas vezes precariamente ao longo de todo o Medievo. Seus reflexos se
fazem sentir, ecoam, vez ou outra na arquitetura jurídica medieval (HORTA,
SALGADO, 2011, p. 10143).
Assim, embora intrinsecamente atrelada a estrutura estatal, o fim do Império Romano
não significaria o fim da Igreja como instituição, mas um marco importante para a sua trajetória
enquanto tal, na medida em que nutriu-se do Direito Público e do Direito Privado Romano.
2.2. A justiça cristã e a institucionalização do cristianismo
A mensagem de Cristo ou, mais precisamente, os fundamentos da Igreja original, tinham
como campo a consciência dos indivíduos, marcada pelo amor a regê-los. A justiça para o grupo
dos cristãos originários era, então, uma máxima virtude, vivida de modo afastado da política
(KELLY, 2010, p.116), como determina a máxima em São Mateus (22:21),“dai, pois, a César
o que é de César e a Deus o que é de Deus”.
15
Mas, enquanto organização, o corpo dos fiéis, isto é, a Igreja cristã não restou imune ou
de todo afastada das leis criadas pelos homens, já no início de sua história. Para o historiador
do Direito John Kelly (2010, p.116), isso teria se dado pela exigência, diante da convivência e
do conflito com o mundo pagão, de produzir, à luz da fé religiosa, a própria leitura jurídica e
política de categorias romanas e dos povos com que esta teve contato, a fim de perpetuar no
tempo. Nesse sentido:
Contudo, a ideia de normatividade, de regulamentação, de subordinação
[romanas] logo infiltrou-se na Igreja Cristã, mesmo porque a própria Igreja
era uma organização e, como tal, não podia deixar de ter regras. Porém, os
pontos de divergência entre os cristãos e o mundo pagão exigiam que eles
pensassem os axiomas intelectuais daquele mundo- a natureza do Estado, a
fonte do direito de governar, a lei da natureza, as instituições da propriedade
que as implicações da doutrina cristã puseram em questão- e, assim, o
cristianismo desenvolveu sua própria teoria do direito e teoria política. Ela não
era monolítica e uniforme, nem original em todos os aspectos, pois alguns de
seus conteúdos eram da filosofia antiga, relançada com trajes cristãos; mas
deu àquelas ideias antigas a força da fé religiosa e, desse modo, assegurou sua
sobrevivência ao longo dos séculos em que a fé religiosa foi o fator central
da vida ocidental (KELLY, 2010, p.116).
Outra perspectiva que se mostra é aquela que afirma a influência, já presente na tradição
bíblica, de uma lógica legalista na constituição da doutrina e dos dogmas cristãos, lógica que
se consolidou sob os moldes da estrutura de direitos e deveres da jurisprudência romana
(ULMANN, 1999, p. 23).
Para que essa difusão cultural do Cristianismo ocorresse, foi fundamental a
institucionalização da Igreja, que se deu por meio de sua incorporação ao Estado Romano já
decadente. Com o Edito de Milão (313) os cristãos, antes perseguidos, passam a ter sua religião
equiparada às demais religiões. Mas não só isso, de acordo com as lições de Ribeiro (1995a,
p.15), Constantino concebe seu imperium2 como advindo de Deus e a Igreja como um
instrumento da política imperial a ele subordinada, o que resultou no aumento progressivo do
2“Os mais altos magistrados [cargos] de Roma (ditadores, cônsules e pretores) dispunham de uma vasta
soma de poderes compreendida sob a designação de imperium. Segundo Homo, este poder ‘comportava
ao mesmo tempo a administração civil do território, o comando das tropas, o exercício da justiça, numa
palavra, o conjunto de atribuições civis, militares e judiciárias’” (GIORDANI, 1996, p.76). No
Principado houve a concentração dos poderes republicanos, isto é, do imperium, na pessoa do príncipe
e, no Dominato, uma centralização ainda maior no imperador, que deixa “de ser o princeps (primeiro
dos cidadãos) para tornar-se o dominus (o senhor)”(GIORDANI, 1996, p.88).
16
privilégio político da Igreja, que adquiria templos, terras e funções de governo paralelamente à
sua liberdade de culto e ao seu ministério espiritual.
Ao final do século IV, Teodósio converte o Cristianismo em religião oficial do Império
e passa a conferir ao corpo eclesiástico competência administrativa e jurisdicional, relegando a
um plano inferior as demais religiões (RIBEIRO, 1995a, p. 15-16).
O Império Romano, cindido em Ocidental e Oriental, via crescer no Oriente sua raiz
bizantina, que se manifesta na forma de uma teocracia centralizada na figura do imperador,
denominada cesaropapismo e, no Ocidente, discutia-se o papel do Papa, enquanto autoridade
central, frente aos bipos, potestades locais (RIBEIRO, 1995b, p.46-47).
No início, a Igreja era composta por pequenas federações chefiadas por bispos e o bispo
de Roma era apenas um dentre os demais, porém, veio a se estabelecer a tese de soberania
Papal, apontando-se como causas históricas a peregrinação para os túmulos de Pedro e de Paulo
na cidade de Roma, a posição central da cidade e a incorporação da Igreja ao Império Romano
(RIBEIRO, 1995b, p.45-47). Tratava-se do primado de Pedro, elaborado pelo papa Leão I (440-
460), que consistia na tese de que os poderes papais existiam por investidura de Cristo a Pedro,
de modo que quem sucedesse o posto de São Pedro, adquiriria também a autoridade de Cristo
e não só a autoridade dos apóstolos, como ocorria com os bispos (RIBEIRO, 1995b, p. 45-60).
Para Walter Ulmann (1999, p. 26-28) o primado de Pedro significou uma abstração
jurídica de feitos bíblicos e históricos que conferiu ao Papado uma natureza monárquica, onde
os poderes outorgados eram os de atar e de desatar as chaves do céu, isto é, concernentes à
salvação, ao caminho do indivíduo, marcado pela mácula do pecado original, para se encontrar
com Deus.
Realizou-se também a distinção entre os atributos do cargo e aqueles de quem o ocupa,
de modo que não importaria a vida pregressa deste, “o importante era que exercia seu cargo
legitimamente e que seus decretos, leis e ordens, em outras palavras, seus atos de governo,
constituíam uma consequência das funções oficiais como papa”3(ULMANN, 1999, p. 28,
tradução nossa).
3“Lo importante era que ejercía su cargo legitimamente y que sus decretos,leyes y órdenes, en otras
palavras, sus atos de gobierno, constituían uma consequencia de sus funciones oficales como papa”.
17
Deste modo, quando se finda o Império Romano do Ocidente, resta ali, em um mundo
ruralizado, somente a Igreja enquanto ente organizado, guiado pelo Papa. Ela concentrou em si
a autoridade de Roma em todos os seus atributos:
Em 476 caiu o Império e o Estado fracionou-se. Das ruínas restou a Igreja,
única força organizada. Ancorada no prestígio que lhe dava sua doutrina,
detentora da cultura, possuidora de bens e terras, pôde consolidar
progressivamente sua posição. Por isso, da autoridade soberana, imperial e
universal de Roma fez-se a herdeira presuntiva (RIBEIRO, 1995a, p. 21).
Eram autoritas, potestas e imperium4 conjugados com a liderança espiritual, agora
cristã. A posição de herdeiro de Roma veio a se tornar meio de legitimação política e, como se
verá adiante, centro da disputa entre os poderes espiritual e secular, tendo como significativo
exemplo a coroação de Carlos Magno como Imperador.
Pergunta-se, então: o que essa trajetória de institucionalização significou no campo da
jurisdição?
O corpo eclesiástico, desde o princípio, era competente para resolver os conflitos entre
cristãos, evitando que fossem dirigidos a foros romanos. E, com o crescimento da Igreja dentro
do Império Romano, consolidou-se um poder jurisdicional exercido pelos bispos, que aplicava
um Direito misto, romano e cristão (BACELAR, 2018, p. 46).
Deve-se destacar que congregação dos fiéis é, originariamente, também uma autoridade
jurídica, incumbida de regular todos os aspectos da vida da comunidade, e, por isso, dela
advinha o poder de produção normativa, de decisão e de sanção. Nesse sentido:
Nos primeiros séculos a autoridade jurídica da Igreja – assente, sobretudo, no
episcopado, participante do poder de Cristo (sacerdote, profeta e rei) –, se
afirma e exerce a partir de quatro grandes vertentes: a legiferação, a
administração da justiça, a aplicação de sanções e a intervenção papal. Com
efeito, no período a produção normativa ficava a cargo dos bispos; tanto na
atuação conciliar e sinodal, quanto na prescrição de condutas aos fiéis de cada
igreja particular. É preciso notar, contudo, que conquanto os concílios e
sínodos fossem dotados de autoridade, resulta difícil precisar o alcance
territorial das disposições legais, bem como as consequências decorrentes do
descumprimento destas determinações. A administração da justiça, nesse
momento, caracteriza-se primordialmente pela solução dos conflitos dentro e
entre as comunidades. Destaca-se desde muito cedo uma competência penal
4 Poderes que são, em apertada síntese, respectivamente, o poder ancião e consultivo que fundava o
Senado Romano e a própria cidade; o poder deliberativo oriundo do povo romano e o poder supremo,
civil e religioso, que chancelava o rei ou o imperador (GIORDANI, 1996, p. 62 e GILISSEN, 2003, p.
81-84).
18
que abrange o julgamento de certos delitos especiais, próprios do campo
dogmático e doutrinal (BACELAR, 2018, p.44).
Aponta-se, portanto, que, embora não fosse senhora do poder de coerção tal qual o
Império detinha, houve um fortalecimento da Igreja enquanto julgadora de delitos definidos
pela ética cristã.
Para Paolo Prodi (2005, p. 24-26), o avanço da Igreja nos primeiros séculos não se deu,
porém, sem que ocorresse uma dualidade institucional, pois, para os cristãos, Cristo era o
máximo legislador, sendo as leis divinas expressas nas leis naturais, de modo que, como para
os estoicos, a ordem cósmica não era mais a mesma que a ordem política. Existia um direito
natural5 e, consequentemente, uma justiça superior, diversa das leis escritas, constituindo um
conjunto de comandos a ser administrado pela comunidade cristã, na figura da Igreja. Por sua
vez, em relação ao Estado Romano, “não se coloca em discussão a ordem estabelecida e não se
autoriza a revolta” (PRODI, 2005, p. 24-29).
Forma-se o que o autor denomina de dualismo de foro no Ocidente, caracterizado pela
coexistência entre o foro externo, secular, e o foro interno, onde reside a consciência, espiritual,
e onde a penitência é capaz de atingir; ainda que, muitas vezes, fosse uma mesma corte
julgadora. Em outras palavras, uma separação entre justiça de Deus e justiça dos homens, entre
jurisdição e sacramento, ambos incidentes na vida das pessoas. Separação essa que viria a se
desconstituir, numa tentativa de formação de uma única ordem, posteriormente, no século XI,
como efeito da Reforma Gregoriana (PRODI, 2006, p. 42- 53).
Findo o Império Romano do Ocidente, o Cristianismo, então, propagou-se pelo
continente europeu a partir da conversão dos povos germânicos. Conforme Berman (2006),
esses povos, regidos por direito costumeiro, guardavam forte ligação com os valores
comunitários, de modo que a ideia cristã de comunidade universal, que transcendia clãs, tribos
e territórios, foi fundamental para que tal expansão ocorresse.
Ainda, não havia intuito de reforma das instituições sociais, mas apenas a pregação da
moral cristã, para uma vida regida por trabalho e oração, em direção ao céu. E a moral cristã
era um recurso discursivo utilizado para que as instituições jurídicas germânicas fossem
5 É um termo polissêmico, porém, “(...) quem se inspira na tradição cristã identifica-o como uma
mensagem de Deus-pessoa instilado beneficamente no coração de todos os homens(...) A ideia do direito
natural deve[sempre] ser colocada em estreita dialética com aquela do direito positivo” (GROSSI, 2006,
p.70-77).
19
desvalorizadas, contudo, os líderes germânicos continuavam líderes religiosos, capazes de
interferir na liturgia e na nomeação dos clérigos (BERMAN, 2006, p. 67-82).
Se, por um lado, os monastérios espalhavam-se, irradiando os preceitos cristãos para a
vida futura, por outro, permanecia o dualismo institucional entre Igreja e poder secular, dada a
sua integração à sociedade. Porque “a religião estava unida à política, à economia e ao Direito,
assim como estes estavam unidos entre si. As jurisdições secular e eclesiástica estavam
intrinsecamente juntas” (BERMAN, 2006, p. 81).
20
3. OS TRIBUNAIS NA ALTA IDADE MÉDIA A PARTIR DA RELAÇÃO ENTRE
O DIREITO CANÔNICO E O DIREITO SECULAR
A Alta Idade Média, compreendida entre os séculos V a X, abrange o período de êxodo
rural e de invasões bárbaras, até a dissolução do Império Carolíngio e o chamado renascimento
do século X, marcado por um progresso econômico a partir de novas técnicas agrícolas e rotas
comerciais (LE GOFF, 2005, p. 31-55). Conforme explica Le Goff (2005), em um continente
inicialmente desorganizado e violento, a vida religiosa era elemento de coesão política:
Na desordem das invasões, bispos e monges - tais quais São Severino -
tornaram-se chefes polivalentes de um mundo desorganizado: ao seu papel
religioso agregaram um papel político ao negociar com os Bárbaros;
econômico, ao distribuir víveres e esmolas; social, ao proteger os pobres
contra os poderosos; até mesmo militar, ao organizar a resistência ou lutar
"com armas espirituais" quando as armas materiais não existiam. Por força das
circunstâncias, tinham feito o aprendizado do clericalismo, da confusão dos
poderes. Pela disciplina penitencial, pela aplicação da legislação canónica (o
princípio do século 6º é a época dos concílios e dos sínodos em paralelo aos
códigos civis), tentavam lutar contra a violência e moderar os costumes. (...)
Mas os próprios líderes eclesiásticos, barbarizados ou incapazes de lutar
contra a barbárie dos grandes e do povo, ratificam uma regressão da
espiritualidade e da prática religiosa, permitindo os juízos de Deus, o
desenvolvimento desenfreado do culto das relíquias, o reforço aos tabus
sexuais e alimentares - em que as tradições bíblicas mais primitivas se aliam
aos costumes bárbaros (LE GOFF, 2005, p.40).
A regressão da espiritualidade descrita pelo autor nos indica que, embora tenha
permanecido como autoridade religiosa, mais uma vez, agora em outro contexto, a Igreja
recolhia o efeito de sua inserção política. O poder canônico e o secular estavam umbilicalmente
ligados, na medida em que os bispos eram, em sua maioria, de origem das aristocracias dos
grandes proprietários de terras dos reinos, sendo investidos no cargo por elas e designados para
cumprirem a função administrativa ou de conselho no governo secular (LE GOFF, 2005, p.41).
Isto significa que, tendo por regra a intervenção do soberano, inclusive na investidura
do cargo eclesiástico, há influência direta na composição pessoal e no viés de atuação da Igreja.
Era comum a prática de simonia, compra e venda de cargos eclesiásticos e também do
nicolaísmo, casamentos e concubinatos clericais, uma forma de envolver bispos e padres a
vínculos mais estreitos com políticas locais e de clãs (BERMAN, 2006, p. 117). Nesse período,
assim, predominava a subordinação da Igreja ao poder secular.
21
3.1. O advento do Império de Carlos Magno
A inserção definitiva da Igreja dentro do poder político medieval se dá com o modelo
do Império carolíngio, a partir da coroação de Carlos Magno, em 800, que instituiu o Sacro
Império Romano Germânico na medida em que seu imperador, Carlo, de origem germânica,
quando coroado pelo Papa Leão III, tomou para si a autoridade da cidade de Roma que a Igreja
vinha mantendo desde o fim do Império Romano, estabelecendo uma relação de controle e
proteção para com a Igreja (HORTA, SALGADO, 2011, p. 10145-10146).
Berman (2006, p. 84-85; 114) explica que caberia ao Imperador, em nome de Deus e
por investidura da Igreja, dirigir tanto a violência para proteger o império, a cidade ou a
jurisdição secular, quanto agir em defesa do Papa e da Igreja Católica contra a fé pagã. Já o
controle da Igreja pelo Império se dava pelo manipulação da estrutura interna por líderes leigos,
utilizando-se do bispado como principal instância da administração civil, e, principalmente,
pelo poder de veto do imperador em relação à nomeação do Papa, além de subordinação
político-econômica ao Império (BERMAN, 2006, p. 114-118).
Essa relação, porém:
(...) trazia o constrangimento de se tolerar, por meio da ideia medieval de
proteção, a constante interferência leiga em questões políticas da Igreja,
nascendo ali, portanto, a dualidade entre poder espiritual (do Papa, santidade
e bispo de Roma) e poder temporal (do Imperador, que também se faz romano
e sagrado) que marcará o milênio que se seguiria. (HORTA, SALGADO,
2011).
Com a morte de Carlos Magno, seus descendentes entraram em conflito e não
conseguiram manter a unidade do poder que havia se constituído, embora utilizassem o título
de Imperadores. Assim, pela fragmentação política fortaleceram-se os duques e condes em seus
poderes locais, e, somado a isso, com o cristianismo já enraizado na sociedade medieval,
consolidou-se a estrutura social do feudalismo (SOUZA, 1995b, p.211-234).
Ao mesmo tempo, sem a proteção do Imperador, a figura do Papa é politicamente
enfraquecida. A após o fim do Império carolíngio, a autoridade papal e a unidade da Igreja são
eclipsadas pelos poderes locais dos bispos e cardeais. Esses, por sua vez, dentro do movimento
de interiorização e pulverização do poder, são subordinados à nomeação dos cargos
eclesiásticos como prerrogativa dos senhores locais (BERMAN, 2006, p.117-118).
22
3.2. A ordem jurídica medieval
O espaço em que as autoridades laicas e religiosas atuavam não poderia ser
compreendido sob os moldes de um Estado, mas, sim, com uma unidade universal, uma
comunidade cristã, a societas Cristiana, de modo que não era concebível entender Igreja e
Estado como corpos autônomos e independentes. Existia entre eles, sim, uma disputa de
soberania sobre qual a autoridade decidiria o caminho da comunidade cristã, se seria ela um
reinum ou um sacerdocium (ULLMANN, 1999, p. 18-19).
Conforme adverte Paolo Grossi (2014), existia então uma sociedade cristã dividida entre
os que guerreiam, de sangue nobre, senhores feudais que, em função do poder de proteção,
detinham o força violenta; os que rezam, os clérigos; e os que trabalham, pessoas pertencentes
às terras e submissas à autoridade dos senhores e dos reis. Fala-se de ordem jurídica medieval
na medida em que havia ali uma ordenação factual, pautada pelos costumes e pela religião
cristã, cujas pessoas nela inseridas viviam de modo a inferiorizar a posição do indivíduo em
relação à comunidade, tida como a própria cristandade, naturalizando-se a estratificação social
como parte da ordem divina (GROSSI, 2014, p. 47-106). Nos dizeres de Pietro Costa (2010, p.
104), “a ordem já está dada e a sua intrínseca e harmoniosa justiça coincide com a diferenciação
hierárquica dos seus componentes”.
Daí a peculiaridade da função do Príncipe (aquele que detém o poder secular): não será
legislador, mas será o intérprete legítimo dessa ordem, cuja autoridade é antecedente,
remetendo a Jesus Cristo. Daí o Príncipe, ao ler a ordem em que se apoiam as coisas, apreende
desta um direito tido como a ela dado, pré-constituído (GROSSI, 2014, p. 157-167).
A partir disso pode-se concluir que o direito é inerente à justiça, e ela se manifesta como
a ordenação imanente à realidade. Os ocupantes dos cargos judiciários medievais, ao exercerem
a justiça, manifestavam atributos latentes na própria realidade. Neste arranjo histórico:
O direito, aqui, é, sobretudo, ordo, ordem, não assegurada pela coerção de uma
ordem de polícia, mas em vigor nos estratos mais profundos da sociedade;
uma ordem que espera somente para ser lida, conhecida, manifestada, porque
já está escrita com características indeléveis (...) Entende-se porque o direito
medieval se encarna, sobretudo, naquela fonte intrínseca da terrestridade que
é o costume, e se compreende porque o direito consiste, sobretudo, em uma
interpretatio, interpretação de técnicos, ou seja, de juristas capazes de traduzir
em instrumentos apropriados de ordem as instâncias que o bruto magma
consuetudinário faz aflorar à superfície da experiência; protagonistas são um
23
prático, o tabelião, no primitivismo da alta Idade Média (GROSSI, 2010, p.96-
97).
Indaga-se: existe na ordem medieval um poder superior entre os poderes, semelhante à
soberania moderna?
De acordo com a perspectiva de Grossi (2010, p. 93-96) sobre o direito medieval como
experiência ordenamental e não potestativa, já é possível afastar a ideia de soberania enquanto
manifestação do poder supremo, exercido por meio da vontade do príncipe, que se confunde
com a própria lei na modernidade.
O poder é exercido dentro do ordenamento social, onde o direito e não é produzido ou
engessado por um soberano, mas expressão da prática da vida social, sendo, repete-se, o
príncipe um dentre os demais intérpretes; assim, tendo em vista o pluralismo jurídico, admite-
se “-no interior do território de uma mesma entidade política, a coexistência e a covigência de
ordenamentos jurídicos que podem não ser expressões daquela entidade, mas de forças
diferentes que organizam aspectos diferentes da sociedade” (GROSSI, 2010, p. 98). Portanto,
em respeito à configuração consuetudinária, a busca por uma soberania medieval deve respeitar
também a autonomia das diversas comunidades que compõem a ordem jurídica medieval.
3.3. Soberania medieval e Iurisdictio
Diante do questionamento que se volta à existência ou não de uma soberania medieval,
ou seria a soberania uma categoria tipicamente moderna, Pietro Costa (2010, p. 99 e ss.) defende
a existência de uma soberania medieval. Para o autor, uma representação organizada na forma
de uma ordem política não precisa se moldar ao conceito moderno de Estado para que o discurso
sobre a soberania seja encontrado em sua constituição. Isso significa dizer que a representação
medieval já encarna “uma posição de excelência e de dominância na ordem política” (COSTA,
2010, p. 102). Para o historiador do direito italiano, o discurso medieval da soberania tem
origem no caráter involuntário, indisponível e hierárquico da ordem jurídica medieval, um
discurso que se expressa, sobretudo, na figura do rei-juiz, que deve desempenhar o papel sacro
e jurídico de ser, à imagem de Deus, um julgador justo (COSTA, 2010, p. 104-107).
A fundamentação do poder soberano, no entanto, não se dava apenas sob uma
estruturação teológica, pois o direito romano ainda permanecia como fonte do direito, embora
dissociado da sociedade que o fundara. Trata-se, portanto, de um direito romano vulgar
24
(HESPANHA, 2005, p. 125-126). Tal qual ocorria no Corpus Iuris Civilis, iurisdictio era o
poder exercido pelo soberano, porém, dentro da hierarquia da ordem jurídica medieval:
O soberano ocupa posição culminante em uma série de relações de poder
percorríveis “longitudinalmente” recorrendo a uma palavra-chave do léxico
político-jurídico: iurisdictio. Iurisdictio não é tão somente uma palavra
familiar à cultura medieval, não é apenas um termo técnico do léxico
justianeu, mas é também capaz de evocar associações entre realeza e justiça,
entre poder e juízo, que são tramas sensíveis no imaginário medieval. (...) O
rei é juiz, o soberano tem a iurisdictio: uma iurisdictio que deve dizer-se
pleníssima antes de tudo porque subtraída a qualquer controle e juízo superior.
A iurisdictio, porém, não se exaure no poder culminante do imperador, mas
articula-se em graus diversos: ela – escreve Azzone - “pleniíssima est in solo
principe” enquanto apresenta um raio de poderes menor nos diversos
magistrados (COSTA, 2010, p. 110-111).
Essa posição culminante se dava, pois, ao rei, uma vez que, na Alta Idade Média,
atribuía-se a dupla natureza de ser humano e ser divino à sua figura, porque concebia-se o rei
consagrado ou investido por Deus para desempenhar o papel de Cristo, realizando a mediação
entre o céu e a Terra. Tal mediação representa aquilo que se denominou de “os dois corpos do
rei” (KANTOROWICZ, 1998, p. 72-73). A imagem do Cristo transposta ao rei, portanto,
permitia que este apresentasse seu atributo sacro-ontológico, ao mesmo tempo em que exercia
as funções jurídica e administrativa de vigário de Cristo na Terra, características que, durante a
Baixa Idade Média, viriam a ser reivindicadas exclusivamente pelo Papa (KANTOROWICZ,
1998, p.73).
Assim, embora existissem tensões entre Papas e Imperadores, na Alta Idade Média “o
clero legitimava o conceito imperial, inclusive de governo da própria Igreja” (BERMAN, 2006,
p. 84-85). Isto é, ainda que outros agentes exercessem a iurisdictio dentro do pluralismo jurídico
medieval, o Imperador na Alta Idade Média detinha uma representação política próxima à
soberania, na medida em que pretendia exercer uma autoridade universal sobre o cristianismo,
desde que investido pela autoridade religiosa.
Porém, é preciso acrescer, conforme ensina a cientista política Raquel Kritsch (2010, p.
264), que a ideia de soberania, caso entendida como supremacia no confronto com outro
disputante, naquele momento, mesmo reivindicada por poderes que não o Imperador ou o Papa,
continuava compatível com a ideia de uma comunidade universal cristã, que permanecia sólida
diante das disputas por competência jurisdicional.
25
3.4. A transição para a Baixa Idade Média e a religião na disputa pela soberania
A partir do vínculo da Igreja com os vários reinos após o desmembramento do Império
Carolíngio, pode-se dizer que, se por um lado observou-se maior subordinação ao poder secular,
por outro notou-se que, “ a influência da Igreja, não apenas no aspecto religioso e moral, mas
também em todas as atividades sociais, tornou-se uma realidade cada vez mais intensa”
(SOUZA, 1997, p. 17). Abriu-se espaço para uma disputa política entre clérigos e príncipes,
que se delineou sobre quem era o detentor de um poder universal sobre os cristãos: o Rei ou o
Papa, pela oposição entre as teses da hierocracria e da teocracia régia.
A teocracia régia, marcante no Alto Medievo, apoia-se na tese da concessão direta do
poder político de Deus para o príncipe, que, uma vez dotado da legitimação divina, terá sua
autoridade inconteste; assim seus erros e pecados, sua vida espiritual concernem a Deus
diretamente, não cabendo ao Papa interferir nessa prestação de contas (SOUZA, 1995b, 211-
234).
Já a hierocracia se baseia no primado papal, advindo da investidura de Pedro por Cristo,
que é a responsável para conferir a quem ocupa o seu cargo apostólico não só a solicitudo, que
corresponde aos deveres de pastor para com os fiéis, mas também o primatus, que é ser a
autoridade dentre as demais autoridades (RIBEIRO, 1995b, p. 49-50).
Trata-se de uma doutrina e de um regime político que tem por expoente a obra “De
Institutione Regia”, de Jonas de Orleans, do século VIII, e que foi aperfeiçoada e ampliada na
Baixa Idade Média (SOUZA, 1995c, p. 151). Para o Professor José Antônio de C. R. Souza
(1995c, p. 171), tal doutrina tem por base conferir à Igreja uma posição política,
hierarquicamente superior em relação aos reis na medida em que é sua missão cuidar do
caminho de toda a sociedade cristã, inclusive dos líderes temporais, em direção à salvação, e,
por administrar esta única instância a que se reportam os reis: seria dela, portanto, o domínio
dos poderes secular e sacerdotal. O papel da Igreja enquanto pastora de todos os fiéis, mostra-
se no próprio modo como a sociedade cristã e o corpo místico de Cristo, liderada pela Igreja,
atuam no campo político: A Igreja é supervisora e vigilante da atuação política dos reis, como
também da vida dos demais homens. É a isto que se denomina hierocracia (SOUZA, 1995c,
p.171).
Conforme narra o historiador francês Marc Bloch (2001, p.86-87), referência medieval
da Escola dos Annales francesa, a relativa paz, em meio à diminuição das invasões e ao aumento
26
do cultivo agrícola, há no início da segunda idade feudal uma expansão demográfica que
facilitou a comunicação e uniu distâncias. Como consequência, a atividade comercial é
fortalecida, assim como a efetividade do domínio político, seja o secular ou o eclesiástico
(BLOCH, 2001, p.87).
É um período em que, mudada a configuração política, há também a demanda de
alteração jurídica para atender às novas práticas e às forças da sociedade, mudanças essas que,
porém, para a maioria das pessoas, principalmente para os camponeses, chegavam lentamente,
porque predominava o vínculo jurídico-político local (BLOCH, 2001, p. 88-90).
No que concerne à vida da Igreja, era, já ao final do Alto Medievo, crescente a
insatisfação dentro do clero em relação ao predomínio do simonismo e do nicolaísmo, por uma
necessidade de purificar e espiritualizar a classe, e, por isso, desde meados do século IX
fortalecia-se um anseio reformista da Igreja, encabeçado pelos monges da abadia de Cluny, que,
com o tempo, irradiou-se por todo o continente (SOUZA, 1997, p.18).
Era considerado maculado e inapto ao exercício clerical aquele que viveu o pecado da
carne, discurso, assim, dirigido aos bispos e padres casados (BLOCH, 2001, p.124). Essa
mácula, porém, significava sobretudo a possibilidade de fortalecimento da hierocracia a partir
da inferiorização e da subordinação do poder secular diante do espiritual. Isto porque, para os
reformistas, tal qual a alma deve prevalecer sobre o corpo e sobre a matéria (símbolos de
degradação e pecado para a mentalidade medieval), a Igreja deverá prevalecer sobre o Império
(SOUZA, 1997, p.21).
Em decorrência desta mentalidade, tornava-se inadmissível a nomeação para os cargos
eclesiásticos de alguém alheio ao clero. Isto foi o plano de fundo para, a partir da segunda
metade do século XI, sucederem-se consecutivamente somente Papas reformistas na Cátedra
de Pedro, ocorrendo, assim, a chamada Reforma Gregoriana.
Embora tenha se perpetuado no tempo, considerando-se a hegemonia política da Igreja
até o século XIV, pode-se dizer que a Reforma foi cunhada pela figura de Hidelbrando, o Papa
Gregório VII, que apoiou fortemente o movimento reformista dos Papas anteriores e, enquanto
pontífice, com o apoio dos normandos, levou a cabo a Querela das Investiduras, a guerra com
o rei germânico Henrique IV, que não admitia perder o poder de investir os bispos em suas
funções, pois eram estes a base da administração imperial em cada território, e portanto,
sustentáculo do próprio poder imperial (SOUZA, 1997, p. 22-36).
27
Para o discurso da reforma da Igreja, na disputa política, por envolver a salvação das
almas, o poder supremo poderia estar confiado somente ao Papa, que “anteriormente se
autodenominava ministro de São Pedro, e clamava ser o único ministro de Cristo, com a
responsabilidade de responder pelas almas de todos os homens no dia do julgamento final”
(BERMAN, 2006, 125). Nestes termos, o ocupante do poder secular perdia o posto de vigário
de Cristo. A Reforma Gregoriana ao fazer a oposição e a hierarquização entre o clérigo o leigo,
que, por não ser ordenado, não poderia ocupar um cargo clerical, inovava e trazia consigo um
novo modelo de Estado, uma vez tal “argumento deixou imperadores e reis sem base para
legitimidade, pois a ideia de um Estado secular, isto é, de um Estado sem funções eclesiásticas,
ainda não tinha nascido- na verdade, estava nascendo exatamente naquela época” (BERMAN,
2006, p.125). Com base em Berman, portanto, pode se afirmar que o Estado nascido da
Reforma Gregoriana se tratava do primeiro Estado europeu.
28
4. A REFORMULAÇÃO JURISDICIONAL PROMOVIDA PELA REFORMA
GREGORIANA
A Querela das Investiduras só terminaria na geração seguinte, em 1122, com a assinatura
da Concordata de Worms pelo Papa e pelo Imperador que ascenderam ao poder, Calixto e
Henrique V, respectivamente. A Concordata de Worms evidenciava a vitória da Igreja sobre os
Imperadores, na medida em que nela o Império permitia a todas as Igrejas de seu território a
realização de eleições canônicas e da liturgia de modo livre, isto é, sem a sua intervenção, sem
simonia e também sem violência (ALEMEIDA, 2013, p. 127-128).
Harold J. Berman (2006, p. 20-21) descreve a Reforma Gregoriana como uma revolução
que fundou a tradição jurídica ocidental porque, para atender a uma pluralidade de jurisdições
e de sistemas jurídicos que ela havia propiciado, tornou a supremacia do Direito possível e
necessária. Considerando-se a profundidade com a qual o autor trata da temática, muito do aqui
exposto se baseará em sua monumental obra.
A Reforma Gregoriana, impulsionada pelo ideal de liberdade da Igreja, conseguiu
efetivar sua unidade política e, com isso, fortalecer uma “autoconsciência corporativa do clero”,
ou consciência de classe, pois fazia deste a primeira classe europeia “ translocal, transfeudal,
transtribal, transnacional” (BERMAN, 2006, p. 136-137). Para o Para Gregório VII, em uma
radicalização da hierocracia, o clero não tinha só a missão de reformar a Igreja, mas de reformar
o mundo e, assim, colocava sob a tutela papal o destino da sociedade (BERMAN, 2006, p. 139-
140).
Em termos de soberania, identificada a hierarquia com o ordenamento eclesiástico e o
vértice com o seu chefe, deflagra-se um conflito entre diferentes discursos soberanos no mesmo
espaço, ocupados por duas cadeias de iurisdictiones análogas (COSTA, 2010, p. 116-117). À
diferença que a soberania papal, ou plenitudo potestatis, não só se identifica com a iurisdictio
o imperador-juiz medieval, mas a excede em poder, porque, mais que um legitimado para
representar a ordem divina ou costumeira, o Papa tem um efetivo poder de governo, que inovava
a experiência jurídica por seu caráter voluntarista apresentado, de vocação absolutista (COSTA,
2010, p.116-120). Assim, “os ocupantes da cadeira pontifícia passaram a reivindicar, com maior
ou menor coerência, a supremacia e o controle das duas espadas: a espiritual e a temporal. O
sumo sacerdote reclamava a jurisdição de facto e de iure sobre a comunidade cristã”
(KRITSCH, 2010, p. 265).
29
O desenvolver e o final da Querela das Investiduras demonstram, portanto, que:
(...) é Henrique IV que continua preso ao antigo modelo jurídico-político, no
qual o Direito é coisa devida, relação imperativo-atributiva surgida
espontaneamente, e que reproduz, no âmbito social, a estrutura ordenada do
cosmos. Gregório VII, em contrapartida, entra em cena como o protótipo do
príncipe moderno, reivindicando a criação de uma instituição que se constitua,
sozinha, no foco irradiador do jurídico, em si e por si capaz de fundamentar
um Direito entendido, não mais como coisa devida, mas como norma
estabelecida (ALMEIDA, 2013, p. 128).
Dessa forma, a Reforma Gregoriana implementa uma radical mudança no mundo
jurídico e político Medieval ao transferir a autoridade, antes imanente à ordem social e ao papel
do Príncipe nesta, agora da Igreja enquanto instituição irradiadora do Direito.
4.1. A modificação jurisdicional da Reforma Gregoriana
Berman (2006, p.147) salienta que a revolução papal consolidou um novo sistema de
Direito Canônico e, na sua esteira, surgiram novos sistemas de direito secular para se adequarem
à dualidade entre o laico e o espiritual na nova ordem política. Neste sentido:
O dualismo dos sistemas jurídicos secular e eclesiástico levou a um pluralismo
de sistemas jurídicos seculares no interior da ordem jurídica eclesiástica e,
mais especificamente, à jurisdição concorrente das cortes eclesiástica e
secular. Além do mais, a sistematização e racionalização do Direito eram
necessárias para a manutenção do complexo equilíbrio dos diversos sistemas
jurídicos concorrentes. Finalmente, a ordem correta das coisas [a correção
moral do mundo] introduzida pela Revolução Papal significou o tipo de
sistematização e racionalização do Direito que permitiria a reconciliação das
autoridades em conflito por meio da síntese de princípios: onde fosse possível,
as contradições deveriam ser resolvidas sem destruir os elementos envolvidos
(BERMAN, 2006, p. 147).
Por isso, considerando-se os interesses da Igreja, era deliberado e programático
implementar uma hierarquia de cortes e também desenvolver os princípios e os procedimentos
de um de Direito como um corpo integrado e autônomo, além de se formar uma classe de
advogados e juízes, bem como formar as escolas de Direito - as primeiras universidades, pois
se tratava de um modo de capacitar as autoridades seculares para implementarem a missão de
impor a paz e a justiça em suas jurisdições, desde que, claro, dentro da interpretação da Sé, sob
pena de se configurar heresia (BERMAN 2006, p. 147-148; 198-199).
30
E, de fato, entre os séculos IX e XII o Direito Canônico tornou-se sinônimo de
ordenamento, um sistema jurídico orgânico e auto referente, consubstanciado na compilação do
Decretum de Graciano, feito em 1140 aproximadamente, na Universidade de Bolonha (PRODI,
2005, p. 63-64). Ressalte-se que Bolonha foi fundada por uma apoiadora de Gregório VII, a
Duquesa Matilde de Toscana, quem convidou o vassalo Irineu para ensinar Direito Romano,
como o objetivo de “desenvolvimento de instrumentos que conferissem legitimidade e eficácia
ao novo modelo de exercício de poder aberto pela Reforma Gregoriana” (ALMEIDA, 2013, p.
160).
A nova estrutura judiciária se inseria, então, em um sistema cuja maior autoridade seria
o Sumo Pontífice, um retrato do poder central e hierarquizado da Igreja pós Gregório VII, que,
ao constituir-se pelo acúmulo dos poderes legislativo, executivo e jurisdicional, cumpriu o
paradoxal marco de primeiro Estado europeu, distinguindo-se dos que dela sucederam pelo
único e crucial aspecto da ausência do caráter secular em seu interior:
Ela chegava a ser uma autoridade independente, hierárquica e pública. Seu
líder, o papa, tinha o direito de legislar, e de fato os sucessores de Gregório
promulgaram uma série de novas leis, às vezes por sua própria autoridade, às
vezes com o auxílio dos concílios convocados por eles. A Igreja também
aplicava suas leis por meio de uma hierarquia administrativa, por intermédio
da qual o papa governava, como um soberano moderno, através de seus
representantes. Ademais, a Igreja interpretava suas leis e aplicava-as, por meio
de uma hierarquia judicial que culminava na cúria papal em Roma (...). Além
disso, ela aderiu a um sistema racional de jurisprudência: o Direito Canônico.
Ela impunha taxas aos seus subordinados na forma de dízimos e outras
arrecadações, com certificados de batismo e de óbito ela mantinha uma
espécie de registro civil. O batismo conferia cidadania, que era mantida pela
exigência- formalizada em 1215- de todo cristão deveria confessar sus
pecados e tomar a comunhão sagrada pelo menos uma vez ao ano, na Páscoa.
Um indivíduo poderia ser privado de sua cidadania por meio da excomunhão.
Ocasionalmente, a Igreja até mesmo organizava exércitos (BERMAN, 2006,
p. 142-143).
Percebe-se que, assim como o discurso de soberania é identificado por Pietro Costa
dentro do Medievo, várias outras categorias fundantes do Estado moderno são identificáveis
como constituintes da Igreja durante a Baixa Idade Média.
O Papa, senhor da cristandade, era um juiz supremo, que poderia, sozinho, elaborar leis,
as bulas e decretais papais, cujo conteúdo se tornava a interpretação oficial, a única baliza dos
preceitos cristãos, fazendo confundir e coincidirem sacramento e poder de jurisdição, isto é, em
31
decorrência do novo caráter institucional da Igreja, o foro interno, que diz da relação do cristão
e seus pecados para com Deus, ganhava nota de foro externo, secular (PRODI, 2005, p. 61-62).
Algumas matérias eram declaradas pela Igreja como de jurisdição exclusiva dos
tribunais eclesiásticos, e outras de jurisdição concorrente, aplicando-se o direito eclesiástico;
assim como o próprio poder secular, partindo-se de uma manifestação particularista, refletia um
localismo jurídico em cada sistema do pluralismo medieval, que encontraria o foro próprio.
(GROSSI, 2014, p. 273-278). Significa dizer que havia uma multiplicidade de direitos
particulares que replicavam esta dinâmica: Direito do rei, da cidade, mercantil, eclesiástico,
feudal e senhorial. Neste contexto:
Leigos, apesar de governados no geral pelo Direito secular, estavam sujeitos
ao Direito eclesiástico e à jurisdição dos tribunais eclesiásticos no que se
referia a questões sobre casamento e relações familiares, Direito sucessório,
crimes espirituais, relações contratuais onde a fé era invocada, entre outros
assuntos. Inversamente, o clero, apesar de geralmente ser regido pelo Direito
eclesiástico, estava sujeito ao Direito secular e às suas cortes, em relação a
certos tipos de crimes, certos tipos de disputas de propriedades, entre outros
(...). O pluralismo do Direito ocidental, que reforçou e refletiu o pluralismo da
vida econômica e política do Ocidente, era, ou algum dia foi, fonte de
desenvolvimento e crescimento - crescimento jurídico, assim como
econômico e político. Também era, ou algum dia foi, fonte de liberdade. Um
servo podia acorrer à corte da cidade contra o seu mestre. Um vassalo podia
socorrer-se na corte do rei contra o seu senhor. Um clérigo podia defender-se
do rei na corte eclesiástica (BERMAN, 2006, p.21).
Há, portanto, no concreto exercício da jurisdição, um campo de manifestação das
tensões daquela sociedade, inclusive aquela situada entre os poderes dos homens e os
espirituais.
Nesse contexto, pode-se afirmar que um importante recurso para instrumentalizar a
jurisdição, com vistas a efetivar a hegemonia política era, ao molde de um tipo penal, a heresia.
Isto porque o herege, mais do que ferir uma categoria teológica, era um dissidente da dimensão
político-social e ideológica, seja da Igreja, seja do Império, tornando-se a perseguição
herética um ato de dominação territorial e a heresia um instrumento retórico para atacar
qualquer ameaça à hierarquia social constituída (ALMEIDA, 2013, p. 144). Em relação à
Igreja, na prática, a heresia:
É uma justificativa para a invasão das muralhas citadinas. Uma cidade herética
é a que se emancipa, enquanto uma cidade ortodoxa é que a permanece
submetendo seus estatutos às decisões tomadas pela Santa Sé. A campanha
32
anti-herética pretendia colocar as cidades sobre o controle dos bispos, e os
bispos sobre o controle do papa (ALMEIDA, 2013, p. 144).
Assim, a heresia, mais do que uma adequação aos dogmas pela Igreja estabelecidos, é
meio para se conduzirem os interesses da dominação e da organização política,
independentemente de o grupo, a pessoa ou a cidade estarem adequados às postulações
teológico-metafísicas defendidas pela ordem eclesiástica (ALMEIDA, 2013, p. 144).
4.2. A queda da plenitude de poder idealizada pela Igreja: Séculos XIII e XIV
A perspectiva de Harold J.Berman sobre a Revolução Papal ter feito surgir o Estado
moderno Ocidental guarda em si duas perspectivas fundamentais, efeitos involuntários das
intenções de centralização e de plenitude de poder que os empreendedores da Reforma do clero
detinham. Uma, a partir da estrutura jurídica por ela propiciada; outra, a partir da inovação
discursiva que representava separação entre o leigo e o espiritual. Questões estas que foram
propulsoras da ascensão da Igreja como instituição política, e, ao mesmo tempo, figuraram
como os motivos de queda desta finalidade. Vejamos.
4.2.1. A crise espiritual
Com o desenvolvimento da Igreja enquanto um corpo político, o seu sentido místico
como o Corpo de Cristo se esvai, de modo que o termo corpus mysticum deixava de ter um
sentido sacramental e litúrgico como se notava no Alto Medievo, tornando-se parte do léxico
dos juristas, desde o século XIII, inclusive do Papa Bonifácio VIII (1294-1303) e de São Tomás
de Aquino, para designar a organização da Igreja, cujo corpo tinha como membros efetivamente
os seus cargos administrativos, constituídos de bispos, padres, abades e frades
(KANTOROWICZ, 1998, p. 126-133). Isto não significava, porém, um abandono do plano
gregoriano.
Enquanto a Igreja se institucionalizava vertiginosamente, propiciava também a
insatisfação de parte dos fiéis, que viam a organização agora política afastada do
verdadeiramente espiritual, distante, portanto, dos preceitos do cristianismo originário. Neste
contexto, no século XIII emergem, em torno da pobreza, novas interpretações e modos de
pregação, isto é, a vida religiosa ganhava novas nuances.
33
Conforme aponta Souza Neto (2017, p. 201-202), em minucioso trabalho sobre o
desenvolvimento filosófico da Igreja, São Francisco de Assis enunciava um ideal de oração e
voto de vida na pobreza evangélica, pregando o amor caritativo, principalmente entre os mais
pobres e, com isso, inovava, porque, enquanto religioso, não se colocava em posição superior
a dos outros modos de vida, mas assumia a igualdade entre as pessoas. Inovava também do
ponto de vista comunitário, pois, diferente do modelo dos monastérios, que fugiam do mundo
em reclusão religiosa, a ordem franciscana ia ao mundo pregar e doar-se aos necessitados
(SOUZA NETO, 2017, p. 203).
Em busca desse retorno a um cristianismo embrionário idealizado, ou simplesmente por
falta de acesso à doutrina canônica, em um universo em que predominava o analfabetismo,
surgiam também grupos voltados à penitência, às confrarias e às leituras que, se fugissem à
ortodoxia, eram considerados hereges, ameaças à unidade cristã, como se deu com os cátaros1
na região do atual sul da França (SOUZA NETO, 2017, p. 207-208).
Contemporâneo a Francisco de Assis, o cônego Domingos e seus discípulos eram cultos
e, ao mesmo tempo, viviam a pobreza, de modo que suas pregações tinham mais sucesso na
conversão de dissidentes religiosos que a dos bispos comuns, o que motivou a autorização papal
para a fundação da ordem dos Dominicanos em 1216 (SOUZA NETO, 2017, p.
209-210). São Domingos trabalhou didaticamente com os cártaros, aproveitando a
grande devoção que tinham à Virgem Maria, sendo contrário às Cruzadas investidas contra eles.
No entanto, sua ordem não perderia a vocação anti-herética: deu autorização para que seus
frades compusessem tribunais da Inquisição (SOUZA NETO, 2017, p. 211-212).
Essas duas ordens, chamadas ordens mendicantes, mostravam-se interessantes à Igreja
porque faziam a religião chegar às camadas mais pobres da sociedade, tornando o poder papal
mais próximo do cotidiano dos fiéis e afastando, naquele momento, uma possível fragmentação
(SOUZA NETO, 2017, p. 217). Assim, os Papas:
Inocêncio III e Gregório IX preocupavam-se em estruturar juridicamente a
supremacia pontifícia. O trabalho dos mendicantes seria imprescindível para
estruturar a centralização romana frente às contestações, centralizar as
decisões eclesiais na pessoa do papa e afastar o poder temporal das decisões
eclesiásticas. (SOUZA NETO, 2017, p. 219).
1 Em uma perspectiva maniqueísta, o catarismo fundava uma igreja própria e colocava a Igreja Católica
e seus agentes como pertencentes ao lado do mal (LE GOFF, 2005, p. 81-82).
34
Porém, com o falecimento do fundador, a ordem franciscana ganharia presença de seus
frades nas Universidades europeias, não restando afastada do fenômeno da ciência jurídica
(VILLEY, 2006, p. 216-220), e a dominicana, já nascida sob uma cultura de estudos,
apresentando entre seus membros “grandes estudiosos das sagradas escrituras, bem como os
mais respeitados tradutores, hermeneutas e teólogos que passariam a povoar as universidades
europeias.” (SOUZA NETO, 2017, p, 210-211). Assim, não se olvida que a Escolástica e o
Nominalismo2, escolas filosóficas com repercussões contrárias à supremacia da Igreja, têm por
mestres membros de ordens mendicantes, “elas próprias frutos da crise espiritual desencadeada
pela Reforma Gregoriana.” (ALEMEIDA, 2013, p. 166-167).
Le Goff (2005, p.80-81), tendo em vista as dissidências religiosas do século XII, aduz
que o monopólio ideológico da Igreja tinha sido gravemente afetado, pois, ainda que tenha
submetido estas duas ordens mendicantes e enfrentado diversos movimentos hereges, “a Igreja
seguia a evolução da Cristandade e não mais a guiava, como tinha feito na Alta Idade Média”.
4.2.2. O desenvolvimento do Direito ante à multiplicidade de foros
A autonomia intelectual que o Direito ganhava, seja como instituição jurídica, seja como
ciência, era resultado do trabalho desenvolvido dentro das Universidades europeias, do final do
século XI ao século XIII (BERMAN, 2006, p.112). Isso ocorreu com o auxílio da redescoberta
do Direito Romano, a partir de trechos da compilação de Justiniano, bem como pelo
desenvolvimento do método escolástico de análise e síntese3, que era ensinado dentro das
Universidades e aplicado sobre os textos canônicos e clássicos (BERMAN, 2006, p.158). Por
esta via se daria também a redescoberta de textos de Aristóteles.
2A Escolástica, em referência à obra se seu maior exponente, São Tomás de Aquino, um dominicano
que, em diálogo da teologia com Aristóteles, elabora a doutrina de Direito Natural Divino, que, em
apertada síntese, validava a lei positiva enquanto expressão da razão humana, admitindo-se o homem
como ser político, sem negar a ordenação do mundo por Deus (GILSON, 1995, p. 652-683). E o
nominalismo, que negava os universais, isto é, nega a ordenação fixa da natureza, por acreditar somente
na vontade-ação direta de Deus e na vontade de cada indivíduo como algo ordenador e, assim, abalava
a autoridade do dogma cristão sobre a filosofia e sobre a política; escola que encontra no franciscano
Guilherme de Ockham o principal ou mais radical representante. (GILSON, 1995, p. 288-290; 794-816). 3 O método escolástico, partindo da autoridade absoluta dos textos religiosos e do Direito Romano,
buscava superar lacunas e contradições entre os textos, harmonizando-os por meio de justificações
racionais (BERMAN, 2006, p. 168).
35
Nesta conjuntura, ao fim do século XIII ocorre uma harmonização das ordenações
canônicas, romanas e locais, produzindo-se um direito uno e subsidiário, isto é, aplicável diante
de lacunas normativas de algum dos outros sistemas jurídicos. Esse Direito se denominou ius
comune, o direito comum europeu, ou, a título de não ser confundido com os direitos locais e
das cidades burguesas que se formavam, chamara-se também utrunquen ius (PRODI, 2006, p.
128-132).
As lições de Paolo Prodi (2006, p. 136-140) lembram que essa construção não provinha
de abstração científica, mas antes era resultado da reflexão sobre a prática dos tribunais, que
aplicavam, ao mesmo tempo, institutos romanos e institutos canônicos diante dos casos locais,
nas diversas jurisdições existentes. Em razão da força que ganhavam os agentes políticos e
econômicos no pluralismo daquela realidade, o ius commune foi submetido ao papel de
harmonização destes múltiplos direitos particulares, os iura proépria, e, assim, propiciou que
seu modo de racionalização jurídica adentrasse os ordenamentos dos estados nacionais
nascentes (SALGADO, 2010, p. 92-93).
Tanto para o poder religioso como para o secular, o surgimento do ius commune
significava um efetivo desenvolvimento de seus sistemas jurídicos e de suas estruturas políticas
a partir da incorporação de estudiosos às respectivas administrações (BERMAN, 2006, p.155).
Neste sentido:
O direito romano não foi estudado apenas como direito erudito, mas
efetivamente muda a realidade do direito medieval. Os legistas, juristas
formados nas universidades, estudam direito romano e passam a ocupar cargos
importantes junto à estrutura política. Os comentadores se transformaram nos
conselheiros reais. Dão pareceres e contribuem para a superação dos
problemas pertinentes à pluralidade normativa (SALGADO, 2010, p.90)
Assim, por ter se desenvolvido servindo à justificação e à edificação de poderes
concorrentes, fomentava-se o Direito como um instrumento da disputa entre o poder e a
jurisdição da Igreja e as entidades seculares. Isto se torna mais nítido quando se nota que, ao
mesmo tempo em que o sistema canônico estruturava a Igreja, o desenvolvimento do Direito é
marcado pelas teses construídas por figuras como Santo Tomás de Aquino, Marsílio de Pádua,
João Quidort e Guilherme de Ockham.
Santo Tomás (1225-1274) afirma a autonomia do conhecimento da lei natural, numa
retomada da visão clássica de natureza, em que cada coisa obedece ao próprio fim,
estabelecendo uma filosofia do direito natural que não só propicia a busca por olhar a natureza
36
como ela é, mas estabelece na razão a realização da finalidade do homem e na lei positiva
humana uma expressão da lei natural divina (VILLEY, 2006, p.181-187). Conforme destaca o
filósofo do Direito francês Michel Villey (2006, p. 191), o aquinense, com isso, incentiva o
desenvolvimento da Escolástica e do Direito, e, dentro destas balizas, encorpa, não só as
decretais papais, mas, sobretudo, fortalece as ordens laicas. Ao resgatar a ideia aristotélica do
homem enquanto animal político, Santo Tomás de Aquino naturaliza os poderes laicos,
libertando-os do discurso hierocrático, pois:
Professa que as soberanias são naturais, e não um simples remédio para o
pecado dos homens, como ensinava o agostinismo: também os infiéis podem
desfrutar da soberania; não é mais preciso buscar para ela uma origem
sobrenatural; isso permite dispensar a concepção sacramentada da monarquia
de direito divino, imposta de cima para baixo, que era entendida como
princípio único para toda a humanidade, e abrir as portas para o declínio da
hierocracia medieval (VILLEY, 2006, p. 193-194).
O pensamento de João Quidort, de Marsílio de Pádua e de Ockham, na classificação de
Walter Ullmann tratam-se de representações da teoria ascendente para a justificação do poder.
Vejamos.
O dominicano João Quidort criticava a pretensão de universalidade do poder temporal
da Igreja, que criava uma unificação jurídica que, por sua vez, desrespeitava a característica da
comunidade constituinte de cada Estado, produzindo, portanto, leis destacadas da identidade e
da natureza política de cada povo (ULLMAN, 1999, p.192). Para Quidort o Sumo Pontífice
continuava detentor universal do poder espiritual, investido para atender à necessidade de
salvação que todas as almas compartilham igualmente, inexistindo qualquer justificação para
que outros viessem a concorrer como detentores do poder sagrado (VEYL, 2018, p. 49). Isto é,
em apertada síntese, Quidort defendia a estrita separação das esferas religiosa e secular.
Já Marsílio de Pádua (1275-1342), apoiador do Imperador germânico Luís da Baviera,
era contra a intervenção clerical sobre o exercício dos poderes laicos. Essa intervenção é
descabida na medida em que o caráter obrigatório das leis vem da vontade do povo, e têm a
destinação de organizar a vida pública, não atreladas, assim, à moral ou à salvação
(VOEGELIN, 2013, p. 110). Além disso, a forma de governo também deveria ser definida pelo
povo, e o governante deveria ser passível de ser responsabilizado diante dele (ULLMAN,1999,
p.194-199). De acordo com Ullmann, Marsílio de Pádua é expressão da realidade concreta do
século XIV, na qual os crentes se sentiam traídos pela subversão da fé e dos ideais cristãos
37
cometida pelo Papa ao se colocar como legislador e juiz da sociedade. Para Marsílio de Pádua
a supremacia papal, baseada na primazia de Roma - de Pedro investido por Cristo - era um mero
conto falacioso, e consequentemente, o papado deveria deixar de ser instituição de governo,
devendo ser eleito por um corpo de civis, fazendo da Igreja não um Estado à parte, mas o corpo
dos crentes (ULLMAN, 1999, 201-203).
No nominalismo de Ockham (1285-1347), que também apoiava Luís da Baviera contra
o poder papal, lutando a favor da ordem franciscana, vontade é sinônimo de poder, e o Direito
é pura expressão da vontade. Então, se existe um direito natural do homem, este é o direito de
escolher, porque o homem é dotado por Deus de vontade. Ius, portanto, será o poder de se
escolher, inclusive as autoridades. Tal posição, segundo Michel Villey, é capital para o
desenvolvimento tanto da teoria dos direitos subjetivos, como para a ideia de contrato social,
pois passa-se a ter o direito de se escolher o próprio Imperador, que, através de sua vontade,
posicionará o direito (VILLEY, 2006, p. 237-240).
Nas lições de Michel Bastit (2006, p. 303-312), Ockham determina que a Igreja cuide
somente de questões espirituais, pois a vontade divina se expressaria somente pelas escrituras,
pela liberdade e pelo poder dos indivíduos de escolha, de modo que o poder papal, por si só,
não seria diretamente investido por Deus, mas, assim como se dá com os outros poderes
seculares, o poder papal refere-se artificialmente à capacidade de se ordenar o público, era uma
simples instituição humana, portanto, à semelhança das demais. Ockham, ao defender a
liberdade dos homens, à imagem e semelhança da liberdade Divina, rompe o cosmos ordenado
e hierarquizado em que os medievais viviam, faz uma ruptura da tradição política medieval
(ESTÊVÃO, 2014, p. 05-27). Portanto, sem a hierarquia divina a operar sobre a sociedade, sem
a unicidade da escada aos céus que representava a realidade Medieval, não haveria lugar ao
poder papal como preconizado pela Reforma Gregoriana.
Deste modo, voltando-se à teoria de Berman, pode-se dizer que a Igreja, ao efetuar uma
separação entre o leigo e o espiritual como forma de estruturar a sociedade, embora tivesse
nítido o objetivo hierocrático, com o surgimento das cidades-burgos europeias, somado ao
fortalecimento cívico impulsionado pela força das companhias de comércio, isto é, com o
fortalecimento do poder secular, abriu margem à possibilidade de o poder secular desenvolver-
se sem a chancela direta da Igreja.
O fortalecimento cívico da Baixa Idade Média reflete-se diretamente na configuração
jurídica do período. À exemplo do pluralismo de ordens na sociedade do século XIII,
38
respeitando-se a fragmentação dos poderes que administravam a justiça, eram múltiplos os
foros de aplicação do Direito (PRODI, 2005, p.138). Em cada foro não se aplicava somente o
ordenamento da respectiva jurisdição, tampouco este teria necessariamente ordem de
preferência perante os demais, mas, de modo equitativo, aplicavam-se fragmentos de sistemas
diversos que se demonstravam mais adequados às características daquele caso concreto naquele
foro analisado e, desta forma, como regra, cada tribunal discutia uma causa a partir do princípio
da prevenção, que consiste em atribuir como competente o foro em que se inicia a demanda
judicial (PRODI, 2005, p. 136-137). Por exemplo, em torno do matrimônio:
paralelamente ao reconhecimento da jurisdição eclesiástica surge uma
atividade legislativa e jurisdicional de origem secular, que concerne às
formalidades contratuais, aos dotes, ao reconhecimento da prole legítima e a
problemas afins; paralelamente às causas civis de adultério surgem ou ligam-
se as causas de direito canônico quando é implicada uma separação; ao foro
eclesiástico vincula-se o foro penitencial extrasacramental quando são
implicadas dispensas e concessões relativas aos votos religiosos, aos
impedimentos matrimoniais etc. Para discutir esses problemas, é necessário
percorrer caminhos transversais às especializações, estendendo o olhar para o
funcionamento efetivo da justiça, abraçando tanto o direito civil quanto o
canônico, tanto a jurisprudência quanto o direito penitencial e a teologia
(PRODI, 2005, p.140)
Do excerto de Prodi, nota-se que, o efetivo funcionamento da justiça no Baixo Medievo
abarcava uma integração de múltiplos sistemas, não se afigurando, de antemão, uma ordem
preponderante frente às demais. A mesma dinâmica que fomentava o Direito comum revelava
que no cotidiano medieval inexistia uma só instância que conseguisse reger toda a comunidade
cristã.
39
5. A FORMAÇÃO DO TRIBUNAL DA CONSCIÊNCIA CRISTÃO
Em um cenário de crescente racionalização do Direito, aliado, por outro lado, à
mentalidade cristã que encarava o crime como uma espécie de pecado, nocivo à ordem social e
à religiosa, nascia o processo inquisitorial, que representou também o surgimento do Direito
Penal Público, mais uma influência da Igreja ao Estado moderno, capaz de satisfazer a demanda
de clareza e ordem que as cidades e o comércio em desenvolvimento exigiam (PRODI, 2005,
p. 141).
Tratava-se de um abandono do processo acusatório romano1 pelo foro eclesiástico,
elaborando um novo processo penal, em recusa da vingança privada e da irracionalidade dos
juízos de Deus2 para, em nome da paz, efetivar o conteúdo ético-religioso daquela sociedade3
(PRODI, 2005, p. 143). Assim, “sob a influência dos canonistas, no momento em que a
Inquisição era instalada, a heresia passou a ser definida como um crime lesa-majestade, como
um atentado ao "bem público da Igreja", à "boa ordem da sociedade cristã" (LE GOFF, 2005,
p.315).
O processo inquisitório era escrito, iniciado por delações ou de ofício por parte da
autoridade religiosa confessional, cuja acusação era mantida em segredo para o acusado, sendo
ausente qualquer contraditório, e cujo julgador era, simultaneamente, quem inquiria, acusava,
torturava e julgava em busca de uma verdade absoluta, sempre harmônica com a doutrina da
Igreja (POLI, 2016, p. 93-97). Nele, cada bispo “ao visitar as localidades sob sua jurisdição,
questionava o que havia ocorrido em sua ausência (inquisitivo generalis). Descoberto algum
fato grave, procedia ao inquérito a fim de determinar quem o praticou (inquisitivo specialis)”
(BACELAR, 2018, p. 149).
1 Em referência à iniciativa por parte de um cidadão ofendido, para a resolução do conflito particular
por parte do órgão estatal competente. Para um aprofundamento sobre o desenvolvimento histórico dos
modelos de processo penal, conferir AMBOS (2008). 2 Juízos de Deus e ordálios dizem deum meio jurídico de prova, oriundo da crença germânica em um
destino inexorável, performado ritualisticamente com algum elemento da natureza, que propicia a
leitura, pela comunidade, do que seria a vontade divina, a partir dos fatos ocorridos durante suas sessões,
por exemplo, estabelecer a culpa do acusado por ter sido queimado ou não, afundar ou não em um rio,
engolir ou não um pedaço de pão. Acatado pela Igreja, porém, abolido no século XIII, substituído pelo
processo inquisitorial (BERMAN, 2006, p. 74-75). 3 O autor exemplifica a origem eclesiástica do sistema inquisitório com o relato de que em 5 de abril de
1289 um juiz criminal de Bolonha, Alberto Gaudino, ordena uma investigação ex officio, que durou um
mês, em cada paróquia do território, procedendo interrogatórios para investigar a presença de atividades
como prostituição, jogos de azar, trapaça.
40
E as penas aplicadas acompanhavam a dualidade de foros e de ordenamentos em que os
fiéis eram inseridos. Embora a partir do século XIV tenham sido melhor delimitadas as
competências jurisdicionais entre os poderes laicos e a Igreja, salienta-se que, por muito, essas
jurisdições e o estabelecimento das penas espiritual e temporal permaneceram unidos; porém,
sobre um mesmo ato delitivo e sobre a mesma pessoa, dois foros já se mostravam incidentes, o
externo, que diz da punição terrena ao delinquente e o interno, sobre condenação ao fogo eterno
ou à salvação divina diante do arrependimento do indivíduo (PRODI, 2005, p. 144-145). Deste
modo, uma pena de morte ganhava, no mínimo, estes dois significados.
5.1. Confissão e jurisdição
Primeiramente, cabe mencionar que concomitantemente à Reforma Gregoriana houve
uma mudança de ordem teológica em torno do conceito de juízo final ou, mais precisamente,
do caminho percorrido pelo cristão até a chegada do julgamento final: surgiu a figura do
purgatório4, um lugar entre céu e inferno, destinado à punição dos pecados remanescentes. Sob
a perspectiva jurídico-política da Igreja, tratava-se da incorporação do purgatório enquanto
sistema de regras e de padrões a serem seguidos para a prestação de contas no juízo final
(BERMAN, 2006, p. 218). E essas regras não deixariam de fazer a salvação e o conceito de
pecado passarem por uma interface institucional:
Toda a vida de um indivíduo é algo de que se deve prestar contas no dia do
juízo final. Mas o relato não necessariamente procede de acordo com um
sistema elaborado de regras e padrões. Já a idéia de um purgatório pressupõe
que o relato proceda de acordo com um elaborado sistema de regras e padrões.
Pecados individuais devem ser pesados e as penalidades devem ser
distribuídas de acordo com a gravidade de cada pecado. Além disso,
considera-se que a Igreja, e mais especificamente o papa, tenha jurisdição
sobre o purgatório(...) O pecado era anteriormente entendido como uma
condição de alienação, uma diminuição do ser de uma pessoa; agora passara
a ser compreendido em termos jurídicos como atos, desejos ou pensamentos
incorretos específicos, pelos quais várias penas podem ser pagas durante o
sofrimento temporal, quer nesta vida ou na próxima. A compreensão mais
fundamental do pecado como um afastamento de Deus e do próximo passou a
desempenhar papel secundário. Quais atos, desejos ou pensamentos
pecaminosos deveriam ser punidos e quais tipos e graus de sofrimento
temporal deveriam ser estabelecidos primariamente pelo Direito moral,
revelado por Deus primeiramente na Escritura (Direito Divino) e depois nos
4 Para um aprofundamento nesta questão teológica, conferir a obra homônima em LE GOFF(1995).
41
corações e mentes dos homens (Direito Natural); porém isso deveria ser
posteriormente definido pelos direitos positivos da Igreja (BERMAN, p. 218-
219).
Ainda, os delitos julgados pela Igreja adquiriam, cada vez mais, um caráter público, isto
é, diziam respeito à vida comum, ao pertencimento do indivíduo à comunidade. Por isso, Prodi
(2005, p. 29-33) assinala que a penitência tinha não apenas o aspecto sacramental e íntimo, da
reconciliação da consciência individual para com Deus, mas, aplicada conforme a gravidade
delitiva, a penitência tinha a função de reinserção social. E a excomunhão, o banimento
temporário ou definitivo, sanções para os pecados mais graves, significavam a exclusão do
transgressor da comunidade cristã. Há aí um processo penitencial, cuja jurisdição competia aos
bispos, definido pelo conjunto de prescrições necessárias para reinserir o culpado no grupo
(PRODI, 2005, p. 29-33).
Além do mais, com a reformulação jurisdicional da Reforma Gregoriana e com os
tumultos causados pelos hereges, a absolvição de pecados por um bispo, mais do que a expiação
de quem peca e confessa, significará uma sentença, “um ato judiciário considerado válido em
si mesmo”, capaz de provocar a remissão dos pecados (PRODI, 2005, p. 72-74). Isso faz com
que a confissão ao sacerdote seja identificada com a penitência, e a Igreja passa a ostentar o
poder de antecipação para serem cumpridas no plano terreno as penas individuais do purgatório
(PRODI, 2005, p. 75). É a absolvição revestida de legalismo e o indício do desejo de ter a
consciência do cristão controlada por um Tribunal.
Em 1215, é convocado pelo papa Inocêncio III o IV Concílio de Latrão, onde se
estabelecia a obrigatoriedade da confissão privada anual, visando efetivar e uniformizar o
combate aos hereges (POLI, 2016, p. 86). Tratava-se de uma tentativa de criar um sistema
jurisdicional orgânico e integrado, em que, pelo critério territorial, cada pessoa teria o sacerdote
legitimado para ouvir a confissão, em outras palavras, a partir do foro sacramental a Igreja
tentava controlar a ordem pública impondo o princípio do juízo natural (PRODI, 2005, p. 79-
84).
No entanto, à época, como visto anteriormente, as paróquias e dioceses, por despreparo
intelectual e por não conhecerem a pobreza, não conseguiam atingir a população como as
ordens mendicantes conseguiam. Isto provocou o fracasso do sistema objetivado pelo IV
Concílio de Latrão, na medida em que em 1221 o Papa sucessor, Horácio III, confia
universalmente a prática de confissão aos dominicanos, estabelecendo-se outra forma de
42
efetivação do plano do Concílio e constituindo-se uma disputa interna que se estenderia dentro
da Igreja, pela dualidade da administração do sacramento da penitência entre frades
mendicantes e o clero secular das dioceses (PRODI, 2005, p. 86-88).
A partir da obrigatoriedade da confissão anual nascem os manuais de confissão, as
summae confesorum, com predisposição de interrogatórios aos confessores, um gênero literário
amplamente difundido até o século XVI , quando, a mando de Lutero é queimado o manual
mais difundido neste gênero, a Summa angelica, de Ângelo de Chivasso (PRODI, 2005, p. 88-
90). Para o reformador alemão, o exemplar era um vigoroso e nefasto símbolo do sufocamento
do místico pela preponderância da forma canônica (GROSSI, 2018, p. 780).
Os manuais de confissão são expressão de uma sociedade na qual o civil era identificado
com o fiel, o Direito com a teologia, e, sobretudo, com a moral (GROSSI, 2018, p. 796). Neste
sentido, Grossi discorre sobre a inserção histórica do foro penitencial, que fazia confundir o
foro da consciência e com o foro contencioso, foro interno e externo:
É uma tomada de contato global com a sociedade na sua integralidade.
Nenhum aspecto desta é julgado irrelevante pelo foro penitencial. Todo ato
social, enquanto tal, é suscetível de incriminação no tribunal da penitência,
enquanto os traços que distinguem entre forum conscientiae e foro externo se
tornam pouco precisos e se confundem(...)O discurso dos autores das sumas é
inequivocadamente jurídico; só que o direito sobre o qual se discorre tem
sólidas fundações teológicas, é um direito cujo traço que o distingue e até
mesmo o tipifica é a moralidade. Que se desenvolve como aplicação sobre o
terreno social de determinadas regras morais. O interesse dos autores das
sumas é pelas relações intersubjetivas, só que sobre estas relações eles não
inserem operadores sociais desqualificados nas sim operadores com uma alma
a ser salva, com uma eternidade a ser conquistada. Toda relação terrena, longe
de se esgotar na imediatez dos eventos contingentes, tem uma finalidade
ulterior. É, em suma, um instrumento para obter a salus aeterna (GROSSI,
2018, p. 796).
O foro penitencial e o processo inquisitorial se interligam pelo conceito de pecado
oculto, ou pecado do pensamento, considerando-se que já em Graciano se admitia julgar a
intenção do indivíduo em casos extremos, no caso, na perseguição às heresias, que, enquanto
lesa-majestade, eram crimes maiores sobre a ordem social. (PRODI, 2005, 97-100). Estes
pecados secretos, do íntimo dos desejos, a princípio, revelavam uma distinção entre pecado e
crime mundano na medida em que que teólogos e juristas dos séculos XI e XII apontavam-nos
como ofensas somente contra Deus e, portanto, somente julgáveis por ele (BERMAN, 2006, p.
237). Porém, desrespeitada a instituição da Igreja, eles seriam matérias de suas cortes. Tinha-
43
se, assim, a partir do artifício do medo, um sistema de justiça concorrente com o do Estado
secular (PRODI, 2005, p. 179-180), ao mesmo passo em que a Igreja voltava a pleitear o
protagonismo no tabuleiro do xadrez político medieval.
44
6. PECADO, INQUISIÇÃO E O MANUAL DE CAÇA ÀS BRUXAS
Mantidas as perspectivas teológicas e jurídicas já tratadas, é preciso revelar também
como a estratificada sociedade da Europa medieval percebia a mulher e o corpo feminino,
considerando-se o caráter fundante destas definições sobre a vivência daquela sociedade.
Assim, conhecidas as normas que disciplinavam tais questões, será possível identificar o que
se mostrava destoante e, portanto, herético ao olhar do fortalecimento do processo inquisitório.
A historiadora Cristiane Klapisch-Zuber (1989, p. 193) adverte que na concepção
tripartite da sociedade cristã, entre cavaleiros, clérigos e camponeses, não há um recorte para a
condição feminina. Isto porque:
Antes de ser camponesa, castelã ou santa, a «mulher» foi caracterizada pelo
seu corpo, pelo seu sexo e pelas suas relações com os grupos familiares. Quer
se trate de esposas, viúvas ou virgens, a personalidade jurídica e a ética
quotidiana foram delineadas em função de um homem ou de um grupo de
homens (KLAPISCH-ZUBER, 1989, p. 193).
A partir da função reprodutora dada à mulher - para parir, criar e manter a linhagem-,
pela perspectiva política, atribuía-se ao feminino o símbolo de paz, na medida em que
casamentos significavam uniões duradouras entre as famílias dos nubentes (KLAPISCH-
ZUBER, 1989, p. 194-195). A autora (1989, p. 200-201) destaca ainda que, pelo fato de a morte
se abater com frequência em um mundo em que o combate e as guerras apresentavam caráter
ético, deixar herdeiros era um desafio como qual conviviam as famílias, de modo que, no século
XIII, dentro da lógica mulher-reprodução, casamentos hoje vistos como infantis eram
frequentes nas classes nobres, sendo celebrados entre homens em idade madura e meninas de
12 ou 13 anos. As camponesas, por sua vez, casavam-se por volta dos 18 anos.
Símbolo de paz no interior dos lares – a exemplo da Virgem Santíssima, a
insubordinação das mulheres à autoridade dos maridos, mais do que uma ofensa a eles, atingia
a reprovação coletiva, por representar a ruptura da ordem natural (KLAPISCH-ZUBER, 1989,
p. 205-206). A fuga do papel matrimonial era vista com desconfiança, causando efetiva
marginalização em caso de autonomia voluntária ou involuntária:
Para a maior parte, a necessidade de trabalhar está directamente ligada à sua
situação matrimonial ou à perda de protecção familiar. (...)São mulheres sem
família as que se colocam fora da ordem «natural» atribuída ao sexo feminino
pela sociedade medieval. Por isso são muito mais vulneráveis e a sua
45
reputação fica imediatamente manchada. Viúvas sós, mendigas que ganham o
seu sustento fiando, criadas de servir, reclusas que vivem fora de uma
comunidade religiosa, todas são suspeitas de mau comportamento e
facilmente acusadas de prostituição. As mulheres sem raízes que, no século
XI, seguem santos homens como Robert d’Arbrissel, o fundador de um
mosteiro «misto» cuja direcção confia a uma mulher, as que, no século XIV,
se juntam aos bandos de flagelados, recrutam-se entre aquelas que têm uma
situação matrimonial, um tipo de vida e, por vezes, uma independência
económica que são suficientes para as designar como elementos à margem. O
descrédito do trabalho fora de casa, das manifestações de devoção demasiado
autónomas e da vagabundagem das mulheres mostra à evidência que as
sociedades de finais da Idade Média dificilmente conceberam a «condição
feminina» fora do enquadramento matrimonial (KLAPISCH-ZUBER, 1989,
p. 208).
Somado a isso, tal comportamento feminino configurava a recusa da sacralidade do
corporal, o que gerava a ojeriza social, pois o corpo era visto como um espaço de disputa entre
o profano e o divino, o corpo deveria ser santificado afastando-se qualquer elemento de
remissão à carne e, por isso, as expressões físicas de adoecer, envelhecer ou de prazer, como
fluidos, sangue e chagas, eram tidas como prova desta degradação (LE GOFF, 2010, p. 53-54).
Significa isso dizer que o corpo, para a mentalidade medieval, seja para homens ou para as
mulheres, por uma sobrevalorização do espiritual em oposição ao físico, era algo
constantemente recusado. No entanto, a partir do pecado original de Eva, elegia-se a
sexualidade, consubstanciada principalmente no corpo feminino, como o lugar maior desta
aversão, por representar, em última instância, um lugar onde concretamente se subverteu a
ordem do criador. É o que brilhantemente expõe Le Goff:
A encarnação é humilhação de Deus. O corpo é a prisão (ergastulum- prisão
para escravos) da alma e esta, mais ainda que sua imagem habitual, é a sua
definição. O horror pelo corpo atinge o auge nos seus aspectos sexuais. O
pecado original, pecado de orgulho intelectual, de desafio intelectual a Deus,
é transformado pelo cristianismo em pecado sexual. O desprezo pelo corpo e
pelo sexo toca assim o seu ponto máximo no corpo feminino. Desde Eva até
a bruxa dos fins da idade média, o corpo da mulher é o lugar de eleição do
diabo (LE GOFF, 2010, p. 53-54).
Assim, o agir humano deveria corresponder ao sentido de castidade, seguindo-se o
sentido escatológico cristão, em que o temporal deveria se direcionar à salvação espiritual. Isto
era algo tão cotidiano que se impunha à gestualidade das pessoas: o gesticular também
denunciava a normatividade no espaço social e, consolidado o corpo clerical em hierarquia
superior, tinha-se em sua forma contida e reta de expressar-se o modelo a ser seguido e, mais
46
que isso, gestos libertos, largos, não castos eram taxados de pagãos, loucos e, logicamente, não
pertencentes à Igreja universal e passíveis de linchamento ( LE GOFF, 2010, p. 55-57, 162).
O historiador francês (2010, p. 58-60), para exemplificar esta lógica de controle
ideológico da Igreja sobre os gestos, em análise à iconografia do século XIII, aponta que nas
figuras diferenciavam-se as almas do purgatório das do inferno pela postura de joelhos e mãos
juntas, suplicando a Deus, sem que se possa ignorar que o purgatório era tido como lugar de
tortura do corpo para viabilizar uma purificação que levaria aos céus. Significa dizer que a alma
que tem essa reta postura, imagem da reta conduta, vence as torturas do corpo, se purifica e,
assim, ascende.
6.1. A relação entre o laico e o religioso no século XV
Se crime e pecado convergiam ao mesmo tempo em que se reconhecia a autonomia do
homem para criar o Direito, com base na doutrina tomista do direito natural, era do interesse
tanto de Príncipes quanto da Igreja que a lei positiva conseguisse atingir a consciência do fiel,
isto é, dizer sobre o caminho que levaria à salvação eterna, de modo a se poder afirmar que “ a
verdadeira força da lei positiva, a vis legis, consiste no poder de vincular a consciência do
homem ao foro interno” (PRODI, 2005, p. 208-216). E isto faz com que, com o processo de
nacionalização dos Estados europeus e a respectiva nacionalização das Igrejas ao final do século
XV, seja priorizada pelo poder secular a lógica de que crimes, definidos pela vontade do
soberano, levam ao pecado. Com isso, predomina a lógica dos manuais de confessores, a tese
de que os pecados seriam crimes passíveis de punição terrena como também pela prescrição do
sacerdote (PRODI, 2005, p. 213-217).
O cristão, ao final do período medieval e no início da Idade Moderna é chamado a ter
suas ações e seus pensamentos julgados pela Igreja e pelo Estado, “seja por se tratar de uma
antecipação misericordiosa do juízo universal, seja por se tratar da condenação a uma pena
temporal que ainda é concebida como um instrumento para evitar a pena eterna.” (PRODI,
2005, p. 231). E isto significa implantar um ambiente de medo, não apenas pela perspectiva do
efetivo uso político dele, mas porque um mundo se dissolvia aos olhos do cristão: a
obrigatoriedade da lei positiva evidenciava a dissolução da ordem jurídica medieval amparada
na pluralidade de manifestação do jurídico, e, considerando-se o caráter sagrado a ela atribuído,
47
consequentemente, o cristão se afastava da sensação de proximidade com o divino (PRODI,
2005, p. 232-234).
Ao fim do medievo numerosas eram as investidas que regiam e eram regidas pelo medo:
Os últimos séculos do período medieval vivenciaram diversos eventos que
direcionaram a sociedade europeia a um medo apocalíptico. O medo constante
de guerras, da fome e da peste e os cismas que estavam acontecendo na Igreja
Católica assombravam a sociedade(...)Exemplos são: Peste Negra, o Grande
Cisma (Igreja Ocidental com duas sedes: uma em Roma, Papa Urbano VI,
uma em Avinhão, Antipapa ClementeVII, ocorrido na transição dos século
XIV-XV), a Guerra dos Cem Anos, as lutas das Cruzadas e o avanço turco, a
decadência moral do papado provocando a Reforma, entre outros
(HAVRECHAK, 2014, p. 9).
Por conseguinte, encontra correspondência histórica a conclusão a que chegou Paolo
Prodi, às vésperas da Reforma Protestante, viviam-se dores de uma ordem balançada pelo
processo de reformulação entre os poderes político e religioso.
6.2. Surgia o Martelo das Feiticeiras
Primeiramente, deve-se lembrar que, com a perspectiva de universalidade e de
divindade da comunidade cristã, havia dentro dela constantes oposições entre cristão e herege,
sagrado e profano, corpo e alma, onde o outro era motivo de medo, de modo que a
marginalização era imanente à sociedade medieval, estruturando-a (LE GOFF, 2005, p. 314-
323). Esta dinâmica pode ser descrita da seguinte forma:
A sociedade medieval tem necessidade destes párias postos à margem, porque
perigosos, mas visíveis para que, graças aos cuidados que lhe dispensa [por
uma perspectiva de caridade] ela possa ficar-se na sua boa consciência e, mais
ainda, projeta e fixa neles, magicamente, todos os males que afasta de si
(MOLLAT apud LE GOFF, 2010, p. 162-163).
E isto persistiria mesmo com a crise que se abatia sobre o Medievo. Acresce-se que a
inquisição, por meio de manuais de processos, conseguia identificar e colocar minuciosamente
em palavras as formas de taxação e de identificação dos gestos daqueles que, segundo ela,
deveriam ser excluídos, ao mesmo tempo em que penas eram impostas, seja pela colocação de
símbolos infames às pessoas ou por meio da espetacularização da redenção na condenação às
fogueiras (LE GOFF, 2010, p. 162).
48
Dentro do Tribunal do Santo Ofício, os dominicanos persistiam como protagonistas na
lida com os hereges, num monopólio que só terminaria com a concorrência da Companhia de
Jesus, criada no século XVI (SOUZA, 2016, p. 9). Esta função de guarda que a ordem
dominicana adquiriu é o que autoriza César Cardoso de Souza Neto (2017, p. 211). a comentar
que “fato interessante é que o termo dominicanos advém não somente do nome do santo
fundador, Domingos, mas, sobretudo da junção de dois termos latinos Domini e canis, ou seja,
cães do Senhor”, referindo-se não só à etimologia, mas à alcunha que ganhava a ordem.
Desta forma, compreende-se porque em 1484 o papa Inocêncio VIII, por meio da bula
Summis desiderantes affectibus, reconhece a bruxaria como uma realidade a ser combatida na
Alemanha e elenca os dominicanos Henry Kramer (1430-1505) e James Sprenger (1435-1495)
a tarefa de caçá-las (SOUZA, 2016, p. 5). No cumprimento desta tarefa, em 1487, os dois
dominicanos lançaram o Malleus Maleficarum ou “O Martelo das Feiticeiras”, seguindo-se a
tradição consagrada, um manual de caça às bruxas que trazia como prefácio a referida bula, que
extrapolaria a Alemanha, no século XV, bem como o Continente europeu, ao longo de toda a
trajetória inquisitorial. Reforçando a origem terminológica da ordem, no Manual é feita
referência ao latir de São Domingos enquanto capaz de afastar “os lobos hereges do rebanho
das ovelhas de Cristo” (KRAMER; SPRENGER, 2015, p. 682).
Esta bula papal estabelecia quais seriam as regiões mais afetadas por esse mal diabólico,
apontando as dioceses de Mainz, de Colônia, de Tréves, de Salzburgo, de Bremen e, ainda, a
região da Alemanha do Norte, de forma geral, como as mais atuadas pela bruxaria (SOUZA,
2016, p. 10). A grande questão é justamente se indagar a respeito dos motivos de eleição destas
localidades como tais, diante do vasto território capaz de ser alcançado pelo Tribunal do Santo
Ofício. A resposta para tanto abarca três correntes historiográficas:
A primeira diz que a causa primordial do predomínio da bruxaria na Alemanha
é a miséria generalizada, reinante naquela região. Outra tese afirma que a
causa do predomínio da bruxaria naquela região é causado pela insuficiente
cristianização. E por último, há tese de que a fiscalização inquisitorial na
Alemanha foi mais descontínua e atenuada que em outras partes da Europa
(SOUZA, 2016, p. 10).
Neste cenário, surgia um livro cuja primeira parte, denominada Das três condições
necessárias para a bruxaria: o Diabo, a bruxa e a permissão de Deus Todo Poderoso, é voltada
a uma argumentação teológica para convencer a sobre a existência de bruxaria no mundo. A
segunda parte, Dos métodos pelos quais se infligem os malefícios e de que modo podem ser
49
curados, é aquela em que é estreitada a argumentação sobre a relação do diabo com as mulheres
e a identificação das ações dessas duas figuras em direção ao mal. Já a terceira parte, Que Trata
das Medidas Judiciais no Tribunal Eclesiástico e no Civil a Serem Tomadas Contra as Bruxas
e Também Contra Todos os Hereges – Que Contém XXXV Questões Onde São Clarissimamente
Definidas as Normas Para a Instauração dos Processos e Onde São Explicados os Modos Pelos
Quais Devem Ser Conduzidos, e os Métodos Para Lavrar as Sentenças, apresenta a definição
do julgamento das bruxas pelos inquisidores e elabora o procedimento deste, que, note-se, é
incentivado a ser aplicado seja na jurisdição eclesiástica, seja na jurisdição civil.
Ao dizer sobre a tortura como modo de extrair a verdade real dentro do Tribunal do
Santo Ofício, o Professor Felipe Martins Pinto (2010, p. 202) adverte que o processo
inquisitório era uma engenhosa estrutura alimentada pela erudição filosófica e teológica,
forjado na elaboração de um discurso que, em nome da purificação da alma ao encontro com
Deus, atribuía à tortura um caráter bendito. Neste sentido:
Sob a manipulação desse discurso, a tortura adquiriu um caráter medicinal
para a alma, pois mesmo que o acusado fosse inocente das imputações, a sua
submissão aos suplícios, enquanto expiação de seus pecados, o aproximaria
da divindade celestial e, dessa forma, todos os martírios, todas as dores, todas
as angústias e até mesmo as marcas deixadas nos corpos (sinais externos da
purificação), passaram a gozar de uma conotação benéfica (PINTO, 2010, p.
202).
E o Martelo das Bruxas é expressão pura desta dinâmica. Nele a erudição se faz notar à
primeira vista. Primeiro, sob a perspectiva formal, porque estruturado em tópicos e sob
elaboração e resolução de questões, revelando-se didático e voltado a convencer. E, além disto,
é construído sobre o amparo da doutrina canônica e das escrituras, referindo-se com frequência,
ou, a todo momento, às autoridades das obras de doutores da Igreja Católica, como Santo
Agostinho, Santo Anselmo, Santo Isidoro, São Jerônimo, Santo Antônio, Santo Antonino,
Santo Alberto, São Bernardo, São Crisóstono, São Tomás de Aquino, sobretudo. São setenta e
oito autores citados ao total, destacando-se o uso do método escolástico e o objetivo de
demonstrar ortodoxia no conteúdo trazido (MACKAY, 2009, p. 16-17).
Por exemplo, na Questão VI Sobre as bruxas que copulam com Demônios. Por que
principalmente as mulheres se entregam às superstições diabólicas, depois de defender a
fraqueza física e intelectual das mulheres, bem como uma maior presença do carnal nestas como
50
a causa de maior suscetibilidade ao mal (KRAMER; SPRENGER, 2015, p. 673-698),
argumenta-se a partir das escrituras:
Os pregadores devem ficar muito atentos para a forma como as utilizar. É
verdade que no Antigo Testamento as Escrituras têm muito a dizer sobre a
malevolência das mulheres, e isso em virtude da primeira mulher sedutora,
Eva, e de suas imitadoras; depois, contudo, no Novo Testamento, há uma
mudança do nome de Eva para Ave (conforme nos diz São Jerônimo), e todo
o pecado de Eva é expungido pela bem aventurança de Maria. Portanto, cabe
aos pregadores muito louvá-las sempre que possível. Porém, como nos nossos
tempos essa perfídia é mais encontrada em mulheres do que em homens,
conforme nos ensina a experiência, para os ainda mais curiosos a respeito da
razão do fenômeno, acrescentamos o que já foi mencionado: por serem mais
fracas na mente e no corpo, não surpreende que se entreguem com mais
frequência aos atos de bruxaria. Pois no que tange ao intelecto, ou ao
entendimento das coisas espirituais, parecem ser de natureza diversa da do
homem; fato que é defendido pela lógica das autoridades respaldadas em
vários exemplos das Escrituras. Diz-nos Hecira: “As mulheres,
intelectualmente, são como crianças.” E declara-nos Lactâncio (Institutiones,
III): “Nenhuma mulher chegou a compreender a filosofia, exceto Temeste.” E
nos Provérbios, 11 há esta passagem descrevendo uma mulher: “Um anel de
ouro no focinho de um porco, tal é a mulher formosa e insensata.” Mas a razão
natural está em que a mulher é mais carnal do que o homem, o que se evidencia
pelas suas muitas abominações carnais (KRAMER; SPRENGER, 2015, p.
698-701).
Pela pungência destas palavras, como pela sistematização de todo o manual, trata-se de
obra destinada a mostrar a bruxaria como a pior das heresias, o pior dos males da sociedade, a
tal ponto que o Malleus faz uma imputação mais grave às feiticeiras, a de apostasia:
Os hereges deveriam ser punidos de diversas formas conforme o grau da
heresia e a possibilidade de arrependimento e reintegração na comunidade
cristã, e poderiam sofrer: excomunhão, deposição, confisco de bens, prisão
perpétua ou a morte. Mas sendo as feiticeiras consideradas, além de hereges,
apóstatas – que seria o afastamento temerário de Deus e da religião – a punição
deveria ser muito maior devido ao enorme grau de malignidade
(HAVRECHAK, 2017, p. 17).
Desta forma, todas as torturas prescritas na terceira parte do livro se encontrariam
justificadas. A alma da acusada ou do acusado que não resistiu à tentação feminina e o corpo
social agradeceriam pelo método de expurgar o mal.
Pode-se dizer que este reconhecimento foi verificado de fato. Houve uma ratificação do
livro pelos doutos de Colônia, escrita por Lambertus de Monte e aprovada por outros
professores, na qual o método de inquisição à feitiçaria instituído pelo Maleus era recomendado
51
aos demais padres e Príncipes, porque erradicaria a presença do Diabo, que as bruxas
representavam na sociedade, levando justiça, misericórdia e graça (MONTE, 2015, p 3139).
Pela clareza com que isto se evidencia em suas palavras, é preciso trazê-las à discussão:
Ademais, na minha opinião, a terceira parte há de ser inteiramente aprovada,
e há de ser colocada em prática, já que no julgamento e na punição de tais
hereges, matéria de que trata, nada é recomendado que possa infringir a Lei
Canônica. E uma vez mais, em virtude dos valiosíssimos e salutares assuntos
que se acham ali contidos, mesmo que só por causa do grande conhecimento
e da boa reputação desses valorosos e honrados Inquisidores, poderia a obra
ser vista como necessária e de grande utilidade, e haveremos de ter o diligente
cuidado de distribuí-la entre homens eruditos e zelosos, que com grande
vantagem nela encontrarão variadas e ponderadas orientações para o
extermínio das bruxas. Além disso, haveremos de levá-la às mãos de todos os
reitores das igrejas, particularmente às mãos daqueles que são honestos, ativos
e que temem a Deus, e que poderão, lendo o livro, sentir-se encorajados para
despertar o ódio no coração das pessoas contra essa pestilenta heresia maléfica
e contra todos os atos hediondos de bruxaria, para que todos os homens de
bem possam ser advertidos e salvaguardados e para que todos os malfeitores
possam ser descobertos e punidos (MONTE, 2015, p. 3136-3139).
A historiadora Ludmila Portela adverte que a historiografia ainda não consegue afirmar
se o Malleus representa apenas o pensamento e a histeria dos seus autores ou o afã de toda a
coletividade sobre a mulher e sobre a bruxa (2017, p. 278). Porém, não poderia deixar de ser
observado que a leitura do Martelo das Feiticeiras evidencia o discurso de que:
Como instrumento de cristianização, o controle da sexualidade medieval passa
também pelo controle da mulher, veículo primeiro da tentação e do pecado.
Teme-se a mulher na mesma medida em que teme-se a sexualidade. O
cristianismo deixa de obedecer essencialmente as questões de observância aos
ritos para pautar-se na observância da conduta e da moral. (PORTELA, 2017,
p. 273).
O discurso é radicalizado ao ponto de taxar como diabólicas as atividades que
demonstravam conhecimentos passados de geração em geração entre mulheres, como os das
parteiras e das curandeiras, mesmo que servissem de assistência no nascedouro e no cuidado
das dores diante de doenças, “onde o curandeirismo muitas vezes o único caminho de acesso
ao alívio dos males físicos do corpo, especialmente entre os estratos sociais mais
baixos”(PORTELA, 2017, p. 274). Isto pois, de acordo com o Malleus, as parteiras, dentre
todas as bruxas, eram as mais perigosas, uma vez que eram capazes de oferecer ao Demônio
até mesmo crianças de mães honestas, que, por sua vez tinham a missão de levar os filhos à
graça, em um espaço para cultivar as próprias virtudes (KRAMER; SPRENGER, 2015, p. 698-
52
701). Era, ao mesmo tempo, uma demonização da autonomia feminina e uma instrução sobre o
único papel aceitável relegado à mulher. O que ocorria sem receio de impor o medo de bruxas
também entre mulheres, como lecionado pela oposição de mãe e feiticeira1.
As parteiras circulavam desde os níveis mais altos da hierarquia social até o campesinato
(PORTELA, p. 274), o que é expressamente percebido pelos autores do Manual. Por isto, o
controle sobre estas mulheres apresentava-se, em síntese, como mais um espaço à efetivação
do domínio clerical, considerando-se a presença das parteiras sobre todos os territórios:
E são em tão grande número que, conforme se descobriu por suas confissões,
acredita-se que dificilmente exista alguma aldeia em que pelo menos uma não
seja encontrada. E para que os magistrados possam enfrentar esse perigo em
certa medida, não devem permitir que nenhuma parteira pratique o ofício sem
antes prestar juramento como boas católicas (KRAMER; SPRENGER, 2015,
p. 3060-3061)
Por todos esses motivos, com o Malleus Maleficarum, de modo além do habitual,
mulheres eram colocadas às margens da sociedade cristã. Em discussão sobre o fenômeno da
marginalização e da exclusão social, Jacques Le Goff (2010, p. 158) provoca pesquisadores a
questionarem-se se a mudança histórica se opera na figura dos marginalizados ou na
consideração que a sociedade tem por eles. O historiador chama a atenção para a eleição de
qual hipótese teve maior importância e, nesta toada, torna possível analisar a perspectiva de que
não foram as mulheres ou as bruxas que se tornaram mais agressivas, mas sim a postura da
Igreja, o verdadeiro elemento que fomentou a perseguição.
Esta perspectiva converge para a análise do Martelo das Feiticeiras sob a ótica de
religião, do poder e do gênero, ressaltada pela historiadora Juliana Havrechak:
Durante toda a terceira parte do manual [aquela efetivamente dedicada ao
processo inquisitorial] os autores revezavam as denominações para as pessoas
examinadas: ora eram chamadas de “acusadas” ora de “bruxas”. O que nos
leva a refletir sobre a pretensa busca pela verdade, já que apenas pelas
acusações as investigadas já eram tidas por “bruxas”. E de modo especial a
atenção voltada às mulheres. Estas eram o objeto a ser transformado pela
pedagogia incisiva de medo e ordem. O que observamos foi a luta pelos
preceitos religiosos da Igreja Católica. Quem quer que fosse que agisse contra
as regras determinadas seria duramente punido, tanto pela Igreja quanto pelo
poder secular, ou seja, pelos homens retos que compunham a sociedade cristã
Católica (HAVRECHAK, 2014, p.19).
1 Lembrando-se que não existia à época a mulher como categorização independente, como tratado na
primeira parte deste capítulo.
53
O livro, enquanto manual de inquisição, padecia da mesma falha do processo
inquisitorial em geral, a de identificar a hipótese inicial da acusação com a verdade real e
absoluta que constitui, ao mesmo tempo, a busca e a conclusão no julgamento pelo juiz
inquisidor (COUTINHO, 2009, p. 105), o que significa algo que não evitava o uso deste
processo, mas promovia a inquisição, na mesma medida em que promovia o uso do Malleus
Maleficarum como um instrumento político. Aos poderes laicos e à Igreja, a categorização
de feitiçaria e de bruxaria como forma acentuada de heresia servia para uma
intensificação do tribunal da consciência.
Porém, embora em última instância fundamentado na autoridade e na vontade papal a
partir da bula Summis desiderantes affectibus, as transformações políticas do final da Idade
Média e no início da Idade Moderna mostram que o Martelo das Bruxas, mesmo amparado na
lógica legalista e jurisdicional implementada pela hierocracia da Reforma Gregoriana, não
conseguiu acrescer à efetividade da soberania universal intentada pela Igreja Católica. O que,
por sua vez, não foi empecilho para que o Malleus Maleficarum servisse à efetivação de
um produto dela, o julgamento do foro interno, de conteúdo moral e religioso, punindo
não só o crime, mas também o pecado, como prática inerente ao Estado Moderno.
54
7. CONCLUSÃO
O presente trabalho encontra na Jurisdição uma parte importante do caminho de
institucionalização da Igreja Católica, especialmente dentro dos acontecimentos que marcaram
o período entre os séculos XIII e XV, na transição da Baixa Idade Média à Modernidade.
Encontrou sua origem a partir da associação entre a universalidade do poder do Império
Romano e a christianitas, comunidade cristã, com o auxílio da organização da Igreja Católica
Apostólica Romana, chefiada pelo Papa. Este, por sua vez, tinha o fundamento de legitimidade
da liderança sobre os demais bispos na investidura de Cristo a São Pedro, atribuindo-lhe a
capacidade de prover o acesso aos céus. O primado de Pedro como afirma Walter Ulmann
(1999, p. 26-28), por meio de abstração jurídica de feitos bíblicos e históricos, conferia ao Papa
uma natureza monárquica. Uma tese que, por séculos, perderia força política devido ao
esfacelamento do Império Romano, na interface da Igreja com os clãs bárbaros e,
posteriormente, pelo marco das modificações políticas e administrativas realizadas pelo
Império de Carlos Magno. Sobretudo pela subordinação do clero ao poder régio, que escolhia
quem comporia os cargos eclesiásticos sob um discurso de proteção da Igreja.
No seio da sociedade medieval, encontra-se um arranjo histórico que, a partindo-se da
perspectiva de ordenação do mundo por Deus, percebe o Direito de forma inerente à justiça, e
ela, por sua vez, se manifesta como a ordenação imanente à realidade. Há, assim, uma
equiparação de Direito e ordenamento social, a espera de ser lido (GROSSI, 2010, p.96-97).
Esta perspectiva de ordem jurídica medieval faz com que se atribua ao Príncipe, quem detém o
poder secular, não a função de legislador, mas de ser o legítimo intérprete dessa ordem pré-
constituída, portanto, um juiz (GROSSI, 2014, p. 157-167). Verifica-se na missão do rei-juiz,
que deve ser, à imagem de Deus, um julgador justo, junto à hierarquização presente na
sociedade medieval, a existência do discurso de soberania, expressada pelo poder de iurisdictio
pleníssima (COSTA, 2010, p. 104-111). Poder que irradiava sobre os demais magistrados, em
respeito à ideia de dois corpos do rei, um corpo terreno, que provém a paz pela espada e um
corpo divino, que, investido por Deus, deve desempenhar o papel de Cristo (KANTOROWICZ,
1998, p. 72-73).
Isto permitiu constatar que o centro da disputa entre a Igreja Católica e o Imperador
Henrique IV pelo poder de investir os cargos da Igreja, no século XI, era uma disputa por
soberania. Pois o corpo que conseguia adentrar cada localidade dos territórios era o corpo
55
eclesiástico (SOUZA, 1997, p. 21-36). E este moveu-se imbuído na tarefa de purificar não só o
clero em relação ao poder secular, mas toda a sociedade cristã, que, aos olhos reformadores,
num resgate do primado de Pedro aliado à atribuição de superioridade do espiritual sobre o
carnal, visava efetivar o ideal de hierocracia, subordinando-se a universalidade do cristianismo
ao Papa (BERMAN, 2006, p. 136-140). É o espírito da Reforma Gregoriana.
Aos olhos desta reforma o juiz supremo passou a ser o Papa, à fundamental diferença
que agora amparado pelo poder legiferante que tinha sua vontade, pelo desenvolvimento do
sistema de Direito Canônico e pela estrutura hierarquizada de cortes eclesiásticas. Foi
identificado que isto significou, sobretudo, a capacidade de a Igreja agir em disputa com o poder
secular, enquanto instituição política concorrente. E, enquanto tal, por ter permanecido
detentora da chave dos céus, mostrou ter provocado não só uma dualidade entre o foro externo
– terreno, contencioso ou civil, e o foro interno - espiritual, uma vez que opunha a todo
momento o laico e o clero; quanto, principalmente, deu natureza de foro externo ao foro interno,
isto é, fez com que os sacramentos fossem confundidos com poder de jurisdição (PRODI, 2005,
p. 61-62).
Neste contexto, a partir da mudança teológica dada sobre conceito de purgatório, a Igreja
poderia aplicar na esfera temporal os sofrimentos que purgariam os pecados cometidos, isto é,
conferia-se estrutura jurídica aos pecados que, antes um afastamento de Deus, passavam a ser
então delimitados por atos, desejos e pensamentos não condizentes com a doutrina eclesiástica
(BERMAN, p. 2018-2019). Eram, a depender da gravidade, somente passíveis de penitência ou
crimes à comunidade cristã, que deveriam ser punidos no tribunal da consciência. Dentre estes
crimes, o maior a que se poderia referir era a heresia, porque representava o intento direto de
dissolução da ordem e, pela perspectiva papal, um crime lesa-majestade (LE GOFF, 2005,
p.315).
Verificou-se que o tribunal da consciência era fortalecido em torno da prática de
confissão, na medida em que este espaço de encontro do cristão com Deus não estava imune à
busca por pecados ocultos em seus pensamentos. Sobretudo pela instituição da obrigatoriedade
da confissão anual em 1215, logo seguida pela conferência da competência confessional aos
dominicanos, uma ordem destinada ao combate à heresia. Concomitantemente, os manuais de
confissão espalhavam-se, revelando-se, a partir da fundação teológica de que toda relação
terrena tem finalidade ulterior, a identidade que o direito guardava com a moralidade (GROSSI,
2018, p. 796).
56
À vista disso, foi delineado, sob a perspectiva do tribunal da consciência, o quadro
histórico do surgimento do Tribunal do Santo Ofício, que inovava pela criação do processo
inquisitorial. Um procedimento racional que permitia a um mesmo clérigo, enquanto juiz,
acusar, investigar e torturar em busca da verdade real, que seria sempre condizente com a
doutrina corrente da Organização Católica (POLI, 2016, p. 93-97). Ao fim deste processo,
constatada a culpa, penas terrenas seriam imputadas. Verificou-se também que a Inquisição foi
lugar de forte atuação dominicana.
Conclui-se, portanto, que, por meio da punição, o tribunal da consciência consolidou-se
como modo de efetivação das regras da teologia moral.
O projeto gregoriano sobre a soberania, porém, não conseguiu transpor as barreiras que
o desenvolvimento das cidades comerciais, da Escolástica e do Ius comune propiciaram. Em
alguma medida, a Igreja, como nos faz perceber Berman, provava contra si uma estrutura
jurídica que ela mesma criara. Tampouco se eximiria das crises espirituais que provocara. Seja
pela contradição do predomínio do caráter de organização política em face da legitimação de
seu poder sobre uma religião que pregava a caridade, seja porque o predomínio da lei positiva
como constituidor dos sistemas jurídicos, dentro do pluralismo jurídico da Baixa Idade Média,
revelava ao cristão a ruptura da imanência do divino na sociedade e, por isso, revelava o medo
do distanciamento de Deus (PRODI, 2005. p. 232- 234). Constatam-se, em outras palavras, as
perturbações e as dores provocadas pela ruptura da ordem jurídica medieval no prenúncio da
Modernidade.
No entanto, isto não significou um enfraquecimento do tribunal da consciência, na
medida em que, embora criado pela Igreja Católica, este serviu de base à política estatal por
meio da equiparação entre o crime -descumprimento da ordem do soberano, e o pecado. Desta
maneira, em movimento de sacralização da lei, o espaço de maior efetividade desta seria na
relação de cada indivíduo com Deus, isto é, no foro da consciência, posto que cada pessoa era,
ao mesmo tempo, súdito e fiel. Assim, constatou-se o que Prodi denomina obrigatoriedade em
consciência da lei positiva.
Em vista disso, o fenômeno do legalismo ainda não era capaz de dissolver a união entre
Direito e Moral. Tinha-se, ao século XV, sob os preceitos teológicos da dualidade entre a
Virgem Santíssima e o pecado de Eva, na retidão moral que significava o papel de esposa e
mãe, o único espaço aceito para a mulher dentro da sociedade; que a todo tempo inquiria no
corpo feminino a sede maior do pecado carnal.
57
Com base no exposto, é neste cenário crítico, embebido em medo - que, por sua vez, era
algo regente das políticas seculares e eclesiásticas-, que na Alemanha do século XV é divulgado
o “Malleus Malleficarum- O Martelo das Feiticeiras”, obra que fundamentava sua autoridade
na bula papal Summis desiderantes affectibus e nas obras dos santos da Igreja. Verifica-se nele
um manual de inquisição direcionado a provar a existência da bruxaria no mundo, ali eleita
como o pior dos males que afligiam a sociedade, a pior das heresias, na medida em que
representava um lugar de ação direta do Diabo e que, portanto, deveria ser combatida. Por isto,
o Livro desenvolve um processo inquisitorial especial.
E, neste processo, revelava-se o discurso do controle da sexualidade medieval como
instrumento de cristianização, que passa pelo controle da mulher, tida como mais atrativa à
tentação, para temer a mulher como se temia a sexualidade, revelando-se a predominância da
pauta sobre a observância da conduta e da Moral sobre os ritos da religião cristã (PORTELA,
2017, p. 273).
O Malleus, tanto no interior do seu texto, quanto na ratificação do livro pelos doutores
da Universidade de Colônia, conforme identificado, faz menção direta à necessidade de sua
efetivação também pelo poder secular. Por conseguinte, foi consciente e expressamente um
incentivo à consolidação do tribunal da consciência, tendo recebido o reconhecimento disto.
Conforme averiguado, por meio do Manual de inquisição às bruxas, buscava-se efetivar
a doutrina oficial da Igreja em detrimento do aumento do processo de exclusão social das
categorias já marginalizadas na sociedade medieval, como eram as mulheres. Deste modo,
verificado o caráter jurídico do conteúdo do Malleus, abre-se o questionamento sobre a
instrumentalização política da marginalização e sobre o Direito como forma de propiciá-la.
Verifica-se também, a partir da força com que o Malleus ganhou na Alemanha, a
abertura ao questionamento se haveria ligação entre a tese de que a Jurisdição Civil não é a
competente para julgar o pecado oculto- julgado por clérigos, e o aparecimento da Reforma
Protestante com Lutero. Ora, se só Deus pode punir a consciência, deve-se reportar-se a ele, em
última instância, de forma direta, e não mais pela mediação do corpo da Igreja. O que encontra
ressonância na perspectiva de Berman (2003, p. 6), no segundo volume de Direito e Revolução,
de que a Reforma Luterana foi uma reivindicação do fim da jurisdição eclesiástica.
Ainda, o desenvolvimento desta pesquisa possibilitou perceber, dentro do processo de
fortalecimento da tese de que somente Deus poderia expurgar o pecado, a permissão para que
se separassem as esferas do Direito e da Moral. Isto é, converge para a perspectiva do iluminista
58
alemão Thomasius, que se opõe ao tribunal da consciência para definir a ação humana como
dividida entre a vida interior e a vida externa; onde a primeira demonstra o homem como juiz
interior de sua conduta, inexistindo, por isto, um foro externo a se recorrer, mas somente o
interno, da Moral; e a segunda representa a vida em sociedade, a harmonização do agir dos
indivíduos sob tutela da autoridade superior, ou seja, o Direito, com a exterioridade como
atributo (REALE, 1999, p. 653-654).
O Malleus Maleficarum, então, representa o apogeu do poder da Igreja, mas abre
caminho para a sua derrocada no século XVI com a Reforma Protestante e, no século XVII,
para fomentar a separação, como em Thomasius, entre Direito e Moral.
59
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