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SacerdoteS 04

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Rio Arman

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Capítulo 4 – Rio Arman

Quando a Convocação Elementar chegou ao fim, Kalimuns e Elkens foram levados para um aposento nas Ruínas Milenares. O local já es-tava preparado para eles. Duas camas arrumadas em um pequeno, mas confortável quarto. Sobre uma mesa de madeira, uma cesta con-tendo frutas recém-colhidas e um jarro com água fresca. Elkens e Ka-limuns comeram com gosto, depois se prepararam para deitar. As ho-ras passaram rápido desde que chegaram aos Domínios do Tempo e a tarde já ia chegando ao fim. Elkens pretendia passear pelos Domínios do Tempo para conhecê-lo melhor, mas depois da convocação sua men-te ficou lotada de coisas para se pensar. Ele pensava em tudo o que aconteceu, tudo que ouviu e descobriu. De forma irônica, tudo começava novamente com Morton. A alma do antigo Mago reencarnara, assim os Domínios do Tempo foram abertos após quinze anos selados; enquanto isso, coisas estranhas estavam acontecendo nos Domínios da Magia. Meithel, o Sacerdote, ficara preso do lado de fora, impossibilitado de entrar pelo portal que, apa-rentemente, estava selado. Mas, uma vez Meithel sendo um protetor da Magia, jamais deveria ser impedido de entrar lá, mas isso estava acontecendo e ninguém sabia explicar o motivo. Elkens e Mifitrin voltaram quinze anos no tempo e, por algum motivo, isso ativou uma magia pós-vida conjurada por Morton tanto tempo atrás. O Mago surgiu para eles, mas não deu nenhuma das respostas que queriam ou-vir. A única coisa que Morton disse é que havia um cristal no vilarejo Rismã, um cristal que poderia ser usado como uma chave para entrar nos Domínios da Magia; no lar de Meithel.

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E eles partiriam no dia seguinte. Elkens, Mifitrin e Meithel, somente eles. Esse foi o conselho de Morton. Somente os dois Sacerdotes e a Guerreira deveriam ir nessa missão. E assim seria feito. Elkens não fazia idéia de onde ficava o vilarejo Rismã. A ansiedade que sentia era quase uma tortura. Não conseguiria dormir tão cedo e sabia disso. A única coisa que o reconfortaria nesse momento era uma conversa com Kalimuns, uma conversa a sós, onde ele esperava que seu tutor fosse o mais sincero possível com ele, sincero de uma forma que não foi durante todo aquele dia. — Senhor Kalimuns – começou. – Morton lhe mandou um recado. Kalimuns tentou conter um grande sorriso. Não disse palavra alguma, apenas aguardou que seu pupilo prosseguisse. — Ele me mandou lhe dizer que tudo vai indo como o esperado. Disse que o senhor pode me confiar algo que está guardando e disse também que o senhor fez melhor do que ele esperava. O sorriso não pôde mais ser contido. O rosto do Mestre da Alma era radiante. Seu olhar estava desfocado, talvez olhando não para fora, mas para dentro; para suas lembranças. — Amanhã eu lhe entregarei aquilo que Morton mencionou. Faz muito tempo que estou guardando aquilo, mas jamais duvidei que pu-desse confiá-la a você e não precisei que Morton me dissesse isso para tomar minha decisão. Ela já foi tomada há muitos anos. E apesar de ele ter dito que fiz melhor do que ele esperava, não fiz sozinho. Tanto você quanto ele me ajudaram igualmente. Elkens não entendia nada. — Eu ajudei? – perguntou em tom confuso. Mas o olhar de Ka-limuns continuou voltado para dentro, por isso Elkens desistiu de es-perar por uma resposta. Mas a resposta veio, embora não da forma como o Sacerdote queria ouvir:

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— Tudo em seu tempo, Elkens. Um dia você terá conhecimento de tudo o que foi planejado por Morton, mas ainda não chegou esse dia. Kalimuns caminhou até um canto do aposento e ficou ali meditando. Aquela não foi uma conversa exatamente sincera. Elkens continuava na estaca zero. Não sabia de nada e sabia que continuaria assim no que dependesse de seu tutor. No momento de silêncio que se seguiu, Elkens também ficou perdido em suas lembranças. Percebia que aque-la seria a primeira noite que não dormiria nos Domínios da Alma. Mas ao pensar no seu lar, pensou também em Nai-Peleguir, a alma que se tornara amiga de Elkens; a alma que se tornara sua alma-protetora. Elkens lembrou-se da noite anterior, quando Nai-Peleguir assumiu a forma de um rangar e o salvou de Kanoles e seus homens. Sua recente aventura agora parecia ter acontecido há dias. O rosto de Kanoles continuava surgindo em sua mente com certa insistência. E foi depois de vários minutos pensando no caçador de recompensas que conheceu na noite anterior que Elkens finalmente se lembrou de algo. Parecia que era capaz de ouvir a voz de Kanoles em sua mente, quase como se ele estivesse ao seu lado: “Amanhã decidiremos o que será fei-to dele e continuaremos seguindo para o vilarejo Rismã. Se minha fon-te estiver certa encontraremos o cristal escondido lá. Precisamos rou-bá-lo o quanto antes.” — Senhor Kalimuns! – exclamou Elkens exaltando-se, sem pensar di-reito. O Mestre da Alma olhou para ele intrigado. – O senhor se lem-bra de Kanoles? O homem que lhe contei ter me feito prisioneiro na noite passada? — Sim Elkens. Eu me lembro do caçador de recompensas. — Ele está indo para lá… para Rismã! Ele disse isso… agora me lembro. Ouvi muito bem quando ele disse que iria para Rismã roubar algo de valor. Ele está indo roubar o cristal!

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Mas apesar da preocupação estampada no rosto e na voz de Elkens, o tom com que Kalimuns respondeu beirava à indiferença: — O vilarejo Rismã fica mais longe dos Domínios da Alma que dos Domínios do Tempo. Não se preocupe. Mesmo que partam amanhã, ainda estarão em vantagem. Se tiverem sorte, chegarão ao vilarejo ho-ras antes de Kanoles e seus homens… — Horas? – a preocupação na voz do jovem Sacerdote apenas au-mentou. — Não se preocupe com isso Elkens. Esqueça de Kanoles e tente dormir. Amanhã partirá cedo para sua nova missão. Mas no fundo, em seu subconsciente, Elkens não estava preocupado. Um desejo involuntário havia nascido dentro dele sem que se desse conta. Queria encontrá-lo. Desejava isso intimamente. Se tivesse sor-te, reencontraria o caçador de recompensas no vilarejo Rismã, mas es-taria preparado. Mostraria do que era capaz e não permitiria que Ka-noles roubasse o cristal. Quando a Convocação Elementar terminou, Mifitrin seguiu sorratei-ramente até a Nascente Brilhante. Ao ter certeza de que ninguém es-tava vigiando-a, retirou o colar de Morton que estava sempre com ela. O colar de Morton era um colar ancestral; o colar da proteção. En-quanto alguém usasse o colar, não poderia ser ferido por um ser vivo, mas quinze anos atrás Morton descobriu que o colar não funcionava contra os kenrauers, os terríveis demônios sem alma. Morton deu seu colar para Mifitrin antes de morrer, mas desde sua morte o colar não tinha mais a habilidade de proteção. Mifitrin nunca usou a magia do colar; seria praticamente impossível já que suas habilidades não se comparavam às de Morton, mas mesmo assim sempre andou com ele. Sempre levou o colar de Morton consigo nos últimos quinze anos e o

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colar deveria protegê-la. Mas por algum motivo a proteção do colar não existia desde a morte de seu dono. Era como se a magia de prote-ção tivesse morrido junto com o dono do colar. Mas ao menos desta vez o colar seria útil. Não para protegê-la, mas para lhe dar aquilo que Morton deixou escondido para ela. Segurou o colar de Morton com as mãos e o mergulhou nas águas cris-talinas da Nascente Brilhante. Imediatamente a água começou a bri-lhar e algo surgiu lá no fundo, vindo lentamente até a superfície. As-sim que chegou perto, Mifitrin segurou o objeto e assustou-se ao reco-nhecer aquela relíquia do Tempo. Era a Ampulheta do Tempo, uma das relíquias mais poderosas que havia ali. A Ampulheta do Tempo dava poder a quem a utilizasse de voltar no Tempo, mas isso seria ab-solutamente comum se não fosse pelo fato de a ampulheta permitir que o passado fosse alterado. Era uma relíquia poderosíssima, mas igualmente perigosa em mãos erradas. Antes de morrer, Morton deve-ria ter roubado aquela relíquia e escondido-a ali. Mas Mifitrin conhe-cia as leis dos pergaminhos ancestrais e sabia que não poderia usar uma relíquia a menos que realmente fosse necessário. Mifitrin ocultou a relíquia utilizando magia e seguiu para seus apo-sentos. Colocou as coisas que usaria na viagem numa bolsa de couro, cuidadosamente escondendo a Ampulheta do Tempo no fundo da bol-sa. Se alguém descobrisse que Mifitrin estava partindo com uma relí-quia escondida, ela seria impedida de partir, podendo até mesmo ser punida. Seria arriscado demais correr esse risco, mas ela sabia que não estava sozinha. Alguém com um poder como o de Cronos poderia fa-cilmente perceber que a relíquia estava por perto, mas Mifitrin sabia que Kalimuns poderia ajudá-la a ocultar a magia da relíquia. Com a ajuda de Kalimuns, ninguém nunca perceberia que Mifitrin estava carregando algo tão poderoso.

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Mifitrin estava ansiosa para terminar essa missão logo, pois preten-dia encontrar duas coisas depois que tudo isso tivesse acabado. A pri-meira era a Tiara Abnuncunam, para ter acesso às lembranças de Morton, e a segunda era a própria reencarnação de Morton. Sabia que Kalimuns não concordava com aquilo, e nem sabia se a alma de Mor-ton havia reencarnado em um bebê humano ou em um ser de outra ra-ça, ou mesmo no corpo de algum animal, mas iria encontrá-lo de qual-quer maneira. Estava determinada… Meithel estava sozinho em seus aposentos. Dentre os três que partiri-am na manhã seguinte, Meithel era o mais ansioso para que isso acon-tecesse. Ele queria muito pegar o cristal no vilarejo Rismã e entrar nos Domínios da Magia com ele. Não entendia nada do que estava acon-tecendo lá dentro, mas não se conformava com a idéia de ter ficado isolado de todos. Queria muito voltar para lá e ajudar seus amigos. Meithel sabia que Lakar, seu tutor, estava morto, mas ainda havia Kam e Mudriack. Kam era um dos Cavaleiros, o único em que ele não tinha medo de confiar, em quem tinha plena certeza de que jamais se uniria a Shiron. E o Feiticeiro Mudriack era seu melhor amigo. O Sa-cerdote da Magia não sabia o que poderia estar acontecendo lá dentro, mas sabia que com toda certeza Mudriack estava lutando contra quem quer que estivesse do lado de Shiron. Meithel precisava chegar lá o quanto antes e ajudar seus amigos, antes que fosse tarde demais…

♦ Elkens acordou cedo no dia seguinte, mas Kalimuns já estava desper-to, aparentemente há horas. Estava terminando de embrulhar algo em um pedaço de pano; pelo cuidado com que fazia seu serviço, o objeto

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embrulhado (seja ele o que fosse) era algo de valor. O Mestre cumpri-mentou seu pupilo sem tirar os olhos do embrulho, ao que acrescentou: — Tem pães e leite sobre a mesa. Coma bem. Vai ficar alguns dias sem os confortos que nos cederam aqui, mas sei que vai se sair bem. Elkens vestiu suas vestes rubras de Sacerdote da Alma e caminhou lentamente até a mesa onde estava preparado seu desjejum. Havia muito mais que pães e leite. Uma variedade de bolos enfeitava a mesa, além de queijos e dois ou três tipos de sucos. Olhou para a porta do aposento onde se hospedaram e viu sua bolsa aberta, encostada ao la-do da porta. — Tomei a liberdade de preparar sua bolsa. Coloquei tudo o que você vai precisar para alguns dias, mas apenas o básico. Há comida, água, cobertores… Elkens caminhou até a janela aberta e admirou as Ruínas Milenares. Protetores do Tempo se moviam em todas as direções, em mais um dia como todos os demais. Cada um encarregado com uma missão, ou ape-nas treinando. Cumpriam suas obrigações, sempre com um objetivo maior: zelar por Gardwen e seus Elementos, assim como toda a forma de vida. Kalimuns continuou com seu embrulho por longos minutos; ainda não havia tirado os olhos da sua tarefa. Ao terminar o desjejum, Elkens não conseguiu mais se conter: — O que é isso, senhor Kalimuns? Sem tirar os olhos do embrulho de pano que fazia com total cuidado e atenção, Kalimuns respondeu: — É o que está embrulhado aqui que Morton me pediu para lhe en-tregar.

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A ansiedade de Elkens aumentou. Andou a passos largos até perto do seu tutor, olhando para o embrulho com um olhar de desejo e curio-sidade. — O que tem aqui dentro é uma relíquia da Alma! – o coração de El-kens se acelerou. – Você sabe muito bem que não deve usá-la a menos que realmente precise – Kalimuns finalmente terminou o embrulho. Amarrou o embrulho de pano com um pedaço de fita que já havia cor-tado, e sobre a fita colou um pergaminho recentemente pintado à mão. Elkens não conseguiu decifrar o símbolo no pergaminho, mas sabia que era parte de algum tipo de feitiço. – Sei que Cronos e os outros Sábios sentiriam o poder de uma relíquia da Alma escondida em sua bolsa, por isso coloquei este selo nela. Dificilmente alguém perceberá algo. Elkens admirava o embrulho com total admiração; sua auto-estima foi parar nas nuvens ao descobrir que Kalimuns lhe confiaria uma re-líquia, confiaria inteiramente a ele, mesmo isso não sendo permitido. — Mifitrin também está levando uma relíquia do Tempo nesta jorna-da – continuou Kalimuns – por isso fiz um selo para ela também. Ninguém perceberá que vocês dois sairão dos Domínios do Tempo com duas relíquias escondidas. Meithel não sabe de nada e será mais segu-ro que continue assim por enquanto. Kalimuns se levantou da cadeira onde estivera sentado, então entre-gou o embrulho ao pupilo. Elkens esvaziou sua bolsa e escondeu a re-líquia no fundo. Voltou a arrumar suas coisas dentro da bolsa, então a pendurou no ombro e saíram dos aposentos. Caminharam pelo meio das Ruínas Milenares, seguindo para o Pátio da Antúnia, de onde sairiam dos Domínios do Tempo. O local era tão bonito quanto antigo. Lembrava o que restou de um grande santuário que ruiu há milhares de anos. Plantas cresciam entre as pedras brutas,

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e a água estava sempre presente, caindo pelas paredes, em fontes, ou simplesmente correndo por seu caminho entalhado no chão de pedra. Escadas, pilares, altares, jardins… era ali que todos os protetores do Tempo tinham seus aposentos. Era ali que todos eles dormiam, inclu-sive as visitas como os dois protetores da Alma. — Senhor Kalimuns, não sei realmente por que estou indo nesta jor-nada – Elkens teve dificuldades para transformar seu receio em pala-vras. – Sou apenas um Sacerdote que sequer conhece Gardwen. Não sei no que poderei ser útil… Nesse momento Kalimuns parou de andar. Encarou o pupilo com ca-rinho, mas naquele olhar também havia uma certa pena escondida. — Quero que você compreenda que ninguém está te obrigando a ir, Elkens. Quero que você saiba que pode dizer não, então nós dois vol-tamos para a casa agora; mas se não disser não, também quero que saiba que foi escolha sua – Kalimuns fez uma pausa, dando à Elkens tempo para refletir e concordar com um aceno de cabeça. – Você deve saber que eu não aceitaria a desculpa de que você não seria útil. O próprio Morton disse que você deveria ir e veja bem: ele nunca te co-nheceu! Ele escolheu você. Não escolheu a mim, ou Cronos, ou qual-quer outro Sábio, ou qualquer outro que teoricamente seja mais capa-citado. Escolheu Mifitrin, Meithel e você. Escolheu vocês, cujo trei-namento como protetor apenas começou. Escolheu vocês! Somente Morton tem as respostas de que precisamos e se ele escolheu vocês pa-ra irem nesta missão, quem é você para dizer que não será útil? Elkens sustentou o olhar de seu tutor, numa forma de consentimento silencioso. — Tudo bem – disse após muito refletir, mesmo já tendo concordado antes. – eu irei. Mas por favor, avise Nai-Peleguir aonde eu fui. Diga que logo eu voltarei para vê-la.

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Kalimuns sorriu carinhosamente. — Ela já sabe, Elkens. A compreensão de uma alma está muito além da nossa. Talvez ela só tenha se aproximado de você porque já sabia que você partiria; sabia que você poderia precisar dela. Mas não se preocupe em voltar para vê-la. Se você precisar dela, ela aparecerá. Ela irá até você. Elkens novamente consentiu. Reconhecia que não conhecia profun-damente a ligação que nascera entre ele e sua alma-protetora, mas ti-nha noção de sua complexidade. Sem querer se atrasar, Elkens deu um passo, retomando a caminhada até o Pátio da Antúnia, de onde parti-ria com Meithel e Mifitrin. Mas Kalimuns o deteve antes que desse o segundo passo: — Espere um minuto, Elkens. Tenho mais uma coisa para lhe entre-gar, algo que quero que leve nesta jornada. O Mestre mexia em um bolso interno de suas vestes. De lá retirou um pequeno frasco, completamente feito de rubi. Dentro do frasco havia algum líquido, apenas uma pequena quantidade. Mas Elkens já sabia do que se tratava, não precisava da explicação de Kalimuns: – Como você bem sabe, essa é a água mais pura de toda Gardwen. Ela nasce nas profundezas dos Domínios da Alma e é capaz de regenerar as for-ças de um indivíduo. Não apenas força física, mas também espiritual. Irá salvá-lo de qualquer ferimento, qualquer veneno, e também da maioria das maldições. Mas sinceramente, creio que você não precisará usá-la. Sinceramente?, Elkens se perguntou. Não! Definitivamente Kalimuns não estava sendo sincero e pela primeira vez Elkens encarou aquela missão como sendo imprevisível; não seria apenas pegar um cristal em Rismã e abrir os Domínios da Magia com ele. Sentiu medo com a falta

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de sinceridade de Kalimuns. Se acredita que não vou precisar disso, por que está me dando? Elkens pegou o frasco de rubi e o colocou em sua bolsa sem agradecer. Seus olhos encaravam os de seu tutor, tentando enxergar ali um vacilo sequer, parte da verdade, mas os olhos de Kalimuns pareciam uma for-taleza. Impossível saber o que eles escondiam, o que havia por detrás deles. — É melhor irmos – disse o Mestre, desta vez sendo ele a retomar a caminhada. – Cronos e os outros já devem estar nos esperando. Os dois caminharam por mais alguns minutos até que finalmente dei-xaram as Ruínas Milenares para trás. Seguiam agora por um caminho de pedra, de onde já podiam avistar a depressão onde ficava o Pátio da Antúnia. Dentro da depressão, a copa da Antúnia era visível. O pátio fica exatamente no centro dos Domínios do Tempo; era onde vários caminhos de pedras se encontravam. Ali ficava o portal princi-pal, a ligação entre os Domínios e Gardwen. Sob a magnífica árvore, estavam quatro pessoas: Cronos, Sábio do Tempo; Manjourus, Gene-ral do Tempo e tutor de Mifitrin; a própria Mifitrin e por último Meithel. Mifitrin estava vestindo sua armadura de Guerreira. Uma armadura leve que, Elkens pensou, servia para valorizar sua agilidade. A arma-dura era feita por algum material que Elkens não conheceu; era anil, assim como todas as outras vestes ou armaduras de protetores do Tempo. A armadura era composta por ombros, peito, e quadril. Os braços de Mifitrin, assim como suas pernas, ficavam completamente livres para se mover. Sob a armadura, Mifitrin usava algum tipo de malha apenas para complementar sua proteção. Também parecia ser incrivelmente leve, mas com certeza a protegeria da maioria dos golpes

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físicos. Às costas, um arco estava pendurado, assim como uma aljava de flechas. No ombro, sua bolsa de couro para a viagem. Ela mantinha uma conversa com Manjourus, seu tutor, que suposta-mente lhe passava conselhos. Meithel estava afastado, com suas vestes alvas. Elkens reparou nos movimentos impacientes de suas mãos, que pareciam não se acomoda-rem em qualquer posição que fosse. O Sacerdote da Magia estava an-sioso para partir, ansioso para voltar ao seu lar e aos seus amigos. Cronos estava mais a frente, e abriu os braços para acolher aos que chegavam por último: Kalimuns e Elkens. Agora sim estavam todos ali. Elkens partiria em sua primeira missão em Gardwen a qualquer momento. E estava ansioso também. Enquanto Elkens descia pelos degraus até a depressão onde estava o pátio, seus olhos encontraram os de Mifitrin. Ela os desviou rapida-mente, voltando sua atenção ao seu tutor sem demonstrar tê-lo reco-nhecido. Elkens baixou o olhar e novamente reparou na bolsa de couro no ombro da Guerreira, desta vez com mais interesse. Sabia que no fundo da bolsa, assim como na sua própria, havia uma relíquia escon-dida. — Está tudo preparado para a partida? – perguntou Cronos. — Sim – Kalimuns olhou para Elkens para ver como estava o pupilo. Ficou feliz em ver que estava calmo. – Já dei todos os conselhos que poderia ter dado a ele. Elkens caminhou até o Sacerdote Meithel e ficou ao seu lado, em si-lêncio. Mifitrin continuava recebendo instruções que Elkens não pôde ouvir. — Nas bolsas de vocês há comida suficiente para dois dias de cami-nhada, o tempo esperado para chegarem ao vilarejo Rismã. Água não será problema, uma vez que seguirão o rio Arman para chegar ao vila-

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rejo. Quando chegarem em Rismã, peguem o cristal e partam sem de-longas para o lago Lushizar. Meithel sabe onde fica o portal. Não te-nho certeza se precisarão lutar, mas tudo está tão estranho que há possibilidades. Aconselho que vocês evitem ao máximo uma batalha. Essa é uma missão de reconhecimento. Abram o portal, entrem nos Domínios da Magia e vejam o que está acontecendo por lá. Nos avi-sem imediatamente caso precisem de reforços, mas o importante é que vocês saibam que não estão indo para lutar! – Cronos fez uma pausa, olhando de Meithel para Elkens. – Eu iria lhes oferecer uma espada, mas Kalimuns não permitiu. — Somos Sacerdotes senhor, não Guerreiros – as palavras saiam da boca de Elkens quase iguais as que ele lembrava estarem escritas num livro que leu quando iniciava seus treinamentos como protetor. – Não carregamos armas, embora também recebamos treinamento para lutar. Se formos atacados, saberei me defender, e acredito que Meithel tam-bém. Meithel concordou com um leve aceno de cabeça. — Não se preocupe, Cronos – disse o General Manjourus, que termi-nara de passar seus conselhos à Guerreira. – Mifitrin estará com eles. Sabe que todos ficarão bem. — É, eu sei – concordou o Sábio. – Mas agora creio que esteja na ho-ra de vocês partirem. A jornada até Rismã é curta, mas vocês irão além. Desejo boa sorte aos três. Ficaremos aguardando notícias. Mifitrin se juntou aos dois Sacerdotes. Juntos, agradeceram, se despe-diram, tocaram seus colares e desapareceram. Agora estavam fora dos Domínios do Tempo. Estavam em Gardwen.

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Elkens: o Sacerdote da Alma que cresceu sob os cuidados de Nai-Kalimuns. Elkens desconhece a dor, o sofrimento ou qualquer outro

sentimento que o permita ser corrompido pelas sombras. Ele está com-pletamente protegido, seu coração jamais será seduzido por Mon, mas

este também é o seu grande ponto fraco. Nunca se fortaleceu com a dor, nunca aprendeu com seu sofrimento e tampouco enfrentou seus

medos, pois jamais sentiu qualquer uma dessas coisas e isso faz dele o elo fraco dos Sacerdotes.

Uma característica em comum com seus parceiros, algo que nem mes-mo ele conhece ainda, é sua perseverança, sua capacidade de supera-

ção, e isso faz dele alguém ideal para fazer parte dos planos de Mor-ton. Ele trás dentro de si uma criança, uma representação da infância

que jamais teve, e muitas vezes tende a enxergar as coisas com os olhos desta criança. Sua maior habilidade como protetor é a facilidade

que encontra para se concentrar e levar sua mente aos níveis de con-centração mais elevados, o que o torna o oposto de Mifitrin.

Mas essa é a chave dos planos de Morton. Ele não juntou três prote-tores perfeitos em tudo para executarem seus planos. Preferiu escolher

três protetores imperfeitos, contendo qualidades e defeitos, onde um completa e aprende com o outro. E juntos se superam…

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Quando seus pés voltaram a tocar o chão, Elkens sentiu a luz mati-nal de Tunmá tocar seu corpo. Como adorava aquilo. Estava feliz de voltar a sentir o reconfortante calor. Não um calor artificial como dentro de um Domínio, um calor que não tem fonte própria, um calor que é apenas um reflexo do calor de Gardwen. O calor de Tunmá, ou Sol, seja qual for o nome que receba, é incomparável. É reconfortante. Abriu os olhos. Novamente era um lugar novo para ele. Entrara nos Domínios do Tempo por um portal paralelo, um portal que podia estar a centenas de quilômetros dali, ele não sabia. O que importava é que realmente estava em um lugar novo. — E agora? – ele perguntou enquanto olhava a volta, sem saber para qual direção seguir. Antes que alguém respondesse, reparou que estava sobre uma pedra circular incrustada no chão, contendo o símbolo do Tempo, entre quatro pilares de pedra que apontavam para o céu. Aquela era a marcação de um portal principal para um Domínio. — Agora é por nossa conta – respondeu Meithel passado breves se-gundos. – A partir de agora estamos sozinhos. Foi Meithel quem tomou a dianteira, foi ele quem deu o primeiro pas-so daquela jornada que, como Elkens já suspeitava, poderia não ser tão simples quanto todos pensavam. Novamente Elkens viu em sua atitude o quanto estava ansioso (desesperado) para voltar para a casa. Retornar para os Domínios da Magia agora era, para Meithel, tão es-sencial quanto respirar. Precisava fazer isso, não importasse o que lhe custaria. Precisava retornar para a casa. E esse foi o começo de uma jornada cujo fim ninguém conhece. Meithel adiante, andando a passos largos, parecendo se conter para não voar. Mifitrin logo atrás, pensativa, mas também atenta aos pe-rigos que poderiam surgir; seus olhos corriam de lado a lado, de frente a trás, procurando algo que definitivamente não estava ali. E Elkens

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por último, tão pensativo quanto Mifitrin. Dentre os três, era para ele que aquela missão tinha menos significado; talvez nenhum signifi-cado além de uma simples missão, salvo o fato que era a primeira que realizava fora dos Domínios da Alma. Mas ele era a exceção do gru-po; para Meithel e Mifitrin, aquilo seria muito mais que uma simples missão. Meithel queria retornar para a casa, buscar respostas e vingar seu tutor. Quanto a Mifitrin, sentia que finalmente começara aquilo por que tanto ansiara: a vingança de Morton. Por algum motivo ela sentia que estava entrando na guerra para que tanto treinou nos úl-timos quinze anos. Sentia que esta guerra já havia começado; começa-do dentro dos Domínios da Magia. Uma hora se passou, mas o caminho continuava sem grandes mudan-ças. Continuavam rodeados de árvores, seguindo por uma trilha que parecia ser usada há séculos. Mifitrin andava com tanta naturalidade que Elkens se perguntou quantas vezes ela havia andado por ali. Era tão perto do seu lar que poderia andar ali diariamente. De repente ela parou de andar e olhou para a direita. Elkens a alcançou, parando ao lado dela e olhando para a mesma direção em que ela olhava. Numa depressão que se estendia a frente deles, há uns cem metros ou mais, havia algo que não pertencia à floresta, não essencialmente. Pe-dras grandes e pequenas, postas lado a lado e amontoadas umas sobre as outras. A maioria tombada, tomada por plantas trepadeiras. Era uma ruína, Elkens logo percebeu, uma ruína que aparentemente havia sido abandonada há muito tempo. Mas nem o tempo foi capaz de acabar com as delicadas flores cor de rosa que cresciam do lado de fora da ruína, flores que dançavam com o vento e espalhavam seus polens no ar, flores que eram remanescentes de um antigo jardim, já privado de qualquer cuidado. O vento soprava de encontro aos protetores, tra-zendo o doce perfume das flores às narinas de Elkens.

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— Morton costumava me levar para lá – disse Mifitrin tão de re-pente que Elkens se assustou. Decididamente aquele grupo não era de muitas palavras. Mifitrin só havia se dirigido à Elkens de forma tão direta no dia anterior, quando haviam voltado ao passado e estavam sobre o topo da Montanha Arguelse, à espera de Morton. Mas agora ela estava falando com ele e a última coisa que Elkens faria era inter-rompê-la. – Levei uma semana inteira para conseguir sair daquele la-birinto sozinha. Só então Elkens reparou na ruína. Agora era capaz de enxergar os muitos corredores se entrecruzando, formando o labirinto do qual Mi-fitrin falava. Supostamente era um lugar construído exclusivamente para o treinamento de Aprendizes; era comum haver vários desses lu-gares espalhados à volta do portal principal de um Domínio. Geral-mente há vários deles, cada um específico para um tipo de treinamen-to. Mas havia muitos anos que os treinamentos passaram a ser regidos com mais freqüência dentro dos próprios Domínios, de modo que esses locais de treinamento foram sendo abandonados e esquecidos. Pelo que Elkens via, Morton devia ser um dos últimos a usar um lugar desses para lecionar. — Vocês vão ficar aí? A voz de Meithel vinha de longe. Mifitrin a ignorou por alguns se-gundos, continuando a olhar para as ruínas do labirinto; Elkens ficou em dúvida se também deveria ignorar… Mas não foi preciso. Mifitrin desviou os olhos das ruínas que lhe tra-ziam lembranças de Morton, então retomou a trilha. Elkens a seguiu, desta vez caminhando um pouco mais perto dela. Passaram por uma clareira, onde os raios de Tunmá se intensificaram, mas a trilha pros-seguia por ela. Quando as árvores voltaram a crescer pelo caminho de-

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les, encontraram Meithel parado ao lado de um riacho. Ali fizeram a primeira parada do dia, uma parada um tanto prematura. Eles beberam um pouco de água e se refrescaram, lavando o suor do corpo na tentativa de afastar os mosquitos que zumbiam em seus ou-vidos. Enquanto descansavam, Meithel abriu um pergaminho sobre o colo. Elkens olhou de canto, vendo que no pergaminho havia uma es-pécie de mapa, rabiscado às pressas. Numa ponta havia duas letras: “D.T.”, Domínios do Tempo. Na outra estava escrito “Rismã”. — Não precisamos disso – disse Mifitrin, enquanto manuseava seu arco. – Sei em que direção fica o vilarejo. Nunca fui até lá, mas Man-jourus me explicou o caminho. Em menos de uma hora vamos chegar ao rio Arman. Vamos acompanhá-lo sempre, então chegaremos a Ris-mã ao anoitecer de amanhã. Meithel não respondeu. Dobrou o pergaminho de qualquer jeito e o co-locou ao seu lado, onde o esqueceu assim que partiram. Agora era Mi-fitrin que liderava o grupo. Andaram por poucos minutos e se depararam com uma grande pedra semi-enterrada no chão. Mifitrin ignorou a pedra e seguiu adiante, mas não foi capaz de ignorar as lembranças que a pedra lhe trazia. Ainda se lembrava das horas que ficou sentada sobre a pedra de olhos fechados, treinando concentração. Mesmo naquela época, quando ha-via começado seus treinamentos como Aprendiz, já sabia que a con-centração seria sua maior dificuldade, o seu maior ponto fraco. Não importa quantas horas passou sentada sobre a pedra, sob chuva, sol, passando frio e fome, e até mesmo medo, Mifitrin reconhecia que aquele treinamento não lhe serviu praticamente para nada. Sua con-centração era ridícula se a comparasse com outros protetores, motivo pelo qual deixou de ser Sacerdotisa e se tornou uma Guerreira do Tempo.

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Para onde quer que Mifitrin fosse, aquele lugar lhe trazia dolorosas lembranças; para onde quer que olhasse, via o fantasma de Morton a perseguindo, quase como se a culpasse por sua morte. Mas apenas metade da hora que os separava do rio havia passado quando novamente fizeram uma pausa. Desta vez não foi para des-cansar, foi apenas por um pequeno incidente. Enquanto andavam, ainda sem trocar uma única palavra desde que retomaram a caminha-da, Elkens pisou em uma pedra solta e caiu quando ela rolou. Ele ten-tou se apoiar com as mãos, mas não conseguiu evitar de rolar pelo chão e cair de um barranco, saindo da trilha pela qual andavam. Meithel correu para ver se estava tudo bem, enquanto Mifitrin assis-tia sem nada dizer. Elkens fez sinal para os dois prosseguirem, dizen-do que estava tudo bem. Quando se levantou, sentiu uma leve ardên-cia no braço direito. Instintivamente levou a mão ao braço; mas antes de olhar, já soube que havia ganhado o primeiro corte dessa missão. Não foi profundo, mas se estendia do pulso até metade do antebraço. O espinho da planta que o feriu ainda estava preso em sua carne, já manchada pelo sangue quente que começava a correr. Ao ver sinal de sangue, Mifitrin resolveu perguntar: — Está tudo bem? Elkens sorriu, surpreso pela preocupação da Guerreira. Respondeu apenas com um aceno de cabeça, enquanto analisava a planta que ti-nha produzido o corte. Suas folhas avermelhadas e espinhos longos chamaram a atenção de Elkens. — O que está fazendo? – a Guerreira voltou a perguntar. — Nada… só estou vendo. É que eu não conheço esta planta.

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Elkens olhava da planta para o braço, onde o corte continuava ar-dendo. Não era uma ardência insuportável, longe disso. Era apenas incômoda. — Mas Kalimuns me disse que um protetor da Alma conhece muitas formas de vida – disse a Guerreira. - Sendo um Sacerdote da Alma, você deveria conhecer todas as formas de vida… — E conheço. Caso contrário não teria me tornado um Sacerdote. Mas isso não se aplica às plantas, pois elas não são inteiramente vi-vas, uma vez que compartilham da alma de Gardwen. Quando morre-rem, não veremos sua alma voar. Isso acontece com praticamente to-das as plantas e árvores; quando ela morrer, o fragmento da alma de Gardwen que reside nela será reabsorvida pelo mundo, e assim outra planta poderá nascer futuramente. Mifitrin estendeu a mão à Elkens e o puxou de volta à trilha. Segurou o braço do Sacerdote e analisou o ferimento, enquanto Elkens conti-nuava com sua explicação: — Um Sacerdote deve apenas conhecer todas as formas que uma alma pode assumir quando reencarna em um novo corpo. Isso não se aplica às plantas e o mesmo vale para todas as outras coisas como pedras, água, céu, terra, fogo, entre tudo o mais que existe, pois tudo isso compartilha da alma de Gardwen. Podemos matar uma planta, mas não é o mesmo que matar outro tipo ser vivo; a quantidade de alma é absorvida pelo mundo e deve renascer sob outra forma. Tudo faz parte de uma única alma, a alma de Gardwen. Mifitrin continuava concentrada no ferimento de Elkens. No meio tempo em que o Sacerdote dava sua pequena explicação, a Guerreira havia colocado sua própria bolsa no chão, onde já estava procurando algo dentro dela. Logo encontrou: um pequeno frasco contendo um lí-

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quido escuro. Ela se levantou e abriu o frasco, então segurou com força o braço ferido de Elkens. — Vai arder… Mas ela nem tinha terminado de falar quando derramou o líquido so-bre o ferimento. E realmente ardeu. Elkens puxou instintivamente o braço, mas Mifitrin o segurou com força, mantendo virado para cima para que o remédio penetrasse no ferimento ao invés de escorrer. — E como é que vocês conhecem todas as formas de vida? A pergunta de Meithel parecia nem ser para ele. Demorou a assimilar a pergunta, lembrar da conversa que tinha sido interrompida quando Mifitrin lhe deu o remédio. O ardor parecia maior quando a última gota de remédio penetrou em seu ferimento e Mifitrin soltou seu bra-ço. — Para conhecer todas as formas de vida é preciso viajar por toda Gardwen – continuou Meithel. – Viajar por anos… — Não – Elkens respondeu, finalmente retomando a conversa. A dor começava a diminuir lentamente; agora Mifitrin estava enrolando uma faixa em torno do ferimento. – Na verdade eu nunca havia saído dos Domínios da Alma até dois dias atrás. Mal conheço Gardwen. Passei toda a minha vida dentro dos Domínios… “Mas não precisamos viajar para conhecer as formas que uma alma pode assumir ao reencarnar, pois todas elas estão representadas nos subsolos do Santuário Rubi. Todo o subsolo é repleto de desenhos, ca-da um para uma forma de vida. É imensa a quantidade de seres que estudamos, mas é preciso conhecer todas elas para passar de Aprendiz para Sacerdote da Alma”. Mifitrin terminou o curativo e imediatamente retomaram a jornada. O silêncio voltou a cair sobre eles. A Guerreira novamente liderava o grupo, indicando o caminho por onde seguir. Elkens ia logo atrás, se-

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guido de perto por Meithel. Mifitrin era ágil e Elkens teve de apres-sar o passo para poder acompanhá-la. Estava sentindo um certo des-conforto enquanto caminhavam em silêncio, mas tardou em descobrir sua origem. Lembrou-se da conversa que teve com Kalimuns ainda pe-la manhã, quando disse ao seu tutor que seria inútil nessa jornada. E era exatamente por isso que estava sentindo-se mal, por causa desse seu ressentimento, por medo de não ser apenas inútil, mas um estorvo para os outros dois. E o pequeno incidente em que se feriu representa-va exatamente isso: já estava atrapalhando; estava atrasando-os. Elkens olhou para o braço que ardia levemente e constatou que o san-gramento não parara. O sangue já aflorava através do curativo de Mifitrin, manchando as faixas até então brancas. Mas deixou de la-do. Não queria se preocupar e não queria que Mifitrin e Meithel achassem que ele estava se preocupando. Alguns passos depois e ele realmente esqueceu-se do ferimento, pois ouviu o barulho de água cor-rendo. Finalmente chegaram. O rio Arman estava logo à frente deles.

Mifitrin: último discípulo do Mago Morton. Criou para si um modo de vida que sempre a diferenciou dos outros Aprendizes de sua época e

a impediu de fazer amizades. Cresceu solitária, por isso focou todo o seu tempo livre no treinamento. Costumava acreditar em si mesma, ti-nha autoconfiança e achava que era capaz de superar qualquer obstá-

culo, mas tudo isso mudou quando seu tutor morreu. Desde então Mifitrin perdeu a esperança e o gosto por viver. O desejo por vingança se instalou em seu coração e este passou a ser o sentido

de sua vida. Mifitrin tem se torturado tanto nos últimos quinze anos que uma mágoa nasceu dentro dela, uma mágoa que não lhe permite

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sorrir com sinceridade, que lhe impede de chorar e expor seus senti-mentos e que lentamente está minando e limitando seus poderes. An-tes ela costumava chorar sozinha, agora não consegue derrubar uma

lágrima sequer, por mais que queira, por mais que precise, e reconhece que enquanto não for capaz de chorar novamente não irá superar sua

mágoa e assim seus poderes continuarão limitados. É orgulhosa, o tipo de Guerreira que morreria em combate para não

fugir. Suas habilidades de luta são admiradas e elogiadas dentro dos Domínios do Tempo e seu histórico de missões realizadas chega a inve-

jar muitos Generais. Seu grande ponto fraco é a concentração, habili-dade que jamais conseguiu desenvolver. Esse foi o motivo por ter de-

sistido de ser uma Sacerdotisa, indo contra o desejo de Morton. Julga-se completamente anti-social e acredita que está melhor sozi-

nha, mas isso muda completamente quando tem companheiros por per-to. Apesar de não admitir pra si mesma, quando não está sozinha seu

fardo se torna mais leve e sua dor parece diminuir…

Um minuto se passou e o rio surgiu diante deles. Trinta metros sepa-ravam uma margem da outra e águas claras e mansas corriam entre elas. Aproveitando-se da água mansa, plantas aquáticas boiavam na superfície do rio, de onde seus caules desciam fundo até encontrarem o

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solo. Pequenos animais bebiam água na outra margem, sem perceber que já não estavam mais sozinhos. Um deles levantou a cabeça e en-carou o estranho grupo que os espreitava. Uma mulher vestida com uma armadura anil e dois homens, um usando vestes rubras, enquanto o outro se vestia de alvo. O pequeno animal baixou a cabeça, tomou um último gole de água, então partiu com o resto de seu bando, en-trando calmamente na floresta às suas costas e desaparecendo. Fizeram uma breve parada apenas para se refrescarem, e logo recome-çaram a andar. Assim como Mifitrin disse, acompanhariam o rio até chegar ao vilarejo Rismã. Enquanto caminhavam, Elkens reparou que Meithel olhava freqüentemente para o rio. Olhava para ele e voltava a caminhar; andava mais alguns passos, então voltava a olhar para o rio. Elkens não precisou perguntar, pois logo o Sacerdote da Magia disse: — Eu posso conjurar embarcações que nos levem pelo rio. Mifitrin parou de andar e se virou para Meithel, que continuou: — O rio está a nosso favor. Se descermos por ele, pouparemos esforços e chegaremos muito mais rápido. Mifitrin encarou Meithel enquanto avaliava a possibilidade. Parecia estar em dúvida se aquela era ou não uma boa idéia, mas aparente-mente não encontrou nenhum empecilho. Vendo que ela não se deci-dia, Meithel resolveu demonstrar. Tocou levemente seu colar e fez um gesto com a mão abrangendo o rio que corria ao seu lado, mas não olhou para ele; continuou mantendo o olhar de Mifitrin. Quando ter-minou seu feitiço, fez apenas um gesto para que ela olhasse para o la-do, e lá estava: pequenas embarcações, três no total, com tamanho su-ficiente para uma única pessoa. As embarcações foram conjuradas com luz sólida e assumiram o gracioso formato de uma folha flutuando so-bre a água. Mifitrin ficou encantada com as embarcações, mas ainda

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não disse nada. Antes que perguntasse se elas os sustentariam na superfície, Meithel pulou para uma delas. A embarcação recuou mo-mentaneamente para o fundo, mas no segundo seguinte estava como estivera antes. A pergunta que Mifitrin nem chegou a fazer já estava respondida e isso foi o bastante para ela; sem dizer nada, segurou a bolsa de couro com firmeza em suas costas e pulou para a embarcação, seguindo o exemplo de Meithel. Elkens pulou logo em seguida. Lentamente se afastaram da margem e chegaram ao centro do rio, onde a correnteza era mais forte. Meithel pareceu mais feliz enquanto seguiam rio abaixo. Mesmo que insignifi-cante se comparado à jornada, ganhariam, talvez, quase um dia en-quanto desciam pelo rio, e isso significava que ele voltaria mais rápido para sua casa. Elkens e Mifitrin ficaram apreensivos por um minuto ou dois, mas logo se convenceram de que as embarcações conjuradas por Meithel realmente eram seguras. Ironicamente, era a embarcação de Mifitrin que seguia a frente da ou-tras, tornando ainda mais evidente a sua liderança. Sentada de pernas cruzadas sobre a folha-barco, fechou os olhos e manteve-se imóvel. Talvez estivesse treinando sua concentração, talvez apenas meditan-do para regenerar e acumular energia em seu corpo. Sua respiração era ritmada, lenta e profunda. As mãos estavam abertas com as palmas viradas para cima. Seus dedos faziam movimentos tão lentos e imper-ceptíveis que chegavam a ser hipnóticos. Elkens aproveitou a nova forma de viagem para verificar seu ferimen-to. O curativo feito pela Guerreira do Tempo já estava completamente tomado por sangue. Ele o tirou calmamente e se livrou da faixa jo-gando-a no rio. O corte, apesar de não ser profundo, continuava a sangrar e latejar. Elkens mergulhou o braço no rio na esperança de fa-

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zer com que parasse de arder, mas a água apenas fez com que o feri-mento sangrasse ainda mais. Passada quase meia hora, Elkens e Meithel começaram a conversar sem que se dessem conta. Não se conheciam, não sabiam nada um do outro, então conversaram sobre a única coisa que tinham em comum nesse momento: aquela missão. Meithel contou novamente sua histó-ria, a mesma que Elkens já tinha ouvido na Convocação Elementar no dia anterior, sobre a possibilidade de os Cavaleiros da Magia terem se rebelado contra o Guardião e sobre o fato de precisarem do cristal que pegariam no vilarejo Rismã, que supostamente funcionaria como uma chave para Meithel poder voltar a sua casa. Assim que o cristal foi mencionado foi a vez de Elkens falar. Contou sobre seu encontro com um caçador de recompensas, Kanoles, e contou que ouviu o próprio Kanoles mencionar um cristal em Rismã, o qual pretendia roubar. Nesse instante Mifitrin abriu os olhos; uma expressão de preocupação tomou conta do seu rosto. — Não precisa se preocupar – Elkens lhe disse. – Eu contei isso ao meu tutor. Kalimuns me garantiu que poderíamos chegar ao vilarejo antes de Kanoles e seus homens; e agora que estamos indo pelo rio, chegaremos um dia antes deles. Não há razão para nos preocuparmos. Mifitrin não respondeu, mas a preocupação não abandonou seu rosto, assim como também não voltou a fechar os olhos. Seja lá o que estives-se fazendo, treinando concentração ou não, não o faria mais por hoje. E esse foi o fim daquela conversa, pois não voltaram mais a tocar no assunto. Mais alguns minutos de silêncio se passaram. Elkens olhou para a margem do rio e percebeu que estavam cada vez ganhando mais velo-

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cidade. Um minuto de apreensão se passou e agora já tinham dobra-do a velocidade. As correntezas estavam cada vez mais fortes e as em-barcações não faziam nada além de acompanhar essa velocidade. Os três estavam ficando assustados, mas foi Mifitrin quem transformou o medo em palavras, em precaução: — Meithel, talvez seja melhor seguirmos por terra daqui em diante. — Não – respondeu Meithel pensando em Kanoles, na possibilidade de ele chegar à Rismã primeiro e roubar sua única chance de voltar pa-ra a casa. – Está tudo sobre controle. Mifitrin olhou apreensiva de Meithel para o rio, que ficava cada vez mais violento, imaginando se ele realmente tinha controle sobre a si-tuação. Elkens olhou de uma margem a outra e o que viu fez seu cora-ção dar um salto. O rio estava ficando mais largo, mas ao contrário do que esperava, a correnteza ficou ainda mais forte. As chances de fazer as embarcações chegarem até uma das margens agora era remota. A correnteza ficou ainda mais forte e os separou. Pedras surgiram à frente, o que fez o rio ficar ainda mais violento. Pequenas quedas d’água quase viravam as embarcações e era difícil manter-se sobre elas. Enquanto seguiam em meio às corredeiras, Elkens foi levado pa-ra longe de Mifitrin e Meithel, seguindo por um caminho diferente. Percebendo que Meithel já havia perdido o controle sobre a situação, Mifitrin levantou-se assustada e olhou para frente a fim de ver o que os esperava, mas um movimento brusco quase a derrubou, obrigando-a a sentar-se novamente. — PREPAREM-SE! E Mifitrin estava certa. A frente deles Elkens pôde ver que o rio fica-va ainda mais violento. Pedras despontavam aqui e ali, e as quedas d’água eram cada vez maiores e mais freqüentes. Enquanto a corren-

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teza o empurrava por um caminho diferente entre as pedras, Elkens lentamente foi ficando para trás dos companheiros. — SEGURE-SE ELKENS! Mas a advertência de Mifitrin não era necessária. Ele já havia perce-bido que estava sendo levado para uma queda muito maior que as an-teriores. Não importava o que fizesse, jamais conseguiria mudar a di-reção da sua folha-barco. A única coisa que pôde fazer foi se segurar ao máximo e desejar que a embarcação não virasse com ele. Há poucos metros da queda, prendeu-se com toda força nas bordas da embarcação de luz. Já nem se lembrava do ferimento no braço. Quando chegou à queda, foi atirado com força e por um breve segundo ficou suspenso no ar. No segundo seguinte já sentia seu rosto batendo com força no fun-do de pedra do rio. Já não havia embarcação alguma; tudo que havia a sua volta era a água que o atirava para todas as direções. A alça da sua bolsa de couro estava apertando seu pescoço. Tentou nadar até a superfície para respirar, mas a correnteza o puxava para o fundo do rio. Mifitrin estava olhando para trás quando viu Elkens caindo na que-da d’água. Viu-o desaparecer na confusão de água que pulava para todo lado, mas apenas a embarcação apareceu, flutuando sozinha e sem rumo. — ELKENS! Ela olhou para o Sacerdote da Magia ao seu lado na esperança de que ele fizesse algo, mas Meithel já estava concentrado demais nas embar-cações para que elas não desaparecessem. Elkens ainda tentava chegar à superfície, mas a força da água era maior que a sua própria. Seu corpo foi arrastado involuntariamente por um longo trecho, esfolando-se nas pedras do fundo do rio. Estava

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completamente desorientado, nem sabia para qual direção deveria tentar seguir. Só quando já não estava mais agüentando manter a res-piração presa, sentiu sua cabeça emergir. O ar fresco invadiu seus pul-pulmões prazerosamente, mas mal teve tempo de abrir os olhos e já era puxado novamente para o fundo do rio. Enquanto continuava sendo arrastado percebeu que o corte no braço já não era o único em seu cor-po. Mifitrin continuava desesperadamente tentando encontrar qualquer sinal de Elkens, mas não fazia nem idéia de onde estava o Sacerdote da Alma. Enquanto continuavam sendo levados velozmente pela cor-redeira, surgiu diante deles uma árvore que havia tombado sobre o rio. — Segure-se nos galhos – disse Meithel ao seu lado. – Vou desfazer as embarcações. — E o Elkens? — Vou tentar salvá-lo, mas primeiro preciso saber onde ele está. Ambos pularam sobre um dos galhos um segundo antes de as embarca-ções desmancharem-se em flocos de luz sob seus pés. Sobre os galhos da árvore tombada, os dois esperavam ansiosamente que Elkens emer-gisse. Os pulmões estavam quase explodindo quando novamente foi levado à superfície. Mas desta vez permaneceu por menos tempo que da primei-ra vez; logo a água já o puxava de volta. — Lá está ele! Meithel olhou para o ponto em que a Guerreira apontava em tempo de ver a bolsa de couro do Sacerdote mergulhar atrás dele. Rapidamente apontou a mão para o local em que viu Elkens, enquanto tocava seu colar alvo com a outra. Fez um gesto rápido com a mão suspensa, co-mo se agarrasse algo invisível, então a levantou para o alto. Nesse mesmo instante o corpo de Elkens emergiu e flutuou no ar deixando as

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águas impiedosas do rio Arman abaixo, pego pela telecinese de Meithel. Ainda acompanhando o movimento da mão do Sacerdote, o corpo de Elkens flutuou até a margem do rio, onde foi colocado sua-vemente no chão. Mifitrin e Meithel caminharam sobre os galhos da árvore tombada até chegarem à margem, então correram para acudir o companheiro que quase se afogara. Elkens estava tossindo e cuspindo água. Suas vestes estavam praticamente destruídas e seu corpo repleto de pequenos e médios arranhões. Em seu ombro direito, totalmente à mostra pelas vestes rasgadas, havia o único corte que parecia ser mais profundo, mas ainda assim não era preocupante. Mifitrin o ajudou a ficar sentado, mas não disse nada, apenas aguar-dou que a respiração do Sacerdote se normalizasse. Quanto aos novos cortes de Elkens não puderam fazer nada além de improvisarem novos curativos. Nem Sacerdotes nem Guerreiros são peritos em feitiços de cura, portanto nenhum deles poderia ajudar com magia. Feitiços de cura eram mais comuns em Feiticeiros, mas não havia nenhum por perto. O amigo de Meithel, o Feiticeiro Mudriack, seria de grande ajuda, mas nesse momento estava preso dentro dos Domínios da Ma-gia. — Obrigado – Elkens agradeceu assim que conseguiu respirar nor-malmente, vários minutos depois. – Se não fosse pelo seu feitiço de le-vitação eu já estaria acabado… — Consegue se levantar? – perguntou Mifitrin. Elkens tentou ficar em pé e ela o ajudou. Passou seu braço em volta dos próprios ombros, e assim retomaram a jornada, desta vez do lado de fora do rio. Meithel pegou a bolsa de Elkens e passou a carregá-la num gesto de gentileza. Elkens sorriu discretamente, pois Meithel nem imaginava que na bol-sa que carregava agora estava escondida uma relíquia da Alma. Logo

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que começou a andar descobriu que havia machucado a perna direi-ta, pois não conseguia apoiar seu pé com força no chão; assim teve de seguir mancando, o que diminuiu ainda mais a velocidade dos três. Mas mesmo com tantos novos cortes pelo corpo, o ardor no arranhão em seu braço ainda se sobressaía aos demais.

Meithel: o Sacerdote com o dom de aprender. Dentre os três escolhidos por Morton, Meithel é o que tem mais potencial para absorver infor-mação e mais facilidade para aprender. Mesmo quando ainda era um Aprendiz, já conseguia dominar técnicas de Sacerdotes e isso chamou a atenção de Lakar. Meithel teve o privilégio de ser escolhido não por um Mestre, mas por um dos quatro Sábios da Magia, e Lakar se tor-

nou seu tutor, supervisionando seu treinamento de perto. Completamente diferente de Mifitrin e Elkens, Meithel teve uma in-fância. Ao lado do amigo Mudriack, Meithel viveu os melhores anos de sua vida, uma época de alegria que já estava condenada, afinal de

contas, Meithel também foi escolhido por Morton. Estrategista, assim como Mifitrin, embora seu raciocínio seja muito mais rápido que o dela. Este é o motivo por ter sido escolhido várias

vezes como líder nas missões que realizou em grupo. Mas alguém com muitas habilidades também está sujeito a ter muitos pontos fracos, e Meithel os têm. Dividindo seu tempo de treinamento

em diversas áreas, Meithel nunca se focou apenas nos aprendizados de Sacerdote, por isso ele não é perfeito. Está tão sujeito a cometer er-

ros quanto disposto a concertá-los.

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Todo o tempo que haviam ganhado ao viajarem sobre o rio, parecia que ia ser perdido agora que Elkens estava ferido. Estavam andando muito devagar e em uma hora haviam caminhado o que normalmente fariam em vinte minutos no máximo. Embora Mifitrin não demons-trasse qualquer aborrecimento pelo ocorrido, por ter de praticamente carregar Elkens, Meithel parecia estar se zangando. E Elkens enten-dia isso, pois sabia o que aquele novo atraso representava para ele; embora não quisesse nem pensar nisso, Elkens estava sendo um estor-vo e isso parecia fazer suas feridas doerem ainda mais. De repente, ainda andando apoiado em Mifitrin, Elkens sentiu uma forte pontada em seu peito e caiu de joelhos no chão. Mifitrin se abai-xou para ver se estava tudo bem, mas não tornou a levantar o amigo. Ao invés disso, o fez sentar-se ao seu lado. — É melhor pararmos mais um pouco – disse a Guerreira para o Sa-cerdote da Magia. Ela abriu sua bolsa e pegou um pedaço de pão que repartiu com Elkens, ignorando o olhar de contrariedade de Meithel. Nessa nova parada, Elkens pediu sua bolsa que estava com Meithel e passou a verificá-la. Os pães estavam molhados e as frutas completa-mente amassadas. Os demais equipamentos estavam apenas molhados. Milagrosamente, o frasco de rubi contendo a água com poderes cura-tivos ainda estava inteiro, mas a maior preocupação de Elkens era com a relíquia da Alma cuidadosamente embrulhada e escondida no fundo da bolsa. Ela continuava ali. Por muita sorte a alça da bolsa se

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prendera em seu pescoço e não se perdeu no rio. Realmente muita sorte. — Quando chegarmos à Rismã talvez seja melhor vocês me deixarem para trás… — Do que você está falando? – Mifitrin o questionou com um tom de voz seco. — Machucado como estou, eu só vou atrasá-los ainda mais. Se vocês esperarem eu me curar, se atrasarão mais ainda. Eu vou ficar no vila-rejo, deve haver curandeiros por lá. Quando eu estiver bem vou atrás de vocês. — Nem pensar – Mifitrin protestou. – Esta missão é nossa, de nós três. Não vamos abandoná-lo. — Você concorda comigo, Meithel? – perguntou Elkens ignorando o que Mifitrin disse. Meithel sustentou o olhar indagador do compa-nheiro, mas não disse nada. Todos sabiam o que ele pensava. Sim, pen-sou Elkens, ele concorda. — Não vamos abandoná-lo – Mifitrin respondeu por Meithel, repe-tindo e ressaltando o que disse antes. Elkens sentiu-se feliz pela resposta da Guerreira, mas no fundo sabia que não era exatamente por ele. Mifitrin queria apenas seguir às or-dens de Morton, de que os três deveriam seguir juntos na missão. Tal-vez não fosse nem um pouco por Elkens, apenas por seu antigo tutor. Elkens baixou a cabeça, envergonhado por estar em tal situação. Quando voltou a levantar a cabeça, surpreendeu Mifitrin e Meithel se encarando, como se discutissem apenas com o olhar a possibilidade de abandonar Elkens. Meithel parecia realmente querer dizer isso, para ele seria o mais correto a se fazer, mas Mifitrin parecia determinada a seguir firmemente as ordens de Morton.

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— Vamos pelo rio – disse ela por fim, como se encontrasse a solução mais óbvia para o problema. — O quê? – exclamaram Elkens e Meithel juntos. — Vamos pelo rio – ela voltou a dizer. – Chegaremos mais rápido ao vilarejo e Elkens já poderá ser medicado por um curandeiro. — Não podemos ir pelo rio, Mifitrin – Meithel não cometeria o mes-mo erro novamente; por causa da sua estúpida idéia que Elkens en-contrava-se tão debilitado. – Você viu o que aconteceu. É arriscado demais. — O rio está mais calmo daqui em diante – ela indicou o rio Arman ao lado e realmente era verdade. As águas estavam tão calmas quanto eram assim que se depararam com ele pela primeira vez. – Elkens não precisará andar. Nós vamos com as suas embarcações, mas se o rio der qualquer sinal de que vai voltar a ficar violento, você nos tira da água imediatamente. — Isso é loucura… – começou Elkens, mas foi interrompido por Meithel: — Eu concordo! E seu rosto parecia radiante com a possibilidade de não se atrasarem tanto. — Isso não vai resolver nada – Elkens tornou a dizer. – Mesmo que cheguemos mais cedo ao vilarejo, ainda assim estarei ferido e não po-deria partir imediatamente… — Isso não é problema agora – disse Mifitrin. – Ficaremos em Rismã quantos dias sejam necessários para você se recuperar. O problema é Kanoles. Só quero chegar lá antes dele… Elkens não disse mais nada. Já estava decidido. Meithel imediata-mente caminhou até a margem do rio e voltou a conjurar três embarca-ções iguais as anteriores, com o formato de três grandes folhas forma-

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das por luz sólida. Cada um subiu em uma e no mesmo instante es-tavam seguindo rio abaixo. Elkens decidiu que tentaria ser mais útil naquela jornada, pois temia que mais cedo ou mais tarde a própria Mifitrin decidisse deixá-lo para trás. Meithel estava sendo muito útil ao conjurar as embarcações; El-kens queria ser útil também. A correnteza os levou novamente para o centro do rio. Seguiram em um novo silêncio, cada um deles prestando atenção no caminho a fren-te; Meithel estava preparado para tirá-los do rio ao menor sinal de pedras ou qualquer outro obstáculo que deixasse o rio Arman violento. Elkens estava sentindo dor por todo o seu corpo, desejando acima de tudo chegar à Rismã para que pudesse ser tratado por um curandeiro. Seguiram assim durante horas. Tunmá já estava quase se pondo e em questão de minutos o dia se transformaria em noite. Após tanto tempo sem nada acontecer, Elkens já havia descartado a possibilidade de pe-rigo, mas não tardou em perceber o quanto estava enganado. Mifitrin levantou a cabeça e imediatamente Elkens percebeu o motivo. A cor-renteza estava ficando mais forte. — Meithel – a Guerreira disse apenas por precaução. – Se prepare para nos tirar ao menor sinal de perigo. O Sacerdote apenas concordou, mas não desviou o olhar do rio. Já es-tava escurecendo e ele não conseguia enxergar muito longe. Todos fi-caram atentos à possibilidade de aparecerem pedras, então sairiam no mesmo instante. O rio fez uma curva brusca que quase os atirou con-tra o barranco, então a correnteza ficou muito forte. O coração dela deu um salto quando viu o que acontecia poucos metros a frente: o rio desaparecia!

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— MEITHEL! – gritou Mifitrin já em desespero. – TIRE-NOS DA ÁGUA AGORA! Mas não dava mais tempo. Talvez fosse o vento noturno que soprava forte em seus ouvidos, misturado ao som da correnteza, ou mesmo a água batendo no barranco, mas o fato é que nenhum deles ouviu os ru-ídos da cachoeira que estava há poucos metros. Meithel abriu os bra-ços, estendendo cada um para uma das margens. Como se uma corda invisível estendesse de suas mãos para as margens do rio, as três em-barcações foram detidas a meio caminho da cachoeira. Por um segundo Elkens pensou que estavam salvos, mas não levou em consideração a correnteza que estava tão forte. Meithel não resistiu. Usou todas as suas forças para tentar manter as embarcações afastadas da cachoei-ra, mas em seu desespero acabou se desconcentrado delas e elas desa-pareceram, deixando apenas os vestígios de luz. Os três caíram na água e foram arrastados brutalmente para a borda do rio. Meithel tentou usar um feitiço de levitação para tirá-los da água, mas passou tantas horas concentrado nas embarcações que já não tinha reservas de energia em seu corpo. Elkens sentiu alguém segurar fortemente sua mão. Só teve tempo de olhar para o lado e ver que era Mifitrin, então foram atirados pela ca-choeira que caía cem metros abaixo. Ele sentiu que estava caindo em grande velocidade, impulsionado pela força da água sobre ele. Olhou para o lado e viu que Mifitrin ainda segurava em sua mão, mas depois não viu mais nada…

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