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SacerdoteS 02

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O Sacerdote da Alma

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O Livro do Destino foi reescrito. Novos tempos vieram, tempos em

que o grande Mago Morton já não vive, mas que só foram possíveis

graças ao seu sacrifício.

Onde deveria haver somente escuridão e dor, ainda há luz e esperança.

Mas a era das sombras não foi completamente evitada, foi apenas

adiada. Mon continua preso no Exílio, mas seus sussurros ainda che-

gam aos ouvidos daqueles que têm a sombra em seus corações. E ele es-

tá lá, sussurrando, lutando para novamente se ver livre e cumprir sua

vingança contra os Elementos da Vida e seus protetores. E ele já tem

um novo e poderoso aliado que prossegue com os planos, que age em

segredo, e que está infiltrado em um dos três Elementos.

Mas a vida em Gardwen prossegue como se jamais fosse se alterar.

Tremendo engano. Os homens de Roldur continuam construindo seus

barcos e se aventurando no mar; no reino de Covarmen, os dragões

treinados ainda voam quilômetros antes de saborearem uma refeição.

As cataratas em Nishui ainda roncam sem parar e as lagartas conti-

nuam se isolando em seus casúlos para sofrerem a metamorfose que

lhes foi imposta.

Os ciclos de Gardwen prosseguem sem interrupção, mas está chegando

a hora em que esses ciclos serão destruídos. Felizmente Morton já ti-

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nha tudo planejado antes de morrer e ele já contava com os Sacerdo-

tes. Agora está tudo nas mãos deles. O destino de Gardwen está em

jogo e as peças já se movimentam. De um lado do tabuleiro está Mon,

exilado, mas contando com a ajuda de seus seguidores secretos e traí-

ras; do outro lado está Morton, morto, mas cujos planos que traçou

jamais foram abandonados por seus amigos. O destino de Gardwen es-

tá em jogo…

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Capítulo 2 – O Sacerdote da Alma

Nai-Elkens observava uma bela alma verde voando por entre as árvo-res do Bosque da Alma. Estamos nos Domínios da Alma. Alma. A forma de vida mais pura. Todos temos uma alma, pois todos somos uma alma. Não encarnados, são seres com aparência de pássa-ros, mas são formados por uma luz que emana de seu interior. Não podemos julgar uma alma, pois enquanto estamos vivendo sob uma forma corpórea, não sabemos ou conhecemos nada que nossa alma sa-be, portanto, devemos ter consciência de que uma alma sempre está certa. Quando morremos, nossa alma abandona o corpo sem vida e vai para os Domínios da Alma, lugar onde fica aguardando até a hora de reencarnar em um novo corpo. A alma verde que Nai-Elkens observava pousou num arbusto diante dele. Não era a primeira vez. Na verdade isso já tinha se tornado um costume, tanto dele quanto da alma. O bosque era o ponto de encontro dos dois. Nai-Elkens é um Sacerdote da Alma. Apesar de um homem formado, não passa de um jovem imaturo aos olhos de seu tutor. Imaturo não no sentido de irresponsabilidade ou mesmo infantilidade, imaturo por ainda não estar preparado para carregar o fardo que já é destinado a ele. Elkens crescera de um modo muito diferente dos demais protetores nos Domínios da Alma. Não um modo estranho, apenas incomum. Raro. Esse seu modo de vida diferente também o transformou em alguém di-ferente. Uma pessoa que ainda não foi tocada pela maldade de Gar-dwen, que não tem nenhuma forma de pensamento ou sentimento ruim em seu coração. Elkens jamais sofreu, jamais soube o que é sentir

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uma dor diferente daquelas que sentia durante seus treinamentos. Não sabe o que é raiva, solidão, ambição, vingança… Na verdade ja-mais sentira algo semelhante. Ele é o exemplo de uma pessoa perfeita, cuidadosamente talhada e sempre ensinada com carinho. Seu tutor reconhecia que isso o tornou forte o bastante para enfrentar as trevas, pois jamais seria seduzido por elas. Jamais! Mas também reconhecia outra conseqüência disso: sua fragilidade. Elkens nunca sofreu. Nunca teve a chance de se fortalecer através do sofrimento. Por isso é ao mesmo exemplo de força e fragilidade. Dois extremos concentrados em um único ser. Seus olhos castanhos são tão verdadeiros, tão transparentes… Seu tutor sempre lhe dissera que é a sinceridade em seu olhar, a pureza e a bondade que tanto atraía as almas que procuravam conversar com El-kens, assim como esta que estava diante dele mais uma vez. Elkens e a alma estavam se comunicando mentalmente. Estavam con-versando. Sendo um Sacerdote, Elkens tem mais facilidade para com-preendê-las. Mas isso não quer dizer que ele as compreenda por com-pleto. Na verdade está longe disso. Quando a alma deixou-o falando sozinho e voou para longe da sua vista, virou-se confuso para seu tu-tor: — Senhor – sua voz era suave, transpassava calma. – Não consigo compreender esta alma. Ela sempre me diz o quanto sente falta do mundo de fora, de Gardwen, mas diz que tem medo de reencarnar em um novo corpo. O tutor de Elkens estava sentado com as costas apoiadas em uma das árvores do bosque. Em sua sombra ele não fazia nada além de medi-tar. O bosque é o local ideal para isso, um local tranqüilo e sossegado, onde inclusive as almas gostam de passar os dias sempre muito quen-tes. Com os olhos fechados, o tutor de Elkens se perdia em seus pen-

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samentos tão longínquos no tempo, viajava por épocas que jamais voltariam, e sentia imenso prazer com cada uma de suas lembranças. — Senhor Kalimuns! – Elkens voltou chamar sua atenção, um pouco mais alto para que o ouvisse desta vez. Kalimuns abriu os olhos. O respeitado Mestre da Alma encarou seu pupilo com um sorriso no rosto. — Me desculpe – disse ele ainda sorrindo. – Não te ouvi de novo, não é? Elkens também sorriu e assentiu. — Estava pensando em Morton? – perguntou sem rodeios. Kalimuns apenas concordou com um leve aceno de cabeça. Sorriu ao ouvir o nome do antigo amigo, mas seus olhos de repente perderam o foco ao que mais uma lembrança lhe aflorou à mente. — Eu sempre sei quando está pensando nele – Elkens admitiu. – Sei o quanto ele foi importante para o senhor… — Não só para mim – disse Kalimuns após um longo suspiro. – Você conhece toda a história e acredito não ser necessário contá-la mais uma vez. Mas deixemos o meu velho amigo de lado. Sobre o que esta-va falando? Elkens levou alguns segundos para se lembrar. Quando o fez, contou a seu tutor sobre os encontros que costumava ter sempre com a mesma alma verde. Contou tudo o que ela costumava lhe dizer, da vontade que sentia de caminhar sobre Gardwen novamente, mas também do medo inexplicável que tinha de fazer isso. — Não procure entender uma alma quando isso não for possível – respondeu Kalimuns após ouvir toda a história com paciência. – Ela deve ter coisas em seu passado, em uma de suas vidas passadas, coisas de que ela tem medo.

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Elkens meditou por algum tempo. Ele gostava de conversar com al-mas, e quando tinha tempo passava o dia todo fazendo isso. Mas aquela alma era a única que sempre procurava por Elkens para con-versar com ele. Era a única que insistia em conversar com Elkens, dia após dia. Kalimuns já reparara no curioso fato, embora Elkens não atribuísse nada de especial a isso. Não era comum almas fazerem ami-zades, mas era quase isso que a relação entre os dois parecia. Elkens sempre vinha ao Bosque da Alma, e aquela alma sempre vinha até ali para vê-lo. Apesar de ele não compreender direito o que a alma lhe di-zia, os dois já tinham uma espécie de ligação. — O nome dela é Nai-Peleguir – Elkens informou. – Diz que faz muito tempo que não volta a Gardwen, e que sente saudades. Mas ela não me diz o motivo do seu medo. — Alguma coisa ruim deve ter acontecido para ela em sua última en-carnação – disse Kalimuns observando uma grande alma azul que passou voando entre eles, desaparecendo em seguida entre os troncos das árvores. – Geralmente as almas dizem que não gostam das coisas que vêem no mundo corpóreo, dizem que há muita maldade no mundo, mas em sua maioria elas não resistem e acabam voltando. Na verdade voltando rápido demais. Imagino que Nai-Peleguir esteja realmente querendo voltar ao mundo corpóreo, mas ainda não superou seja lá o que for que a deixou com medo. É difícil uma alma ter tanto medo as-sim, e com certeza poderíamos descobrir muitas coisas importantes em seu passado, mas não podemos fazer isso a não ser que ela nos permi-ta. — Queria poder ajudá-la a superar seu medo e voltar para o mundo corpóreo – disse Elkens. – Sei que há muita coisa ruim em Gardwen, mas também há muitas coisas boas e ela só poderá se aproveitar disso se reencarnar em um novo corpo. Queria realmente poder ajudá-la…

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— Você é um Sacerdote da Alma, Elkens. Poderá fazer isso quando chegar a hora, mas somente se Nai-Peleguir pedir sua ajuda. O comentário de Kalimuns pôs fim ao assunto, pois Elkens não vol-tou a insistir nele. Na verdade já havia outra coisa em sua mente; a mesma coisa em que pensava sempre que Gardwen era mencionada. Sempre a mesma coisa. O mesmo desejo antigo que tomava conta de seu corpo. Aquele desejo que quase chegava a ser uma ambição. O de-sejo que lhe consumia todo dia. Todo dia desde que se entendia por gente. — Senhor… – Elkens começou calmamente. O brilho de desejo em seus olhos contou à Kalimuns sobre o que Elkens ia falar, assim como ele já sabia. É claro que sabia. Depois de infinitos dias entrando sem-pre no mesmo assunto, sempre do mesmo jeito cauteloso como se te-messe dizer algo que não tinha direito… sempre com a falsa inocência na voz, como se realmente não quisesse dizer nada a Kalimuns com suas palavras. Mas queria. Sempre queria. Embora não dissesse aber-tamente, Kalimuns sempre sabia que Elkens se controlava para não pedir. Mas de qualquer maneira o pedido estava oculto por trás de su-as palavras. Apenas oculto, não completamente escondido. Ele estava ali como sempre esteve, mas Kalimuns sempre fingiu não percebê-lo. – As almas me contam que no mundo lá fora o céu é azul, mas não é como aqui. Elas dizem que durante o dia há nuvens e que durante a noite ele fica pontilhado de estrelas… Kalimuns apenas sorriu enquanto ouvia seu pupilo, então Elkens con-tinuou em seu tom sonhador: — Dizem também que durante o dia há uma grande bola de fogo no céu… — É Tunmá – explicou Kalimuns sorrindo. Elkens já sabia disso. É claro que sabia. Elkens nem imaginava o quanto era um péssimo ator,

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completamente incapaz de mentir. – Como era chamada nos dias an-tigos. Atualmente os humanos a chamam de Sol. Kalimuns olhou para Elkens, mas seu discípulo desviou os olhos. Ele sabia no que Elkens estava pensando. Percebeu algo diferente desta vez. Percebeu que hoje Elkens resolveu ir um pouco mais além. Ka-limuns percebeu que hoje ele faria a pergunta, o pedido, mas resolveu aguardar. Mas como também já sabia, não aguardou por mais que al-guns segundos, pois hoje Elkens parecia realmente determinado a pe-dir: — Senhor… – ele começou num tom de quem ainda procura pelas pa-lavras, embora elas já estivessem na ponta de sua língua. – Será que eu poderia ver…? Kalimuns não respondeu instantaneamente. Elkens foi seu Aprendiz e hoje é um Sacerdote da Alma com quatro pingentes. Sob ordens de Kalimuns, ele nunca saiu dos Domínios da Alma. Nunca. Ele nasceu ali dentro e desde então foi treinado por Kalimuns, sem jamais sair dos Domínios e conhecer Gardwen. Dentro dos Domínios também ha-via dia e noite, mas era apenas um reflexo do mundo lá fora. Não ha-via nuvens, nem estrelas, nem nada. Elkens passou sua vida toda conversando com almas e elas lhe contavam como se lembravam do mundo, e a cada conversa Elkens tinha mais vontade de sair dos Do-mínios. Esse era o seu maior desejo: Gardwen. Kalimuns levantou-se, ainda sorrindo, então disse de forma muito calma: — Estava apenas esperando você me pedir, Elkens. Tem a minha au-torização para sair dos Domínios da Alma e ir para Gardwen.

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Elkens nem conseguiu sorrir. Estava descrente demais do que ouvia para conseguir ter qualquer reação. Iria a Gardwen. Se soubesse que era assim tão fácil teria pedido pelo menos um ano antes. Ou dois. — Obrigado senhor Kalimuns – disse finalmente. Elkens esperou toda sua vida por esse momento. Nunca entendeu por que Kalimuns não permitia que ele saísse dos Domínios da Alma, mas sempre respeitou as ordens de seu tutor. Quando ainda era um Apren-diz, ficava aborrecido cada vez que um Aprendiz saía e lhe contava coisas sobre Gardwen, mas desde que se tornou um Sacerdote da Al-ma, decidiu aguardar pacientemente que Kalimuns lhe autorizasse a sair. Mas seus constantes encontros com a alma Nai-Peleguir acaba-ram quebrando sua paciência. Apesar do medo que dizia sentir de Gardwen, as coisas que Nai-Peleguir lhe contara eram as mais mara-vilhosas possíveis. — Eu vou acompanhá-lo – disse Kalimuns. Os dois caminharam juntos para a saída do bosque, descendo para o vale. No vale fica o Santuário Rubi, o centro de todos os Domínios da Alma e onde está o portal para o mundo de fora. Assim que saíram do Bosque da Alma, Elkens e Kalimuns encontraram uma escada de rubi, que levaria até o santuário no fundo do vale. O santuário era todo feito de rubi, do chão ao teto, e era enorme. Altos pilares de rubi eram postos em cada uma das entradas do santuário e era ali que todos os protetores da Alma viviam. Kalimuns e Elkens entraram no santuário e encontraram vários pro-tetores lá dentro, mas seguiram sem interrupções até o centro do San-tuário Rubi, onde havia uma bela fonte de água cristalina, que brota-va nas profundezas dos Domínios da Alma. Aquela água é a mais pu-ra de todo o mundo, além de ter muitas propriedades mágicas. Nas ar-tes da cura, nenhuma poção ou feitiço tem um poder como o daquela

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água. Ela é capaz de curar qualquer ferimento ou envenenamento, além de dar forças e esperança a quem a bebe. Kalimuns parou ao lado da fonte, colocou a mão sobre seu colar de rubi e disse: — Sabe o que fazer – então desapareceu. Elkens colocou a mão sobre seu colar e fechou os olhos. Era a primeira vez que realizaria o feitiço para sair dos Domínios da Alma e mal po-dia acreditar nisso. Assim que executou o feitiço, ele sentiu seus pés deixarem o chão e seu corpo viajou pelo vazio por um décimo de se-gundo, mas logo voltou a tocar o chão. Mas desta vez não era o chão do Santuário Rubi. Apesar de sentir que estava pisando sobre algo maciço como pedra, sentia também que nunca pisara ali antes. Ele abriu os olhos, ansioso para ver Gardwen pela primeira vez, mas sem que esperasse, uma claridade muito forte atingiu seus olhos, obri-gando-o a fechá-los novamente sem que tivesse tempo para ver qual-quer coisa. Mas mesmo com os olhos fechados ele sentiu o prazer de finalmente estar ali. Sentiu um aroma doce, de alguma flor que nunca havia sentido antes, e teve também uma deliciosa sensação: o vento acariciou seu rosto, fazendo seus cabelos castanhos esvoaçarem-se. Achou que a sensação do vento batendo em seu rosto era a melhor coi-sa que já havia sentido em toda sua vida. — É Tunmá – ele ouviu Kalimuns dizendo ao seu lado. – É a primei-ra vez que você vê a claridade de Tunmá, por isso seus olhos doem. Mas pode abri-los agora. Elkens abriu os olhos e ficou surpreso com a primeira visão que teve do mundo de fora. Estavam na beira de um precipício, entre quatro pi-lares de pedra que apontavam para o céu, e a pedra no chão, sobre a qual eles pisavam, continha o símbolo da Alma gravado nela. Cami-nhou até a beira do precipício e viu um vasto bosque no vale lá em

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baixo, estendendo-se para todas as direções. Olhou para frente e viu o esplendor das montanhas além, que eram tão altas que pareciam ser capazes de tocar as estrelas do céu durante a noite. Elkens então olhou para trás e viu que Kalimuns ainda estava parado entre os quatro pilares de pedras. Atrás deles havia muitas árvores, e além delas Elkens não sabia o que havia. — Vamos? – Kalimuns lhe sugeriu indicando a floresta as suas cos-tas. Elkens e Kalimuns entraram na floresta, onde a luz de Tunmá tinha dificuldades para tocar o chão. Passaram por árvores belas, pequenas e altas, e seguiram pelo chão íngreme da floresta, supostamente des-cendo da montanha onde estavam. Andaram por um bom tempo, e El-kens ficou maravilhado com o que via, mas então pararam para des-cansar numa clareira, ao lado de um pequeno riacho de águas cristali-nas. A luz de Tunmá entrava pela clareira e atingia o riacho, e este re-fletia sua luminosidade. Peixes coloridos correram pelo riacho quando Elkens se aproximou, fugindo dele, e três ou quatro borboletas vieram para verificar quem estava ali. As borboletas pousaram no braço de Elkens, atraídas pelo seu suor, mas voaram para longe assim que ele se moveu. — Senhor Kalimuns – começou Elkens ainda maravilhado – como Nai-Peleguir pode ter medo de um lugar tão maravilhoso como esse? — Não deve julgar o mundo por sua aparência, Elkens, mas também não deve achar que ele é mau apenas por minhas palavras. O que que-ro dizer é que nem tudo é tão maravilhoso e tranqüilo quanto parece ser. Vivemos em um mundo de equilíbrio: nem maldade nem bondade são superiores. Quanto mais você gostar de algo, pode ter certeza que irá odiar outra coisa com igual intensidade. Quando não houver mais

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este equilíbrio, quando apenas um dos lados prevalecer, nós, os pro-tetores, não existiremos mais. — O que quer dizer? – Elkens perguntou, fingindo preocupação. Mas apenas fingindo. Não havia como sentir-se preocupado com a intensa alegria que sentia neste momento. Não era capaz de sentir dois senti-mentos tão opostos em quantidade considerável. A alegria que sentia agora tomava conta de todo seu coração, não deixando espaço para qualquer outro sentimento. Kalimuns sentou-se numa raiz sobressalente de uma árvore e estendeu a mão para que uma borboleta pousasse ali, então suspirou e respon-deu: — Estamos aqui apenas por causa desse equilíbrio, e tentamos deixar o bem ao menos equilibrado com o mau. Se algum dia um dos dois pre-valecer, nós não existiremos mais. Se o mal prevalecer, nós seremos destruídos por seu poder, pois precisaremos enfrentá-lo. Mas se o bem prevalecer, nós não seremos mais necessários. Gardwen não precisará de nós para protegê-la, pois o mau não existirá mais. Elkens não quis pensar muito nisso, era um assunto complexo para se pensar, então resolveu mudar de assunto: — Queria ver alguma fera – disse ele desejoso. Ele conhece toda for-ma de ser vivo, pois essa é sua obrigação como Sacerdote da Alma. Mas conhece apenas através de desenhos. Nos subsolos do Santuário Rubi as paredes são cheias de figuras de todo tipo de ser vivo, pois ali estão representadas todas as formas de vida que uma alma pode assu-mir quando reencarnava em algum corpo. A partir de agora Elkens poderia se tornar um Sacerdote da Alma de verdade, pois, apesar de Kalimuns ser eternamente seu tutor, ele deveria primeiramente obede-cer a qualquer alma no mundo corpóreo. Como Sacerdote da Alma, ele tem o dever de ajudar as almas naquele mundo, qualquer alma que re-

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corresse a sua ajuda. O fato de Kalimuns deixá-lo sair dos Domínios da Alma agora significava exatamente isso: que Elkens estava livre e preparado para ajudar qualquer alma que pedisse sua ajuda. Agora sim reconhecia a si próprio como um legítimo Sacerdote. — Senhor – Elkens começou após algum tempo meditando. – Queria que Nai-Peleguir pedisse a minha ajuda. Acredito que posso fazê-la perder o medo de um lugar tão maravilhoso quanto esse. Sei que posso ajudá-la, mas sei também que devo esperar ela me pedir ajuda. — Você descobrirá Elkens – Kalimuns disse – assim como muitos descobriram antes, que você não pode em hipótese alguma alterar o destino de uma alma, são elas que mudam o nosso. Nós é que somos influenciados por elas, e não o contrário. Nunca o contrário! Elkens e Kalimuns voltaram a andar pela floresta. Tudo era belo e surpreendente para Elkens, que ficava cada vez mais encantado en-quanto andavam. Elkens chegou a ver alguns pequenos animais e fi-cou contente por isso. Tudo ali era maravilhoso para ele. Tudo era perfeito. As pedras, a água, as árvores, os animais, o vento, o céu, Tunmá… tudo era novi-dade para Elkens e tudo o fascinava. O ar que respirava parecia mais leve, e o vento que lhe acariciava era a melhor sensação que poderia sentir. Gostava de ouvir sons ao longe, de algum animal assustado que fugia ao pressenti-los, ou mesmo outro som que não pudesse iden-tificar, mas até mesmo o som de gravetos se partindo sob seus pés pa-recia novidade. E assim as horas passaram. Kalimuns sempre andava a frente, conduzindo-o em meio à floresta que agora chegava ao pé da montanha, mas que continuava se estendendo pelos lados, chegando ao vale e além.

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É incrível como o tempo passa rápido quando estamos fazendo algo que nos agrada. Elkens nem percebeu quantas horas já haviam se pas-sado desde que saíram dos Domínios da Alma; não tinha a menor consciência de que o portal para o seu lar havia ficado quatro ou cinco horas para trás. Mas continuava tão maravilhado com cada detalhe que via que poderia ficar dias ali sem nem ao menos pensar em voltar. Voltar era a última coisa que ele queria agora. Ficou anos esperando por aquilo, sua vida toda para ser mais exato… Agora que finalmente pisava sobre Gardwen não tinha a menor von-tade de voltar. Nem a mais remota possível. Sem que percebesse, havia tomado a dianteira e agora era ele quem in-dicava o caminho por onde seguiam. Kalimuns ia logo atrás dele, rin-do de seu pupilo e enxergando, hoje mais do que nunca, a criança den-tro dele que nunca chegou de fato a existir. Mas a enxergava perfei-tamente agora. Enxergava-a através dos olhos castanhos e verdadei-ros de Elkens. Olhos de uma criança no rosto de um homem. O vento entrou na floresta mais uma vez e Elkens fechou os olhos as-sim que sentiu o seu toque. Não era a primeira vez que fazia isso, tampouco seria a última. A sensação era boa demais para não ser aproveitada em sua plenitude. Kalimuns apenas ria, sem nada dizer. Logo após o vento desaparecer, houve um momentâneo manifesto de magia no ar. Elkens percebeu de imediato, assustando-se. Olhou para Kalimuns, cuja expressão continuava tranqüila, então relaxou um pouco. Apenas um pouco. Um lampejo de luz se fez presente entre os dois, mas desapareceu tão rápido quanto surgiu. Um pequeno ponto de luz anil permaneceu no ar, flutuando a frente de Kalimuns. O pon-to de luz dançou no ar, enquanto ia lentamente se consumindo. — É uma mensagem…

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Elkens estava surpreso. Teria reconhecido o feitiço antes, mas a cor dele o confundiu por um segundo. É claro que era uma mensagem má-gica. Já havia visto tantas… Mas a cor continuava a lhe deixar con-fuso. Era anil. Não era rubro. Era anil! Entre os três Elementos da Vida há algumas diferenças quanto a sua apresentação e identificação. A mais notável delas são as cores. Alvo para a Magia. Anil para o Tempo. Rubro para a Alma. Mas a mensa-gem diante deles não era rubra. Não vinha de um protetor da Alma. Era anil. Vinha do Tempo. Kalimuns deu um passo à frente e estendeu a mão para que o pequeno ponto de luz pousasse ali. Assim que o fez, Kalimuns prestou atenção à mensagem que era destinada a ele. A mensagem foi passada, de mo-do que Elkens não viu ou ouviu nada, afinal de contas não era o des-tinatário. O brilho anil consumiu-se por completo nas mãos de Ka-limuns após ter cumprido seu objetivo. Elkens esperou que seu tutor dissesse algo, mas este não o fez. Elkens esperou mais alguns segundos, mas Kalimuns continuava reservado, com a mesma expressão de tranqüilidade no rosto, como se nada esti-vesse acontecendo, então não agüentou mais e perguntou: — Senhor Kalimuns? Está tudo bem? — Perfeitamente – respondeu seu tutor abrindo um largo sorriso. – Tudo conforme o esperado. — E de quem era aquela mensagem? O que ela dizia? — Ah, não se preocupe quanto a isso. A mensagem veio de Arkas, um Mensageiro do Tempo. Você não deve conhecê-lo; esteve nos Domínios da Alma raras vezes desde que você se tornou meu Aprendiz. — E o que dizia a mensagem? — Que ele está vindo nos encontrar.

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Dois minutos se passaram. Nenhuma palavra foi trocada entre tutor e pupilo. Kalimuns continuava agindo tranquilamente, mas Elkens estava se sentindo um pouco tenso. Esse tal Mensageiro não teria vindo dos Domínios do Tempo até os Domínios da Alma por pouca coisa. Algo realmente importante devia estar acontecendo, algo que não podia esperar até a noite quando Kalimuns provavelmente já es-taria de volta aos seus aposentos. Um repentino som atrás deles e o Mensageiro finalmente chegou. Suas vestes anis chamaram atenção assim que despontou de trás das árvo-res. Realmente era um protetor do Tempo, não havia dúvidas. O colar com uma pedra de safira e alguns pingentes lhe pendia do pescoço, confirmando ser de fato um Mensageiro do Tempo. — Que bom que pude alcançá-lo, Mestre Nai-Kalimuns – disse o ho-mem quase sem fôlego. – É um prazer revê-lo. Ao contrário de Elkens, Kalimuns não parecia nem um pouco surpreso que aquele homem tivesse ido encontrá-los. Era como se já esperasse por sua visita. E não havia nem ao menos o menor traço de curiosida-de no rosto de Kalimuns. Aquele encontro não parecia ter sido casual, parecia que estava marcado há dias. Anos talvez. Mas não estava. Pelo modo como Arkas se apresentava e agia, Elkens percebia que na-da estava marcado. Ao menos ela não tinha conhecimento disso. Mas ainda assim a impressão de que Kalimuns já esperava por aquela visi-ta não saía da cabeça de Elkens. Conhecia seu tutor. Como não conhe-ceria? Todos aqueles anos que passou sob os cuidados e ensinamentos de Kalimuns, convivendo e aprendendo com ele. Aprendendo sobre ele. Podia ser um completo ignorante quanto a muitas coisas, não negava isso. Reconhecia o quanto desconhecia o mundo. Mas o mesmo não podia dizer de Kalimuns…

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Conhecia o homem a sua frente. Conhecia bem até demais para saber que ele não estava surpreso. Nem remotamente. — É um prazer vê-lo também, Mensageiro Arkas – Kalimuns res-pondeu. – Eu estava a sua espera! E sua frase apenas confirmou o que Elkens já sabia antes de ela ser dita. — Estava? – perguntou o Mensageiro do Tempo intrigado. Esperou que Kalimuns se explicasse, mas ele não o fez. Seu típico hábito de deixar a pessoa esperando pela resposta que não daria. Elkens já era acostumado a isso, mas aparentemente Arkas não. Esperou uma ex-plicação por mais algum tempo e sentiu-se meio constrangido ao ver que ela não viria. Mas isso não importava agora. Arkas estava ansio-so para contar as boas novas. Não correra por quilômetros floresta adentro à toa. – O senhor deve estar estranhando a minha visita tão inesperada, mas é que aconteceu algo realmente importante. Faz ape-nas algumas horas… Elkens prestava atenção às palavras de Arkas. Faz apenas algumas horas… Mas ele estivera com Kalimuns por mais que algumas horas. Por que ele mantinha aquela expressão de que sabia do que o assunto se tratava? Ele não sabia. Não tinha como saber. Mas não importava o que fosse, com certeza era algo muito bom. Elkens enxergava a ale-gria tão visível em Arkas, a mesma alegria que Kalimuns tentava inu-tilmente conter. — Os Domínios do Tempo – começou Arkas abrindo um grande sorri-so. – Finalmente foram abertos… Elkens recebeu a notícia com tanta surpresa que até mesmo o ar lhe faltou por um segundo. Sendo um protetor, tinha conhecimento de que os Domínios do Tempo estavam selados desde que o Mago Morton morrera. A morte de Morton foi discutida por muito tempo, Elkens se

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lembrava. Em todo canto não se falava de outra coisa. O ataque aos Domínios do Tempo. O Guardião traidor. Os kenrauers. A morte de Morton… Mas o que fez a história ganhar tanto crédito foi o fato de ela marcar o fim do Mago tão respeitado, uma morte tão trágica quanto comple-xa. Naquela época pouco se sabia sobre alma-guardiã, e normalmente apenas os protetores da Alma sabiam a respeito. Mas depois do ocor-rido, não havia um Aprendiz sequer que não soubesse sobre isso. Al-ma-guardiã, a alma escolhida por um Elemento para ser o seu maior protetor, a alma em que confia plenamente. Quando esta alma aban-dona Gardwen, o Elemento passa a se sentir desprotegido, por isso é lacrado automaticamente até que sua alma-guardiã reencarne em um novo corpo. E foi justamente o fato de Morton ter a alma-guardiã do Tempo que o transformou definitivamente numa lenda eterna. Mas já haviam se passado quinze anos. Quinze anos desde a morte do Mago do Tempo. Quinze anos desde aquela terrível batalha que inclu-sive Kalimuns participou. Elkens não saberia disso ainda, mas o Mensageiro diante dele também havia participado da última batalha de Morton. — Sabe o que isso significa? – Arkas perguntou, mal se contendo de tanta alegria. — Obviamente que sei Arkas – respondeu Kalimuns. – A alma de Morton finalmente reencarnou em um novo corpo. O sorriso de Arkas aumentou de tamanho ao ouvir a confirmação da boca do próprio Kalimuns. — Mifitrin diz que quer procurá-lo, e eu pensei que talvez… — Não podem fazer isso! – Kalimuns repreendeu-o seriamente. Sua expressão, que era radiante até um segundo atrás, fechou-se com serie-dade. A mesma seriedade que Elkens viu em seu rosto apenas umas

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poucas vezes em toda sua vida. – Vocês devem entender que o Mor-ton que conhecíamos morreu há quinze anos e ele jamais voltará. A alma dele pode ter reencarnado em qualquer criança, menino ou meni-na, de qualquer raça, ou mesmo em algum animal ou planta… É me-lhor não tentarem procurá-lo, pois de nada adiantará. Além disso, precisarão da ajuda de um protetor da Alma para encontrá-lo, e posso garantir que ninguém lhes ajudará para esse propósito. Isso é algo que não deve ser feito. Definitivamente não pode ser feito. Isso ainda po-derá comprometer a segurança deste novo indivíduo. Mesmo sem sa-ber, mesmo que nunca saiba, ele ainda tem e sempre terá a alma-guardiã do Tempo e carrega uma grande responsabilidade. Indepen-dente de quem seja, de onde esteja ou do que faça, a reencarnação de Morton deve permanecer viva. Elkens achou nunca ter visto uma mudança de humor tão brusca e re-pentina. Da alegria exuberante a uma profunda decepção. Arkas pa-recia ter recebido uma condenação por mau uso da magia ou coisa do tipo. Foi quase como lhe tirar o colar que carregava ao peito e o quali-ficava como um protetor. Mas Kalimuns não demonstrou qualquer compaixão, esperando assim que Arkas tirasse aquela idéia absurda da sua cabeça de uma vez por todas. Elkens também pensava como Ka-limuns, é claro, mas achou que seu tutor poderia ter sido um pouco menos severo. Arkas não era um protetor da Alma, portanto nunca se aprofundara nos estudos que envolviam aquele Elemento. Nunca che-gou realmente a pensar nas conseqüências que seu desejo traria, mesmo que remotamente. Mas havia outro ponto à favor de Kalimuns: fora o melhor amigo de Morton. Até mesmo ele seria perdoado por desejar procurar a reencarnação de Morton, seria ao menos compreensível, mas ainda assim jamais pensaria nisso.

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— Mas não é só isso – disse Arkas querendo mudar de assunto, em-bora ainda estivesse muito ressentido. Levou um instante para encon-trar as palavras. – Muitas coisas estão acontecendo. Os quatro Sábios do Tempo pedem que o senhor compareça à Convocação Elementar que será realizada amanhã. Eles dizem que sua presença é de suma impor-tância e que juntos tentaremos descobrir o que as coisas que estão acontecendo agora têm a ver com a morte de Morton. Kalimuns confirmou com a cabeça que iria. Meditou brevemente, en-tão desviou os olhos do Mensageiro para Elkens. — Vou acompanhar Arkas de volta até os Domínios da Alma… Elkens assentiu, mas se apressou em dizer: — Eu queria ficar mais um pouco, senhor, se não houver problema. Queria poder ficar até o anoitecer para poder ver Listel, a lua. Kalimuns já esperava por aquilo. Apenas voltou a sorrir e concordou, autorizando Elkens a ficar.

Kalimuns e Arkas regressaram imediatamente, deixando Elkens sozi-nho. Observou os dois desaparecerem entre as árvores pelo caminho de volta, e esperou até que não os ouvisse mais. Agora sim estava sozi-nho, apesar de não se sentir nem um pouco solitário. Como podia se sentir só? Não estava só, estava com Gardwen. Ele podia senti-la. Podia sentir a vida tocando-o, a vida presente à sua volta. Sob seus pés e também acima de sua cabeça. O mundo era vivo, disso ele não tinha dúvidas. Podia sentir Gardwen com tanta intensidade que qua-se podia ouvir sua voz no vento. Quase entendia o que ela falava. E quase respondia.

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Seus pés voltaram a conduzi-lo sem realmente ter um destino. Para onde fosse, para onde quer que olhasse, veria coisas novas e surpreen-dentes, como tudo o que vira até agora. Andou por um período de tempo que jamais seria capaz de calcular, podendo variar de minutos a horas. Não conseguia saber. Só tinha consciência de que aquele dia lo-go chegaria ao fim. Tunmá ainda continuava no céu, brilhando para todos, mas já fazia seu trajeto rumo ao horizonte, aonde iria se pôr. E os pés de Elkens o levaram para aquela direção. Finalmente chegou ao fim da floresta. Cruzou as últimas árvores e viu uma grande área de pasto diante dele, que se estendia a perder de vista até que se encontrava com Tunmá no horizonte, que já tocava o chão. Tunmá estava se pondo. Elkens nem soube descrever o que via. Não havia palavras para isso, ele pensou. Havia apenas mais uma árvore a sua frente, que crescera solitária um pouco afastada da floresta. Elkens caminhou até ela, com os olhos ainda presos no horizonte tingido de vermelho e ouro. Subiu num de seus galhos mais próximos ao chão e de lá continuou subindo, chegan-do próximo à copa, onde se acomodou; lá encontrou frutas. Só então se deu conta da fome que sentia. A sabor não era dos melhores, talvez estivesse até mesmo em processo de podridão. Mas hoje Elkens poderia comer até mesmo terra que apreciaria o gosto do mesmo jeito. Estava tão feliz que tudo parecia maravilhoso aos seus olhos. Absolutamente tudo. Nem imaginava o quanto isso era bom, desfrutar um dia tão bo-nito quanto aquele. Realmente bom, pois os dias que se seguiriam não seriam nada bons. E iriam piorar cada vez mais. O último risco vermelho desapareceu, logo sendo tomado pela escuri-dão da noite. E as estrelas. Como eram belas. Agora entendia por que as almas falavam tanto delas. Mas o céu foi repentinamente tomado

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por nuvens trazidas pelo vento. Elkens ficou sem enxergar as estre-las, mas não se importou. Até mesmo as nuvens eram encantadoras. Mas quando as nuvens foram embora é que Elkens teve sua maior surpresa. Foi nesse momento que enxergou a coisa que, para ele, foi a mais surpreendente de tudo o que vira até agora: Listel, a lua. Sua luz pálida banhava os pastos diante do Sacerdote. Ela parecia es-tar acenando para ele. Sua beleza era superior inclusive a de Tunmá. Era superior a qualquer coisa. O poder que tinha e exercia sobre o mundo era inegável. Mas logo o silêncio da noite foi cortado. Só então Elkens tirou os olhos de Listel e procurou pela origem do som. Mesmo sendo noite, ele a localizou sem dificuldades. Montados sobre cavalos, Elkens contou os cavaleiros que seguiam a galope. Vinte. Não, vinte e um. Havia ou-tro mais a frente, aparentemente o líder do bando de… o quê? Elkens não fazia idéia. Sabia que aquela parte de Gardwen sobre a qual es-tava pertencia ao reino de Kadharran, mas não sabia nada além disso. Havia cidades por perto? Vilarejos? Ele não sabia. Aqueles homens poderiam vir de qualquer lugar, poderiam ser perigosos ou não. Não havia como saber. Só sabia que seria visto ali. Estava sobre a árvore, mas sua folhagem era tão rala que ele seria visto assim que um dos ca-valeiros olhasse para o seu lado. E Listel tornava aquela noite tão clara… Mas aquilo estava longe de merecer qualquer forma de preocupação. Os cavaleiros ainda estavam longe e nem ao menos caminhavam na sua direção. Passariam exatamente à frente de Elkens, provavelmente quarenta ou cinqüenta metros à sua frente caso mantivessem a rota. E manteriam. Elkens só precisava descer cuidadosamente da árvore, com movimentos leves, e se esconder atrás dela. Era tão simples, não tinha por que dar errado. A não ser, é claro, pelo destino. E Elkens não tem

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idéia do seu poder de transformar coisas simples em situações que nos fogem facilmente ao controle. E também não tinha idéia do que estava preparado para ele. Do que estava preparado para aquela noi-te. Apoiou-se num galho acima de sua cabeça e ficou em pé. Desceu cau-telosamente de galho em galho, aproximando-se cada vez mais do chão. Mas então o destino agiu. Ao pisar num galho, este se partiu sob seus pés. Apenas o primeiro acontecimento de uma cadeia deles. Apenas o primeiro… Para não cair se segurou com as duas mãos num galho a frente, mas o fez com um movimento tão brusco que este também não suportou seu peso e se partiu. Elkens ficou sem qualquer apoio e caiu. Bateu dolo-rosamente a barriga em outro galho antes de cair de costas no chão. Talvez os cavaleiros nem dessem atenção aos sons que ouviram, não fosse pelo pássaro que estava empoleirado no alto daquela mesma ár-vore. Elkens não havia reparado nele antes, só o via agora que saía assustado e piando muito alto. Ele desapareceu voando sobre os cam-pos banhados pelo luar, deixando Elkens e seus problemas para trás. — Verifique. Assustou-se ao ouvir a voz de um dos cavaleiros. Estavam perto. Já não ouvia os cavalos trotando. Haviam interrompido a jornada. Le-vantou-se com esforço e se equilibrou sobre os joelhos, tentando igno-rar a dor que sentia no estômago. Aproveitou a nova posição para olhar além da árvore. Dois homens seguiam a cavalo na sua direção, ainda sem o ver já que havia caído do outro lado da árvore. Após esquecer a dor física, sentiu medo. Aquilo não era mais um trei-namento com seu tutor. Estava sozinho e, possivelmente, com proble-mas. Ficou sem saber o que fazer. Pensou em atacar, mas isto lhe pa-receu insensato ao ouvir a voz de Kalimuns em sua mente: Ataque

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somente se for atacado. Mas então não tinha outra opção. Já com-pletamente recuperado da dor do impacto (tanto contra o galho quan-to com o chão), Elkens se levantou e correu. Foi a única coisa em que pensou. Era o instinto: lutar ou fugir. A flo-resta estava poucos metros a sua frente. Bastaria chegar à floresta e continuar correndo. Os cavalos não poderiam entrar ali; pelo menos não teriam chance de persegui-lo lá dentro. Mas sua decisão foi toma-da rápida demais, sem ser devidamente pensada. Correr não era a op-ção mais adequada. Teria percebido isso se pensasse um pouco mais. A floresta estava próxima, mas seus perseguidores vinham a cavalo. — PEGUEM-NO! Era a mesma voz, desta vez transformada em grito. Os dois cavaleiros galoparam em sua direção. Elkens correu o mais rápido que pôde, mas um dos homens a cavalo passou por ele e se jogou sobre seu corpo, derrubando-o no chão. El-kens tentou fazer algo, mas foi imobilizado antes que pudesse fazer qualquer coisa e, com as mãos nas costas, seria difícil tocar seu colar para realizar algum feitiço. Logo todos os homens estavam em volta de Elkens e de seu captor, que continuava caído sobre ele. — Deve ser algum espião, Kanoles – disse um dos homens olhando para Elkens ainda imobilizado no chão. Seu olhar carregado de ódio. – Vamos acabar com ele. Um dos homens se aproximou de Elkens e se abaixou para vê-lo me-lhor. Aquele devia ser Kanoles, o suposto líder do bando. Um homem mais alto que Elkens, não muito, e forte. Seus cabelos negros e sujos caiam pelo ombro. Seu rosto, assim como de todos os homens, era cheio de listras pintadas com alguma tinta negra. Aquela devia ser a marca do bando. Seus olhos tão negros quanto uma noite sem luar.

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— Ele deve ser um soldado do reino de Kadharran – disse um dos homens do bando. — Pode estar nos seguindo desde a cidade de Condarin – disse outro homem, mas Kanoles ignorou os dois e se dirigiu à Elkens: — Quem é você? — Me chamo Nai-Elkens – ele respondeu enquanto tentava inutil-mente levar a mão direita até seu colar. — De onde você é? – perguntou Kanoles novamente. – O que está fazendo aqui? — Não estou muito longe do local de onde vim – respondeu Elkens. – Sou um protetor da Alma! Vários homens riram ao ouvir isso e Elkens suspeitou de que talvez eles nunca tivessem ouvido falar dos protetores. Percebeu que eram humanos comuns, que viviam apenas com humanos comuns. Pareciam não ter contato algum com magia, e talvez também fossem completa-mente ignorantes quanto ao fato de os três Elementos da Vida terem seus próprios protetores, que eram responsáveis também pelo bem-estar de Gardwen. — Não estou brincando, garoto – Kanoles disse seriamente. Sua voz adquiriu certa aspereza ao receber a resposta como uma provável brin-cadeira. – O que estava fazendo nos vigiando? — Eu não estava vigiando… – Elkens tentou se defender, mas foi interrompido: — Olha o que temos aqui – disse um dos homens tirando o colar de Elkens de seu pescoço; em sua voz, a cobiça claramente identificada. — NÃO! – gritou Elkens. – Ele é meu. — O que acha Kanoles? – perguntou o homem mostrando o belo colar ao líder. A pedra do colar refletiu com o brilho prateado de Listel. – Parece valioso, não acha? Talvez seja de rubi ou algo parecido…

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— O colar é meu – Elkens gritava. Agora que estava sem colar, não poderia fazer nada, sequer pedir ajuda. — Amarrem-no – Kanoles ordenou se levantando e dando às costas pra Elkens. – Amanhã decidiremos o que será feito dele e continuare-mos seguindo para o vilarejo Rismã. Se minha fonte estiver certa en-contraremos o cristal escondido lá. Precisamos roubá-lo o quanto an-tes. Os homens obedeceram Kanoles e amarraram Elkens na árvore solitá-ria. Eles colocaram os cavalos para pastarem atrás da árvore, onde puderam descansar, depois acenderam uma fogueira sob a árvore e prepararam um ensopado de carne na fogueira rústica. Todos comeram e beberam animadamente e, depois de conversarem por algum tempo, dormiram em torno da fogueira. Todos com exceção de Kanoles, que ficou em silêncio, observando as brasas da fogueira que aos poucos iam se extinguindo. — Está com fome, rapaz? – ele perguntou em voz baixa para não acordar seus homens. Elkens surpreendeu-se com a pergunta, e perce-beu que agora havia bondade na voz de Kanoles. Não soube se era por cansaço, por não estar sendo ouvido por seus homens, ou se por pura sinceridade. Afinal de contas não conhecia o homem que o olhava. Kanoles podia ser um carrasco, um assassino, ou mesmo um viajante que não gosta de problemas. Mas havia uma coisa que ele era e Elkens já sabia disso: era um ladrão. — Acreditem em mim, por favor – Elkens praticamente lhe implorou sem dar atenção à pergunta do outro. – Eu sou um protetor da Alma, não sou inimigo. Preciso do meu colar para poder voltar para a casa… — O que é um protetor? – Kanoles estava intrigado; fazendo sua pergunta, aproximou-se mais de Elkens.

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Ele não soube o que dizer. Kanoles era um homem comum que vive no mundo externo. Elkens não soube como explicar a existência de protetores e o que faziam. Após alguns segundos pensando, ele final-mente respondeu: — Protetores são os humanos responsáveis pela proteção dos três Elementos da Vida. Eu sou um dos defensores da Alma. Preciso de meu colar para realizar magia da Alma. Sem meu colar me torno um homem comum, incapaz de usar magia. — Então você é capaz de usar magia? Pode me mostrar? — Se você me entregar meu colar eu posso – Elkens se contorcia na tentativa de afrouxar a corda que o prendia à árvore. — Desculpe rapaz. Somos caçadores de recompensas. Eu não dou va-lor para riquezas, mas meus homens sim. Não posso tirar o colar de-les… — Vocês me roubaram! – Elkens levantou um pouco seu tom de voz, sentindo-se injustiçado. O colar não é deles, nem nunca foi. — Mas é isso o que fazemos – Kanoles se justificou. – Roubamos. Não lhes faremos mal, isso eu não permito, e lhe deixaremos ir pela manhã, mas há um preço para isso: seu colar terá de ficar… Às costas de Kanoles, de repente Elkens pôde ver um brilho. Kanoles não pôde ver, mas Elkens teve certeza de que vinha de seu colar. Ele fechou os olhos e tentou se concentrar em seu colar, mesmo estando distante e impossibilitado e tocá-lo. — O que está fazendo? – Kanoles reparou que ele estava agindo es-tranhamente, mas Elkens continuou tentando se concentrar em seu colar e não respondeu. Nai-Peleguir, é você?, perguntou Elkens mentalmente a quem estava tentando se comunicar com ele através de seu colar. Nai-Peleguir, pre-

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ciso da sua ajuda. Estou fora dos Domínios e estou sem colar. Avise Nai-Kalimuns, por favor… Não houve resposta alguma. — O que está fazendo? – Kanoles voltou a perguntar, desta vez de-monstrando-se um pouco apreensivo. — Estão vindo! – respondeu Elkens tentando assustá-lo. – Estão vindo me ajudar. Kanoles olhou para ele por algum tempo, mas Elkens sustentou o olhar sem pestanejar. Elkens era um péssimo ator, Kalimuns pensara nisso aquele mesmo dia. Mas Kalimuns foi seu tutor durante muitos anos e o conhecia bem para saber quando estava mentindo. Kanoles, no entanto, não foi capaz de identificar a mentira por detrás daquele olhar tão firme e seguro. — ACORDEM! Ele está pedindo ajuda. Os vinte homens estavam em pé em questão de segundos. Os mais len-tos ainda não haviam acordado direito e não sabiam o que estava acontecendo. Os mais rápidos já estavam com suas espadas em punho, olhos atentos em todas as direções. Kanoles correu até o homem que segurava o colar de rubi de Elkens e o pegou para si. O Sacerdote ob-servou com atenção. Elkens não tinha certeza do que falara. Realmente alguém estava tentando se comunicar com ele através de seu colar, e realmente pare-cia ser Nai-Peleguir, mas nem houve resposta. Sequer sabia se a alma havia entendido que ele estava precisando de ajuda, isso se fosse ela. Os minutos que se seguiram foram de tensão no acampamento. Kano-les e seus homens estavam à volta da fogueira que já havia se apagado há horas. Elkens continuava preso à árvore, firmemente amarrado, mas seus olhos estavam voltados para a floresta diante dele, a mesma direção para a qual todos olhavam. Era dali que havia alguma possi-

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bilidade de ajuda. Não havia nenhum vestígio de alguém se aproxi-mando pelos campos, então a floresta era o único lugar onde alguma forma de ajuda poderia estar oculta ou mesmo se aproximando. Mas certamente não estava e logo todos perceberam isso. Todos se conven-ceram de que Elkens queria apenas assustá-los. E conseguiu. — Ninguém vem, garoto – disse Kanoles seriamente. Garoto. Era ir-ritante o modo como Kanoles o tratava. Estava longe de ser um garo-to. Talvez tivesse apenas a idade do mais novo companheiro de Kano-les, mas de qualquer forma estava longe de ser um garoto, isso é certo. – Por que fez isso? – ele continuou em seu tom sério, beirando à seve-ridade. – Eu disse que nós iremos soltá-lo pela manhã, mas não deve irritar meus homens dessa maneira. — Não irei sem meu colar – Elkens o desafiou. – Não sou nada sem ele. — Não faça mais nenhuma gracinha e o deixaremos ir embora pela manhã – Kanoles estava realmente irritado – mas esqueça seu co-lar… — KANOLES – gritou um dos homens. – Olhe! Kanoles virou-se para a floresta escura às suas costas e viu o que seus homens estavam vendo. Uma luz verde vinha em direção a eles. Esta-va no meio das árvores, mas vinha rapidamente. Alguns segundos de tensão se passaram, e Elkens foi o primeiro a entender o que era a luz verde. Era Nai-Peleguir, que vinha voando, mas vinha sozinha. El-kens não ficou triste em ver que Nai-Peleguir não trouxe ajuda, pois ficou contente em ver que ela perdera o medo de Gardwen, ou ao me-nos estava enfrentando-o. Ela não havia reencarnado, mas de qual-quer maneira havia saído dos Domínios da Alma e isso já era um co-meço. A questão era: por que havia saído?

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— É uma alma – exclamou um dos homens de Kanoles admirado. – É incrível como há tantas almas neste lugar. Mas ver aquela alma voando na direção deles fez a dúvida no coração de Kanoles se confirmar. — Então você disse a verdade, não é mesmo? – ele se virou para o Sa-cerdote para fazer sua pergunta. Seu rosto demonstrava que havia atingido uma compreensão que jamais imaginara. Havia compreendido que Elkens dizia a verdade, assim como compreendeu e aceitou a exis-tência de protetores, mesmo sem ainda saber quem eram realmente. – Você é um protetor da Alma! Seja isso o que for… Nai-Peleguir veio voando e parou no ar à frente de Elkens. Não pa-rou de bater as asas, mas o fazia num movimento tão suave que quase não era percebido. Preciso de ajuda, Nai-Peleguir. Eu quero ajudá-lo, ele ouviu a voz suave de Nai-Peleguir em sua mente. Uma voz que criatura alguma podia ter. Uma voz que só po-dia vir da forma de vida mais pura existente. Uma voz que era ouvida com o coração e não com o ouvido. Os homens olhavam curiosos de Elkens para a alma, sem saber o que estava acontecendo. Como estavam conversando mentalmente, ne-nhum deles podia ouvir algo. Mas a alma continuava parada de fren-te para o jovem amarrado à árvore e isso chegava a assustá-los. Você não pode, disse Elkens. Precisa ir buscar o Mestre Kalimuns… Mas eu quero ajudá-lo, Nai-Peleguir insistiu. Mas para que eu possa ajudá-lo, eu preciso da sua ajuda primeiro. O que quer dizer? Não houve resposta, mas desistiu de tentar conven-cer Nai-Peleguir a pedir ajuda, pois se lembrou do que Kalimuns lhe disse, de que não poderia influenciar uma alma, apenas ser influencia-do por ela. Ele então voltou a concentrar-se no colar que estava nas

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mãos de Kanoles. Não sabia ao certo o que fazer, apenas tentava encontrar uma maneira de ajudar Nai-Peleguir a ajudá-lo. E surpre-endentemente encontrou. Não soube direito o que aconteceu, mas Nai-Peleguir estava ligado ao seu colar e conseqüentemente a ele, e assim conseguiu executar um feitiço. Não soube direito que feitiço era, mas Nai-Peleguir desapareceu. Em seu lugar surgiu uma fera, formada pe-la mesma luz verde de Nai-Peleguir. A fera de luz verde que surgira era um rangar. Uma espécie de felino grande e forte, peludo e com uma carapaça em torno da cabeça, lhe servindo como proteção. Nai-Peleguir havia se transformado no rangar sem nenhuma explicação. Os homens assustados atacaram o rangar de luz, sem a menor consci-ência de que aquele ser continuava sendo uma alma, apesar da nova forma. Se soubessem disso, com certeza não teriam atacado. O rangar ergueu-se sobre as patas traseiras e derrubou quatro homens com um golpe das patas dianteiras. Os outros homens então atacaram com su-as espadas, preparados para matar, mas eles não compreendiam. Não poderiam fazer nada contra Nai-Peleguir, era impossível ferir uma alma. O rangar corria velozmente em torno dos homens, e avançava contra eles, derrubando-os no chão. Kanoles era o único em pé e o ran-gar parou diante dele com seu tamanho descomunal. — Corram! – ele ordenou para seus homens. Todos correram para seus cavalos, que surpreendentemente estavam calmos diante da criatura desconhecida. E não havia por que ser dife-rente. A presença de uma alma era antes tranqüilizadora que pavoro-sa, e os cavalos não tinham por que temê-la. Eram animais irracio-nais, mas compreendiam que não corriam o menor perigo. Independen-te da forma que tinha, e diferente dos seus donos, os cavalos sabiam que havia apenas uma alma diante deles, nada mais que isso. Uma simples, pura e bela alma.

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Montando em seus cavalos, fugiram a galope, tentando ficar o mais longe possível da fera, e nem percebendo que o líder havia ficado para trás. Kanoles olhou respeitosamente para Nai-Peleguir e, sem tirar os olhos dos seus, caminhou para a árvore onde haviam amarrado El-kens. Atirou o colar de rubi, que inexplicavelmente estava quente ago-ra, então cortou as cordas que prendiam Elkens com um simples golpe de sua espada, soltando-o. Elkens olhou atentamente para a espada. Era negra. Ainda não sabia o motivo, mas saberia. Kanoles montou no último cavalo que ainda se encontrava ali, seu grande companhei-ro, então olhou para Elkens e, antes de sair a galope atrás de seus ho-mens, disse: — Espero te ver de novo, rapaz. Listel voltou a se esconder atrás das nuvens. Kanoles desapareceu na escuridão junto a seu cavalo. Quando houve uma brecha nas nuvens, permitindo a passagem de um pouco de luz prateada, Elkens não con-seguiu mais encontrar Kanoles nos campos que se estendiam para to-dos os lados a sua frente. Também não ouvia mais o som de cascos. Achou que nunca mais o veria, e não se importou por isso. Mas estava errado. Céus, como estava errado. Ainda não sabia disso, mas ficaria muito feliz por ter se enganado.

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♦ Um bom tempo depois Elkens se aproximava do portal para os Domí-nios da Alma, completamente exausto após aquele longo dia, mas não era apenas isso. Mesmo sem saber, havia realizado um feitiço pela primeira vez, e essa experiência consome muita energia, como ele bem sabe. Nai-Peleguir, que voltara a assumir a forma de ave, voava gra-ciosamente ao seu lado. Elkens não compreendia o que havia aconte-cido, e Nai-Peleguir também não explicava de forma que ele entendes-se. A única coisa que Elkens sabia era que ela estava feliz, assim como ele, e sentia que uma espécie de ligação muito especial havia nascido entre os dois. Era algo maravilhoso de se sentir, mas impossível de se descrever. Elkens chegou ao precipício e ficou entre os quatro pilares de pedra, sobre a pedra que continha o símbolo da Alma, onde o portal estava delimitado. Concentrou-se em seu colar e realizou o feitiço para entrar nos Domínios da Alma novamente, mas Nai-Peleguir entrou um se-gundo antes dele. Kalimuns o aguardava no Santuário Rubi; Elkens correu até ele. A mesma expressão em seu rosto, aquela que indicava que ele sabia mais do que deveria ou poderia saber. Nai-Peleguir voava sobre Kalimuns e rumava para fora do santuário. — Mestre – exclamou Elkens ao se aproximar de seu tutor. – Acon-teceu algo estranho com Nai-Peleguir. — Eu sei – Kalimuns respondeu sorrindo e mostrando um pequeno objeto em suas mãos. Era um pingente. Um pingente de Sacerdote da Alma. – Este, Elkens, é teu quinto pingente de Sacerdote. Ele parou até mesmo de andar. Ficou ainda mais confuso do que já se encontrava.

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— Mas… – não sabia o que dizer. Estava completamente desorien-tado. – Eu não… — Quando Nai-Peleguir lhe contou que tinha saudades de Gardwen, mas que tinha medo de voltar para ela, eu soube que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde. Foi somente por isso que eu permiti que você saísse dos Domínios da Alma hoje. — Continuo sem entender, Mestre Kalimuns… — Nai-Peleguir quis voltar para Gardwen, mesmo ainda não tendo superado o seu medo dela. Ela soube que você poderia ajudá-la a vol-tar e foi o que você fez. Você pediu ajuda a ela e ela se tornou sua al-ma-protetora. Ela conseguiu voltar para o mundo de fora com a sua ajuda, mas sem necessariamente voltar, entende? Ela usa você como intermédio para poder ir a Gardwen livremente sem precisar reencar-nar em um novo corpo. Ela pode sair quando você precisar dela, com a sua ajuda, e não precisa ficar presa ao mundo corpóreo. Com a sua ajuda, ela está livre para ir e vir quando quiser. — Então Nai-Peleguir irá me ajudar sempre? – perguntou Elkens. A confusão dentro dele já se transformava em um grande contentamen-to, que logo não seria capaz de conter. Kalimuns olhou carinhosamente para seu discípulo e então respondeu: — Não! Você irá aprender que nada é para sempre. Com a sua ajuda, talvez Nai-Peleguir perca o medo do mundo de fora e resolva voltar sob a forma de um novo corpo. Assim ela não poderá mais te ajudar e a ligação que há entre vocês será quebrada. Elkens ficou pensativo por algum tempo, mas então Kalimuns sorriu mais uma vez e perguntou: — Só por curiosidade, qual foi a fera em que Nai-Peleguir se trans-formou?

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— Um rangar – disse Elkens contente, lembrando-se do grande fe-lino. — Então aquele rangar é uma das vidas passadas de Nai-Peleguir – o Mestre da Alma lhe explicou. – Agora pegue isto. É a prova do teu valor. Elkens pegou o pingente que Kalimuns lhe atirou pelo ar. O pingente que representava a sua nova habilidade de invocar uma alma-protetora, então o colocou em seu colar, ao lado dos outros quatro pingentes que já havia conquistado. Estava ficando cada vez mais forte e mais perto de tornar-se um Mestre da Alma, assim como Ka-limuns, ou num raro e poderoso Sumo Sacerdote da Alma. — Durma bem esta noite – disse Kalimuns após algum tempo. – Amanhã você irá comigo e Arkas até os Domínios do Tempo. Há mui-tas coisas que precisam ser esclarecidas e quero que você tome conhe-cimento de alguns fatos. — Tem alguma coisa a ver com o fato da alma de Morton ter reen-carnado? – perguntou Elkens curioso. Kalimuns sorriu, como geralmente fazia antes de responder uma per-gunta que lhe agradava, e respondeu: — Talvez você perceba um dia que tudo que acontece desde o nasci-mento de Morton está relacionado, direta ou indiretamente, com o meu velho amigo. Então a resposta é sim. Tem a ver com o fato de a alma de Morton ter finalmente reencarnado, depois de quinze longos anos após sua morte – Kalimuns ficou pensativo por algum tempo, depois exclamou: – Ah! Também quero que conheça uma pessoa. — Quem? – perguntou Elkens curioso. Kalimuns voltou a fazer silêncio, o mesmo silêncio que inconsciente-mente Elkens detestava. Mas diferente de tantas outras vezes em que

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aquele silêncio seguiu uma pergunta de Elkens, Kalimuns deu a res-posta. Uma resposta que deu de forma simples e objetiva: — Mifitrin.

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