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SacerdoteS 27.5 - ESPECIAL

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Tudo em seu tempo

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Capítulo ESPECIAL – Tudo em seu tempo Apenas mais um dia ensolarado… A brisa refrescante mal agitava as folhas da grande figueira. O rio corria calmamente ao lado da árvore, um rio de águas claras, onde al-guns homens da cidade passavam manhãs como esta pescando com seus filhos. Mesmo sentados à sombra da figueira, o calor ainda era causticante. Pequenos frutos caíam da árvore enquanto estavam ali, frutos que caíam de maduros ou, vez ou outra, eram derrubados por pássaros que andavam por seus galhos. Três tucanos estavam num dos galhos mais altos da árvore, comendo seus frutos indiferentes aos que estavam lá embaixo, indiferentes ao que estava acontecendo lá, indife-rentes ao fato de uma menina estar admirando-os neste momento, achando-os graciosos, belos, e apreciando seus longos bicos coloridos: amarelos, vermelhos e pretos. Grande Cidade de Alaislude, reino de Mondel. Conhecida como Gran-de Cidade da Paz, reino dos homens justos, onde todos vivem pacifi-camente, onde não há violência, não há guerras; local em que homens de toda Gardwen vem para passear e acabam decidindo ficar, pois aqui há um lugar para todos; aqui todos são bem vindos. A beleza de Alaislude é retratada por toda Gardwen, pois é nesta cidade que nas-cem os grandes artistas. Sejam pintores, cantores, escritores… dizem que a paz que reina em Alaislude é propícia para despertar o dom que qualquer um carrega dentro de si, dom que dificilmente seria desperta-do em outros locais. A cidade atrai tantos viajantes e comerciantes que se tornou um grande pólo de comércios, o que a fez prosperar em anos o que outras cidades levariam um século ou dois. E é nos limites de Alaislude, à margem do Rio Dourado e à sombra da frondosa figueira, que o professor Helder decidiu dar sua aula hoje.

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Seus alunos, todos com idades entre oito e dez anos, apreciavam a sombra refrescante enquanto ouviam a voz do professor. O rio ao lado tentava-os para um refrescante mergulho que o professor não permiti-ria. Nesta aula estavam discutindo sobre o que cada um queria ser quando crescesse; alguns escolhiam a profissão dos pais, como já era esperado, outros escolhiam coisas tão absurdas que faziam o professor rir. Ao lado da menina que admirava os tucanos, seu irmão mal se continha de vontade de falar. Estava ansioso para expressar seu obje-tivo e o professor Helder reparou nisso: — Sua vez Victor – ele disse. – Diga-nos: o que quer ser quando cres-cer…? — Um protetor! – disse o garoto mal esperando o professor terminar seu convite. Alguns colegas olharam assustados para ele, outros solta-ram gargalhadas, mas foi sua irmã quem falou: — Protetores são lenda, Victor. Papai já disse para você parar de pensar nisso… Victor pareceu decepcionado diante de toda a turma. Ele, com dez anos, encarou a irmã, quase dois anos mais nova que ele, e sentiu-se envergonhado por ter sido ela quem o repreendeu. Mas ela desviou os olhos dele e voltou a apreciar os três tucanos no alto da figueira. — Não, não – o professor disse, interrompendo alguns de seus alunos que riam do objetivo de Victor. – Muito do que ouvimos é lenda sim, mas os protetores realmente existem. Isso é um fato: protetores existi-ram e ainda existem. Embora não andem mais entre nós, como as his-tórias contam, eles ainda existem. As histórias são mais difundidas nas Grandes Cidades, por serem mais antigas, e inclusive aqui em Alaislude há muitos registros de seus feitos. Não vou falar muito dis-so agora, pois preparei o assunto para nossa aula da semana que vem. Vou levá-los à biblioteca e lhes mostrarei que protetores não são len-

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da; assim vocês irão pedir desculpas ao Victor por rirem dele e tenho certeza que muitos passarão a ter o mesmo objetivo que ele; os prote-tores são realmente fascinantes. Mas isto é para a semana que vem. Agora nos diga, Victor, por que quer ser um protetor? O rosto do garoto estava corado, mas sorria alegremente enquanto Helder o defendia dos colegas. Os alunos que riam já haviam parado e, após o comentário de Helder, todas as atenções se voltaram para ele, inclusive de sua irmã. — Porque eles são fortes – respondeu com a simplicidade e inocência de uma criança. – Eles usam magia e fazem coisas… hilárias! — Mas você sabe qual é a obrigação de um protetor? – o professor lhe questionou. — Proteger? – ele arriscou, sem certeza do que dizia. Helder sorriu e lhe incentivou a continuar falando: ‒ É, para proteger! É isso o que eu quero: ser forte para proteger as pessoas ‒ ele olhou de relance para a irmã, corando, mas voltou seu olhar para o chão quando continuou a falar: ‒ Papai vive me dizendo que eu tenho que cuidar da minha irmã e da minha mãe quando ele sai da cidade. É por isso que vou me tornar um protetor, para protegê-las… — Não preciso que me proteja – disse a irmã sorrindo. – Nada vai acontecer aqui em Alaislude. Por que você não escolhe alguma coisa mais divertida? O irmão, apenas um palmo mais alto que ela, pareceu diminuir diante dela. O professor sorriu enquanto olhava para os dois. Eram tão dife-rentes e ao mesmo tempo tão parecidos. Na fisionomia a única coisa que os ligava eram os olhos intensamente azuis, olhos que ambos her-daram da mãe, Margarida. Mas os cabelos eram do pai, assim como o gênio de cada um. Eram corajosos, determinados e ousados. Victor podia ter dez anos mas, quando se tratava da irmã, assumia a postura

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de um homem. Era definitivamente um protetor: o protetor dela. Ela, com os cabelos compridos e meio cacheados, presos num rabo disforme, parecia desafiá-lo com o olhar, rejeitando sua proteção. Seu rosto con-tinha sardas que herdara do pai, mas a boca grande era idêntica à de Margarida, definitivamente. — Sabe por que ele não escolhe outra coisa mais divertida? – o pro-fessor perguntou, agachando-se de frente para a irmã e encarando-a nos olhos. – Porque é o objetivo dele. E você irá aprender um dia, as-sim como seu irmão, que não desistimos dos nossos objetivos facilmen-te. Se você desistir dos seus objetivos, sua vida perde a graça Mifitrin. A garota ergueu as sobrancelhas, mantendo aquele olhar desafiador no rosto. Olhou brevemente para Victor e disse: — Que seja, mas não muda o fato de protetores serem sem graça. Eu quero ser uma pesquisadora. — Ora, ora… ‒ o professor Helder levantou-se, dando as costas para a aluna e seguindo para a pedra em que estivera sentado durante toda a aula. ‒ Você já sabe o que quer pesquisar? Ela olhou para os tucanos no alto da figueira em tempo de vê-los vo-ando para outro galho onde havia mais frutos. — Pássaros! Quando eu crescer irei viajar por toda Gardwen e conhe-cer todos os tipos de pássaros. Admirado com tal objetivo vindo de uma criança de oito anos, Helder disse: — Viajar por Gardwen pode ser perigoso. Seria muito bom ter um protetor do seu lado… Mifitrin e Victor se encararam. O irmão corou novamente diante do olhar da irmã, que parecia avaliá-lo para decidir se era o suficiente pa-ra protegê-la.

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— Tanto faz – ela disse por fim. – Sendo protetor ou não, Victor vai me acompanhar de qualquer jeito. Preciso que alguém desenhe os pás-saros para mim, e ele desenha muito bem. Aonde quer que eu vá, Vic-tor irá comigo, não é irmão? — Sempre – respondeu o garoto, orgulhoso de si. – Papai disse que eu nunca vou poder abandoná-la, Mifitrin.

O cheiro de feijão chegou às narinas de Mifitrin quando ela entrou na cozinha. Victor entrou logo atrás dela, sempre atrás. Hoje era folga da empregada, por isso comeriam a comida da mãe de que tanto gosta-vam. — Podem lavar as mãos – disse Margarida sem se virar para ver os filhos, ocupada com uma panela ao fogo. – O almoço está pronto. Vic-tor chame seu pai, ele está lá em cima. Morta de fome, Mifitrin correu a lavar as mãos no banheiro, voltando rapidamente para a cozinha. Quando se aproximou da mãe, para aju-dá-la com as panelas, Margarida deu-lhe um rápido beijo na cabeça. — Como foi a aula hoje, querida? Mifitrin ajudou a mãe a colocar as panelas na mesa, e foi a primeira a tirar a comida, sem esperar pelo pai e o irmão. — Não precisamos escrever nada, ainda bem. Odeio escrever… O professor Helder nos levou até a figueira de novo. A mãe riu, fingindo não ter visto Mifitrin derrubar um punhado de arroz fora do prato. A menina era tão apressada no que fazia, tão de-sajeitada… — Helder gosta mesmo daquela figueira – ela disse. – Me lembro que ele já nos levava lá quando era meu professor.

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— Eu também gosto – disse Mifitrin finalmente se sentando e le-vando a primeira colherada de comida à boca. – Hoje nos só conver-samos. Ele nos fez dizer o que queremos ser quando crescermos… Vic-tor continua com aquela história de ser protetor… — Deixe de pegar no pé do seu irmão, Mifitrin – a mãe colocou suco num copo e levou-o para a filha, já que esta havia se esquecido de pe-gá-lo. ‒ É o que ele quer ser… e sabemos que é só por brincadeira. Vo-cês são crianças ainda, não precisam levar essas coisas tão a sério. Daqui uns quinze ou vinte anos aposto como você vai ser professora, assim como eu, e talvez Victor também… — Não – Mifitrin tomou um gole de suco para empurrar a comida, já que não conseguia parar de falar. – Se ele não for um protetor, aposto como trabalhará na guarda da cidade. Acho que ele gosta de lutar… Margarida terminava de tirar um prato de comida, não para ela, mas para o filho mais velho cujas vozes ela já ouvia. Ele e o pai estavam chegando. — Victor vive por você, Mifitrin. Ele vai onde você for, fará o que for preciso para estar do seu lado. Ele se preocupa com você e tem me-do de deixá-la sozinha. É bom você se acostumar a isso, pois vai ter que aturá-lo sua vida toda… aonde você for, Victor irá também. Neste momento pai e filho entraram na cozinha. A mãe entregou o prato de comida feito para o garoto e passou a fazer o prato do mari-do. Arthur deu um beijo na filha, depois na esposa, e sentou-se ao lado de Victor. — Me disse que iríamos treinar quando estivesse de folga – o filho cobrava de Arthur. – Disse que me ensinaria a lutar, mas está enro-lando há semanas… A mãe lançou seu olhar severo para o marido, embora nenhum dos fi-lhos tivesse visto.

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— Não – o pai o corrigiu sob o olhar de Margarida. – Eu disse que te ensinaria a se defender. É diferente de lutar. E estou de folga ho-je… podemos treinar a tarde toda. — Hoje não posso. Mifitrin e eu vamos procurar um lugar para enter-rar nossa cápsula do tempo. — Ah, a cápsula do tempo? – perguntou o pai num tom irônico que apenas a esposa percebeu, como se aquilo fosse algo realmente impor-tante. – Vocês já sabem o que vão pôr nela? — Mais ou menos… ‒ Mifitrin respondeu antes que Victor tivesse a chance de estragar tudo – mas é segredo. Só Victor e eu podemos saber o que há nela. O irmão concordou com um aceno de cabeça, tomando todo o suco de um único gole. Assim que terminou de comer, em questão de poucos minutos, Mifitrin levantou-se da cadeira. — Vou subir para o meu quarto. Você vem, Victor? — Não, ainda não terminei de comer… Ele parou ao ver o olhar que a irmã lhe lançara, muito parecido com o que Margarida havia lançado a Arthur ainda há pouco. — Ah, sim – ele engasgou-se com a comida. – Me esqueci. Também já terminei de comer. E deixando metade da comida ainda no prato, seguiu Mifitrin para o quarto dela, no andar de cima. Viu-a escondendo as mãos a frente do corpo enquanto subiam e imaginou o que havia nelas. No andar de cima havia quatro quartos: o primeiro era o de Mifitrin, que ficava ao lado do quarto de Victor. O próximo quarto estava desocupado, pois o usavam muito raramente para hospedar alguém, e o último quarto era do casal. Eles entraram na primeira porta e, assim que a fechou as su-as costas, Victor tomou o cuidado de trancá-la.

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Mifitrin abriu as mãos e ele viu nelas um punhado de arroz que ela havia pegado sem que a mãe percebesse. — Pegue ela para mim – Mifitrin pediu, pois estava com as mãos ocupadas. Victor correu para a escrivaninha que ficava diante da ja-nela. Puxou a cadeira e, escondido atrás dela, havia uma pequena cai-xa de papelão. Ele colocou a caixa sobre a escrivaninha e mexeu nos panos, encontrando a pomba ainda quietinha ali. Mifitrin se aproxi-mou e colocou o punhado de arroz num pote já vazio, enquanto o ir-mão pegava o outro pote para trocar a água. Quando ele voltou, com água nova, ela perguntou: — Acha que ela vai conseguir voar de novo? Aquele remédio que de-mos para ela foi o que fez meu braço parar de doer quando eu caí da figueira, lembra? Se serve para braços, deve servir para asas também, não acha? Victor não respondeu, assumindo uma expressão de dúvida. — Ela já está aqui há três dias – ela disse enquanto ela acariciava a cabeça da pomba machucada, que agora não tentava afastar-se mais do seu toque. Parecia ter-se acostumado a ela, parecia ser capaz de sentir o carinho que havia naqueles toques e naqueles punhados de ar-roz que ela trazia três vezes por dia. – Acha que ainda vai demorar muito para ela melhorar? — Eu não entendo muito Mifitrin, mas eu já te disse que acho que ela quebrou a asa. Quando você quebrou o dedo, ele levou um tempão para sarar, não foi? Se ela não ficar boa até o final de semana, a gente leva ela para o professor Helder; ele saberá o que fazer… — Vamos ter que engessá-la? – perguntou assustada. Victor balançou a cabeça de um lado para o outro, em dúvida.

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Meia hora depois a pomba estava novamente em seu esconderijo, sob a escrivaninha, atrás da cadeira. Mifitrin e Victor desceram correndo as escadas e não pararam de correr quando ouviram a voz da mãe: — Aonde vão, crianças? — Achar um lugar para enterrarmos nossa cápsula do tempo – Mifi-trin respondeu, já passando pela porta da cozinha e saindo da casa. — Não se atrasem para o jantar. Teremos visitas hoje… Mifitrin não respondeu, deixando que Victor se comprometesse com a mãe. Eles correram sem parar, e seus pés eram tão acostumados a fazer aquele caminho que nem precisaram combinar o destino. Victor, como sempre, corria atrás de Mifitrin. — Vamos ver quem ganha? – ela o desafiou, mas ele era tão acostu-mado a deixá-la ir à sua frente que perdeu mais uma vez, pois quem tocou no tronco da figueira primeiro foi ela. Ali estavam, no mesmo lugar que costumavam passar todas as tardes. A figueira, tão antiga quanto a cidade, ao lado do Rio Dourado que trazia suas águas man-sas de longe e as levavam para longe. Eles subiram pelo tronco da árvore com incrível facilidade; seus pés já sabiam onde pisar e os levaram para os galhos mais acima. Quando se aconchegou em seu lugar, Mifitrin procurou pelos tucanos, mas eles não estavam ali. Com certeza estariam no pomar do senhor Olívaras, ou no bosque além. Eram seus lugares favoritos. — Muito bem – disse Victor sentando-se em seu lugar na figueira, três galhos ao lado dela. – Quais são as suas opções? A garota colocou as mãos atrás da cabeça e deitou-se no galho em que estava. Victor ficou atento, pois foi desta maneira que ela caiu da úl-tima vez; deitou no galho, desequilibrou-se e quebrou um dedo no

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chão. Ele sentiu-se culpado durante dias por não estar embaixo dela para segurá-la. — Pensei em enterrarmos ela na praça, na frente daquela estátua feia… — É uma besta mística – o irmão a corrigiu, desapontado por vê-la dirigir-se daquela maneira à estátua que o povo de Alaislude tanto apreciava. – Santurien… mas não podemos cavar um buraco lá; nos esfolariam vivos… nos matariam e usariam nossos corpos para tam-par o buraco… Mifitrin riu com gosto pela piada, mas não decepcionou-se pela rejei-ção do irmão. Tinha mais idéias em mente. — Então podemos enterrar no pântano. — Há cobras no pântano, já se esqueceu? – Victor ainda se lembrava de sua última aventura no local. Ele e Mifitrin correram tanto ao se depararem com a cobra; chegaram em casa aos berros, contando ao pai o que viram. Arrependeram-se logo depois, pois ficaram de castigo no quarto por uma semana. Desde então não voltaram mais ao pântano; Victor por puro respeito à ordem do pai de não chegarem perto do lo-cal, Mifitrin apenas por medo de encontrar outra cobra. Ela lançou sua terceira opção, que fez os pêlos da nuca do irmão ficarem em pé: — No cemitério? — Nem pensar… não chego perto daquele lugar. — Mas nós vamos de dia, Victor. Os fantasmas só saem à noite… — Não tenho medo de fantasmas! — Tem sim – Mifitrin finalizou rindo. Victor olhou para a garota enquanto ela ria, atento para o caso de ela se desequilibrar novamente. Ficou em silêncio, sem coragem de per-guntar a ela qual era sua próxima opção, pois estavam piorando cada vez mais. Infelizmente Mifitrin prosseguiu sem que ele perguntasse:

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— E na Caverna dos Sussurros? Victor quase caiu da árvore. — Mifitrin, não podemos entrar lá. É perigoso, papai já nos disse is-so… — Eu não tenho medo Victor. Nós já entramos lá e não vimos nada. Seria um bom lugar para enterrarmos nossa cápsula do tempo, pois ninguém entraria lá para encontrá-la. E do que você tem medo? Não disse que iria me proteger sempre? Mamãe disse que você iria comigo em qualquer lugar que eu fosse… — Sim… ‒ ele concordou, sem graça. – Quer dizer, não! O professor Helder também nos mandou ficar longe daquele lugar. É perigoso Mi-fitrin. Ela levantou-se de repente, ficando em pé no galho, o que fez o cora-ção de Victor gelar. Ela pendurou-se num galho acima e ficou balan-çando de um lado para o outro, indiferente a altura que a separava do chão. Da última vez teve muita sorte por ter quebrado apenas um de-do. — Você descartou todas as minhas idéias – disse ela, irritada. – Quais são as suas então? — Bom – começou Victor contando nos dedos – pensei em enterrar-mos no jardim de casa, ou no jardim da escola, ou atrás do museu… — Não – ela o interrompeu com ar de tédio. – Não tem graça Victor, nenhum desses lugares. — Vamos pensar em outros lugares então – ele sugeriu. – Mas, por favor, que não seja nenhum lugar que já nos proibiram de ir. De prefe-rência dentro da cidade, longe de cobras, fantasmas ou sussurros… Ela concordou e fizeram um longo silêncio enquanto pensavam. Vez ou outra Victor via Mifitrin sorrindo prazerosamente, mas nem se

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atrevia a perguntar no que ela estava pensando. Com certeza não era nenhum lugar melhor que a Caverna dos Sussurros. Ficaram durante horas sobre os galhos da frondosa figueira, ouvindo apenas o movimento calmo das águas abaixo ou o canto de um ou ou-tro pássaro que chegava à árvore atrás de seus frutos. Mifitrin balan-çava-se de um galho para o outro, pulando e andando sobre eles, en-quanto Victor ficava atento para qualquer possível descuido da irmã caçula. — Nossa cápsula do tempo ainda está meio vazia – comentou o ir-mão reparando que os tucanos finalmente voltaram para a figueira. Mifitrin ficou encantada com a chegada deles, parando de pular de galho em galho para não assustá-los. – Você não quer guardar mais nada nela? Um vento forte chegou de repente, chacoalhando os galhos da árvore e obrigando-os a se segurarem com força. Os tucanos voaram assustados em direção ao pomar do senhor Olívaras. Mifitrin fechou os olhos e aproveitou a sensação do vento acariciando sua face, fazendo seus cabelos voarem… Victor sorriu ao ver a irmã. Sabia o quanto ela gos-tava do vento e chegou a deduzir a resposta que ela daria: — O vento – disse, ainda de olhos fechados, mas a esta altura o ven-to já parara. – Se eu conseguisse guardar o vento num frasquinho, iria colocá-lo na nossa cápsula do tempo… — Não é possível pegar o vento, mas seu eu fosse um protetor talvez pudesse usar magia para fazer isso. Quando eu me tornar um protetor, darei um frasco com vento de presente para você. Ela riu junto com ele. O sol foi caminhando rapidamente pelo céu, até que a hora de ir embora chegou. Continuariam a pensar em um bom lugar para se enterrar a cápsula do tempo durante a noite, pois só iri-am enterrá-la daqui cinco dias, no último dia do ano. Desceram da fi-

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gueira com a mesma facilidade com que subiram e, na corrida de vol-ta para a casa, Mifitrin foi novamente a vencedora. Victor sempre ia atrás dela. Sempre!

Quando Mifitrin derrapou na soleira da porta, quase caindo no chão, aos risos por ter ganhado do irmão mais uma vez, assustou-se quando as vozes da cozinha se calaram repentinamente com a sua chegada. Margarida e Arthur estavam sentados à mesa com mais duas pessoas desconhecidas. As visitas de que a mãe falara já estavam ali. Eram dois homens. Estavam sentados, mas Mifitrin reparou como eram altos, um deles mais que o outro. Ela queria analisá-los por um momento, estudar aqueles estranhos em sua casa, e foi para o de olhos azuis que ela olhou primeiro, o mais alto. Seus olhos azuis, como os dela, eram muito mais intensos; pareciam ter um brilho especial, pare-ciam serem capazes de olhar para ela e, ao mesmo tempo, para dentro dela. O olhar era quase hipnotizante. Ele sorriu carinhosamente quando seus olhares se encontraram. Seu nariz era fino e comprido, onde havia um óculos apoiado. Seus cabelos escuros chegavam até me-tade das costas. Enquanto o estudava viu anéis, pulseiras e outras coisas que não deu muita atenção, mas, assim como seus pais, não re-parou no volume oculto à frente do peito, escondido sob as vestes co-muns. Quando conseguiu tirar o olhar daqueles olhos azuis, olhou para o se-gundo homem que não prendeu sua atenção tanto quanto o outro. Ti-nha os olhos castanhos, com o mesmo brilho especial; seus cabelos rui-vos já começavam a ralear, mas o sorriso carinhoso era o mesmo.

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— Cumprimente nossas visitas, Mifitrin – a mãe disse para a filha. Ela apontou o homem ruivo: ‒ Este é Kalimuns – ela apertou sua mão quase inconsciente de que fazia isto – e este é Morton – disse apontando o homem de olhos azuis. Vão ficar conosco alguns dias. Victor cumprimentou-os logo após Mifitrin. — É um prazer conhecê-los, Mifitrin e Victor – disse Morton com uma voz que atingiu a garota tanto quanto o olhar. Era uma voz calma, paciente. Ela comparou-a com a voz do velho Helder e pensou: Devem ser professores também. — O mesmo digo eu – Kalimuns concordou, logo em seguida. As cri-anças, meio encabuladas, não responderam. — Vão tomar banho – a mãe mandou. – Se tiverem lição de casa po-dem fazer, depois desçam jantar. Mifitrin e Victor assentiram, subindo correndo para o quarto da garo-ta onde a pomba machucada os aguardava. Eles tomaram banho, como Margarida mandara, depois ficaram al-gumas horas no quarto cuidando da pomba. Victor procurava alguma coisa que pudesse ajudar em um livro que havia pego na biblioteca da escola, um livro sobre primeiros socorros, mas não conseguia compre-ender nada. Ficaram praticamente todo o jantar quietos, ouvindo os adultos con-versarem. Morton e Kalimuns eram muito agradáveis e gostavam de conversar. Eram amigos do prefeito de Alaislude, pelo que entende-ram, e Arthur ofereceu-se para hospedá-los. Quando questionados so-bre o que faziam na Grande Cidade da Paz, responderam que vinham apenas levantar dados sobre a cidade: habitantes, cultura, geografia, comércio… faziam parte de um projeto para catalogar as doze Gran-des Cidades de Gardwen; eles, pelo que Mifitrin conseguiu compreen-

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der, eram responsáveis por mapear as cidades, basicamente estudar sua geografia. Dois dias se passaram e as visitas mostraram gostar muito de crian-ças. Mifitrin chegou a questionar, durante o almoço do segundo dia deles ali, se eram realmente professores. Morton confirmou, sorrindo, dizendo que foi professor em grande parte de sua vida, mas que agora ele e Kalimuns haviam se afastado da função para poderem se dedicar ao projeto que vinham realizando. Como Arthur e Margarida traba-lhavam (ele na segurança de Alaislude, ela na escola) Mifitrin e Vic-tor tinham mais contato com as visitas. Mas os homens também não ficavam muito tempo na casa; costumavam andar muito e, quando as crianças se ofereceram para lhes mostrar a cidade, eles negaram, di-zendo que elas iriam se cansar de segui-los. Após as aulas da manhã com o professor Helder, Mifitrin e Victor passavam o resto do dia na figueira, pensando em novos lugares para enterrarem a cápsula do tempo. O irmão continuava descartando to-das as idéias dela, dizendo serem perigosas, proibidas ou assustadoras. Ela, por outro lado, descartava as dele dizendo que eram chatas. No terceiro dia após a chegada das visitas os dois irmãos estavam mais uma vez sobre a figueira, balançando-se em seus galhos e discu-tindo o lugar em que enterrariam a cápsula do tempo como se fosse a coisa mais importante do mundo. Já passava das três horas da tarde quando ouviram vozes se aproximando. Olhando por uma fresta da folhagem, a garota viu Morton e Kalimuns vindo em direção ao rio. Nenhum dos dois os viu sobre a árvore, mas Mifitrin conseguia ouvir parte da conversa deles: — Já avançamos bastante, Kalimuns – a voz de Morton não tinha o tom calmo com que ela era acostumada; parecia demasiado preocupa-

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do. – Quebramos praticamente todos os seus feitiços. Tenho plena certeza de que vamos conseguir entrar lá e destruí-la. — Estou com medo, Morton. Sabe-se lá que tipo de magia nos aguar-da. Tivemos sorte até agora, mas acho que precisamos pedir ajuda. Es-tamos mexendo com coisas muito antigas e desconhecidas… A conversa dos dois foi levada para longe por uma rajada de vento. Quando passavam pela ponte que cruzava o Rio Dourado, Mifitrin olhou para o irmão que também ouvira o fragmento de conversa. No rosto dele havia medo, preocupação; no dela, um sorriso que ia de ore-lha a orelha. A janelinha dos dois dentes da frente que Mifitrin havia arrancado dias atrás ficou visível quando ela sorriu. Victor enxergou em seu rosto mais que o sorriso radiante, enxergou a perigosa curiosi-dade que sempre os metia em confusões. Antes que dissesse qualquer coisa, porém, ela já descia pelo tronco da figueira. — Mifitrin, o que vai fazer? — Ouviu o que eles disseram, Victor? Magia! Vamos lá descobrir o que eles estão fazendo. O irmão, como sempre, se dobrou à vontade da irmã, incapaz de con-tradizê-la (pois também estava curioso), e desceu da figueira menos de um minuto depois dela. Como boas crianças que vivem aprontando, tiveram o devido cuidado de deixarem Morton e Kalimuns abrirem uma boa distância entre eles, até que já não pudessem mais ser vistos, então os seguiram. Victor corria atrás da irmã, sempre atrás… Mas quando chegaram ao destino, o irmão arrependeu-se por não ter segurado a irmã na figueira. A montanha que ficava nas fronteiras de Alaislude erguia-se logo a frente deles. Morton e Kalimuns entravam numa caverna que havia na base dela: a Caverna dos Sussurros! — Mifitrin, temos que ir embora. Não podemos entrar lá…

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— Psiuu.... – fez a irmã, colocando um dedo a frente dos lábios. Es-Esperou até que os dois homens desaparecessem dentro da caverna e voltou a falar: ‒ Eles estão mentindo, Victor. Estão aqui só por causa da caverna. É aqui que eles passam todos os dias, por isso ninguém os viu na cidade ainda. Vamos descobrir o que eles estão fazendo. Victor acariciou sua cicatriz que tinha no pescoço, resultado de quan-do ainda não tinha medo de vir na Caverna dos Sussurros. Mifitrin entendeu o gesto: ele estava preocupado. Sempre acariciava sua cica-triz quando realmente ficava com medo. A cicatriz foi o que o ensinou a tomar cuidado e neste dia tornou-se ainda mais o irmão protetor. — Vai ficar tudo bem – Mifitrin tentou tranqüilizá-lo. ‒ Nós só vamos segui-los e ouvir o que eles vão conversar. E também não esta-mos sozinhos, estamos com dois adultos… ‒ mesmo que eles não sai-bam disso. Ele não teve escolha, senão segui-la. Seus olhos levaram alguns segundos para se acostumarem com a escu-ridão da caverna. Mas desta vez havia algo diferente ali. Logo na en-trada encontraram uma vela acesa sobre um pergaminho de aparência estranha. Mifitrin encarou o irmão; ele assustado, ela entusiasmada. Andaram mais alguns metros pelo caminho que, apesar de conhecerem bem, não o viam há quase um ano, desde que Victor conseguiu a feia cicatriz no pescoço. Enquanto andavam foram encontrando mais coi-sas estranhas espalhadas pelo chão e pelas paredes. Objetos desconhe-cidos, símbolos que eram formados por luz, e chamas que não eram comuns: umas eram anis como o céu, outras rubras como um rubi. Elas dançavam pelo caminho, embora o calor que produzissem fosse anor-mal. — Olhe!

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Victor olhou para onde a irmã apontava. Ali havia uma entrada la-deada por dois pergaminhos e por um estranho símbolo no chão, uma entrada que antes não havia. Victor segurou as mãos da irmã, queren-do puxá-la para o mais longe possível dali, mas foi ela quem o puxou para prosseguirem. E então ouviram os sussurros que fizeram seus co-rações gelarem, os sussurros que davam nome à caverna. Victor começou a chorar de medo. O rosto de Mifitrin adquiriu um tom pálido e sua mão vacilou por um segundo na mão do irmão. Os sussurros que raramente alguém ouvia na caverna, sussurros que todos diziam na cidade não serem reais, agora eram perfeitamente audíveis naquela passagem oculta. Mas apesar do medo, a curiosidade de Mifi-trin ainda era maior, como sempre, e inconscientemente puxou Victor para prosseguirem. Queria descobrir o que havia ali; precisava desco-brir o que estava acontecendo. Os sussurros iam ficando mais altos a cada passo, intimidando-os a saírem correndo para a saída. — É um selo! Era a voz de Kalimuns. Mifitrin puxou Victor para detrás de uma pedra e dali ficaram sondando os dois homens no fim do corredor em que se encontravam. Estavam lado a lado, diante de uma parede que, como Mifitrin deduziu, eles tentavam abrir assim como fizeram com a anterior. — Não restam mais dúvidas – a voz de Morton continha o mesmo tom de entusiasmo de Mifitrin quando descobria algo novo. – Mon selou o corpo de um de seus generais aqui. — Algum palpite? — Acredito que seja Roland, o colecionador de colares. Ele foi o mais perigoso dos que já serviram Mon. Tenho quase certeza que Mon cons-truiu esta fortaleza oculta para preservar o corpo dele. — Precisamos de um especialista em selos…

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— Eu já contatei Zander. — Ele virá pessoalmente? — Não, incumbiu um de seus pupilos para esta missão: Aren. Lem-bra-se dele? Dos gêmeos Aren e Magai? Zander passou a eles todo o seu conhecimento sobre as técnicas de selamento. São peritos no as-sunto. — Então não há mais nada que possamos fazer aqui. Precisamos es-perar que Aren chegue… Mifitrin já estava satisfeita por hoje. Levantou-se de trás da pedra em que estavam escondidos e puxou o irmão pela mão. Correram o mais rápido que puderam para a saída, sabendo que os dois homens logo viriam atrás deles. As lágrimas já estavam secas no rosto de Vic-tor quando encontraram a luz do dia e sentiram-se satisfeitos por se livrarem dos sussurros. Durante o jantar Mifitrin não tirou os olhos de Morton, embora dis-farçasse quando ele olhava para ela. Estão mentindo, era a única coi-sa em que pensava. Em certo momento ela olhou para Kalimuns e algo estranho aconteceu: ela não conseguiu desviar o olhar daqueles olhos castanhos, como se eles a impedissem de olhar para outro lado, e teve flashs de lembranças em sua mente; reviu a Caverna dos Sussurros e a conversa dos dois estranhos num único segundo. Quando ela final-mente conseguiu desviar o olhar e encarou o chão, Kalimuns lançou um olhar para Morton e fez um gesto positivo com a cabeça. Ka-limuns leu a mente de Mifitrin. Na tarde seguinte Margarida saiu para dar aula e Victor foi treinar com o pai, deixando Mifitrin sozinha na casa. Ela estava em seu quarto, cuidando da pomba, quando Morton e Kalimuns entraram de

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surpresa em seu quarto. Ela recuou um passo, com medo, mas Ka-limuns a tranqüilizou: — Não precisa ter medo. Você e seu irmão não fizeram nada de erra-do, só quero conversar com você… Mifitrin não disse nada, voltando sua atenção para a pomba dentro da caixa de papelão, meio emburrada, meio encabulada. Kalimuns se aproximou e deu atenção para o pássaro machucado. Segurou a pomba entre suas mãos e a encarou com o mesmo olhar que havia encarado Mifitrin durante o jantar da noite anterior. — Ela gosta de você – Kalimuns finalmente falou, ainda encarando a pomba que parecia hipnotizada por seu olhar. – Gosta quando a acaricia. — Como sabe? – Mifitrin o questionou sem medo. — Eu tenho um dom, sabe? Eu consigo entender o que ela fala. A garota sardenta ficou muda, incapaz de dizer palavra alguma. Morton sorriu, ainda ao lado da porta, e disse para o companheiro: — Mostre a ela, Kalimuns. — Você promete que não contará nada a ninguém, Mifitrin? Antes de responder Mifitrin cruzou os dedos com a mão escondida às costas; não poderia deixar de contar para o irmão quando ele chegasse em casa. — Prometo – disse, completamente entusiasmada, prevendo o que ve-ria a seguir. Kalimuns aconchegou a pomba entre suas mãos e no segundo seguinte um brilho rubro passou a emanar delas. Foi muito rápido e Mifitrin não teve tempo de compreender; quando Kalimuns abriu as mãos, a pomba que até então estivera com uma das asas quebradas, saiu vo-ando pela janela. Mifitrin correu até a janela por onde a pomba saiu

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voando e a acompanhou com o olhar até que desaparecesse de vista. Ela mal respirava. — Vocês são o quê, protetores? Ela se esforçava para fingir que nada de mais havia acontecido, e se esforçava ainda mais para fingir que não confiava neles. Mas não po-dia esconder nada de um Mestre da Alma com a habilidade de telepa-tia. Ele estava dentro de sua mente, ele a compreendia plenamente. E ao contrário do que ela esperava, ao contrário do que qualquer um es-peraria, Morton foi completamente sincero ao responder a pergunta da garota: — Isso mesmo, Mifitrin. Somos protetores, Kalimuns e eu. Mas é im-portante que você guarde segredo, está me entendendo? Ela concordou com um aceno, mas logo prosseguiu com as perguntas: — Meu irmão quer ser protetor; o professor Helder disse que é o obje-tivo dele, alguma coisa assim… Vocês não podem ensiná-lo? Morton sorriu e se agachou diante da criança com o olhar tão deter-minado, então segurou em seu ombro, sorriu e respondeu com uma voz aconchegante: — Não é assim que funciona, Mifitrin. Não basta querer ser um pro-tetor, é preciso ser escolhido para isso. Seja o Tempo, a Alma ou a Magia; independente de qual seja o seu Elemento, ele é que precisa es-colhê-lo. Não basta querer…

Mifitrin e Victor estavam sentados num dos galhos mais altos da fi-gueira. Hoje ela não estava balançando-se de um galho para o outro, estava sentada quieta, observando a pequena cápsula do tempo que ela e Victor deveriam enterrar. Finalmente chegara o grande dia, úl-

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timo dia do ano, dia em que enterrariam seus mais preciosos tesouros para que só voltassem a revê-los daqui muitos anos. Um dia, um dia em que cada um já tivesse alcançado seus objetivos, um dia em que já tivessem viajado por toda Gardwen, um dia desenterrariam a cápsula do tempo juntos… — Está tudo aqui? – Victor lhe perguntou. Mifitrin encarou o pequeno baú de madeira que roubaram da escola de Alaislude. Antes ali dentro só havia gizes de cera estúpidos, agora es-tavam carregados com os objetos mais importantes de Mifitrin e Vic-tor. — Ainda falta o frasquinho de vento que eu queria, mas acho que não vamos conseguir pegá-lo – Victor ri da irmã. – Acho que já podemos enterrá-la. — Tá bom, mas ainda não decidimos onde vamos enterrá-la… — Você já descartou todos os lugares mais legais de Alaislude, Vic-tor. A cápsula é importante para nós dois, não pode ser enterrada num lugar chato… — Hoje é domingo – Victor a interrompeu. – Papai e mamãe estão em casa, vamos perguntar para eles se conhecem algum lugar legal… — Não – Mifitrin não gostou da idéia. – O lugar precisa ser um se-gredo nosso, senão qualquer um pode encontrá-la… Mas Mifitrin parou de falar quando enxergou algo no horizonte e er-gueu a mão para o irmão fazer silêncio. Victor estremeceu ao enxergar o que a irmã estava vendo: Morton e Kalimuns estavam andando lá na frente, próximos a grande montanha onde estava a Caverna dos Sussurros. — Eu estava pensando que enterrar no cemitério não seria uma má idéia… – mas Victor não conseguir trazer a atenção da irmã de volta para a cápsula do tempo.

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— Olhe! – Mifitrin exclamou para o irmão. Mais duas pessoas se juntaram a Morton e Kalimuns, duas pessoas que usavam vestes es-tranhas e brancas. – Quem será que são aqueles dois? — Não importa, devem ser amigos do senhor Morton… — Vamos descobrir! Mifitrin desceu tão rápido de galho em galho que Victor ficou com medo de não alcançá-la. Quando ele finalmente disse algo ela já esta-va no chão. — Mas precisamos enterrar a cápsula hoje… — Vamos deixá-la aqui. É rapidinho… nós voltamos e enterramos ela depois. Victor encarou o olhar da irmã e soube que não adiantaria contrariá-la. Finalmente se conformando a seguir as vontades dela, por mais idiotas que fossem, ele escondeu o pequeno baú de madeira no tronco da figueira e o deixou ali. Mifitrin já estava correndo e ele foi atrás dela, sempre atrás… Como suspeitavam, Morton e seus companheiros seguiram para a Ca-verna dos Sussurros. Como boas crianças espertas, Mifitrin e Victor tiveram o cuidado de deixá-los entrar na caverna antes de se aproxi-marem e assim, mais uma vez, entraram na caverna sem o conheci-mento de Morton ou Kalimuns ou quem quer que fosse. Estava tudo exatamente igual estava dois dias atrás. Os mesmos sím-bolos de luz espalhados pelo chão e pelas paredes, os mesmos fogos es-tranhos que crepitavam por todos os lados. Eles passaram pela primei-ra passagem aberta por Morton e os avistaram lá no fim do corredor, onde os quatro estranhos tentavam abrir uma nova passagem. Os fi-lhos de Arthur e Margarida ficaram atrás da mesma pedra, escondi-

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dos, apenas observando tudo que acontecia e ouvindo os insuportá-veis e misteriosos sussurros da caverna… Morton apenas observava o General da Magia Aren enquanto ele analisava a segunda porta da fortaleza oculta de Mon. Aren é especi-alista em selos e foi pupilo do próprio Zander, Guardião da Magia. Para adentrarem na fortaleza e descobrirem o que Mon havia deixado lá dentro, Aren precisaria retirar o selo que mantinha a passagem trancada. Um pouco afastado estava o Mensageiro da Magia Marco, escolhido para acompanhar Aren naquela missão e levá-lo através do portal pa-ralelo. Kalimuns andava de um lado para o outro, preocupado, e levou dez minutos para ter coragem de dizer algo para o amigo: — Acho que não é uma boa idéia, Morton. Vamos deixar tudo como está e sairmos desta caverna. Não precisamos nos preocupar com o que há aqui dentro, nem sabemos se Mon realmente retornará algum dia… — Retornará, Kalimuns – Morton o interrompeu. – Mon retornará algum dia, nunca duvide disso. E se ele realmente preservou o corpo de Roland aí dentro como eu suspeito, precisamos colocar um novo se-lo nele para impedir que Mon o desperte quando retornar. Se Roland estiver ao lado de Mon quando nos enfrentarmos estaremos em uma grande desvantagem. Tirá-lo do jogo enquanto é inofensivo é a melhor estratégia… — Mas deve haver armadilhas aí dentro, magia negra, sei lá… nem imaginamos o que Mon pode ter feito para garantir a proteção de uma das suas fortalezas… Morton não respondeu, encerrando o assunto. Estava decidido a pros-seguir.

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Aren continuava com os olhos fechados, como estivera nos últimos dez minutos. Suas mãos estavam unidas diante do rosto, num gesto curioso. Um fino feixe de luz reluzente saía de quatro dos seus dedos e seguiam para cada canto da passagem que ele tentava abrir. Estava fazendo a triagem do selo, como ele mesmo havia explicado para Mor-ton. Sussurros dele eram misturados aos que vagavam por toda a ca-verna. Ficou por mais de uma hora fazendo a triagem do selo que mantinha a porta fechada, até que finalmente disse algo: — É um selo oculto… Vou ter que acender um Fogo da Magia para tentar revelá-lo, mas para isso terei que cancelar o sinal de mãos e in-terromper a triagem. Terei que refazer tudo novamente… — Então deixe suas mãos como estão – Morton lhe interrompeu, aproximando-se dele. – Eu acendo o fogo para você. — Consegue acender um Fogo da Magia mesmo sendo um protetor do Tempo? – perguntou o General descrente. Morton sorriu e olhou para Kalimuns, ainda muito tenso, mas que não pôde deixar de dar o apoio que o amigo pedia com o olhar: — Ficaria assombrado em saber as coisas que ele pode fazer. — Eu não sou escravo do meu colar, rapaz – disse Morton ficando ao lado de Aren. – Magia é um dos Elementos da Vida, por isso qualquer um pode utilizar magia pura, mesmo que não seja um protetor. E dizendo isso Morton acendeu um fogo alvo diante dos dois com in-crível facilidade, surpreendendo Aren. A parede de pedra diante dele incendiou-se completamente e, enquanto o fogo se espalhava, símbolos negros eram revelados por toda a parede, revelando uma figura extre-mamente complexa. Sem liberar os sinais de mãos, Aren passou a estudar o selo tão avan-çado. Não seria fácil quebrá-lo. Precisaria usar tudo o que Zander lhe

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ensinou durante décadas. Escolheu a primeira palavra com cuidado e esperou que desse resultado: — Purigi! Parte dos símbolos negros se apagaram imediatamente, então Aren soube que estava no caminho certo. — Flamigi! O resultado foi o mesmo. Mas símbolos desapareceram, enfraquecendo o selo de Mon. Não seria tão difícil afinal de contas. — Eternigi! Morton sorria de entusiasmo enquanto observava o progresso do pupi-lo de Zander. Kalimuns, por outro lado, suava frio, tenso na expecta-tiva de descobrir o que haveria atrás daquela passagem. — Liberigi! Finalmente o último símbolo de luz negra se apagou. O selo de Mon estava desfeito e, com isso, a passagem se abriu…

Era como se a própria montanha estivesse gritando. Agora não eram apenas sussurros. Assim que a passagem se abriu toda a caverna se encheu com um som agudo, semelhante a um grito humano vindo de um lugar muito longínquo, impossível de entender palavra alguma; e não era um único grito, eram vários gritos que se misturavam e se en-trelaçavam, uns sobrepondo-se sobre os outros. E também havia ven-to, vento que brotava das entranhas da caverna e parecia intimidá-los, forçá-los a sair daquele lugar. Não teve ninguém ali que não sen-tiu seu coração gelar quando a passagem se abriu. Victor, ainda es-condido com Mifitrin vários metros atrás, chorava silenciosamente.

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Morton, Aren, Marco e Kalimuns adentraram um gigantesco salão que estivera oculto por tantos séculos ali na Grande Cidade de Alais-lude. Mifitrin puxou o irmão pela mão, mas ainda tomou o cuidado de continuar escondida. Havia muita coisa desconhecida no salão de pedra e a origem dos gri-tos e do vento continuava sendo uma incógnita. Mas a atenção de to-dos estava voltada para o centro do salão. Ali havia uma tumba ne-gra, aparentemente intocada pelo tempo. À sua volta centenas mais centenas de colares estavam espalhados pelo chão, colares de rubi, de diamante e de safira. Morton nem precisou analisar a tumba para ter certeza de que ali realmente estava o corpo de Roland, o mais terrível general das forças de Mon, o temível colecionador de colares! Aquelas centenas de colares espalhados pelo chão pertenciam a protetores da Alma, da Magia e do Tempo, todos os protetores que Roland matou. Aqueles colares eram seus troféus. Aren caminhou sem medo para a tumba e passou a mão por sua super-fície. Ali foi capaz de identificar vários símbolos das trevas, todos re-lacionados a Mon. Sentiu um frio percorrer sua espinha. — Possivelmente ele também esteja com um selo de Mon – disse Mor-ton pondo-se ao lado de Aren e analisando a tumba negra apenas com os olhos. – Precisamos retirar o selo dele e colocar um selo que seja nosso, um selo que Mon não consiga romper. Só assim Roland perma-necerá fora da próxima guerra. — Talvez seja perigoso. Se eu ver qualquer sinal de perigo vou parar imediatamente… Lamento se não sou tão otimista como você Mor-ton, mas coisas realmente ruins podem acontecer aqui, e se eu puder impedir isso não hesitarei. O primeiro selo foi fácil demais de ser que-brado… — Que quer dizer?

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— Qualquer iniciante poderia ter quebrado aquele selo. Quando eu era apenas um Aprendiz já conseguia fazer selos dez vezes mais efici-entes que aquele último. Estou dizendo que quem quer que tenha feito esta fortaleza, seja Mon ou não, parecia querer nos induzir ao erro, parecia querer que fizéssemos exatamente o que estamos fazendo. E é por isso que eu digo que se as coisas começarem a fugir do controle vou parar. Morton assentiu, sem discutir, mas Kalimuns sabia que caso Aren re-almente parasse, o Mago iria coagi-lo a prosseguir. Morton sempre conseguia o que queria e não seria Aren a quebrar essa tradição. — Se afastem da tumba – disse o General da Magia. – Vou começar. Ele sequer fez a triagem do selo com os sinais de mão. Acendeu um pequeno Fogo da Magia sobre a tumba, mas assustou-se com o que aconteceu. Fogo da Magia consome magia e parecia haver muita dela por ali. Houve uma repentina explosão em que o fogo triplicou de ta-manho, depois correu para todas as direções, revelando por onde pas-sava os símbolos negros que eram usados para o selo. Mas o fogo não deteve-se apenas na tumba; desceu por ela e correu pelo chão, fazendo com que Morton e os outros corressem para escaparem delas, e subiram pelas paredes chegando até o teto. O selo era gigantesco. Aren jamais viu algo igual. Seu epicentro era sobre a tumba, mas dezenas de sím-bolos de luz negra preenchiam cada espaço dentro do grande salão de pedra, tremeluzindo suavemente… — Nunca vi um selo como este – Aren disse, mais para si mesmo que para Morton. Havia um ar de assombro em sua voz. – Não é apenas um selo de proteção… mal conheço metade dos símbolos. O fluxogra-ma não é compatível com nenhum que eu tenha visto em todos os meus livros… — AREN!

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O General da Magia calou-se ao ouvir o grito do Mago Morton. Mas passado o grito, a voz de Morton veio carregada de apoio e con-solo: — Não tenha medo, você só precisa se concentrar. Me diga o que você precisa fazer… sei que você sabe, mas diga em voz alta se isso te aju-dar a se concentrar, assim não perderá o foco. Estarei te ouvindo. Aren concordou com um aceno de cabeça; no segundo seguinte pulou sobre a tumba de Roland e passou a analisar os símbolos de perto para longe. — O selo é composto por doze camadas, com um ou dois pontos de proteção cada uma – Aren seguiu o conselho de Morton. Dizer tudo o que estava pensando em voz alta realmente o ajudava a se acalmar e se concentrar. – Vou começar a quebrá-lo de fora para dentro, até que eu consiga chegar ao núcleo do selo, onde está o corpo de Roland. Es-tou esperando o seu sinal… Kalimuns aproveitou a deixa para perguntar mais uma vez se Morton tinha certeza do que estava fazendo. Morton não lhe respondeu com palavras, apenas com aquele olhar penetrante que jorrava confiança, então Kalimuns anuiu. — Pode começar Aren – disse o Mago para o General. E Aren começou. Levantou os dois braços, deixando-os em paralelo com o chão. Os símbolos negros no chão reagiram ao seu gesto e pare-ceram elevar-se no ar também. O selo parecia estar vivo, parecia respi-rar. Doze camadas de símbolos erguiam-se à volta de Aren enquanto ele contorcia estranhamente seus dedos. Quando abriu os olhos, Mor-ton reparou no tom lilás que havia neles. Era o feitiço ocular Shuiken, olhos de cristal; ajudava Aren a enxergar a estrutura e o fluxo de ma-gia.

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— A primeira é a camada de Limite. Funciona como uma parede para manter a magia do selo estável dentro da caverna. Assim a magia se mantém organizada. Quando eu destruir essa parede a magia pode ficar instável e aí começará o perigo… Após explicar a Morton seu primeiro passo, os símbolos negros mais afastados do centro dissolveram-se. Uma camada a menos. Mas não houve qualquer sinal de perigo; os símbolos ficaram mais agitados re-almente, mas isso foi tudo. — Agora é a camada que contem símbolos de Ocultação. Isso impede que toda a magia do selo seja sentida longe daqui. Foi assim que a for-taleza oculta ficou escondida todos esses séculos aqui na Grande Ci-dade de Alaislude, mesmo com tantos protetores passando por perto. Assim que eu quebrar estes símbolos a fortaleza de Mon jamais volta-ra a ser secreta… E dizendo isso mais uma camada de símbolos dissolveu-se, transfor-mando-se em fumaça negra e acumulando-se no teto do salão. — A terceira, quarta e quinta camadas são apenas para a fortificação do selo – Mais fumaça acumulou-se no teto. Não era uma fumaça comum, Morton logo reparou. Era quase um veneno, carregada de coi-sas ruins. — Os próximos são símbolos de Alarme. A partir do momento que eu quebrar essa camada Mon saberá o que estamos fazendo. Se ele ainda estivesse em Gardwen eu começaria a me preocupar com a entrada do salão, mas todos sabemos que não virá ninguém nos impedir – Mifi-trin e Victor remexeram-se inquietos em seus esconderijos. Estavam completamente apavorados até mesmo para correrem dali. Victor não tinha nem lágrimas mais para chorar. — Armadilha. Eu poderia explodir a montanha inteira se quebrasse os símbolos errados nesta camada, mas Mon não se preocupou em es-

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condê-la. Explodir a montanha não era o objetivo dele também; es-tou dizendo Morton: acho que ele queria que fossemos em frente… — Prossiga, Aren – Morton ordenou. – Está tudo bem. Eu estou aqui para ajudá-lo caso algo dê errado… todos nós estamos aqui para auxiliá-lo. Aren prosseguiu conforme Morton ordenara: — Na oitava camada há vestígios de um antigo ritual feito durante o selo… Acho que é desta camada que vem os sussurros. Os símbolos são de Sacrifício, então acho que mais de uma pessoa morreu durante o ritual para criar este selo. Os sussurros são deles… Mais uma camada desmanchou-se em fumaça negra. A cada camada de símbolos que Aren quebrava, o tempo e esforço necessários para a próxima eram maiores, mas Morton estranhou a longa pausa que se seguiu após a oitava camada. — Ele utilizou magia dos três Elementos neste selo. Tem uma cama-da para cada um deles… Morton e Kalimuns se entreolharam. — Típico dele – Morton sussurrou para o amigo. – Quer destruir os Elementos da Vida há incontáveis séculos e ainda assim parece glori-ficá-los. Sempre os usa, sempre aproveita-se daquilo que mais quer destruir. E não é apenas para tirar proveito, Mon realmente venera os Elementos da Vida, nunca escondeu isso… — Sabemos que Mon já foi protetor em várias reencarnações – disse Kalimuns também num sussurro que foi praticamente abafado pelos sussurros da caverna. – Talvez este seja o motivo de sua admiração pelos Elementos. Ele não precisa necessariamente odiar os Elementos para querer destruí-los, mas isso é necessário para que ele tenha domí-nio sobre Gardwen…

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— E sabe aonde isso nos leva? – Morton lhe perguntou. – Que ele ama tanto os Elementos que talvez queira criar os seus próprios de-pois que dominar Gardwen. Nos leva ao Elemento que ele sempre dis-se que um dia nasceria, um Elemento que fosse dele… Mas a conversa dos dois amigos foi interrompida quando Aren voltou a falar. O General realmente levou o conselho do Mago a sério. Além de lhe acalmar e o ajudar a se concentrar, quando dizia em voz alta o que estava fazendo parecia que não estava sozinho naquilo, contrari-ando a realidade. — Os três selos dos Elementos. O selo da Magia é onde é criada toda a magia necessária para manter o selo principal. Assim que eu destruir esta camada a reserva de magia se extinguirá; não sei o que Mon pre-parou para caso isso acontecesse, mas eu preciso chegar ao corpo de Roland antes disso acontecer. Dez minutos depois mais uma camada de símbolos foi destruída. Res-tavam apenas três camadas e Aren passou para a próxima: — Tempo. Aqui está guardada toda a história de Roland, para que quando renascer ele não se esqueça de seus objetivos e do seu amo. Mais fumaça subiu em direção ao teto quando Aren destruiu mais símbolos do chão. A fumaça rodopiava ameaçadoramente sobre suas cabeças, cada vez mais rápido conforme Aren avançava na destruição do selo de Mon. — A 11ª camada contém símbolos da Alma. Eu não estou conseguin-do compreender o significado dos símbolos… será que o Mestre Ka-limuns poderia me ajudar? Kalimuns já tinha a resposta na ponta da língua: — Estes símbolos estão diretamente ligados com o destino da alma de Roland. Desde que ele morreu e foi preservado nesta fortaleza, sua alma continuou o ciclo da vida e desde então tem reencarnado em cor-

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po após corpo, mas logicamente sem nenhuma relação com Mon. Es-tes símbolos servem para que a alma saia de onde estiver e volte ime-diatamente para o corpo de Roland quando chegar a hora de desper-tar… Todos admitiam a perfeição daquele selo de Mon. Aren duvidava que inclusive Zander, seu tutor, fosse capaz de criar um selo tão perfeito quanto aquele. Jamais vira nada igual. — Estou na 12ª camada – ele disse após quebrar a penúltima camada de símbolos. – Mas não sei o que estou vendo aqui. Não sei o que fa-zer, Morton… — Quebre a camada! – Morton ordenou sem hesitar. — Não posso quebrar símbolos sem ter nenhuma idéia do que eles fa-rão. São símbolos desenhados pelo próprio Mon, símbolos das tre-vas… posso causar uma catástrofe se… — Quebre-os Aren – Morton alteou a voz para que o General da Magia se calasse. – Nada de ruim vai acontecer. Precisamos avançar até destruir o selo de Mon por completo e colocarmos um selo nosso em Roland. Isso ainda poderá significar a diferença entre a vitória e a derrota dos Elementos na guerra contra Mon. Os símbolos de luz negra dançavam à volta de Aren enquanto ele ten-tava decifrá-los. — É uma maldição – disse finalmente. – Não sei que tipo de maldi-ção, nem o que acontecerá caso eu a libere, mas estou seguindo em frente. Exatamente dez símbolos negros dançavam a volta da tumba de Ro-land. Aren usou sinais de mão para quebrar o primeiro deles, que se dissolveu em fumaça negra, mas assustou-se quando um a um todos os outros foram se quebrando sozinhos. Dez pequenas explosões aconte-

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ceram e, quando toda a fumaça negra acumulou-se no teto do salão, a maldição foi ativada. Este foi o pior erro do grande Mago do Tempo Morton que se tem no-tícia…

Um grande tornado negro prestes a engolir todos ali. Este foi o pri-meiro pensamento dos seis ali dentro do salão quando toda a fumaça negra começou a girar em grande velocidade. Os sussurros ficaram ainda piores e podiam ser ouvida em toda Alaislude. Victor e Mifitrin estavam com as mãos nos ouvidos, completamente apavorados. Ka-limuns, Marco e Aren olhavam para Morton, esperando pelas respos-tas que ele não sabia dar. Então toda a fumaça negra do furacão se-parou-se em pequenas quantidades e avançaram para a saída da ca-verna. Uma delas atingiu o Mensageiro Marco; a fumaça atravessou seu corpo e continuou sua jornada para a saída da caverna; o corpo de Marco, por sua vez, despencou sem vida no chão sem qualquer feri-mento. Uma alma brilhante em tom azulado abandonou seu corpo e saiu voando assustada. — PROTEJAM-SE! – gritou Kalimuns. Ele e Morton atiraram-se para longe do caminho da fumaça, protegendo-se atrás de escudos má-gicos. Aren tentou pular de cima da tumba para se proteger, mas não conseguiu. Parecia haver paredes invisíveis em torno da tumba que o impediam de sair dali; descobriu desta forma que o selo de Mon conti-nha mais de uma armadilha. — Ombro Karnulo – Kalimuns ouviu Morton dizer; ambos tinham o terror estampado no rosto quando a compreensão os atingiu. – A mal-dição da sombra mortal!

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Nenhum dos dois percebeu que Aren batia desesperadamente na pa-rede invisível que o mantinha preso sobre o corpo do mais temível ge-neral de Mon. Kalimuns desequilibrou-se de repente e teve que se apoiar na parede da caverna; sabia o que iria acontecer a precisa se certificar de que Morton também sabia: — Todos na cidade serão mortos! Morton concordou com um aceno de cabeça, incapaz de fazer mais nada diante do pior erro que cometeu em sua vida. Por culpa deste er-ro Alaislude jamais voltaria a ser a mesma. A partir de hoje não seria mais chamada de a Grande Cidade da Paz. Seria conhecida em toda Gardwen como a Grande Cidade Morta. Mesmo com o som dos sussurros dez vezes mais insuportável em seus ouvidos, mesmo tento tampado-os com as mãos, e mesmo com o forte vento que brotava do interior da caverna e seguia para fora da mon-tanha, Victor foi capaz de ouvir o que iria acontecer com todos na ci-dade. Ele levantou-se de repente detrás da pedra em que estavam escondi-dos, indiferente ao fato da fumaça negra estar passando velozmente ao seu lado; pensou por uns breves segundos então começou a correr. — VICTOR! – Mifitrin gritou para o irmão, mas ele já tinha seguido para a saída da caverna. Ele está com medo, Mifitrin pensou. Sabia o quanto o irmão era medroso; não podia culpá-lo por querer sair cor-rendo daquele lugar quando ela mesma queria fazer isso. Mas não foi por medo de ficar ali que Mifitrin se levantou e começou a correr. Re-almente foi por medo que saiu correndo atrás do irmão, mas medo não por ela, medo de perder Victor. Ela viu o que aconteceu com o homem de vestes brancas quando a fumaça atravessou o seu corpo e temia que o mesmo pudesse acontecer com o irmão. E assim, correndo em meio à

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maldição letal de Mon que seguia para a cidade, Mifitrin correu pela primeira vez atrás de Victor. Pela primeira vez desde que aprendera a andar era ela quem corria atrás do irmão, e não mais o contrário. Quando finalmente conseguiu sair da caverna Mifitrin quase nem percebeu a diferença. Uma tempestade chegou à Alaislude durante o tempo em que eles ficaram na Caverna dos Sussurros e agora estava tão escuro quanto lá dentro. O vento e a chuva eram cruéis, machu-cando a pele de Mifitrin, mas ela não parou de correr. Mal podia en-xergar o irmão que corria há uns vinte metros dela. — VICTOR! VICTOR! Mas ele não ouvia. A fumaça continuava correndo em chumaços ao seu lado e seguindo para a cidade, e os sussurros estavam cada vez mais insuportáveis; Victor não conseguia ouvi-la. — VICTOR… Já estava toda encharcada, exausta, e seu corpo ainda tremia de me-do, mas não parou de correr. Chegou ao Rio Dourado, atravessou a ponte e só alcançou o irmão quando ele passava ao lado da figueira. — VICTOR… me espere! E finalmente o irmão parou. — Não devia ter saído de lá – Victor disse para a irmã em tom seve-ro. – Era para você ter ficado com o senhor Morton… — Não precisa ficar com medo, Victor… — Não estou com medo, Mifitrin. Você não ouviu o que o senhor Ka-limuns disse? Todos na cidade vão morrer! Mifitrin perdeu o chão de repente e não conseguiu controlar o tremor do seu corpo. Lágrimas brotaram em seus olhos grandes e azuis. O ir-mão se aproximou dela e a abraçou, apertando-a contra o seu peito e ficou ali ouvindo o seu choro. — Eu vou avisar o papai e a mamãe, não se preocupe.

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Victor não suportava ouvir o choro desconsolado da irmã. Era sem-pre ele que chorava e não ela. Sempre ele… mas agora, no momento em que mais sentiu vontade de chorar em toda a sua vida, engoliu o choro e não derramou uma lágrima sequer. Precisava ser forte na fren-te de Mifitrin… pelo menos desta vez. — Fique aqui na figueira enquanto eu vou buscar o papai e a mamãe – disse Victor assim que a soltou do abraço apertado. – Aconteça o que acontecer não saia daqui… eu vou voltar pra te buscar! Victor deu um beijo carinhoso no rosto da irmã e recomeçou a correr em direção à cidade, mas logo ouviu a voz da irmã: — Victor – ela conseguiu dizer entre os soluços. Ele olhou para trás e a viu segurando um pequeno baú de madeira. – Nossa cápsula do tempo… vamos enterrá-la primeiro… Victor pensou em dizer não, pensou em deixar aquilo para depois, mas por algum motivo quis fazer aquilo também. Mesmo temendo pela vi-da de seus pais achou que primeiro deveriam enterrar o baú. Precisava fazer isso. E nenhuma palavra precisou ser dita sobre o local ideal pa-ra enterrarem seus tesouros. Victor simplesmente caminhou até o tron-co da figueira e cavou um buraco aos seus pés, com as próprias mãos. A terra estava tão encharcada pela chuva que ele não encontrou difi-culdade alguma. E juntos, ele e Mifitrin colocaram o baú de madeira no fundo do buraco e o tamparam. Foi ali na figueira que enterraram a cápsula do tempo, local em que passavam todas as suas tardes jun-tos, onde Mifitrin quebrou o dedo ao cair de um de seus galhos, onde ela gostava de vir para apreciar os pássaros, principalmente os tuca-nos, onde Victor encontrou a pomba com a asa quebrada, onde tive-ram a aula com o professor Helder em que Victor expressou seu desejo de ser protetor, onde vinham quando fugiam da escola, onde conver-savam sobre o futuro, onde riam, choravam, onde os dois sempre esta-

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vam juntos, não importava o que acontecesse. Era aquela figueira que manteria viva a lembrança de Victor e Mifitrin, os dois irmãos que tanto se amavam… Assim que taparam o buraco Victor novamente se virou para ir ajudar os pais, mas Mifitrin o puxou pela mão e foi sua vez de lhe dar um beijo carinhoso no rosto: — Salve eles, Victor – ela pediu, recomeçando a chorar. – Salve o pa-pai e a mamãe… — Prometo que vou fazer isso Mifitrin, mas me espere aqui na figuei-ra. Vou voltar para te buscar… E Victor se foi, desaparecendo na escuridão da tempestade. Lá longe, dentro da cidade, Mifitrin enxergava as almas brilhantes saírem vo-ando aos montes. As pessoas estavam morrendo a cada segundo e a fumaça negra continuava avançando para a cidade. Um forte relâm-pago clareou o céu e a imagem de Victor correndo destemidamente fi-cou gravada na lembrança de Mifitrin…

— Eu te avisei Morton… Foi culpa sua! Aren continuava preso sobre a tumba de Roland, mas esta não era sua preocupação. Como protetor, sua preocupação era com as pessoas que estavam morrendo aos montes em Alaislude. Poucas vezes Kalimuns se lembrava de ver aquela expressão no rosto de Morton; era terrível ver aquele em que mais confiava desmoronar diante de seus olhos. Mas Morton logo se recuperou. Cometeu um erro, sabia disso, e não foi capaz de prevê-lo. Nunca achou que invadir uma fortaleza oculta de Mon e desativá-la fosse uma missão simples, mas não esperava co-meter uma catástrofe daquela magnitude: milhares de vidas perdidas.

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Mas não era hora para se culpar e sabia disso. Qualquer outro que tivesse os conhecimentos que ele tem teria feito o mesmo; qualquer um que pudesse ser comparado ao grande Mago Morton teria tomado a mesma decisão, por isso deixaria os arrependimentos para mais tarde. — As doze camadas do selo foram quebradas, não foram? Furioso com o Mago, Aren socou a parece invisível que o mantinha preso. Houve uma oscilação no ar à sua volta, onde era demarcada sua jaula. — A questão não é mais o selo de Mon – disse Aren quase gritando. – Precisamos salvar as pessoas de Alaislude… — NÃO! – Morton o interrompeu. – A questão aqui dentro sempre foi o selo de Mon. A maldição que nós ativamos não pode ser reverti-da. As pessoas na cidade irão morrer, não podemos fazer mais nada para ajudá-las. O que podemos fazer é selar Roland e impedir que al-gum dia mais mortes sejam causas por Mon… — NÃO DIGA QUE NÓS ATIVAMOS A MALDIÇÃO! – berrou Aren de dentro de sua jaula invisível. – Não diga nós. Foi você Mor-ton. A culpa é toda sua… — Tudo bem, Aren. Eu assumo a responsabilidade pelas mortes em Alaislude. Assumo esta responsabilidade sozinho. Mas agora continue o seu serviço, pois não irei me responsabilizar pelas mortes que Roland virá a causar caso algum dia volte a viver. Se ele causar uma morte sequer você será o responsável, por isso pare de se lamentar e faça o que eu te pedi. Aren deu mais um soco na parede invisível e novamente o ar oscilou à sua volta. Já não tinha o shuiken no olhar, estava completamente desconcentrado. Passou as mãos pelos cabelos negros que batiam no seu ombro, e tentou recolocar as idéias no lugar. Mordeu os lábios com seus dentes pontiagudos enquanto pensava. Ele destruiu as doze ca-

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madas do selo de Mon e agora estava sobre o núcleo do selo, exata-mente sobre o corpo de Roland preservado dentro da tumba. Mas ele sabia que o selo estava se consumindo, estava se rompendo e isso só podia significar uma coisa: Roland estava despertando! Ele precisava lançar um novo selo sobre o general de Mon antes que isso aconteces-se. Mas não sabia como. Já estava entrando em desespero novamen-te… — Fale comigo, Aren – Morton disse de repente. Voltou a assumir o mesmo tom de voz de quando entraram na caverna, indiferente ao fa-to de que milhares de pessoas estavam morrendo na cidade ao lado por sua culpa. No momento aquilo era mais importante. Aren sentia ódio pelo Mago, irritava-se ao ouvir sua voz, mas surpre-endeu-se ao se ver falando com ele. Realmente isso o ajudava a se acalmar. — O selo de Mon está se consumindo rapidamente agora que eu des-truí todas as camadas – Aren falou. O shuiken novamente voltou aos seus olhos, deixando-os com o tom lilás, e ele olhava para baixo onde apenas um símbolo de luz negra ia consumindo-se sob seus pés. Agil-mente Aren conjurou diante dele um pequeno pincel. Segurando-o com uma das mãos pintou um símbolo de luz branca sobre o símbolo negro de Mon. Os dois símbolos ficaram sobrepostos, de Aren impedindo que o de Mon se consumisse. Mas o selo de Mon era perfeito demais para ser manipulado e o Gene-ral da Magia já sabia disso. Quando um novo símbolo negro foi reve-lado, desta vez pintado na parede invisível, Aren já sabia o que iria acontecer. Não era preciso ser especialista em simbologia para reco-nhecer o símbolo tentaklo; tentáculos negros brotaram da parede invi-sível e investiram contra Aren, que teve seu peito perfurado em três pontos.

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— AREN! O General levantou o polegar para Morton, dizendo que estava tudo bem, mas neste instante mais dois tentáculos atravessaram seu corpo. Aren cuspiu sangue, mas não soltou sequer um grito de dor. — Está tudo bem, Morton. Deixe-me fazer meu serviço. De repente um ponto de luz surgiu na entrada do salão. Era uma al-ma, uma bela alma verde, que veio voando rapidamente na direção da tumba de Roland. — Kalimuns… — Eu sei, Morton – disse o amigo ficando de frente para a alma que se aproximava. – É a alma de Roland! — Não a deixe se aproximar do corpo… — Eu sei disso também. Dizendo isso o Mestre da Alma tocou seu colar e realizou algum feiti-ço. Linhas rubras surgiram por toda a extensão do salão e passaram a se cruzar, formando uma rede que a alma não pôde atravessar. As coisas estavam fugindo ainda mais ao controle, mas Morton era o único que não podia fazer nada ali. Olhou para o corpo sem vida do Mensageiro Marco e imaginou que logo seria os corpos deles que esta-riam no chão caso Roland revivesse. — Aren – ele gritou para o General. – Precisa fazer alguma coisa… a alma de Roland já está aqui! O General já sabia disso. Ainda transpassado pelos tentáculos negros, pintou mais meia dúzia de símbolos brancos sobre a tumba, mas todos foram quebrados logo após serem pintados. O selo negro de Mon con-tinuava se consumindo como se fosse um caminho de pólvora. Crente de que só havia uma coisa para fazer agora, Aren sacou um punhal de dentro de suas vestes e o usou para cortar os tentáculos que continua-

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vam maculando sua carne. Assim que se viu livre chamou Morton para perto dele, mas recusou-se a olhar para o Mago. — O que quer que eu faça, Aren? – Morton lhe perguntou ao lado da tumba, impossibilitado de fazer qualquer coisa para ajudar o compa-nheiro preso pela parede invisível. — Eu não sou Aren – disse ele forçando para que um sorriso lhe che-gasse aos lábios mesmo com a dor que sentia. Uma dor que não era somente física. — O quê? — Eu não sou o Aren, não sou um General. Sou um dos Cavaleiros da Magia: sou Magai! Morton não foi capaz de dizer nada; não entendia o que estava acon-tecendo, por que Magai resolveu lhe dizer isso justo agora. Mas ele continuou falando: — Aren e eu costumávamos fazer essas trocas antes de eu me tornar Cavaleiro. Nós sempre estávamos juntos, conhecíamos todas as mani-as do outro, conhecíamos ao outro assim como conhecíamos a nós mesmos. Eu era o Magai, mas podia ser o Aren quando eu quisesse. Ninguém nunca sequer desconfiou das nossas trocas. Éramos tão iguais… mas então Zander me escolheu como Cavaleiro e, pela pri-meira vez, éramos diferentes. Ele era General enquanto eu era Cava-leiro. Aren passou a ficar na minha sombra e já não podíamos ficar tão juntos como costumávamos. Os protetores não sabem o que é isso Morton, praticamente todos ignoram o que é ter um irmão protetor. Perdemos qualquer vínculo de sangue quando nosso Elemento nos es-colhe, mas a Magia escolheu Aren e eu juntos e esta é uma dádiva que pouquíssimos protetores podem ter. A Magia nos fez iguais… até Zander nos fazer diferentes.

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“Mas então surgiu esta missão e havia somente três especialistas em selo à altura: Zander, Aren e eu. Eu me prontifiquei imediatamente, mas Zander sabia dos riscos e não me permitiu. Sempre fui o preferido dele. Eu achei que ele ia dizer que viria em pessoa, mesmo sabendo que os quatro Sábios seriam contra a idéia de um Guardião correr tais ris-cos, mas ao invés disso ele cancelou a missão. Simplesmente cancelou. Isso gerou discussões, pois todos sabemos a importância do que esta-mos fazendo aqui neste momento, por isso eu sugeri que Zander envi-asse a última pessoa que poderia concluir a missão: o meu irmão. Eu já sabia que ele iria recusar, pois os riscos ainda eram inegáveis, mas surpreendentemente ele aceitou enviar meu irmão. Então eu me per-guntei: Se nós somos iguais, por que eu não posso correr os riscos e Aren pode? Somos iguais…”. — E por isso você trocou de lugar com ele – Morton completou – pa-ra desafiar Zander e dizer que vocês ainda são iguais, que nenhum dos dois é melhor ou superior ao outro. Magai sorriu e assentiu: — Isso mesmo. Se meu irmão podia correr os riscos eu também podia, por isso assumi o lugar de Aren como fiz tantas vezes e corri para cá. Enquanto isso o selo negro sobre a tumba continuava se consumindo, contando os minutos para o renascimento de Roland. A alma verde continuava investindo contra a rede conjurada por Kalimuns e já con-seguia forçar uma brecha por onde logo poderia passar. — MORTON, NÃO VOU CONSEGUIR SEGURAR A ALMA DE ROLAND POR MUITO TEMPO… Mas Morton já pressentia o que iria acontecer e resolveu não inter-romper a conversa com o gêmeo de Aren, apenas apressá-la: — Por que está me contando tudo isso agora, Magai?

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As vestes brancas de Magai estavam encharcadas de sangue, o mes-mo sangue que também escorria pelo canto de sua boca. Seu olhar es-tava desfocado e carregado de lágrimas que não tardariam a cair: — Por que eu descobri que irmãos estão destinados a não ficarem jun-tos, pelo menos como protetores. Aren e eu éramos exceções, mas no fi-nal nosso destino foi o mesmo… Estou dizendo isso porque não serei responsável pelas mortes que Roland causar… se algum dia ele revi-ver eu não serei o responsável, pois vou fazer minha parte neste mo-mento… — O que vai fazer? — Só existe um selo forte o bastante para impedir que Roland acorde agora e estou disposto a usá-lo. Ele foi criado pelo próprio Zander e ele nos ensinou. Chama-se Selo de Sacrifício… — Sacrifício do quê? – perguntou Morton já sabendo a resposta. Magai cuspiu mais sangue, mas finalmente olhou para o Mago: — Olhe como estou… já estou fodido mesmo… A alma verde de Roland estava ficando mais agressiva contra a rede de Kalimuns e já conseguia passar sua cabeça por uma brecha que abriu. — Zander se orgulhará de você, Magai… — Não – o Cavaleiro o interrompeu. – Ele se orgulhará de Aren, pois será ele a morrer hoje. Quem está lá dentro dos Domínios da Magia é Magai, quero que você se certifique de que será assim. Quero que meu irmão seja um Cavaleiro e se iguale a mim. Ele não vai compreender Morton, mas diga a ele que eu não tive escolha. Diga que fiz isso por ele… e não o deixe perder a cabeça. Diga que a partir de hoje ele será Magai para sempre. — Farei isso amigo – disse o Mago estendendo as mãos e tocando a parede invisível. Isso era o mais próximo que podia ficar daquele ho-

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mem de quem ele sentia um imenso orgulho agora. – Vá em paz… seu segredo estará seguro comigo. Aren entenderá… — Não cometa os mesmos erros, Morton. Ainda acredito que você é nossa única esperança de derrotar Mon quando ele retornar. Não sa-crifique sua vida como estou fazendo agora… E essas foram as últimas palavras ditas pelo Cavaleiro da Magia tão querido de Zander. Morton se afastou, permitindo que Magai fizesse seu sacrifício. Ficaria assistindo de longe até o último segundo. Aren despiu-se sobre a tumba de Roland, expondo seus ferimentos pe-lo peito. Com o polegar, passou a desenhar símbolos por todo o seu corpo com o próprio sangue. Tudo fazia parte do selo de Zander. Após ter pintado as figuras pelo corpo, pintou um único e simples símbolo de sangue sobre o selo de Mon que se consumia aos seus pés. Fazia tudo perfeitamente, exatamente como Zander ensinou a ele e Aren tantos anos atrás. Olhou uma última vez para Morton e acendeu um Fogo da Magia que ficou limitado dentro de sua jaula invisível. Por um momento Morton enxergou um Magai completamente formado pe-lo fogo alvo que ele conjurou, em cujo corpo de fogo ainda eram visí-veis os símbolos de sangue… foi a última visão que teve de Magai. Quando sua jaula invisível explodiu pelo poder do Fogo Mágico vá-rios símbolos brancos se espalharam pelo chão do salão, rodeando a tumba de Roland. Onde antes estivera o selo de Mon agora estava o selo de Zander, o Selo de Sacrifício. A alma verde de Roland, que até então lutava furiosamente contra a rede de Kalimuns para encarnar no corpo preservado, percebeu que não reencarnaria hoje e desistiu, se-guindo voando para a saída da caverna. Estava tudo acabado. — Vá embora Nai-Peleguir – Kalimuns sussurrou para a alma. – Não será hoje que você será forçada a reencarnar. Volte para os Do-mínios da Alma…

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O Fogo da Magia finalmente se apagou, não deixando nenhum ves-tígio do protetor carbonizado. Este foi o fim de Magai. Morton se aproximou de Kalimuns e colocou a mão em seu ombro: — Vamos embora Kalimuns, não há mais nada para fazermos aqui. Vamos deixar que Zander envie um time para recuperar o corpo do Mensageiro morto… E assim saíram da Caverna dos Sussurros pela última vez, agora já sem mais sussurro algum.

Já havia parado de chover, mas ela estava tão molhada que isso não fazia a menor diferença. Mifitrin estava sentada no chão ao lado da figueira, abraçando suas próprias pernas e olhando na direção da ci-dade. O Rio Dourado corria agitado às suas costas, indicando que re-almente havia chovido bastante. Morton e Kalimuns atravessavam a ponte do rio, mas Mifitrin só os viu quando chamaram por ela: — Mifitrin? Ela assustou-se ao ouvir a voz de Kalimuns. Olhou para ele e Mor-ton, o medo tremendamente estampado em seu rosto, mas então voltou a olhar para Alaislude como se ninguém mais estivesse ali. — Mifitrin, você está bem? – Kalimuns lhe perguntou, em dúvida se se aproximava dela ou não, mas ela não lhe respondeu e o Mestre re-solveu ficar afastado. Ela estava em choque, ele podia ver isso em seus olhos sem expressão enquanto olhava para a cidade que devia estar cheia de corpos sem vida. – O que está fazendo aqui. — Estou esperando por Victor.

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Ela usou um tom tão casual ao responder que causou um aperto no coração de Kalimuns. Nós destruímos esta garota para sempre. Teria sido melhor que ela estivesse na cidade também… — O que faremos, Morton? – ele perguntou ao amigo, afastando-se um pouco de Mifitrin para que ela não pudesse ouvi-los. – Ela é nossa responsabilidade agora. Precisamos encontrar um lar para ela… Mas Morton não lhe respondeu. Ficou olhando para a criança molha-da sentada no barro e de repente sentiu algo em relação a ela que não havia percebido nos últimos dias. Não sabia explicar o que era, mas sentia que estava olhando para aquela menina pela primeira vez em sua vida. Enxergou esperança nela, algo que não via em praticamente nenhuma das crianças que chegavam aos Domínios do Tempo e enxer-gou também algo mais que ele só viria a descobrir mais tarde. E foi completamente impulsivo ao responder: — Vou levá-la comigo! — O quê? — Vou levá-la comigo, Kalimuns. — Levá-la para onde? — Para os Domínios do Tempo! Kalimuns precisou de um momento para absorver as palavras de Mor-ton. Elas soavam quase como uma piada, mas ele sabia que não era. — Não podemos levar uma humana para os Domínios Morton, sabe disso. O Mago não conseguia tirar o olhar da pequena criança que ficaria eternamente marcada por aquela tragédia que acabou de presenciar. — Ela não será mais humana. Assim que chegar aos Domínios, che-gará como uma protetora do Tempo. — Sabe que não pode fazer isso Morton, sabe que está quebrando as leis. E sabe também dos problemas que terá de enfrentar por fazer is-

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so… só causará mais um problema na sua vida e talvez cause mais sofrimento para Mifitrin. Não pode levá-la e sabe disso; o Tempo não a escolheu… — Eu a escolhi. Os olhos de Kalimuns se arregalaram ao ver a atitude do amigo. Olhou então para Mifitrin que continuava sentada no barro e tentou enxergar nela algo de tão especial que fascinava Morton. Mas não conseguiu. Era apenas uma criança de oito anos, uma criança que tal-vez jamais voltasse a sorrir, uma criança que ainda não havia absor-vido todo o terror do que estava diante de seus olhos. Uma criança que seria infeliz, que talvez jamais encontrasse novamente um sentido em viver. — Tem idéia do que fizemos a ela, Morton? – Kalimuns voltou a lhe perguntar. – Como algo de bom pode vir dela quando seu coração sempre estará carregado de ódio? Sabe que ela nunca vai superar is-so… — Não importa o que lhe aconteceu, Kalimuns. Quando ela se tornar uma protetora esquecerá de tudo o que aconteceu antes disso. Se es-quecerá de Alaislude e da família. Ela nascerá novamente e talvez ainda tenha uma salvação. Kalimuns ainda não conseguia entender o desejo de Morton, não con-seguia aceitá-lo: — Mas eu repito que o Tempo não a escolheu, Morton. Ela não tem o que é preciso para ser uma protetora. — Duvida que eu seja capaz de torná-la uma boa protetora se for minha pupila? Duvida que eu seja capaz de mudar o destino dela? O amigo não mais discutiu. Sabia que as discussões com Morton não levavam a lugar nenhum. Ele estava decidido e nada do que Kalimuns

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dissesse o faria mudar de idéia. Mas ainda assim precisava fazer Morton entender que só causaria mais sofrimento para Mifitrin: — Você irá comprometer ainda mais o pouco tempo que nós temos pa-ra lutarmos contra Mon. — Tempo não é problema para mim… — Mas mesmo que a treine pessoalmente jamais será capaz de torná-la uma igual. O Tempo não a escolheu e ela não tem o que é preciso. Concentração sempre será o problema de Mifitrin. Talvez fosse mais prudente deixá-la aqui… — Vou levá-la comigo, Kalimuns! — EU NÃO QUERO IR! Os dois protetores assustaram-se com o grito de Mifitrin. Ela conti-nuava sentada no barro abraçando suas pernas enquanto olhava para Alaislude. Morton caminhou lentamente até ela, ajoelhou-se a sua frente tampando a visão da cidade e colocou a mão em seu ombro. A voz que saiu de sua boca foi extremamente acolhedora: — Então o que você quer fazer, Mifitrin? — Vou ficar aqui esperando o Victor. Ele disse que voltaria para me buscar aqui, e depois vamos para a casa com o papai e a mamãe. — Victor não vai voltar Mifitrin, ninguém vai voltar. Todos se fo-ram. Alaislude não é mais a sua casa, mas eu posso levá-la para um novo lugar que você possa chamar de lar… — Eu não quero ir. Vou ficar esperando o Victor. Apesar da voz acolhedora, as palavras de Morton foram extremamen-te frias: — Victor morreu Mifitrin, sabe disso. Você ficou sentada aqui e deve ter visto milhares de almas sairem voando da cidade. Todos os que es-tavam lá morreram, Victor não teria como escapar. Uma das almas que você viu era dele.

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A pequena começou a chorar novamente e Morton apertou seu om-bro com mais força, mas logo ela voltou seu olhar para o céu que agora estava estrelado e um sorriso substituiu as lágrimas. — Victor e eu sempre olhávamos para as estrelas à noite. E olhando para elas eu sinto que meu irmão está fazendo a mesma coisa em al-gum lugar. Eu sei que meu irmão está vivo, senhor Morton. O Mago não voltou a discutir. Enquanto Mifitrin falava com espe-ranças sobre seu irmão, ele enxergou nela tudo aquilo que o fascinara momentos atrás. Era a esperança presente em Mifitrin que o fascina-va, foi a esperança que não permitiu que Morton desistisse dela. Tal-vez tenha sido inclusive a esperança de Mifitrin que a salvou esta noite. O Tempo poderia não ter enxergado isso nela, mas Morton en-xergava. Era daquilo que os Elementos da Vida precisavam, de pesso-as como aquela jovem criança marcada pela tragédia. De repente, ao olhar para os seus olhos também azuis, percebeu que havia encontrado um novo significado para sua vida, um significado que estivera bus-cando inconscientemente por décadas. E agora que o encontrou não desistiria dele. — Quer ser uma protetora, Mifitrin? Ela respondeu sem nem ao menos tirar os olhos das estrelas no céu: — Não. — Mas ser protetor era o objetivo de Victor. Não acha que poderia fazer isso por ele? Ao ouvir isso Mifitrin finalmente baixou a cabeça para Morton e, ao pensar em sua proposta ouviu as palavras da mãe em sua cabeça: “Victor vive por você, Mifitrin. Ele vai onde você for, fará o que for preciso para estar do seu lado. Ele se preocupa com você e tem medo de deixá-la sozinha. É bom você se acostumar a isso, pois vai ter que aturá-lo sua vida toda… aonde você for, Victor irá também”.

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— Eu quero senhor Morton, quero ser uma protetora. Dizendo isso ela se levantou do barro, agora renovada por uma espe-rança que jorrava dela. Era quase visível. E não foi por ela que acei-tou ser uma protetora, foi por Victor, foi pelas palavras da mãe. Se Victor queria ser um protetor e sempre estaria ao lado de Mifitrin, ela seria uma protetora apenas para que ele pudesse estar ao seu lado e cumprir seus objetivos. Ela seria uma protetora por ele, para que ele também pudesse ser. — Então vamos para a casa – disse o Mago e o sorriso desapareceu do rosto de Mifitrin. — E o meu irmão? — Ele não está em Alaislude, Mifitrin – Morton sabia que ele estava morto, mas não ousaria destruir as esperanças de Mifitrin. De repente lembrou-se das palavras de Magai ainda na Caverna dos Sussurros: “descobri que irmãos estão destinados a não ficarem juntos, pelo me-nos como protetores”. Talvez fosse realmente verdade – Vamos para a casa conosco. Prometo que te ajudarei a procurá-lo quando você qui-ser… Mas não era verdade e Kalimuns sabia disso. Morton empurrou Mifitrin e ela começou a andar na direção em que era conduzida. — ESPERE! – ela gritou de repente, desvencilhando-se das mãos de Morton e correndo de volta para a figueira. Ajoelhou-se no barro e começou a cavar o chão com as próprias mãos, até que encontrou um pequeno baú de madeira. — Essa é a nossa cápsula do tempo – ela contou para o Mago – mi-nha e de Victor. Mas está faltando uma coisa nela. Será que o senhor poderia…?

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E S P E C I A L E S P E C I A L E S P E C I A L E S P E C I A L –––– T u d o e m s e u T u d o e m s e u T u d o e m s e u T u d o e m s e u t e m p ot e m p ot e m p ot e m p o

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Morton se abaixou e Mifitrin sussurrou em seu ouvido o que ela queria. Morton sorriu e assentiu. Tirou um pequeno frasco de um dos seus bolsos, despejou seu conteúdo (que parecia ser importante) no chão e fechou as mãos em torno do frasco. — Está aqui, Mifitrin – disse ele entregando o frasco para a garota. – Seu frasquinho de vento! Sorridente ela admirou o frasco por apenas alguns segundos com seu conteúdo em constante movimento e achou a coisa mais linda que já tinha visto. Mas logo se livrou dele; colocou-o no baú de madeira e voltou a enterrá-lo aos pés da figueira, onde ficaria até que ela e Vic-tor voltassem juntos para desenterrá-lo. E então daria seu presente ao irmão. Ela afastou-se alguns passos e olhou para a figueira ciente de que tal-vez demorasse para vê-la novamente. — Victor e eu gostamos desta árvore… — Temos uma árvore para onde vamos também – disse Morton vol-tando a empurrá-la com uma das mãos. O sorriso em seu rosto não po-dia ser maior quando a garota se deixou ser conduzida. – O nome dela é Antúnia, vai gostar dela… E os três caminharam por um longo caminho. Logo encontrariam um Mensageiro esperando para levá-los para os Domínios do Tempo, a nova casa de Mifitrin. Haveria muita confusão quando Morton che-gasse com uma garota que sequer foi escolhida pelo Tempo, mas no fim se tornaria uma protetora. E no momento em que isso acontecesse, no momento em que colocasse um colar em seu pescoço, esqueceria-se completamente de toda sua vida em Alaislude, esqueceria-se de seus pais, dos amigos, de Victor… Morton não lhe disse isso. Se tivesse di-to Mifitrin jamais aceitaria tornar-se uma protetora, mas Morton não podia abrir mão dela. Jamais faria isso. Chegaria inclusive o dia em

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que Morton abriria mão da própria vida em troca da de Mifitrin. Ela foi o maior tesouro que ele encontrou durante toda a sua existên-cia. E julgou correto o que estava fazendo. O mal que havia feito a ela quando causou a morte de todos na sua cidade seria irreversível e acreditava que seria melhor Mifitrin esquecer-se de tudo e todos. Não poderia sofrer por algo que não lembrava. — O senhor acha que vamos demorar muito para encontrar o Victor? — Tudo em seu tempo, Mifitrin. Tudo em seu tempo…

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