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SacerdoteS 10

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O Mensageiro e o domador

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O M e n s a g e i r o e o d o m a d o rO M e n s a g e i r o e o d o m a d o rO M e n s a g e i r o e o d o m a d o rO M e n s a g e i r o e o d o m a d o r

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Capítulo 10 – O Mensageiro e o domador

Dentro dos Domínios da Magia um usurpador está sentado no trono que originalmente pertence ao Guardião da Magia. A toda a sua vol-ta, a gigantesca muralha que marca a fronteira dos Domínios o cerca e a sua frente está o arco de pedra que serve como portal para todos que querem chegar até ali. Quem está sentado no trono de Zander é Kai-ser, o Cavaleiro-Líder da Magia, o mais habilidoso de todos os nove e o principal responsável pela segurança do Guardião. Mas este homem não existe mais, pois foi contra todas as suas condutas quando resol-veu tomar o poder para si e se unir à Mon. Agora é Kaiser quem dá as ordens lá dentro e a punição para quem não lhe jura lealdade não é outra a não ser a morte. E foi isso que aconteceu com o Sábio Lakar, tutor de Meithel: foi punido. Três protetores atravessaram o portal e vieram de encontro à Kaiser. O Cavaleiro-Líder sequer olhou para eles, pois seu olhar continuava o mesmo há dias. Estava mirando o vazio, como se nada tivesse impor-tância para ele. Parecia completamente vazio e parecia não ser capaz de sentir qualquer tipo de sentimento. Mas ele estava falando e esse era o único indício de que ele estava realmente vivo. — Qual é o seu relatório? O primeiro dos três protetores se adiantou à frente dos outros. Era o Guerreiro Calarrin, um dos servos de Kaiser. — Trago uma mensagem do segundo Cavaleiro – disse o Guerreiro. – O senhor Algoz me pede para avisá-lo que o último dos quatro Sábios acaba de morrer. Pediu-me para esclarecer que usamos os métodos de tortura e de invasão da mente mais sofisticados, mas não conseguimos obter qualquer informação que o senhor desejasse. Ele contava com

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proteções da mente que bloquearam todas as nossas investidas. De-pois de treze dias sendo torturado, ele não agüentou e morreu. Assim que terminou seu relatório, o Guerreiro Calarrin se virou sem esperar qualquer resposta, pois sabia que ela não viria, e seguiu de volta para o arco de pedra, onde atravessou o portal e desapareceu. O segundo protetor então se adiantou para fazer seu relatório. Era um Sacerdote da Magia. — Trago o último relatório de Mudriack, meu senhor. Ele nos conta que falhou em sua primeira investida para roubar o cristal. Pelo rela-tório dele sabemos que o grupo que está com o cristal consiste em um Sacerdote da Alma, um Sacerdote da Magia, uma Guerreira do Tempo e dois humanos. Este relatório chegou ontem e ele nos dizia que Mu-driack faria uma nova investida. O Sacerdote fez uma breve pausa, apenas o suficiente para inspirar, expirar e inspirar de novo, então prosseguiu: “Mas recebemos há cinco minutos a confirmação de que Mudriack está morto, portanto falhou na missão de roubar o cristal”. Kaiser fez um leve aceno com a cabeça, não demonstrando nenhum desapontamento, então fez sinal para que o terceiro protetor falasse. Era Ego, Feiticeiro da Magia e um dos principais conselheiros de Kaiser. — Mas ainda contamos com o segundo agente que foi enviado para roubar o cristal, meu senhor. Eu o informei sobre a morte de Mudriack e o instruí a agir com cuidado, evitando cometer os mesmos erros de Mudriack. Isso significa que podemos levar alguns dias a mais para conseguir o que queremos, mas tudo se resolverá muito em breve. “Se tivermos sorte poderemos recuperar o cristal muito rápido, pois sa-bemos que nossos inimigos estão seguindo para o lago Lushizar, onde o ceifeiro já foi implantado e agora está desperto. O demônio está no

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lago, apenas esperando que se aproximem e eles nem imaginam o que os espera. O demônio criado pelos Cavaleiros da Magia irá destruí-los, então possivelmente o cristal esteja aqui ainda hoje”. Ao ouvir Ego falando do demônio que agora estava no lago Lushizar, Kaiser sorriu levemente, embora ainda continuasse mirando o vazio.

♦ Elkens ainda olhava confuso para o local em que a alma de Mifitrin desaparecera. Ela bateu suas asas rapidamente e logo seguiu para a saída da caverna. Sendo um Sacerdote da Alma, Elkens tinha como obrigação se certificar de que aquela alma estava seguindo na direção certa e que não se perderia no caminho, mas ele nem estava pensando nisso. Ainda olhava confuso para o corpo de Mifitrin. Nem percebeu que não estava chorando mais. Tem algo errado… Laserin chorava copiosamente sobre o corpo daquela que tinha conse-guido um grande respeito seu em tão pouco tempo. Não podia aceitar que aquilo tivesse acontecido. Meithel estava sem reação alguma, apenas observava Laserin choran-do sobre o corpo de Mifitrin. Esta era uma grande perda para o grupo e Meithel não sabia como reagir a isso. Kanoles segurava o cabo de Sangrini com tanta força que suas mãos chegavam a doer, mas ele sequer percebia isso. Estava perdido em suas piores lembranças; os fantasmas do seu passado. A morte de Mifitrin o fez se recordar dolorosamente daquele dia, tanto tempo atrás. Ainda conseguia se lembrar do rosto dela, o rosto de sua mãe quando foi mor-ta…

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O som de passos se aproximando fez Kanoles se lembrar de algo que Meithel disse: “Posso sentir a magia se manifestando. E não vem de longe, está vindo daqui mesmo. Mudriack está muito perto”. Deixando suas lembranças de lado, Kanoles virou-se para trás, pronto para atacar Mudriack, mas assim que se virou, não foi Mudriack quem ele viu se aproximando por trás. O susto que Kanoles levou fez com que ele soltasse o cabo da espada. Quando Sangrini caiu no chão de pedra, o eco de sua lâmina encheu a caverna, assustando a todos. Meithel e Laserin se viraram para ver o que havia assustado Kanoles, e ambos se assustaram assim como o caçador de recompensas. Elkens, por outro lado, nem precisou se virar para ver quem estava ali. Ele soube o que tinha acontecido assim que viu a alma pequena e amarela voando para fora da caverna. — Mifitrin? – sussurrou Laserin ainda assustada, mas suas esperan-ças foram crescendo. A Guerreira do Tempo sorriu para eles. Parecia muito fraca, mas defi-nitivamente estava viva. — Ele está nos enganando! – disse Meithel com raiva. Ele enxugou as lágrimas do rosto que agora estava contorcido de raiva; tocando seu colar, se preparou para atacar Mifitrin. – Mifitrin está morta. Pare com isso, Mudriack! Não irá nos enganar… A fúria de Meithel fez sua energia ser liberada mais rápido e mais for-te do que normalmente aconteceria, mas Elkens precisava impedir aquele ataque: — PARE MEITHEL! – ele gritou. – Mudriack já nos enganou. Quem está na nossa frente realmente é Mifitrin. Meithel olhou confuso para Elkens. A compreensão foi chegando len-tamente, então ele se virou e olhou para o corpo de Mifitrin caído no chão.

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As armaduras anis de Guerreira do Tempo foram lentamente se trans-transformando em vestes alvas, vestes de um Feiticeiro da Magia. O corpo de Mifitrin também foi se transformando lentamente. Suas fei-ções sérias e femininas foram lentamente se transformando num rosto masculino. O feitiço de ilusão estava encerrado. Agora não era mais o corpo de Mifitrin que estava no chão, era o corpo de Mudriack. Mudriack usou suas artes de ilusão para se transformar em Mifitrin e enganar a todos, mas ele não era capaz de enganar uma besta mística. Mudriack foi a escolha de Argon, não Mifitrin. Enquanto todos ainda tentavam compreender o que estava aconte-cendo, Elkens decidiu que não perderia mais tempo. Correu até a Guerreira e a abraçou tão forte que quase caíram no chão. Não soube o que dizer, por isso apenas a abraçou o mais forte que podia. Ficou contente em perceber que o olhar frio e indiferente que recebera antes era de Mudriack e não de Mifitrin. Seu sorriso se estendia de orelha a orelha enquanto abraçava aquela a quem tanto procurou durante aquele dia. Finalmente tinha sua líder de volta. Finalmente estavam completos novamente. Finalmente poderiam seguir para o lago sem mais nenhum obstáculo. E Mifitrin estava com eles, isso era o que im-portava. — Elkens… ‒ Mifitrin disse sem jeito. Ela não o abraçou como era de se esperar, mas permitiu que ele fizesse isso, o que já era uma gran-de coisa para ela. ‒ Elkens, pode me soltar… O Sacerdote a soltou, mas seu sorriso não diminuiu nem um pouco se-quer. — Alguém pode me explicar o que está acontecendo? – pediu Kano-les. Havia um tom alegre em sua voz. — Mudriack era um Feiticeiro – Meithel explicou – portanto conhe-cia feitiços de ilusão. Ele se transformou em Mifitrin e assim nos en-

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ganou, e nós demos o cristal para ele. Foi um plano simples, mas nós caímos nele. Eu disse que ele iria tentar nos enganar, só não percebi que já tinha nos enganado. — Como podem ter certeza? – perguntou Kanoles que, embora apa-rentasse estar feliz, olhava com certo receio para Mifitrin. — Quando estávamos na floresta ontem à noite – Elkens começou a explicar – e eu usei a Máscara Nai-Kanitalen, eu vi as almas de Mifi-trin e Mudriack. A alma amarela é a alma de Mudriack, pois a alma de Mifitrin é verde. Eu as vi. Kanoles caminhou até Mifitrin e disse: — Fico feliz em ver que está bem. Mifitrin sorriu. Já fazia algum tempo que confiava plenamente em Kanoles. Agora isso estava definido. Eram um grupo de confiança. Uns se arriscaram pelos outros em mais de uma situação, e isso serviu para firmar de vez a confiança que sentiam. Agora sim eram um grupo de verdade. Meithel correu até o corpo de Mudriack. Lá estava, entre as vestes, o colar de Mifitrin, o seu próprio colar, e o cristal de Laserin. Meithel não conseguia deixar de pensar que se não fosse por Argon, o plano de Mudriack teria dado certo. No fim das contas, Mudriack teria venci-do o último desafio dos dois se não fosse por uma pequena intervenção do destino. — Sigam em frente – disse Meithel de repente. – Eu alcanço vocês no lago. Ninguém soube o que dizer. Apesar de Mudriack ter sido um grande inimigo, fora o amigo de Meithel durante toda a sua vida como prote-tor. Todos podiam imaginar o que ele estava sentindo ao ver o corpo de seu antigo amigo.

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— Ficaremos com você, Meithel – disse Mifitrin com uma voz doce, se aproximando dele. – Mudriack era seu amigo. Você deve decidir o que fazer com o seu corpo. Os olhos de Meithel brilhavam. — Não podemos fazer nada nessas circunstâncias – disse ele com a voz fraca. – As homenagens que ele receberia antes, de ser sepultado nos Domínios da Magia, não são possíveis agora, pois não sabemos o que está acontecendo lá – Meithel encarou o rosto sem vida de seu amigo por mais algum tempo, então acrescentou: – Sei que ele tentou nos matar, mas não vou permitir que seu corpo fique aqui sendo comi-do por vermes. — Eu não esperava uma atitude menos digna vinda de você – disse Mifitrin. – Vamos deixar você se despedir de Mudriack à sua manei-ra. Meithel olhou para ela e agradeceu. Mifitrin pegou o seu colar e o cristal de Laserin, então se afastou de Meithel. — Vamos – ela disse. – Meithel nos encontrará no lago. Sem dizer nada, todos seguiram Mifitrin em silêncio, deixando Meithel para trás.

— Estou vendo a saída – disse Laserin contente, após algum tempo caminhando. Mifitrin, Kanoles, Laserin e Elkens finalmente chegaram ao fim da caverna, e o que viram os deixou fascinados.

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O lago Lushizar estendia-se logo a frente deles. Era imenso. Enormes montanhas circundavam o lago de todos os lados. Era como se as montanhas tivessem sido erguidas propositalmente para represar toda aquela água. Tunmá estava alta no céu, exatamente sobre o lago, e sua luz refletia no grande espelho d’água. — É bom ver o sol de novo – disse Laserin feliz por finalmente ter saído da caverna. Mifitrin olhou para ela e sorriu; quase se esquecera que os humanos chamavam Tunmá de sol, e o mesmo valia para Listel, ela se lembrou, pois a chamavam de lua. Mas os nomes de algumas coisas e lugares eram uma das poucas palavras que os protetores ainda falavam na língua elementar. Havia muito tempo que essa língua dei-xou de ser usada.

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— O que faremos agora? – perguntou Kanoles ainda olhando para a imensidão do lago. — Não faremos nada enquanto Meithel não chegar – disse Mifitrin sentando-se sobre uma pedra e pegando um pedaço de pão de dentro de sua bolsa. – Vamos esperar. Laserin e Kanoles sentaram-se ao lado de Mifitrin. Elkens foi fazer o mesmo, mas assim que desviou os olhos do lago pensou ter sentido al-go. Ele voltou seus olhos o mais rápido que pôde para o lago e ficou se perguntando se viu uma sombra se mover nas profundezas das águas escuras ou se foi somente a sua impressão. Ficando com a segunda op-ção, esqueceu o assunto e se juntou aos seus companheiros.

♦ Meithel abriu os olhos e olhou para o que estava fazendo, mas ainda precisava ser um pouco mais fundo. Concentrado em seu colar, utili-zava grande quantidade de energia para abrir um buraco no duro chão de pedra da caverna, o que era algo desgastante. Mas não importava se ele gastaria toda a energia que restava em seu corpo; precisava dar um túmulo decente para Mudriack. Alguns minutos depois e o túmulo tinha a forma e a profundidade de-sejada, então Meithel deixou de se concentrar em seu colar e caminhou alguns passos até o lugar em que o corpo de Mudriack estava caído. Com as próprias mãos, carregou Mudriack e depositou o corpo no fundo do túmulo. Uma pesada placa de pedra já estava esculpida e pronta para selar o túmulo eternamente, mas Meithel hesitou antes de mover a pedra e fechar o túmulo. Olhou uma última vez para o rosto de seu antigo

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amigo e, com as lágrimas brotando novamente em seus olhos, perguntou: — O que aconteceu com você, Mudriack? Meithel não soube se ficou olhando para Mudriack por alguns segundos, minutos ou até mesmo horas, mas finalmente tocou seu colar e magicamente moveu a pesada placa de pedra, selando Mudriack em seu descanso eterno. — Adeus amigo – disse ele, então deu às costas ao túmulo e seguiu para fora da caverna. Pensou em guardar o colar de Mudriack consigo, como recordação, mas um protetor deve ser sepultado com o seu colar. Isso é uma forma de indicar quem ele foi e o seu poder. Meithel enxugou os olhos e seguiu sem olhar para trás. Sobre o túmulo de Mudriack, Meithel colocou uma lápide, também de pedra, e nela estava escrito: “Aqui jaz Mudriack, um grande amigo. Não sei o que fizeram com você, mas vou descobrir. Descanse em paz”.

Tunmá já havia se deslocado um bom tanto no céu quando Meithel apareceu. Seus olhos estavam vermelhos, mas parecia de certa forma feliz, aliviado. — Aqui estamos. Finalmente – Meithel olhou pela imensidão do lago, diretamente para o seu centro, onde ficava o portal para os Domínios da Magia. – Da última vez que tentei entrar não consegui, mas aqui estou de novo… — Desta vez vai dar certo – disse Mifitrin dando-lhe esperanças, algo que o reconfortava. – O cristal de Laserin vai abrir o portal para que possamos entrar.

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A alegria que havia no rosto de Meithel desapareceu de repente, sendo substituída por uma expressão de preocupação. — Tenho medo do que possamos encontrar lá dentro. Os Cavaleiros tomaram o poder do Guardião e estão fazendo o que bem entendem. Não sei o que estão fazendo, mas fizeram alguma coisa para obrigar Mudriack a se juntar a eles. Mifitrin olhava para Meithel com uma certa admiração no olhar, ou talvez fosse pena. Mas independente do que ela estava pensando, dava a Meithel uma sensação de conforto. Mifitrin entendia o que era perder alguém, entendia o que Meithel estava passando e o admirava pela fibra que estava demonstrando. Ela sabia que mais tarde ele iria desmoronar, em um momento em que estivesse sozinho talvez, mas uma hora não iria suportar segurar a dor que estava sentindo. Ela sabia disso porque mesmo ela, alguém que raramente expõem seus sentimentos, não suportou quando perdeu alguém querido. Por isso admirava Meithel, pois ele estava sendo muito mais forte do que ela jamais conseguiu ser. — Não importa – ela disse finalmente. – Não importa o que está acontecendo lá. Nós vamos descobrir e vamos acabar com isso. Vamos derrotar os nove Cavaleiros e salvar o Guardião da Magia. Kanoles se levantou do chão, onde estivera sentado, e se aproximou de Meithel. — Onde fica esse portal? — No meio do lago. Há uma ilha lá. — Mas como faremos para chegar lá? Não temos um barco… — Não precisamos! – disse Meithel, caminhando alguns passos em direção ao lago e tocando seu colar. Luzes brancas saíram do seu colar e começaram a materializar algo de luz sólida a frente deles. Era uma ponte feita de magia pura. A ponte de luz flutuava poucos metros

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sobre a superfície do lago, mas avançava apenas alguns metros à frente. Meithel caminhou sobre a ponte e fez sinal para que os outros o acompanhassem. Diferente de Elkens e Mifitrin, Kanoles e Laserin recearam por um momento até se decidirem de que a ponte era segura. Conforme avançavam sobre a ponte de luz, ela se desmaterializava atrás e se materializava a frente, permitindo que eles continuassem seguindo sempre em direção ao centro do lago. — A magia do lago logo será extinta – disse Meithel, ainda concentrado em seu colar para manter a ponte. – Posso sentir que já diminuiu bastante desde a última vez em que estive aqui e se continuar assim logo não haverá nenhum vestígio de magia aqui. — Mas o que acontecerá com o portal se isso acontecer? – Elkens perguntou. – Se a magia do lago acabar, como o portal poderá existir? — Não sei. Acredito que o portal também desapareça. Eles continuaram andando. Conforme andavam, a ponte se desmaterializava atrás e se materializava à frente, mas ainda não viram nenhum sinal da ilha no centro do lago. Ainda estavam muito longe. Elkens olhou para Laserin. Não havia riso em seu rosto, mas era possível perceber somente pelo seu olhar que estava feliz. Mifitrin, por outro lado, olhava desconfiada para as águas escuras do lago. Havia algo nas profundezas do lago, algo que Elkens também percebera algum tempo atrás, mas que agora já havia esquecido. Mas Mifitrin não conseguia esquecer. A Magia não protege mais o lago Lushizar, e havia alguma coisa nas profundezas que não devia estar lá. Eles continuaram a andar pela ponte, mas Mifitrin estava preparada para reagir caso algo emergisse das águas escuras.

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♦ As horas passavam, mas nenhum sinal da ilha no centro do lago. As montanhas do outro lado pareciam cada vez maiores, mas de maneira alguma pareciam mais próximas. Em pouco mais de uma hora estaria anoitecendo, mas eles não poderiam parar enquanto não atingissem a segurança da terra firme. Mifitrin continuava observando as águas escuras em silêncio. De repente ela teve a prova dos seus receios, pois viu a superfície da água tremeluzir levemente, quase imperceptivelmente, mas Mifitrin percebeu, pois estava esperando por isso há horas. Havia alguma coisa se mexendo dentro do lago. — Fiquem atentos – ela falou em tom de alerta, sem tirar os olhos do lago. – Mas não parem de andar. Temos que sair daqui. Kanoles olhou apreensivo para ela, com aquele olhar que dispensava qualquer pergunta, então Mifitrin explicou: — Tem algo se movendo dentro do lago. Meithel, o que vive nesse lago? — Antes não precisávamos nos preocupar com nada, pois a Magia protegia tudo o que há entre as montanhas. Mas agora essa proteção não existe mais e não sei o que podemos encontrar vivendo nas profundezas. Se tivermos sorte não descobriremos… Então algo saiu da água! Alguma coisa pulou para fora da água com tanta velocidade que assustou a todos, mas não era algo tão grande quanto Mifitrin esperava, sequer era assustador. — É um cumpassin – disse Meithel tranqüilizado, mal escondendo o tom de susto em sua voz. Mifitrin era capaz de ouvir o coração de cada um deles batendo acelerado.

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Elkens sorriu ao reconhecê-lo. Já havia estudado sobre cumpassins nos Domínios da Alma. Era um peixe do tamanho de um homem. Suas escamas reluziam nas cores do arco-íris. Suas nadadeiras se abriram assim que saíram da água, transformando-se em grandes asas. O cumpassin voou em torno deles muito agitado, como se tentasse dizer algo. O cumpassin deu algumas voltas em torno do grupo, então fechou as asas e voltou a cair no lago, mas logo vários outros cumpassins emergiram. Todos aparentavam estar assustados. — Os cumpassins sempre foram animais muito queridos pelos protetores da Magia – Meithel explicou. – São tão queridos que o Guardião até permite que eles entrem nos Domínios da Magia. Laserin observava os peixes voadores admirada, mas Mifitrin tentava compreender o perigo por trás daquilo. — Eles sempre acompanham os protetores da Magia para que atravessem o lago em segurança e nós gostamos da sua companhia – Meithel continuou. – São algo como protetores de protetores. Algum tempo depois um dos cumpassins planou de frente para Elkens, encarando-o por um bom tempo. Como um protetor da Alma, o sexto sentido de Elkens permite que ele se comunique com qualquer forma de vida, e assim ele compreendeu o que o cumpassin estava querendo dizer. — Ele quer que saiamos daqui!

♦ — Quer que a gente saia o mais rápido possível do lago. Um silêncio momentâneo pairou sobre o grupo, mas logo foi quebrado por Mifitrin:

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— Por quê? Mas não foi preciso Elkens responder. Espirrou água para todo lado como se uma bomba tivesse explodido dentro do lago e algo enorme saiu da água. Era um grande tentáculo de um verde viscoso. O tentáculo subiu com incrível velocidade e agarrou um cumpassin que voava ao lado do grupo. — NÃO! Mas não havia nada que Meithel pudesse fazer a não ser gritar. Queria salvar o cumpassin, mas se tentasse realizar outro feitiço corria o risco de a ponte mágica desaparecer e os cinco caírem dentro do lago. Os demais estavam assustados demais para ter qualquer reação. O cumpassin foi puxado para dentro da água. Pelo movimento da água puderam perceber que estava havendo uma briga dentro do lago, mas não puderam ver nada por causa das águas escuras. Logo a água se acalmou e eles viram uma alma sair voando de dentro do lago e voar assustada rumo aos Domínios da Alma. O cumpassin estava morto. — CORRAM! – gritou Mifitrin após se recuperar do susto. Meithel fez o possível para que a ponte fosse conjurada o mais rápido possível, mas ele precisava de um certo tempo para fazer isso, por isso não podiam correr muito rápido. — Precisamos voltar! – foi a sugestão de Kanoles. — NÃO! – Meithel se opôs decidido enquanto fazia parte da ponte desaparecer atrás deles e reaparecer à frente. — Essa coisa só nos atacou porque estamos chegando perto desta maldita ilha – Kanoles tentou se justificar. – Se voltarmos talvez ela nos deixe em paz.

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— Estamos perto demais para desistir. E se voltarmos agora talvez não tenhamos outra chance de chegar aos Domínios da Magia… — Que se dane os Domínios da Magia – disse Kanoles com raiva. – Se continuarmos nós seremos mortos por aquela coisa. — Sinto muito se você não queria estar aqui – Mifitrin entrou na discussão, apoiando o companheiro protetor – mas não vamos desistir agora. Estamos muito perto de ter todas as respostas… Kanoles não disse mais nada. Realmente ninguém o obrigou a ir até ali, portanto não podia reclamar. Seis cumpassins saíram do lago e voaram ao lado deles, como se tentassem incentivá-los a correr mais rápido. Um deles soltou um grito agudo que apenas Elkens entendeu exatamente o que queria dizer, mas todos os outros imaginaram. Os cumpassins queriam que eles saíssem dali. Estavam com medo por eles. Jorrou água para todo lado e mais uma vez viram o grande tentáculo verde viscoso, mas desta vez estava acompanhado. Três tentáculos saíram de dentro da água e retornaram para dentro do lago um segundo depois; um deles levava mais um cumpassin para ser estrangulado até a morte. Dois ou três segundos se passaram e mais uma alma saía assustada de dentro do lago. Mais um cumpassin estava morto. Meithel se empenhava o máximo que podia para conjurar a ponte o mais rápido possível. Os demais corriam logo atrás dele. Os cumpassins saíam da água, voavam ao lado deles por alguns segundos e então voltavam para dentro da água. Mais uma vez um tentáculo verde viscoso surgiu preparado para agarrar um dos cumpassins, mas desta vez Mifitrin estava preparada. Com seu arco à mão, conjurou uma flecha do Tempo e atirou contra o tentáculo. O tentáculo foi imobilizado temporariamente, permitindo assim que o cumpassin

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escapasse. Mas isso não foi o bastante para deter a fúria da criatura que estava habitando o fundo do lago. O cumpassin salvo por Mifitrin teve apenas mais alguns segundos de vida, pois logo outro tentáculo saiu de dentro do lago e o agarrou, levando-o para as profundezas para estrangulá-lo. Os cumpassins estavam cada vez mais agitados. Na água eles eram rápidos o bastante para fugirem dos tentáculos da criatura, mas enquanto estivessem no ar eram presas fáceis. Mesmo assim pareciam dispostos a se sacrificarem para cumprir o dever de guiar os protetores em segurança para o centro do lago. Com os corpos cheios de adrenalina, os cinco corriam o mais rápido que a ponte de Meithel permitia. Vários cumpassins voavam ao lado deles, mas então aconteceu novamente. Sem nenhum sinal, jorrou água para todo lado quando sete tentáculos saíram do lago preparados para pegar sete dos cumpassins que voavam. Laserin gritou assustada. Mifitrin tocou seu colar com uma das mãos e uma imperceptível luz azul explodiu da pedra de safira. Mifitrin estava manipulando o tempo e tudo à volta dela estava imóvel, exceto aquele a quem ela escolheu para ajudá-la. Elkens estava em pé logo a sua frente e surpreendeu-se com o que via. Meithel, Kanoles e Laserin estavam completamente imóveis; as expressões de medo congeladas em seus rostos. O vento parou de soprar e a água do lago parecia congelada. Os cumpassins estavam imóveis no ar e sete deles estavam a um segundo de serem pegos pelos tentáculos. — Me ajude a salvar os cumpassins, Elkens – Mifitrin pediu com a voz agitada. Ambos conjuraram várias esferas; Elkens rubras e Mifitrin anis. Assim que o tempo voltou a correr normalmente, as esferas se

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chocaram contra os tentáculos explodindo logo a seguir, e esses voltaram para dentro do lago sem pegar suas presas. — Estamos quase chegando! – disse Meithel demonstrando um fiapo de esperança na voz. A pequena ilha no centro do lago estava há menos de cem metros a frente deles. Em poucos segundos estariam a salvo… mas não foi o que aconteceu. A criatura nas profundezas escuras do lago havia percebido que havia alguma coisa atrapalhando sua caçada. Quando outro tentáculo emergiu do lago, não estava mais tentando pegar um dos cumpassins, sequer chegou perto de um deles. Seu alvo agora era a ponte mágica criada por Meithel. Quando surgiu ao lado da ponte, o enorme tentáculo verde viscoso debruçou-se sobre ela, exatamente no meio da ponte. Kanoles teve de puxar Laserin para impedir que ela fosse esmagada. Meithel, Kanoles e Laserin ficaram na parte da frente da ponte, mas Elkens e Mifitrin ficaram separados na parte de trás. O tentáculo estava entre eles e parecia fazer o possível para destruir a ponte e derrubar suas novas presas na água, onde poderia pegá-las e estrangulá-las com mais facilidade. A ponte passou a ranger sob seus pés e Meithel usava toda sua força pra impedir que a ponte fosse destruída pelo enorme tentáculo. Kanoles sacou Sangrini e atacou o tentáculo com uma velocidade surpreendente. A espada novamente estava guiando seus movimentos, sedenta por encontrar sangue. Um grande corte se abriu, embora nenhuma gota de sangue tenha escorrido do ferimento. O corte não passava de um pequeno arranhão se comparado ao tamanho do tentáculo. Kanoles atacou mais uma vez, mas isso pareceu apenas enfurecer a criatura que fez ainda mais força para esmagar a ponte mágica de Meithel. Os cumpassins voavam em círculos sobre suas

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cabeças, seus gritos agudos soavam como um coro de lamentação, mas não podiam fazer nada além disso. Começaram a investir contra o tentáculo, inutilmente, mas então vários tentáculos surgiram e pegaram quatro cumpassins de uma única vez, levando-os para a morte sob a superfície do lago Lushizar. A situação era desesperadora. Num minuto estava tudo a favor deles, no outro suas esperanças eram destruídas. Kanoles continuava a atacar o tentáculo com sua espada, mas então outro tentáculo surgiu e se curvou sobre a ponte. Com o dobro da força tentando destruí-la, a ponte não agüentou e cedeu. A parte de trás, onde Elkens e Mifitrin estavam, caiu na água e os dois afundaram na fria água do lago.

♦ Mifitrin e Elkens continuavam sendo puxados para baixo pela agitação da água. As armaduras de Guerreira do Tempo eram um peso a mais e impulsionavam Mifitrin para as profundezas mais rapidamente. De repente algo prendeu-se em torno de seu braço direito e puxou-a para cima. Assim que emergiu, ficou agradecida em ver que Meithel havia conjurado a corda de luz branca que a salvara. — CADÊ O ELKENS? – ela gritou sem nem ao menos recuperar o fôlego direito. Meithel apenas balançou a cabeça. — Me solte – ela disse de repente, lutando contra a corda que se prendia com força em seu braço. – Preciso encontrá-lo. — Não – Meithel respondeu recomeçando a puxá-la em direção ao que sobrara da ponte.

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Com a mão livre, Mifitrin tentou soltar a corda mágica que a prendia, mas Meithel estava determinado a não soltá-la. Assim que chegou sobre a ponte e foi solta por Meithel, Mifitrin se preparou para pular novamente no lago, mas Kanoles a segurou, prendendo o corpo dela contra o seu. — PRECISO AJUDÁ-LO… — Você não vai! – Kanoles ainda estava segurando-a com todas as suas forças, o que quase não era o bastante para detê-la. – É perigoso demais. — MAS ELE VAI SE AFOGAR! — Não podemos fazer nada, Mifitrin. Se você pular será pega pelos tentáculos. Elkens terá de sair de lá sozinho.

♦ Elkens estava perdendo sua consciência tão rápido quanto ficava sem ar. Seus membros ainda lutavam inutilmente para conseguir chegar até a superfície, mas ele quase não tinha consciência disso. Parecia que seu pulmão iria explodir e ele não agüentava reter o ar dentro dele. Viu as bolhas de ar passarem diante dele e subirem para a superfície quando o ar começou a escapar por suas narinas. Algo segurava em sua perna e o puxava velozmente para as profundezas. Era um dos tentáculos da misteriosa criatura. O tentáculo não poderia matar um cumpassin afogado, uma vez que eles eram seres aquáticos, mas poderia fazê-lo com Elkens e parecia se divertir com isso; uma morte lenta e sofrida. Elkens já estava completamente sem esperanças de se soltar quando sentiu algo se chocar contra o tentáculo que prendia sua perna. Ele não pôde ver o que era, porém soube que era um dos cumpassins

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mesmo sem enxergá-lo. Mas estava enganado, logo ele percebeu. Não era um, eram todos os cumpassins que ainda não haviam sido mortos. Estavam todos ali e lutavam ferozmente para salvar Elkens. Com a esperança renovada, Elkens usou o que sobrava das suas forças e lutou para livrar sua perna do tentáculo. Um brilho surgiu logo abaixo dele e viu quando a alma de um dos cumpassins subiu para a superfície. Um dos cumpassins foi morto, mas agora Elkens havia conseguido se libertar. Outros tentáculos surgiram no meio da confusão e outros cumpassins foram mortos, mas Elkens ainda não foi encontrado pela criatura. Enquanto nadava para a superfície viu o brilho de Tunmá no céu, mas nesse momento não resistiu mais. Sabia que não era possível respirar ali embaixo, mas, por impulso natural e instintivo do seu próprio corpo, soltou o ar que ainda restava em seus pulmões e inspirou… tentando desesperadamente encontrar ar, mas a única coisa que entrou em seus pulmões foi a água fria do lago Lushizar.

Mifitrin e os outros ainda estavam sobre a ponte, procurando por algum sinal de Elkens. Mas ele não veio. Havia uma grande agitação sob a superfície e logo uma alma saiu voando do lago. — Não… – murmurou Mifitrin num lamento. Receava que a alma fosse de Elkens. Dois tentáculos apareceram de cada lado da ponte e se prepararam para deitar sobre ela e derrubar mais presas na água. Mas desta vez Meithel estava preparado e continuou conjurando a ponte a frente deles para que pudessem continuar correndo.

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Os quatro seguiram correndo. A ilha estava muito perto agora. Os tentáculos submergiam e emergiam novamente ao lado deles, mas Mifitrin usava esferas do Tempo para atrasá-los. — Olhem – Laserin gritou de repente apontando para trás. Mifitrin olhou e viu quando várias almas de cumpassins saíram voando do lago, mas logo atrás delas saiu um cumpassin vivo, talvez o último deles. — Elkens… – sussurrou Mifitrin aliviada. O cumpassin estava carregando o corpo de Elkens. Parecia estar muito fraco, mas Mifitrin alegrou-se em ver que ainda estava vivo. Neste momento cinco tentáculos surgiram em volta da ponte e Mifitrin usou várias esferas para tentar detê-los, mas era impossível. Um dos tentáculos atingiu Mifitrin pelas costas e a jogou de volta para o lago ao mesmo tempo em que os outros tentáculos caiam sobre a ponte. Desta vez a ponte foi destruída por completo e todos caíram na água. — Tire-nos da água, Meithel – disse Mifitrin ao Sacerdote da Magia, ciente de que ele poderia usar o feitiço da levitação. — Não consigo – ele disse com a voz fraca e só agora Mifitrin se deu conta do quanto de energia Meithel precisou gastar para criar e manter a ponte mágica. Estava exausto. — Vamos nadar – era a única opção que lhes restava. – Falta muito pouco agora… Mas não havia tempo para isso. A criatura lançou seus tentáculos mais uma vez para a superfície e não havia como enfrentá-los. Foi então que Mifitrin sentiu algo sob ela e foi retirada da água. Quatro cumpassins apareceram de repente e tiraram os quatro da água. Estavam salvos.

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Os cumpassins que tiraram Meithel, Mifitrin, Kanoles e Laserin da água voaram para junto do cumpassin que levava Elkens, tão alto que não poderiam ser pegos pelos tentáculos. — Obrigado – Meithel disse ao cumpassin que o salvou. Sentia muito por todos os cumpassins que foram mortos, mas estava realmente grato pela ajuda deles. Os cinco cumpassins só voltaram a descer quando estavam sobre a pequena ilha no centro do lago Lushizar. Chegamos, pensou Meithel exausto, porém feliz. Finalmente.

Assim que desceram dos peixes-alados, Meithel agradeceu novamente, então acrescentou: — Agora vamos entrar nos Domínios da Magia descobrir o que está acontecendo lá dentro. Quando tudo estiver resolvido por lá, vou avi-sar o Guardião da Magia sobre o que está acontecendo aqui no lago e ele virá para salvá-los. Enquanto isso fiquem num lugar protegido. Como se tivessem compreendido tudo o que Meithel dissera, os cum-passins soltaram um grito agudo, talvez de alegria, e voaram de volta para o lago. A criatura dos tentáculos ainda estava lá, mas não seri-am pegos por ela. — Eles ficarão bem? – perguntou Laserin que, assim como os outros, adquirira uma certa compaixão pelos cumpassins, afinal de contas fo-ram todos salvos por eles. — Ficarão – Meithel respondeu. – Estão aqui há mais tempo que aquela criatura. Conhecem o lago melhor que ela e poderão se esconder até o Guardião vir ajudá-los.

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Neste momento Meithel desviou os olhos de Laserin e olhou para al-go à frente. No centro da ilha, conseqüentemente no centro do lago, havia quatro pilares de pedra que apontavam para o céu. Entre eles estava a esperada pedra circular com o símbolo da Magia gravado ne-la. Lá era o portal. O elo que ligava Gardwen aos Domínios da Ma-gia. O portal que fora trancado impedindo que Meithel voltasse para o seu lar. O portal que, segundo Morton, seria destrancado com o po-der do cristal de Laserin. O portal estava trancado, mas eles tinham a chave. Esquecendo-se do cansaço que sentiam, os cinco correram para a pedra entre os quatro pilares, então Mifitrin ordenou: — Pegue o seu cristal, Laserin. Está na hora. Estavam todos tão animados com a perspectiva de entrarem nos Do-mínios da Magia que pareciam se esquecer do perigo que encontrariam lá dentro. Laserin soltou sua bolsa de couro no chão, abriu-a, jogou todas as coisas que estavam por cima e tirou o belo cristal branco que estava escondido no fundo. Os olhares admirados dos outros se volta-ram para Laserin, mas ela não sabia o que fazer. Segurou o cristal por alguns segundos, esperando que ele fizesse a sua parte, mas nada aconteceu. — O que eu faço? – ela perguntou após constatar que nada acontece-ria. Mifitrin e Elkens estavam confusos e Kanoles apenas curioso, mas Meithel parecia intensamente decepcionado. Mifitrin meditou por al-guns segundos então disse: — Laserin não tem um colar da Magia, talvez ela não possa abrir o portal mesmo estando com o cristal.

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— E o que sugere que façamos? – Kanoles perguntou tentando com-compreender o que ela dizia. Também estava ansioso por entrar nos Domínios, embora o medo fosse crescendo rapidamente dentro dele. — Somente alguém com um colar da Magia pode entrar nos Domínios da Magia sem precisar da ajuda de ninguém – Mifitrin olhava de Meithel para Laserin. – Com os relatos do senhor Morton e de Tûm, sabemos que o cristal é a chave e que ele tem vontade própria. Vocês dois, Meithel e Laserin, precisam trabalhar juntos, combinando o cris-tal e o colar. — Acha que vai funcionar? – perguntou Meithel desconfiado. — Tem que funcionar! Não viemos até aqui por nada. Só nos resta tentar… Meithel e Laserin ficaram um de frente para o outro. Ele segurava seu colar com as duas mãos e tentava realizar o feitiço que deveria le-vá-lo de volta ao seu lar; ela desejava a todo custo que o portal se abrisse e esperava que o cristal compartilhasse o seu desejo. Alguns segundos depois o colar de Meithel passou a emitir um fraco brilho e o cristal nas mãos de Laserin reagiu a ele, brilhando também. Os dois se concentraram ainda mais no que tinham de fazer. Meithel sentia que o feitiço não estava funcionando, mas esforçou-se ao má-ximo. O cristal de Laserin estava brilhando cada vez mais, e ela sentia a energia ser arrancada dolorosamente do seu corpo. O cristal estava consumindo a sua energia. Alguns segundos depois o brilho chegou ao auge e cegou a todos por alguns momentos, mas logo passou a min-guar… Elkens esperava ver os Domínios da Magia assim que a luz se apa-gasse, o único dos três Domínios que ainda não conhecia, mas a única coisa que viu assim que a luz do cristal se apagou foi várias monta-nhas em torno deles e muita água. Estavam em uma pequena ilha no

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meio de um grande lago circundado por montanhas gigantescas. Es-tavam no mesmo lugar!

— O que aconteceu? – Mifitrin perguntou extremamente decepciona-da, quase como se acusasse Meithel de ter feito algo errado. — Nada! – respondeu Kanoles como num deboche, embora também estivesse decepcionado. — Mas por que não aconteceu nada? – Mifitrin perguntou mais uma vez, sua irritação crescendo mais e mais. – Era para ter funcionado. Era para o portal ter sido aberto e era para estarmos lá dentro… Meithel não estava apenas decepcionado. Estava mortalmente decep-cionado. Desejou com todas as suas forças voltar para a casa, reen-contrar seus amigos e descobrir o que estava acontecendo por lá, mas não havia funcionado. — Era para ter funcionado – Mifitrin ainda insistia. – Meu tutor me disse isso. Ele disse que o cristal funcionava como uma chave para os Domínios da Magia. Elkens sabia que o que Mifitrin dizia era verdade, pois estava ao lado dela quando Morton dissera aquilo. — Talvez tenhamos compreendido errado, Mifitrin – Elkens tentava pensar em algo que pudessem ter ignorado, mas continuando sem qualquer resposta para o fato de o portal não ter sido aberto. Mifitrin apenas chacoalhou a cabeça e apontou um dedo acusatório para El-kens: — Você estava lá, bem do meu lado. Você também ouviu o que ele disse. Fizemos exatamente o que ele mandou. Não acredito que meu tutor estava enganado…

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— Seu tutor não se enganou – disse uma voz que veio detrás deles, sobressaltando-os. Quando Elkens e os outros se viraram para ver quem mais estava ali, Kanoles já havia tirado uma faca do cinto e atirado contra quem quer que fosse. A faca de Kanoles deu duas voltas no ar e fincou-se no chão logo ao lado do pé direito do intruso. Era um homem negro, ma-gro, sem cabelo ou barba. Usava um óculos de armação redonda. Es-tava todo vestido de branco, assim como Meithel, apesar de as vestes serem diferentes. Era indiscutivelmente um protetor da Magia. — Quem é você? – Kanoles perguntou em tom agressivo, sem tentar esconder que segurava o cabo de sua espada. O protetor negro apenas encarou Kanoles e sorriu, mas não disse na-da. — Se chama Gauton – Meithel respondeu por ele, apesar de estar tão sério quanto Kanoles. – Ele é um Mensageiro da Magia. — Isso mesmo – concordou o homem cujo nome era Gauton, falando pela segunda vez. – Obrigado por me apresentar, Meithel. — O que está fazendo aqui? — O mesmo que vocês, acredito. Mas vejo que vieram melhor prepa-rados que eu. — O que quer dizer? – perguntou Mifitrin. Estavam tão assustados por descobrirem que não estavam sozinhos ali, mas isso não era tudo. Depois do recente encontro com Mudriack, tinham motivos de sobra para não confiarem em qualquer protetor da Magia que não atendesse pelo nome de Meithel. Todos os outros deviam ser tratados como ini-migos até que se provasse o contrário. — Me refiro ao cristal de vocês.

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Ao ouvir isso, Laserin colocou discretamente o cristal em sua bolsa e segurou-a com as duas mãos. — Também foi enviado para roubar o cristal? – perguntou Meithel num tom acusatório. Gauton não era um dos que chamava de amigo dentro dos Domínios; jamais gostara muito do Mensageiro. Talvez fosse pela ocasião em que teve que apartar uma briga dele com Mudri-ack, talvez não. Mas definitivamente não gostava nem confiava mui-to nele. O sorriso malicioso permaneceu no rosto de Gauton por um breve se-gundo, mas logo foi substituído por uma expressão de ofensa e confu-são. — Do que está falando, Meithel? – perguntou ele aparentemente sem compreender. – Por que eu iria roubar o cristal de vocês? Alguém já tentou fazer isso? Meithel avaliou se Gauton estava fingindo ou se estava sendo since-ro, mas não conseguiu se decidir, então respondeu: — Quase fomos mortos por causa deste cristal. Tem alguém lá dentro dos Domínios da Magia querendo muito este cristal… — Mas por quê? — Para nos impedir de usá-lo para entrar nos Domínios. Seja quem for o responsável pelo portal estar trancado, também está querendo impedir que entremos lá usando o cristal. – Meithel pensou em dizer que suspeitava de Shiron e outros Cavaleiros da Magia, mas não sabia se confiava o suficiente em Gauton para dizer isso. — Mas como isso é possível…? Quem tentou roubar o cristal? — Mudriack! Gauton ficou tão surpreso com a notícia que não soube o que falar. Obviamente ele sabia da grande amizade entre Meithel e Mudriack e, assim como Meithel esperava que fosse, ficou sem saber o que dizer.

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— E onde ele está agora? — Morto! – respondeu Meithel com a voz firme, apesar de sofrer ainda mais ao dizer isso em voz alta. A dor de Meithel e a surpresa de Gauton fez com que a conversa ter-minasse ali, pois ninguém conseguiu dizer mais nada. Respeitando a dor do amigo, Mifitrin decidiu deixá-lo de lado na conversa e partir para assuntos mais importantes com o estranho. — Como sabe sobre este cristal? – ela perguntou. — Logicamente que conheço este cristal – respondeu Gauton voltan-do a sorrir. – Sou um Mensageiro da Magia. Conheço por obrigação o Cristal de quatro Faces. — Por que estava escondido? – Kanoles entrou na conversa. Nem que tentasse conseguiria esconder a suspeita que tinha por Gauton. Sua confiança não seria conquistada simplesmente por meia dúzia de pa-lavras das quais ele não entendia nada. O fato de Meithel conhecê-lo de nada importava. Meithel também conhecia Mudriack, e olha só o que ele fez… — Eu vim até aqui para tentar entrar nos Domínios da Magia – Gauton tentou se explicar. Parecia ofendido pela persistente desconfi-ança de Kanoles. – Estranhei quando o portal não se abriu para eu entrar, mas já estava indo embora quando avistei vocês vindo naquela ponte mágica. Percebi no mesmo instante que a ponte foi criada por um protetor da Magia e por isso resolvi esperar. Mas estão acontecen-do coisas muito estranhas e já não é prudente confiar em um antigo companheiro, por isso usei magia para me esconder e ver o que vocês estavam vindo fazer aqui. Pensei que poderia obter respostas, mas agora vejo que sabem tanto quanto eu e que também estão presos do lado de fora.

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— Então nos viu quando aquela criatura nos atacou e mesmo assim continuou escondido? – Kanoles deixava ainda mais claro que não confiava no outro. Matá-lo agora acabaria com qualquer possibilidade de serem atacados mais tarde. Era a coisa mais sensata a ser feita na opinião do caçador de recompensas e ele realmente queria fazer isso. — Eu já disse: não sabia se poderia confiar em vocês. Por que eu iria correr perigo para ajudá-los se nem ao menos sabia o que estavam vin-do fazer aqui? Kanoles parecia preparado para lançar mais uma pergunta sobre Gau-ton para deixar claro que ele não era confiável, mas Mifitrin resolveu interferir. Não queria saber quem Gauton era ou se era de confiança, queria respostas. Apenas isso. — Por que disse que o meu tutor não estava errado? Como pode afir-mar isso? — O seu tutor não se enganou. O cristal é uma chave, eu sei disso. — Se é uma chave, por que o portal não se abriu? — Porque cada porta tem sua chave certa. O cristal realmente é uma chave, mas não deste portal. Aquilo atingiu a todos de forma brutal. Então estavam enganados o tempo todo. Haviam perdido todo o tempo que levaram para chegar ali e passaram por todos os perigos por nada. — Então não poderemos entrar nos Domínios da Magia? – pergun-tou Meithel voltando à conversa. — Deixe-me explicar melhor – disse Gauton. – O Cristal de quatro Faces é a chave para o portal principal dos Domínios da Magia. Mas vocês não têm o Cristal completo, tem apenas um pedaço da chave. Precisam de todas as quatro faces para abrir o portal, mas vocês só têm uma.

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— Então se quisermos entrar nos Domínios da Magia precisaremos encontrar os outros três cristais que estão faltando? – perguntou Meithel desesperado. – Isso pode levar semanas, talvez meses… — Mesmo se procurássemos por meses seria impossível encontrar to-dos os cristais, pois os três que estão faltando estão dentro dos Domí-nios da Magia – Gauton explicou. – Nunca teremos a chave comple-ta. O que precisamos fazer é muito mais simples. Precisamos apenas descobrir qual porta a chave de vocês abre. — Como assim? Gauton agora estava sorrindo. Estava contente em explicar que ainda havia um modo de entrar. — O Cristal de quatro Faces é a chave do portal principal. Mas es-tando separadas, cada uma das faces funciona como uma chave isola-da. Cada face abre um dos quatro portais paralelos. Agora Mifitrin também sorria. — Então quer dizer que podemos abrir um dos portais paralelos com o cristal? – o plano era perfeitamente simples. Precisavam apenas des-cobrir qual portal paralelo se abria com o cristal de Laserin. Os por-tais paralelos só podiam ser usados por Mensageiros, mas convenien-temente Gauton se juntara a eles e agora isso seria possível. Ainda não estava tudo arruinado. – E como saberemos qual portal podemos abrir com este cristal? — Eu já lhes disse: sou um Mensageiro da Magia. Conheço tudo so-bre os portais e suas chaves. Por acaso vocês sabem qual é a face que vocês têm? — É a terceira – disse Mifitrin se lembrando do que Tûm lhes conta-ra quando ainda estavam no vilarejo Rismã.

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— Bem – começou Gauton deixando de sorrir, mas ainda assim ani-animado. – A terceira face do Cristal abre o portal paralelo que fica nas Montanhas Gêmeas: Netai e Ketai… — Como? – perguntou Mifitrin surpresa. – Quer dizer que precisa-remos ir até Netai e Ketai se quisermos entrar nos Domínios da Ma-gia? — Sim!

Escureceu. Em silêncio, Kanoles procurou alguns gravetos e colocou-os no meio de um círculo de pedras. Ali acendeu a fogueira para que pudessem se aquecer. Passariam a noite ali e ela seria fria. Mesmo du-rante o auge do verão, seria impossível passarem uma noite agradável no centro do lago Lushizar. — O que era aquela coisa, Meithel? – Mifitrin perguntou quando os cinco se sentaram em torno da fogueira e se prepararam para comer algo antes de dormir. Gauton não ficou perto deles, talvez pelo poten-cial desconforto que a desconfiança de Kanoles em relação a ele pro-porcionava. Meithel segurava uma pequena pedra branca nas mãos que encontrara por acaso e estudava-a pensativo; por algum motivo a pedra branca trouxera lágrimas quase imperceptíveis aos seus olhos. — Não sei – respondeu sem erguer os olhos para ela. – Nunca vi na-da igual. Mas você deve conhecê-la, não conhece Elkens? — Sinto muito, Meithel – Elkens encarava o amigo, sendo o único que percebia que um sofrimento se recaíra sobre ele. Não sabia quais lembranças a pedra branca em suas mãos lhe traziam, mas percebia que o fazia sofrer.Porém não tocaria no assunto, era melhor assim, por

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isso prosseguiu: – Mas aquela criatura não está no Santuário Rubi. Aquilo não é um animal, deve ser um… — Demônio! – completou uma nova voz, sobressaltando o grupo pela segunda vez em poucas horas. Novamente todos se viraram para trás para ver quem dizia e mais uma vez Kanoles já havia atirado sua faca aos pés do estranho. O homem se abaixou e pegou a faca de Kanoles que estava fincada no chão, então a devolveu ao seu dono. O homem estava todo molhado, supostamente havia acabado de sair da água. Usava roupas negras, assim como Kanoles, mas não parecia ser um guerreiro ou algo do tipo. Tatuagens negras cobriam seu rosto e seus braços que estavam visí-veis, e parecia que se estendiam por todo o corpo sob a roupa. Os sím-bolos gravados em sua pele eram completamente desconhecidos para qualquer um do grupo. Sua orelha esquerda era toda furada por argo-las, mas a direita continha apenas uma única argola dourada; um brinco solitário. As mãos continham anéis e os pulsos pulseiras. A única arma que carregava era um estranho chicote preso às costas, além de um bastão dourado, mas havia uma quantidade exorbitante de outras coisas estranhas por todo o seu corpo. Pequenos frascos pen-durados ao cinto, talismãs, correntes, presas de algum tipo de animal, ou demônio, entre tantas outras coisas estranhas. Laserin não quis nem imaginar o que aquele homem guardava em sua bolsa que trazia pendurada no ombro. — Quem é este homem? – Kanoles perguntou agressivamente para Gauton. Porém, Gauton estava tão surpreso quanto os outros e, pela primeira vez, Kanoles reconheceu a sinceridade em sua expressão. — Eu não sei – respondeu ele ainda surpreso. Kanoles acreditou.

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— Meu nome é Karnar – o estranho se apresentou e Kanoles perce-beu que sua voz continha um tom hipnotizante. — É um protetor? – perguntou Meithel descrente. — Não. — Mas posso sentir magia no seu corpo. — Sou um domador de demônios. Ninguém disse nada. — O que faz aqui? – Kanoles voltou a perguntar. — Estou aqui há três dias estudando o demônio que quase matou vo-cês. — Mentira! – Gauton exclamou. – Estou aqui há horas e é a primei-ra vez que te vejo… — Você está aqui há muitas horas – confirmou Karnar com seu tom de voz calmo e hipnotizador. – Pra ser mais exato você está aqui há um dia e meio. Vi quando você se teletransportou da margem do lago até aqui. Se não estou enganado, diria que estava esperando essas pes-soas desde ontem. Estava nos esperando?, pensou Meithel confuso. Como poderia saber que estávamos vindo? — Como eu poderia estar esperando por eles? – retrucou Gauton se irritando, então refez a pergunta de Meithel em voz alta: – Como po-deria saber que eles estavam vindo? Karnar não respondeu. Apenas continuou encarando Gauton com seu olhar penetrante. Aquele olhar não era normal. Era perturbador. Após algum tempo ele pareceu se cansar da conversa. — Não me importo com isso. Não me importo com nenhum de vocês e não me importo com o fato de estarem aqui. Não importo nem mesmo com o que vocês estão fazendo aqui. A única coisa que me importa neste lugar é o demônio que está no fundo do lago.

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Mais uma vez ninguém disse nada. O estranho que se dizia um do-mador de demônios parecia completamente indiferente à presença de-les ali; estava com o olhar fixado nas águas escuras do lago como se pudesse ver algo ali que os outros não viam. — Você estava na água! – Mifitrin percebeu ao observar que o do-mador estava todo molhado, admirada e assustada em iguais propor-ções. Karnar desviou os olhos do lago e olhou para Mifitrin como se tivesse acabado de reparar que havia alguém ali. Mifitrin encarou Karnar por um momento e então reparou em seus olhos. Não pareciam olhos humanos. Eram olhos de felino. Olhos brilhantes e amarelos como os olhos de um tigre. — Eu estava na água – ele confirmou – e estou voltando para lá. Ele passou a passos calmos ao lado de Mifitrin e seguiu para a mar-gem do lago. — Você é louco! – ela exclamou, olhando para as costas do domador. – Sabe o que tem lá dentro, não sabe? Karnar, sem se virar para trás e ainda andando, respondeu: — Sei. É um espécime de demônio criado recentemente. Foi criado com o propósito de exterminar qualquer forma de magia que se apro-xime do lago. Meithel, Mifitrin e Elkens se encararam. Sem intenção, Karnar deu a eles mais motivos para ficarem preocupados. Até onde sabiam, ou sus-peitavam, o Cavaleiro da Magia Shiron havia reunido outros Cavalei-ros para atacar e derrubar Zander, o Guardião da Magia. Por algum motivo ele trancou o portal depois que Meithel saiu dos Domínios da Magia e lá dentro convenceu outros protetores a se unirem a ele. As-sim enviou Mudriack para pegar o cristal e impedir a entrada de qual-quer um que pudesse derrotá-lo. Agora sabiam de mais uma coisa: Shi-

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ron havia conseguido poder o bastante para ser capaz de criar um demônio extremamente poderoso que pudesse matar qualquer protetor que se aproximasse do portal. Seja qual for o plano de Shiron e seus aliados, eles haviam conseguido muito poder em pouco tempo e isso não era um bom sinal. Meithel correu atrás de Karnar e segurou-o pelo braço, obrigando-o a parar de andar e se virar para ele. — Como pode dizer que esse demônio foi criado para exterminar ma-gia? — Você entende sobre magia, rapaz – disse Karnar com seu tom de voz calmo – eu entendo sobre demônios. Sei também que este demônio não foi criado aqui e, pelo pouco que ouvi vocês falando desde que chegaram, esse demônio veio de dentro dos Domínios da Magia. — Como sabe? — Já disse: não sei. Apenas ouvi vocês conversando e, pelo o que eu entendi, aquele demônio foi a última coisa que atravessou esse portal antes de ser trancado – Meithel ficou perturbado com as coisas que Karnar dizia. Se isso fosse verdade, se o demônio realmente foi criado dentro dos Domínios com aquele propósito, Meithel e os outros teriam sérios problemas. – E mais uma coisa: – Karnar continuou – Por al-gum motivo aquele demônio também está matando os cumpassins, mesmo eles não sendo criaturas mágicas. Karnar deu as costas para Meithel e continuou seguindo em direção ao lago. O que Karnar disse fez Meithel meditar por alguns segundos, mas logo compreendeu. Fazia todo o sentido: os cumpassins são co-nhecidos como protetores de protetores. Eles garantem que os proteto-res cheguem à ilha em segurança. Fazia todo o sentido que o demônio tentasse matá-los.

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Karnar finalmente chegou à margem do lago, e ali ficou parado por algum tempo. Ele colocou a mão em um dos bolsos internos de suas vestes e tirou algo de lá. Assim que estendeu a mão, o objeto que havia pego em seu bolso brilhou com a luz de Listel, ou da lua, como Laserin a conhecia, e todos viram que se tratava de um amuleto de ouro. Kar-nar girou o amuleto duas vezes o ar, então arremessou-o para o lago. O amuleto, ao contrário do que pensavam, boiou sobre a superfície da água. Karnar continuou imóvel, apenas resmungando coisas indeci-fráveis, como se aguardasse algo acontecer. E logo aconteceu: um enorme tentáculo verde viscoso emergiu da água exatamente no ponto onde o amuleto de ouro boiava. — CUIDADO! – gritou Mifitrin enquanto corria para ajudá-lo, mas Kanoles a segurou, impedindo que fosse ajudar o estranho. — O que está fazendo? – ela perguntou. Kanoles apenas apontou para frente, como se mandasse Mifitrin ver o que acontecia. Ela olhou e o que viu a espantou. O tentáculo estava imóvel. Estava apenas a alguns metros do domador de demônios, mas ainda assim parecia não querer atacá-lo. Mifitrin logo reparou: pare-cia não conseguir atacá-lo. Karnar parecia indiferente ao fato de um tentáculo de um imenso de-mônio estar parado logo a frente dele. Apenas continuou o seu ritual. Depois que o tentáculo surgiu, Karnar começou a fazer gestos estra-nhos com a mão. Girava as mãos em direção opostas, de forma ritma-da, e seus dedos se contorciam de uma forma completamente estranha. Continuou com os gestos por vários segundos, cada vez mais rápidos, e de repente parou tudo e apontou uma das mãos para frente. Todos olharam para onde ele apontava, mas não havia nada lá, a não ser as águas escuras do lago que se estendiam até a margem oposta, onde estava a montanha Monaltag e o túmulo de Mudriack dentro

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dela. Um segundo depois surgiu algo… Estava muito longe, mas ainda assim na direção em que Karnar apontava. Era mais um tentá-culo. — Vamos… – Mifitrin pôde ouvi-lo resmungando. – Onde você es-tá? Karnar recomeçou os gestos estranhos com as mãos e, assim que termi-nou, apontou para uma nova direção e lá surgiu o terceiro tentáculo. Cada vez que um tentáculo surgia, Karnar recomeçava a fazer os ges-tos e apontava na direção em que, um segundo depois, aparecia um novo tentáculo. Então ele recomeçava tudo de novo até que doze ten-táculos apareceram sobre a superfície do lago. Os doze tentáculos es-tavam dispostos na forma de um grande circulo no lago, todos eles imóveis. O diâmetro do círculo formado pelos tentáculos parecia se aproximar de oitenta metros, talvez mais, talvez menos. — O que está fazendo? – perguntou Gauton ao domador de demô-nios. — Este demônio não deveria estar aqui – Karnar respondeu sem olhar para trás. – Não devo permitir que ele continue aqui, não sob as circunstâncias para as quais foi criado. Sou um domador de demônios e esta é a minha obrigação. O próprio demônio deseja partir, mas a magia que o criou o obrigada a ficar e a fazer essas coisas… Gauton enraiveceu-se com a resposta do domador: — Você está intrometendo-se em assuntos que não são da sua conta. Não pode sair por aí se intrometendo nos assuntos dos Elementos… — Gauton! – Meithel interrompeu-o. – Se ele pode fazer alguma coi-sa contra esse demônio não devemos impedi-lo. — Você não percebe? – perguntou Gauton ainda irritado, virando-se para Meithel. – Se é verdade que esse demônio foi criado por um dos nove, significa que ele pode ter respostas…

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— Mas ele está matando os cumpassins! Gauton pareceu murchar. Não disse nada, nem tinha argumentos para fazê-lo. Karnar continuava com seus gestos estranhos e resmungos indecifrá-veis. Desta vez os gestos estavam diferentes; parecia que ele tentava levantar alguma coisa invisível que estava diante dele. — Aí está você! – Mifitrin ouviu-o resmungar mais uma vez. Ele olhou para trás e sorriu para eles. Laserin deixou escapar um grito de susto quando viu os olhos de Karnar: estavam completamente bran-cos. Não eram olhos humanos. Não podiam ser… A água do lago ficou muito agitada de repente, embora não houvesse vento. Parecia haver uma luta dentro da água, e foi então que Mifi-trin entendeu o que significava. Logo em seguida ela teve sua confir-mação, quando mais uma coisa emergiu, mas desta vez não era um tentáculo. Exatamente no centro do círculo formado pelos doze tentáculos, sur-giu algo. Era grande, feio e viscoso, da mesma cor dos tentáculos. A coisa emergiu lentamente, mas a maior parte ficou submersa. Logo to-dos compreenderam: era a cabeça do demônio! Karnar tinha os braços erguidos, como se estivesse segurando algo pe-sado e invisível. Olhou para trás mais uma vez e disse para Meithel: — Consegue me levar até a cabeça? Meithel levou algum tempo para entender o que ele queria dizer, mas então concordou com um aceno de cabeça. A um sinal de Karnar, Meithel tocou seu colar com uma das mãos e iniciou um feitiço de le-vitação. O corpo de Karnar levitou-se no ar e logo começou a avançar sobre a água do lago, em direção à cabeça do demônio. Quando estava levitando sobre ela, Karnar fez um sinal para Meithel soltá-lo e ele obedeceu. Karnar caiu de joelhos sobre o demônio.

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— Ele é louco! – Kanoles sussurrou ao lado de Mifitrin, embora olhasse admirado para a cena e sorrisse com tal feito de coragem e lou-cura. Ele é um dos meus, pensou. Ainda de joelhos, Karnar colocou uma das mãos sobre a cabeça do de-mônio e passou a resmungar algo que ninguém pôde ouvir, pois esta-vam muito longe. Logo os doze tentáculos passaram a se contorcer. Parecia que o demônio estava sentindo dor. Muita dor. Karnar levantou-se de repente e tirou o bastão de ouro que estivera preso às suas costas. No momento em que tocou a cabeça do demônio com o bastão, gigantescas ondas levantaram de todos os lados e ruma-ram até onde estava Karnar e o demônio. — Ele realmente é louco! – exclamou Kanoles um pouco mais alto. Mifitrin pensou se deveria fazer algo para ajudar ou não, mas esta-vam muito longe e seria quase impossível. As ondas gigantes vieram de todos os lados e engoliram Karnar e o demônio. Os tentáculos tam-bém voltaram para dentro da água, como se as ondas houvessem joga-do o demônio de volta para as profundezas. Todos olhavam para o lago sem entender o que estava acontecendo. Pouco tempo depois viram um brilho no meio da água e segundos de-pois avistaram uma alma sair do lago e voar para os Domínios da Al-ma. — De quem é aquela alma? – Mifitrin perguntou para Elkens, como se o Sacerdote tivesse a obrigação de saber. Elkens apenas balançou a cabeça de um lado para o outro, mas alguém respondeu por ele: — Não era minha! Karnar estava logo atrás deles, completamente encharcado. Havia acabado de sair da água. — O que aconteceu no lago? – perguntou Mifitrin surpresa em ver o estranho ainda vivo.

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— Tentei domar o demônio para poupá-lo – Karnar continuava usando seu tom absurdamente calmo, como se nada tivesse acontecido – mas não consegui. — Então a alma que vimos era dele? – perguntou Elkens já sabendo da resposta. – Você o matou! — Você – disse Karnar se virando para Elkens – mais do que nin-guém, deveria me entender. Um demônio é um ser criado por magia. Uma vida criada por outra. Mas não há vida sem alma, então muitas vezes a alma é aprisionada ao corpo para que o demônio possa existir. Era isso o que estava acontecendo. Ele estava sendo forçado a viver sob aquela forma por magia; eu tive que libertá-lo. A magia que o cri-ou era imperfeita; ele estava sofrendo! Karnar deu às costas e seguiu para longe deles. Mifitrin olhou para sua nuca e gritou: — Vamos partir amanhã! Pode vir conosco se assim desejar. Karnar parou. Não olhou para trás, mas Mifitrin poderia jurar que ele estava sorrindo. Passariam a noite naquela ilha, mas acordariam cedo no outro dia pa-ra partir. Ainda tinham o mesmo objetivo, mas o caminho havia mu-dado. Precisam seguir para as Montanhas Gêmeas e para isso contari-am com mais ajuda. O destino já está escrito, Mifitrin sabe disso, mas sabe também que ele não é perfeito. Um simples fato imprevisto, um erro de cálculo, um se-gundo a mais; isso é o suficiente para que as coisas não saiam como estavam escritas e o destino é reescrito. Mas por mais que ele seja rees-crito, o futuro ainda será terrível, mas são os pequenos fatos, os pe-quenos erros de cálculos, os poucos segundos a mais, que poderão alte-rar o destino do Gardwen…

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