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SacerdoteS 06

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A jovem e o cristal

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Capítulo 6 – A jovem e o cristal Ventava forte naquela noite e Tûm era o único no pátio de Rismã. Is-so foi há dezessete anos, numa noite em que uma tempestade castiga-va o vilarejo. O uivo do vento era a única coisa que se podia ouvir, e sua força arrancava as árvores cujas raízes não estavam profundas o bastante. Naquele dia a fogueira no pátio não foi acesa, e os habitan-tes de Rismã não jantaram todos juntos na grande mesa do pátio. Também não teve nenhuma peça de teatro para divertir as crianças, como acontecia toda quarta-feira. Os homens não beberam vinho jun-tos olhando para a fogueira, como acontecia com certa freqüência, e as mulheres não se reuniram para conversarem. O pátio de Rismã estava completamente abandonado, solitário, castigado por uma terrível tempestade. Mas isso realmente foi há muito tempo. Em uma época em que Tûm ainda não era o líder e Rismã não escondia qualquer segredo. Uma época em que Mifitrin era apenas uma Aprendiz do Tempo; talvez es-tivesse treinando concentração sentada sobre uma pedra sob a mesma chuva, há quilômetros dali. Meithel, também um Aprendiz, provavel-mente estaria aprontando com seu amigo Mudriack, ou lendo um ve-lho e pesado livro em seus aposentos. Foi em uma época em que Lase-rin não era mais que uma recém-nascida e uma época em que Morton ainda estava vivo. Tûm estava seguindo para seu turno na torre de vigia, e ainda estava no pátio do vilarejo quando parou ao ver um vulto se aproximando. Pelo instinto de guerreiro que já tinha mesmo àquela época, levantou a espada à frente do corpo, preparando-se para enfrentar o estranho que se aproximava.

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Quando o estranho chegou mais perto Tûm pôde enxergá-lo com mais clareza. Um home alto, coberto apenas por uma capa de viagem. Sob a capa havia uma armadura branca, que protegia seu corpo. Era algum tipo de guerreiro, embora Tûm não conseguisse identificar sua arma. Pendurado ao pescoço trazia um belo colar alvo, com uma grande pe-dra de diamante rodeada de pingentes. Preso ao seu ombro havia um espelho, também alvo. Um espelho cuja real beleza Tûm jamais apre-ciaria com atenção, nem desconfiaria de seu real poder tão cedo. Sob o capuz podia apenas enxergar a boca e o nariz do estranho, pois seus olhos permaneciam ocultos. Em seus braços trazia algo embrulhado em panos. Mas somente quando chegou mais perto foi que Tûm reparou em algo que fez os pêlos de sua nuca se eriçarem: a capa de viagem não era ne-cessária para o estranho. Embora caminhasse sob a chuva, nenhum pingo de água sequer chegava à tocá-lo. Era como se houvesse um es-cudo invisível ao redor do seu corpo, que o protegia da chuva e do vento. O estranho era um usuário de magia! — Quem é você? – Tûm perguntou sem tentar esconder sua espada. O estranho não respondeu e continuou andando na direção daquele que um dia se tornaria líder do vilarejo. — Quem é você? Apesar de refazer sua pergunta, ela continuou sem respostas. O silên-cio predominou entre os dois homens, cortado apenas pelos uivos do vento. Mas agora ele já estava muito perto e Tûm começou a sentir medo. — PÁRE ONDE ESTÁ! QUEM É VOCÊ? Desta vez as palavras de Tûm tiveram algum resultado. O estranho parou de andar em sua direção, mas continuou sem dizer nada. Apesar disso o silêncio foi quebrado, pois agora Tûm ouvia os choros assusta-

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dos de uma criança. Uma criança que, ele sabia agora, o estranho tra-trazia em seus braços, embrulhada nos panos que havia visto antes. Uma criança que, com seus gritos, ele acabara de acordar de um sono tranqüilo. — Quem é você? – Tûm perguntou mais uma vez, mas sem gritar. A surpresa que teve em descobrir a criança foi dezenas de vezes superior à surpresa que teve ao perceber que estava diante de um usuário de magia. — Me leve à sua casa, garoto. O tom de voz era autoritário. O estranho estava dando uma ordem. — Me responda quem é você e o que faz em Rismã. — Eu responderei as suas perguntas, mas primeiro preciso esconder este bebê. Tûm fez menção de refazer a mesma pergunta, mas desistiu ao ouvir mais uma vez os choros assustados da criança. Sem dizer mais nada, ele deu às costas ao estranho e correu em direção à casa de seu pai. Ele não olhou para trás para verificar se o estranho o seguia, mas sabia que sim somente pela aproximação dos choros do bebê. O estranho es-tava vindo logo atrás dele. Em meio minuto chegaram à casa do velho Zurt, pai de Tûm e atual líder do vilarejo Rismã. Assim que abriu a porta, Tûm sentiu o tão apreciado cheiro de café recém-passado, um café que infelizmente ne-nhum deles iria tomar naquela noite. Ele entrou na pequena sala que dava acesso ao resto da casa e deu espaço para que o estranho entrasse logo atrás dele e fechasse a porta. — Tûm? É você? – a voz do velho Zurt vinha da cozinha, onde o ca-fé terminava de passar. Mas Tûm não respondeu. Esperava que o pai viesse até a sala de visi-tas e visse por si mesmo o estranho que trouxera para dentro de casa.

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Não sabia como explicar ao pai o que estava acontecendo, por isso es-esperava que ele descobrisse por conta própria e assumisse o controle da situação. E o velho logo veio. Não levou mais que um segundo para reparar no estranho, ainda vestido com sua capa de chuva (inexplicavelmente se-ca). O velho estudou o estranho de cima à baixo, vendo sua armadura, seu espelho, seu colar, tudo branco, e se detendo na criança em seus braços, que já não chorava mais. Zurt viu quando o homem colocou o bebê sobre a poltrona que ficava de frente para a lareira, já acesa, e o viu despir sua capa de chuva que aparentemente ele não usara. Dife-rente de Tûm, Zurt percebeu o motivo da capa, mesmo sem ainda sa-ber que o estranho usou magia para se livrar da tempestade: a capa servia como proteção, mas não da chuva, dos olhos! O estranho, fosse quem fosse, usava a capa para se esconder. — Tûm! – chamou o pai sem tirar os olhos do estranho. – Me expli-que o que está acontecendo. Ele hesitou um segundo antes de contar ao pai o que tinha acontecido. — Eu estava indo para a torre… para o meu turno de vigia, então ele surgiu no meio da tempestade. Eu também não sei quem ele é pai, mas ele trouxe uma criança… — É – concordou o velho de modo rabugento. – Eu a vi – então mu-dou seu tom de voz e se dirigiu ao estranho pela primeira vez. – Quem é você? O estanho olhou para Zurt pela primeira vez antes de responder: — É melhor para todos nós que não saibam o meu nome por enquan-to. Sou um dos nove Cavaleiros da Magia. Sabem o que isso significa? Tanto pai quanto filho ficaram em silêncio, mas se mostraram tão confusos que ficou óbvio para o estranho que eles não sabiam do que ele estava falando.

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— Então vejo que fiz uma ótima escolha ao trazer a criança para cá. Ela precisa viver longe de qualquer forma de magia, e o único jeito de ficar bem… — Eu não sei do que você está falando, nem quero saber – Zurt disse num tom de voz autoritário, no tom de voz do líder de Rismã. – O que quero é que saia da minha casa e do meu vilarejo agora. Saia e não volte nunca mais! Mas o estranho não saiu. Voltou sua atenção para o bebê que já havia adormecido sobre a poltrona, e ajeitou o pequeno cobertor para manter o frio afastado. Enquanto ajeitava a criança, aparentemente distraí-do, ele respondeu: — Eu vou embora. Irei o mais rápido possível. Mas o bebê tem que ficar. Tûm olhou para o pai e temeu quando viu a conhecida coloração ver-melha se destacar em seu rosto. Zurt estava furioso. — NÃO VOU FICAR COM ESSA CRIANÇA. VÁ EMBORA E A LEVE PARA O LUGAR DE ONDE VEIO! — Se eu fazer isso irão matá-la! Não posso levá-la de volta. Zurt ficou sem ar. Tûm também. — Já tentaram matá-la antes. Várias vezes. Eu a salvei da última vez, mas eles podem estar me rastreando. É por isso que preciso ir em-bora o quanto antes. Essa menina precisa de uma vida nova. Uma vi-da em um vilarejo humano, onde não suspeitem dela. Mas antes que eu vá embora, preciso ouvir você dizer que vai cuidar dela. Zurt já não olhava para o estranho, muito menos para a criança. Na verdade tinha medo de olhar para a criança, medo de sentir pena dela, medo de não ter coragem de deixá-la ir, medo de acolhê-la junto ao seu povo e transformar o perigo dela no perigo de toda Rismã. Não podia assumir a responsabilidade por um problema desses, não podia envol-

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ver o seu povo em algo que ele sequer imaginava o quanto era perigo-so. Mas a criança soluçou durante o sono e os pêlos de Zurt se arrepi-aram ao sentir algo pela frágil criança. — Quem é ela? – o velho perguntou de costas para o estranho e a cri-ança, olhando para o teto. – Onde estão os pais dela? — Dêem um novo nome para ela, um nome que corte qualquer relação com o seu passado. Essa menina vem sendo procurada mesmo antes de nascer. A mãe dela engravidou muito jovem; morreu durante o parto. O pai jamais foi descoberto. A questão é que ela teve sorte até agora, e todas as tentativas de matá-la falharam. Eu a seqüestrei antes que tentassem matá-la mais uma vez, mas alguns suspeitam de mim. É possível que tenham me rastreado até este vilarejo; podem estar che-gando a qualquer momento. É por isso que eu preciso que você me diga que vai cuidar dela, que vai criá-la com dedicação e que, acima de tu-do, vai protegê-la. Zurt voltou ao seu silêncio inicial. O estranho olhava concentrado pa-ra a nuca de Zurt, como se conseguisse ver os pensamentos do velho através dela. Um vento forte veio de repente e abriu uma janela que estava apenas encostada. O vento entrou na casa e derrubou o quadro de uma mulher no chão, espatifando-o. A menina voltou a acordar as-sustada e seu choro contínuo quebrou o silêncio mais uma vez. Tûm correu a fechar a janela, mas nenhum dos homens parecia ter per-cebido o que aconteceu, pelo menos não tomaram qualquer atitude que demonstrasse isso. Tûm não hesitou em se aproximar da criança, de tentar acalmá-la e fazê-la parar de chorar. Por longos minutos achou que não fosse conseguir, mas um minuto depois de parar de chorar, o pequeno e indefeso bebê já caía no sono. Estava cansada, por algum motivo, talvez pela viagem sabe-se lá de onde, e também estava assus-tada. Mas agora estava dormindo como um anjo. Tûm estava sentado

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no chão ao lado da poltrona e mal percebia o sentimento que começa-va a tomar conta dele. Tocou o rosto da criança com as costas da mão, acariciando-a, e foi então que reparou em algo em sua nuca. Uma mancha, uma tatuagem ou uma queimadura. Ele não saberia dizer. Mas havia uma marca na nuca da criança, um símbolo desconhecido, quase como se fosse feito com tinta, embora fosse parte da sua carne. — O que é essa marca? – ele perguntou ao estranho. — É a marca que a condena. Será um problema para vocês. Afastem os curiosos dela, escondam a marca a todo custo. Quando ela crescer, façam com que use cabelos compridos o suficiente para esconder a marca. Talvez ela não represente perigo aqui em Rismã, mas um foras-teiro jamais poderá vê-la. Nunca se sabe de onde um forasteiro vem e muito menos o que ele procura. Tûm sentia pena da pequena. Não conseguia tirar os olhos dela e o sentimento que até então não havia percebido já havia tomado conta dele. — Eu preciso ir embora agora – o estranho voltou a dizer. – Se esti-verem atrás de mim preciso atraí-los para longe de Rismã. Mas só vou embora se me disserem que vão cuidar dela. Silêncio. Zurt não dizia nada. Continuava de costas para a criança, temendo que ao vê-la, seu coração pudesse traí-lo. Mas já havia traído e era isso que tanto preocupava Zurt. — Pai? – perguntou o, até então, jovem Tûm, não suportando mais o silêncio do velho. – O senhor já se decidiu? Em que está pensando? — Eu estava pensando… – começou o velho num tom tão calmo e descontraído como o que usava no dia a dia – O que você acha de a chamarmos de Laserin? E somente então o velho se virou para olhar a criança. Seus olhos es-tavam brilhando e seu rosto continha um misto de emoção, de medo e

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incerteza. Mas de certa forma a alegria também estava presente. Se olhasse com atenção era possível ver que Zurt estava feliz, bem lá no fundo, em seu íntimo, em um lugar em que ele acreditava ser só seu, lá ele estava feliz. E ele não voltou a olhar para o estranho, não viu que ele também sor-ria e não chegou a ouvir o que ele disse: — Agora eu posso ir em paz. Possivelmente eu jamais volte à Rismã, para a proteção de Laserin, por isso vou pedir que alguns amigos lhes procurem em breve. E o estranho se foi. Zurt jamais voltou a vê-lo em vida. Mas depois de ter receado tanto tomar a decisão que acabara de tomar, Zurt fi-nalmente se entregou à Laserin, a mais nova moradora de Rismã. Já era tarde da noite, mas Zurt não dormiria tão cedo e só se lembraria do café que passou minutos atrás no dia seguinte, quando o jogaria para passar um café novo. Ele sabia que teria de inventar uma histó-ria, uma mentira. No dia seguinte apresentaria à pequena aos seus companheiros de vilarejo, e já precisaria estar com toda a mentira em sua cabeça. Tûm não lhe ajudaria por enquanto, pois estava atrasado para o seu turno de vigia e sairia de casa em cinco minutos. E foi assim que, dezessete anos atrás, Laserin chegou ao vilarejo Ris-mã.

As mulheres, as crianças e os idosos haviam voltado para o vilarejo, deixando seus refúgios de segurança para trás. Pouco mais de duas horas haviam se passado desde que os kenrauers fugiram e as coisas ainda não estavam arrumadas. A chuva havia parado e alguns ho-mens acenderam uma nova fogueira com algumas lenhas secas que fi-

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cavam guardadas. Os dezenove corpos dos homens de Tûm que mor-reram foram levados para um grande salão, onde passaram a ser vela-dos por seus parentes, mas os cinco homens de Kanoles que morreram não foram levados para lá. Kanoles levou os corpos para fora do vila-rejo, e todos os seus homens o acompanharam. Lá eles cremaram os corpos e suas espadas numa grande fogueira e prestaram honras aos companheiros que haviam partido para sempre. Laserin estava inconsciente no mesmo quarto em que Elkens ficou quando estava ferido e envenenado. Ela desmaiou assim que os ken-rauers fugiram e não havia acordado desde então. Os curandeiros dis-seram que ela estava bem, apenas sem forças, mas se assustaram muito ao ver Elkens em pé; nenhum deles foi capaz de explicar como os feri-mentos de Elkens se fecharam ou como o veneno desapareceu, diziam apenas que era um milagre e Elkens permitiu que eles continuassem a pensar desta maneira. O que os curandeiros iriam pensar de uma água que regenerava o corpo de qualquer tipo de ferimento ou envenena-mento? Ele estava ao lado de Laserin desde que ela foi levada para lá, pois queria retribuir a companhia da jovem enquanto ele é que estava de cama. Só sairia do aposento junto com a garota. Assim que a batalha acabou, Tûm pegou o cristal e se escondeu com ele, e até agora não havia dado as caras, o que estava preocupando a Guerreira do Tempo. Mifitrin e Meithel estavam sentados sozinhos num grande banco de madeira que foi colocado ao lado da nova fogueira. As mulheres do vi-larejo insistiam que eles precisavam se alimentar e dormir um pouco. Eles negaram a proposta de irem dormir, mas aceitaram a comida. So-pas quentes foram servidas em potes de porcelana tão belos que eles se sentiram honrados, talvez fosse algum tipo de agradecimento por te-

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rem ajudado na batalha, por isso comeram com gosto. Eles se recusa-vam a ir dormir, pois temiam que os kenrauers pudessem voltar de surpresa, mas no fundo sabiam que isso não iria acontecer. Quase me-tade dos homens de Rismã que eram fortes para defender o vilarejo fo-ram assassinados, por isso o vilarejo estava desorganizado. Muitos homens estavam feridos e os que estavam bons ajudavam a arrumar as coisas. Ainda havia alguns homens no velório, chorando pela perca de um pai ou de um irmão, e por isso o vilarejo estava completamente desprotegido. Não havia ninguém de vigia e Tûm, o único que poderia organizar as coisas, havia desaparecido sem deixar rastros. Quando faltava uma hora para amanhecer, Kanoles apareceu sozinho no vilarejo e se sentou ao lado de Mifitrin e Meithel. Seus olhos esta-vam vermelhos e Mifitrin não sabia se era por causa do cansaço ou por chorar a perca de amigos. Possivelmente pelos dois motivos. Kanoles ficou um bom tempo calado, e Mifitrin e Meithel respeita-ram-no, mas após algum tempo ele finalmente falou: — Nunca perdi tantos companheiros de uma única vez… – Kanoles era exatamente o que Elkens dissera: uma boa pessoa. Mifitrin sur-preendia-se com a capacidade de Kanoles conseguir esconder tão bem o coração que tinha. Se não fosse pelo aviso de Elkens quando Kanoles chegou ao vilarejo, Mifitrin poderia ter matado Kanoles na tentativa de proteger o cristal, mesmo indo contra seus princípios. Ele deu um profundo suspiro, então continuou: – Nunca vi nada como aqueles demônios. — Eu já os vi antes – disse Mifitrin – uma vez. Foi há quinze anos. Sempre que eles aparecem há mortes. Da última vez foi o meu tutor quem morreu…

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A fogueira havia se transformado em brasas durante a madrugada, mas agora ela não era mais necessária, pois a luz de Tunmá começou a aparecer no horizonte, e timidamente o dia foi surgindo. — Não sei o que os kenrauers fazem para acabar com os nossos pode-res – disse Meithel – mas agora que eles se foram os meus poderes vol-taram. — Os meus também – Mifitrin concordou. – Os kenrauers acabam com toda forma de vida, começando pela mágica. Nem mesmo a grama em que eles pisam sobrevive. Acredito que uma pessoa morra se for obrigada a ficar próxima a um kenrauer por muito tempo. Os pássaros começaram a cantar nas árvores que rodeavam o vilarejo, e o céu foi passando de um azul escuro para o conhecido azul celeste. Um casal de borboletas passou voando graciosamente entre eles, mas logo se foi. — Agora eu compreendo que o que você disse é verdade, Mifitrin – Kanoles falou. – Aquele cristal realmente é importante. Mas o que irão fazer com ele caso Tûm o entregue à vocês? — Ainda não sabemos direito – disse Mifitrin tentando explicar. – Acontece que o lugar de onde Meithel veio está trancado agora e, pelo o que sabemos, o cristal funciona como uma chave para entrarmos lá. Kanoles fez uma expressão confusa, mas não perguntou nada. — Vocês não são comuns. Digo, não são como eu e meus homens, muito menos como os homens de Tûm. Vocês utilizam magia. É claro que vejo magia em quase todas as cidades por onde passo, mas vocês me mostraram um novo conceito de magia. Se não os visse, talvez não fosse capaz de acreditar no que são capazes de fazer… — Eu utilizo Magia – Meithel interrompeu o caçador de recompen-sas. – Magia Pura! Mifitrin utiliza magia do Tempo e Elkens utiliza magia da Alma.

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Kanoles sorriu ao ouvir o nome do Sacerdote. — Esse tal de Elkens… já nos encontramos antes, caso ele não tenha contado. Na ocasião ele me disse que era um Sacerdote da Alma, mas eu não acreditei. Só acreditei depois de ver uma alma ajudá-lo de for-ma surpreendente. De alguma forma eu sabia que o veria novamente, só não imaginava que seria tão em breve e em tal situação: lutando do mesmo lado… Algumas mulheres se aproximaram trazendo bandejas de bolos e fru-tas e jarros de vidro contendo suco e leite. Meithel e Mifitrin fizeram o desjejum, mas Kanoles se recusou, pois disse que comeria junto de seus homens. Após comer, Meithel se levantou e seguiu até o aposento onde Elkens ainda estava com Laserin. Ele entrou silenciosamente e constatou que Laserin ainda estava dormindo. Elkens estava sentado numa cadeira ao lado da jovem. — Precisa se alimentar, Elkens. Pode ir, eu fico com Laserin enquan-to isso. — Obrigado Meithel – o Sacerdote agradeceu – mas quero ficar com ela mais um pouco. Esse é o único jeito de eu retribuir o que ela fez por mim, pois não me deixou mesmo quando corríamos perigo. Meithel concordou e sorriu, mas após algum tempo Elkens voltou a falar: — Laserin é especial para mim. Ela foi a primeira humana de quem me aproximei, digo, sem contar com o meu breve encontro com Kano-les. Meithel apenas sorriu. Meithel não tinha muito contato com huma-nos, mas realmente Laserin era diferente de todos ali no vilarejo. Era corajosa e determinada, e gostava de ajudar as pessoas. Realmente era uma criança especial, se é que podia considerá-la uma criança.

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Ainda no pátio do vilarejo, Mifitrin e Kanoles continuavam conver-sando. Kanoles demonstrou muito interesse pelos protetores e ficava fascinado com as coisas que Mifitrin lhe contava, embora lhe custasse muito acreditar em todas elas. Após algum tempo conversando, Mifi-trin começou a contar sobre Morton e Kanoles ouvia tudo atentamen-te. Ela contou tudo sobre a morte de Morton e o envolvimento dos kenrauers nela, mas depois começou a falar das coisas misteriosas que estavam acontecendo recentemente e mencionou seu último encontro com Morton, o que fez Kanoles rir. — Olha moça – disse ele – posso acreditar em tudo o que diz, menos nisso. Não acredito que alguém possa voltar depois da morte. — É… – concordou Mifitrin pensativa. – Eu também não. Mifitrin se sentiu mal em dizer isso. Dizer em voz alta que não acre-ditava que alguém possa aparecer após a morte é o mesmo que negar o seu encontro com Morton, como se ele fosse uma fraude. Mas ela sa-bia que o encontro havia sido real, por isso não sabia em que acreditar. Ela lutava contra suas esperanças de Morton não ter morrido, de que, por algum motivo, ele fingiu estar morto durante os últimos quinze anos. Mas isso sim era impossível. Apesar de ela jamais ser capaz de superar isso, o fato de Morton ter morrido era inegável e irreversível. Ela foi fraca, não conseguiu salvá-lo, agora não podia fazer mais na-da e isso a tortura por tempo demais. Essa é a mágoa que Mifitrin carrega em seu coração pelos últimos quinze anos e ela sabe o quanto isso afeta seus poderes. Quando Morton morreu, ela não perdeu ape-nas seu pilar de sustentação, perdeu também parte dela. Uma parte que ela acreditava não ser capaz de reencontrar, a parte que lhe per-mitia chorar escondida como sempre fazia. Mas ela não chorava mais. Não fisicamente. Embora o choro não venha, a tristeza não é menor,

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pelo contrário. Mifitrin não chora e guarda sua dor e sua mágoa apenas para si mesma. Mas todos precisam chorar. Até os Guerreiros precisam chorar e Mifitrin não é uma exceção. A mágoa que ela vem alimentando há tanto tempo sempre lhe impediu de evoluir como deve-ria, sempre bloqueou seus poderes e ela sabe disso. Ela não soube quanto tempo ficou ali, parada e muda, nem soube que Kanoles a observava e que via nela uma dor muito maior do que a que ele próprio sentia. Ao contrário dele, ele enxergou nela alguém que so-fre sozinho, que é orgulhoso demais para repartir sua dor. E nem ima-ginava o quanto estava correto. Mas nada disso importava agora, pois algo tirou Mifitrin e Kanoles de seus pensamentos. Meithel voltava para a mesa onde estivera sen-tado com seus amigos; logo atrás vinha Elkens e, ao lado dele, Laserin caminhava com um sorriso radiante. — Bom dia – ela cumprimentou sorrindo assim que chegou à mesa. — Como está? – Mifitrin perguntou, contente em vê-la recuperada. — Estou bem. Laserin sentou-se com eles e ela e Elkens comeram algumas frutas. — Nos vemos de novo, não é rapaz? – disse Kanoles a Elkens. — Mas agora estamos do mesmo lado – Elkens disse contente en-quanto mordia uma maçã. – Eu sabia que você não era ruim. Mifitrin estava pensativa mais uma vez. Precisava saber onde Tûm estava e onde ele escondeu o cristal. Tûm disse que já estava esperan-do que alguém viesse buscar o cristal, mas Mifitrin não tinha total certeza de que Tûm o entregaria sem criar problemas. Apesar de ter atraído os kenrauers, de alguma forma aquele cristal protegia o vilare-jo Rismã e seria muito difícil Tûm abrir mão da segurança de seu po-vo.

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— Laserin – Mifitrin chamou pela garota, decidia do que faria, tendo esperado apenas que ela terminasse de se alimentar. – Ontem à noite, depois que você desmaiou, Tûm pegou o cristal e desapareceu. Você sabe onde ele possa estar? — Sinto muito senhora Mifitrin, mas eu não sei. O cristal ficava es-condido numa caverna aqui perto, mas duvido que Tûm esteja lá. — Mas então você pode me dizer o que aconteceu entre você e o cris-tal? — Desculpe senhora, mas não posso. Sei muito pouco, mas Tûm nun-ca me permitiu que falasse sobre isso com mais alguém. — Tudo bem – Mifitrin se conformou, levantando-se de repente. – Ele está fugindo de conversar conosco, mas eu vou encontrá-lo… — Não precisa Mifitrin – a voz que a interrompeu veio logo de trás deles. – Eu estou aqui! Tûm estava em pé e parecia absolutamente calmo. Elkens e Meithel também se levantaram ao ouvi-lo e Tûm ficou encarando os três por um bom tempo, então disse: — Precisamos conversar agora. Acompanhem-me. Laserin, você deve vir também. Os quatro acompanharam Tûm, deixando Kanoles sozinho. Eles fo-ram guiados por alguns corredores entre as casas e logo chegaram aos aposentos de Tûm, que era igual aos demais e desprovido de qualquer forma de luxo. Rismã não funciona como um reino, portanto Tûm não é um rei. É apenas o líder do vilarejo, alguém que todos respeitam, mas é apenas isso e o que ele diz não é lei. Todos são livres para fazer o que quiserem, mas ainda assim são unidos e organizados. Os cinco entraram nos aposentos de Tûm e ele fez sinal para que todos se sentassem. Havia uma lareira na sala de visitas, que Tûm não ha-via se dado ao trabalho de acender, e nas paredes alguns quadros de

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pessoas que os três protetores jamais conheceriam, pois todas já ha-viam morrido. Assim que todos estavam acomodados em poltronas, to-todas as atenções se voltaram para Tûm, que logo começou a falar: — Primeiro vocês precisam entender o que aconteceu ontem à noite entre Laserin e o cristal. — Sim – Mifitrin concordou. — Este cristal é, como acredito que vocês saibam, uma relíquia da Magia. Na verdade é apenas uma parte dela, pois estou falando do Cristal de Quatro Faces. Há muitos anos o Cristal foi dividido em quatro faces e a que está aqui no vilarejo é a terceira face. A seguran-ça deste cristal foi confiada a mim e ao meu vilarejo em segredo. Agora Mifitrin percebia que Tûm não era tão ignorante quanto aos protetores. Ele era amigo de Kalimuns e conscientemente portava uma poderosa relíquia da Magia. Afinal de contas, quem era Tûm? — Outra coisa que vocês precisam saber para entender o que aconte-ceu entre Laserin e o cristal é que ele tem vontade própria. — Como assim? – Elkens perguntou em tom confuso. – Você quer di-zer que o cristal está vivo? — Isso eu não sei responder, Elkens – Tûm respondeu com sincerida-de. – Não me deixaram muitas informações sobre o cristal. O que sei é que este cristal não tem um dono, pois é ele que decide quem e quando obedecer. De certa forma está vivo, não está? Elkens pensou por um momento, então disse: — A primeira coisa que aprendemos nos Domínios da Alma é que só há vida se houver uma alma. Creio que possa haver uma alma em um objeto, mas nunca estudei muito sobre esse assunto… — Mas não é para isso que estamos aqui – disse Mifitrin impaciente, levantando-se da poltrona onde estava sentada. – Precisamos saber Tûm: nos cederá o cristal ou precisaremos levá-lo a força?

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Tûm encarou Mifitrin severamente, dizendo logo em seguida: — Acredito que não tenha meditado o suficiente quando eu disse que o cristal tem vontade própria. Não sou eu quem decide se o cristal irá com vocês; ele próprio fará essa decisão. Acho que nenhum de vocês entendeu o que eu quis dizer quando disse que o cristal escolhe quem obedece… Nesse instante os olhares de Meithel, Mifitrin e Elkens se voltaram para a jovem Laserin, que estava calada desde que entraram ali. — ELA? – perguntou Mifitrin descrente. – O cristal obedece a Lase-rin?

Tûm sorria enquanto olhava para Laserin brincando no pátio de Ris-mã. Agora com dois anos de idade, Laserin era amada por todos no vi-larejo. Ela corria atrás de uma borboleta azul, uma borboleta que, as-sim como tantas, voava aproveitando o belo dia de sol. Diferente de dois anos atrás, hoje o dia estava perfeito. O sol quente e o céu sem nenhuma nuvem. Perto de Laserin, duas mulheres separavam algumas frutas que tinham colhido no pomar, frutas que serviriam após o al-moço; mas era uma das curandeiras que estava cuidando de Laserin naquela manhã. A menina dava gargalhadas enquanto perseguia a borboleta, e riu mais ainda quando se atrapalhou e caiu sentada no chão. A borboleta azul pousou por um momento em seu rosto, abriu e fechou as asas duas vezes, então voou e se misturou às suas compa-nheiras. Mas a atenção de Tûm foi desviada quando ouviu alguns cochichos logo atrás dele, e viu mãos indiscretas apontando para o lado extremo

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do pátio, de onde vinham caminhando dois homens forasteiros. Po-rém, embora fossem forasteiros, eram conhecidos do vilarejo. Um deles, o que vinha mais à frente, usava vestes anis. O outro, ves-tes rubras. Ambos carregavam um colar ao peito; o primeiro trazia uma pedra de safira em seu colar, o segundo um rubi. Eram protetores, como Tûm estava cansado de saber, protetores do Tempo e da Alma respectivamente. Quando se aproximaram, Tûm fez um discreto gesto para que o acom-panhassem até sua casa. E assim foi feito. Somente quando os três es-tavam sozinhos na casa foi que se cumprimentaram: — Espero que esteja tudo bem com você, Tûm – disse o homem de vestes anis, apertando-lhe a mão. Esta não era uma forma de cumpri-mento dos protetores, mas o protetor diante de Tûm era muito influ-ente; conhecia diversas línguas, povos e costumes. Aderir à forma de cumprimento dos humanos era uma forma de mostrar que os valoriza-va como iguais e que os respeitava. — Eu vou muito bem, Mago Morton. E você? Espero que não traga nenhuma má notícia – então olhou para o homem logo atrás de Mor-ton, o protetor da Alma. – E como vai você Mestre Kalimuns? Kalimuns respondeu com um simples aceno positivo de cabeça. Nesse momento Tûm reparou em uma bolsa que o Mestre da Alma trazia pendurada ao ombro. Sabia o que estava escondido dentro da bolsa, já haviam conversado sobre aquilo. Há dois dias Tûm havia recebido uma mensagem de Morton, dizendo quando viriam. E ali estavam eles, pontuais como Morton sempre foi em vida. — E como vão as coisas nos Domínios do Tempo? – Tûm perguntou, puxando duas cadeiras para que Morton e Kalimuns se sentassem, e sentando-se na terceira. Sobre a pequena mesinha da sala, uma mesa que não estava ali dois anos atrás e que também não está nos dias de

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hoje, havia uma jarra de suco que Tûm serviu aos três. Após cada um estar com um copo cheio na mão, Tûm continuou com suas perguntas: – Conseguiram impedir o Guardião do Tempo de encontrar o pergami-nho de Rovenus? Morton sorriu com a pergunta. Tûm não tinha nada a ver com os pro-blemas dos Elementos, mas mesmo assim sempre se interessou por eles desde que conheceu Morton. Sempre foi muito curioso e o Mago do Tempo sempre respondia a todas as suas perguntas, demonstrando o quanto confiava nas pessoas. No inicio de sua amizade, Kalimuns disse à Morton que sua facilidade para confiar nas pessoas era um sé-rio defeito. Mas Morton não pensava assim e logo Kalimuns se con-venceu; com o passar dos anos também passou a ser como o amigo. Ao confiar nas pessoas, Morton também recebia a confiança delas em tro-ca e foi assim que se tornou alguém de tantos aliados, alguém tão res-peitado e influente. E Tûm era apenas mais um exemplo disso. — Felizmente Kalimuns e eu encontramos o pergaminho de Rovenus há sete dias – o Mago respondeu a pergunta do líder de Rismã. – Nós demos um fim no pergaminho e Mirundil jamais terá acesso aos feiti-ços secretos contidos nele. Foi uma grande vitória. — E o Guardião Mirundil não suspeita de vocês? — Mirundil tem certeza de que fui eu. Há anos ele sabe que eu estou em seu caminho, mas não fará nada por enquanto. Ele precisa manter o título de Guardião do Tempo até que esteja tudo pronto para se re-velar como um traidor. Até lá ele não ousará nos fazer nada direta-mente… Kalimuns deu um pigarro e interrompeu a conversa de Morton e Tûm. Ele colocou sua bolsa sobre a mesinha da sala e olhou para o líder de Rismã:

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— Você sempre se mostrou muito interessado em nossos problemas, Tûm, e fico grato por isso. Mas hoje o tempo é curto. Morton e eu não podemos nos dar ao luxo de permitir que Mirundil fique muito tempo sem ser vigiado, por isso precisamos voltar o quanto antes. Hoje temos um assunto importante a tratar com você, então façamos isso agora. — Há dois dias protetores da Magia vieram às redondezas de Rismã – Morton tomou a voz. – A bússola voltou a funcionar e mais uma vez apontou para esta direção. Os caçadores chegaram muito perto de Laserin mais uma vez. A expressão que Tûm assumiu com a notícia era de dar pena. Era co-mo se envelhecesse dez anos de um segundo para o outro. Toda sua alegria o abandonava de forma tão brutal que o deixava desorientado, sem saber o que dizer. Enquanto ele se recuperava do golpe recebido pelas palavras de Morton, Kalimuns abriu sua bolsa que estava sobre a mesinha. De dentro tirou algo que Tûm já sabia estar ali: um cristal. Um cristal cuja beleza Tûm jamais havia visto semelhante. Mas em-bora o cristal fosse belo, era evidente que ele era apenas uma parte de um todo. Morton já havia lhe explicado aquilo; o cristal que estava em sua casa nesse momento era apenas uma quarta parte de um cristal ainda maior e mais belo. — Os esforços de Shiron para confundir a bússola deram resultados nos últimos dois anos, mas está cada vez mais difícil fazer isso. Mais uma vez ela apontou para a direção correta e Shiron acredita que caso isso volte a acontecer, não poderemos fazer nada para ocultar a loca-lização de Laserin. Se isso acontecer ela será encontrada. “Por isso Shiron lhe mandou este cristal. Até agora ele tem usado o poder do cristal para confundir a bússola, mas esse plano tem apresen-tado falhas contínuas, por isso ele resolveu fazer o contrário. Ao invés de confundir a bússola, ele quer ocultar a Laserin definitivamente,

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por isso mandou o cristal para perto dela. Quando ele fugiu com La-serin há dois anos, ele criou uma ligação mágica entre ela e o cristal, já sabendo que isso o ajudaria a escondê-la. Então, se Laserin e o cristal estiverem próximos, esta ligação será intensificada ainda mais. O cris-tal jamais permitirá que ela seja ferida, por isso irá mantê-la oculta”. Tûm estava mais tranqüilo agora. Segundo Morton, aquele cristal iria selar a proteção de Laserin em Rismã para sempre. Estava preocupa-do, mas a felicidade voltava a invadi-lo mais uma vez. Morton levantou-se de sua cadeira, deixando o copo vazio sobre a me-sa, então caminhou até a janela que estava aberta. Lá fora Laserin continuava brincando, sempre sorridente, e Morton também sorria ao admirá-la. A alegria da garotinha era contagiante. — E como ela está? – perguntou o Mago sem tirar os olhos da peque-na. — Cada dia mais esperta – Tûm respondeu. – Desde que meu pai morreu, um ano atrás, as curandeiras têm me ajudado muito a criá-la. Mas então me escolheram como novo líder de Rismã e minhas novas obrigações têm tomado muito o meu tempo. Por isso raramente fico com Laserin durante a tarde. São as curandeiras que têm tomado con-ta dela para mim – ele deu um pequeno sorriso e acrescentou: – Elas me contaram que, mesmo tão pequena, ela já se interessa por cuidar das pessoas. Talvez um dia seja uma curandeira também. — E elas não lhe fizeram perguntas sobre a marca na nuca de Lase-rin? As outras pessoas são mais fáceis de enganar, mas as curandeiras mais experientes têm um pequeno conhecimento de magia; podem sa-ber que aquela marca foi feita por magia… — É – concordou o líder de Rismã. – No começo elas me pergunta-vam bastante, e confesso que fiquei com medo. Mas meu pai havia di-to que Laserin era filha de uma irmã que havia morrido, mentiu que

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ela era da Grande Cidade de Condarin. E que mentira… meu pai se-quer teve irmãos. Mas nas Grandes Cidades a magia é algo até casual, então as curandeiras acreditaram que algum usuário de magia maluco tentou fazer algo em Laserin que não deu muito certo. Nunca mais me fizeram nenhuma pergunta. E o cabelo dela também já está comprido o bastante para esconder a marca de possíveis forasteiros. Morton e Kalimuns não se demoraram muito em Rismã; como o pró-prio Kalimuns já havia dito, Morton contou que precisavam voltar aos Domínios do Tempo para vigiarem o (até então) Guardião do Tempo Mirundil. Mas Morton não se foi antes de carregar a pequena Laserin por alguns minutos e brincar com ela. Quando partiram, o cristal ficou com Tûm, que logo tomou providên-cias de escondê-lo numa caverna nas proximidades do vilarejo. Estava radiante de alegria por finalmente ter uma certeza quase absoluta de que Laserin ficaria bem ali. O cristal a esconderia em Rismã para sempre; jamais a encontrariam. Isso foi há quinze anos, quando Laserin tinha pouco mais de dois anos de idade. Morton não voltou ao vilarejo mais que uma vez, pois sua morte viria dali a poucas semanas. A partir de então Kalimuns deixaria de vir com freqüência para o vilarejo. Veio três meses após a morte de Morton apenas para relatar à Tûm como e porque o grande Mago do Tempo caiu do precipício que lhe tirou a vida. Depois disso ficou anos sem aparecer.

♦ Laserin forçou um sorriso, mas não disse nada. Sua história não era um completo mistério para ela, pois Tûm lhe contou como veio parar no vilarejo. Ela sabia que não era dali, e também sabia que tentaram

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matá-la quando ainda era um bebê. Mas Tûm nunca ousou lhe con-tar que, ainda hoje, depois de dezessete anos, ainda haviam caçadores que procuravam por ela sem descanso. Assim como também não sabia que era o cristal que a protegia ali, que a mantinha segura e escondi-da. E desconhecia completamente o fato de que, protetores da Magia (embora ela não os conhecesse) é que tentaram matá-la. Protetores da Magia, assim como Meithel. Mas mesmo sabendo tão pouco, o que ela sabia já lhe era demais para acreditar. Sempre viveu escondendo isso de todos, assim como Tûm lhe dissera para fazer, mas para que servem os amigos? Servem para tor-nar a vida mais fácil; para nos ajudar a suportar pesos que não pode-mos carregar sozinhos. E Laserin tem um amigo, um grande amigo. Seu nome é Baldor e foi para ele que Laserin contou seu segredo. E apesar de ter ficado feliz quando repartiu o peso do fardo em seus om-bros, ainda se lembra do assombro no rosto do amigo. Ainda se lembra do modo frio como Baldor a tratou por algum tempo, de como ele pas-sou a evitá-la e o quanto se afastou antes de finalmente absorver e aceitar tudo o que ouvira. Inconscientemente Laserin adquiriu um medo; medo de novamente ver a mesma expressão de Baldor em outros rostos, de ser tratada friamen-te como Baldor a tratou, por isso passou a desejar que seu segredo ja-mais voltasse a ser violado. Mas ali estava ela, numa sala com mais três pessoas que não sabiam do seu segredo, três pessoas que acabaram de descobrir um pouco mais sobre ela. E ela estava forçando seus mús-culos faciais a sorrirem, pois o que queria era chorar; seu antigo medo aflorava-lhe e ela não sabia o que fazer. Olhou de Meithel para Mifi-trin e de Mifitrin para Elkens. Temia encontrar naqueles rostos quaisquer vestígios da frieza que havia visto no rosto do amigo, mas não encontrou. O que encontrou naqueles rostos estranhos foi indife-

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rença, ou quase isso. Era como se o que eles ouviam não fosse algo absurdo, que chegasse até a ser normal. E depois que percebeu isso ela sorriu, desta vez com sinceridade. — O cristal obedece Laserin? – Mifitrin repetiu a pergunta, que-brando o silêncio tão desagradável. — Sim – Tûm respondeu – e não. Na verdade o cristal não obedece Laserin, mas eles têm uma ligação entre si. O cristal não obedece La-serin, mas sempre irá protegê-la independente da situação. O cristal tem vontade própria, mas através desta ligação mágica entre eles, o cristal é obrigado a protegê-la. — Então ontem, durante a luta contra os kenrauers, realmente foi Laserin quem nos salvou? — Sim. O cristal afastou os kenrauers para proteger unicamente La-serin, ele não se importa conosco, mas ao protegê-la ele também nos protegeu. Laserin e este cristal são parte do maior mistério que Rismã já teve. Mifitrin olhava fixamente para Tûm, tentando compreender tudo o que ele dizia, mas ainda não achava uma resposta coerente para tudo aquilo. — Mas de onde Laserin veio? Por que a trouxeram para cá? E o cris-tal…? — Sei de muito pouco Mifitrin, mas o que sei é o bastante para pôr Laserin em perigo. Não posso te contar mais nada – Tûm desviou os olhos da Guerreira do Tempo, desviando sua atenção para a lareira apagada. Mas seus olhos não enxergavam a lareira e Mifitrin perce-beu isso. Sabia que sua mente estava presa a um passado distante. Quando ele voltou ao presente, continuou como se não tivesse ocorrido qualquer interrupção: – Estão acontecendo muitas coisas nos dias de hoje, poucas das quais sei, porém, muito mais do que vocês imaginam.

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Laserin e o cristal são apenas parte de um mistério maior, mas tudo em seu tempo… A frase de Tûm atingiu Mifitrin de tal forma que lhe faltou o ar. Tu-do em seu tempo. Ela podia se lembrar da primeira vez que ouviu aquilo como se fosse ontem, apesar de ter sido no dia em que se tornou uma protetora do Tempo. Tudo em seu tempo. E quase podia se lem-brar de todas as centenas de vezes após aquilo em que ouviu a mesma frase, dita no mesmo tom inadequadamente calmo como Tûm dizia agora. Tudo em seu tempo. E Elkens também se lembrou dela, pois Tûm não era o único que copiara aquela frase de um grande sábio; Ka-limuns também costumava usá-la, e ambos aprenderam com… — MORTON? – perguntou Mifitrin surpresa, olhando para Tûm como se estivesse prestes a socá-lo pela forma calma com que ele agia. Ela queria que ele olhasse em seus olhos e respondesse: – Conheceu Morton? Tûm encarou Mifitrin como nunca tinha feito até então. Ele sorria por ela ter lhe perguntado aquilo. Que relação aquela Guerreira teria com seu falecido amigo? Mas ele não poderia perguntar. Não poderia abrir esta porta e não poderia permitir que Mifitrin passasse por ela. Tendo isso em mente, voltou a falar com a protetora do Tempo como se ela jamais tivesse lhe feito pergunta alguma: — Agora que vocês já sabem o suficiente sobre o cristal… — NÃO RESPONDEU A MINHA PERGUNTA! Conheceu meu tutor? Conheceu Morton, sim ou não? — Conheci – as palavras saíram pela boca de Tûm sem que ele conse-guisse contê-las. Precisava conversar sobre Morton com alguém, mes-mo tanto tempo após sua morte, Tûm só havia conversado sobre a perda do amigo uma única vez com Kalimuns, e jamais voltou a falar nisso. Ele precisava falar disso, mas não o faria. Estava decidido a

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não deixar Mifitrin abrir essa porta, pois se passasse por ela temia que não pudesse segura-lá. Se Mifitrin cruzasse aquela porta ele não sabia se conseguiria manter seus segredos e juramentos. – Conheci, mas peço em nome dele que não me pergunte mais nada sobre isso e gostaria muito que você respeitasse minha decisão. E se não tem mais nada a perguntar, acredito que devam partir. — Então permitirá que levemos o cristal? – perguntou Elkens con-tente. — Eu não posso negá-lo a vocês – respondeu Tûm satisfeito por a conversa ter tomado um novo rumo. – Há muitos anos sei que o cristal partiria mais cedo ou mais tarde, mas vou impor algo que vocês tam-bém não poderão negar. Laserin levará o cristal! — Quer que a levemos? – Mifitrin perguntou horrorizada. Ela olhou para a jovem e percebeu que ela estava tão surpresa quanto qualquer outro. Nem mesmo ela compreendia o que Tûm queria. — Não poderão levar o cristal sem Laserin – Tûm insistiu. – O cris-tal só esteve em nosso vilarejo por tantos anos por causa dela. Ele irá onde ela for e se querem levar o cristal terão de levá-la junto. Ela foi deixada em nosso vilarejo ainda bebê, mas já estava em seu destino es-te cristal e esta jornada. — Você não entende? – o tom de voz de Mifitrin era extremamente severo. – Laserin não é o problema. O problema é esta jornada. Não sabemos o quão perigosa pode ser e Laserin sequer é uma guerreira, se-quer sabe segurar um punhal… Não poderemos protegê-la. E se os kenrauers vierem atrás de nós? Sei que virão, pois sei que o que eles queriam ontem à noite era o cristal e voltarão para pegá-lo… — Você tem razão – indagou o líder de Rismã – é o cristal que eles querem e pode ser que persigam vocês. Mas eu te pergunto: eles conse-guiram o cristal ontem? Laserin precisou de alguma proteção? E quem

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foi que nos salvou? Compreende agora, Mifitrin? O cristal jamais permitirá que algo ruim aconteça à Laserin, não importa onde estejam ou para onde vão. Mifitrin não respondeu. Não conseguia encontrar argumentos contra a ida de Laserin, mas a idéia era completamente absurda. Expor uma criança como ela a um perigo tão eminente… Ela buscou apoio em Elkens e Meithel, mas nenhum dos dois disse nada para ajudá-la. Ela não poderia resolver isso sozinha, precisava de seus companheiros pa-ra ajudá-la. Mas antes que qualquer coisa fosse dita ou feita por ela, todos ouviram Laserin dizer com sua voz doce e insegura: — Eu vou!

Tûm voltava do pomar; Laserin estava sobre seus ombros; ele segura-va suas mãos para que não caísse para trás. Mais três anos haviam se passado, três anos sem que Morton viesse ao vilarejo. Três anos desde que o Mago do Tempo havia partido para nunca mais voltar. Laserin, agora com cinco anos, se divertia como nunca. Tûm tirara o dia para passar inteiramente com a garota. Deixou de supervisionar a proteção do vilarejo, algo que deveria fazer hoje. Sobre sua mesa vários relatórios se amontoavam ao lado de algumas corres-pondências comerciais que vinham da Grande Cidade de Condarin. Rismã era um vilarejo tão minúsculo, com tão poucos habitantes, mas era incrível o número de coisas que Tûm precisava ver e fazer todos os dias. Rismã tinha acordos com Condarin, acordos comerciais, de paz e outros acordos diplomáticos. E apesar de todos esses problemas, Tûm ainda tinha mais um problema em sua vida: Laserin.

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A garota estava segura. Com o cristal em Rismã, seus caçadores nunca mais voltaram a encontrar a sua localização. Morton havia ga-rantido a Tûm que ela estaria segura e ele confiava plenamente em seu antigo amigo. Confiava, mas confiava desconfiando. Tinha muito me-do de protetores da Magia chegarem ao vilarejo de surpresa e reconhe-cerem Laserin. Dormia com um olho aberto e estava sempre atento às divisas do vilarejo. Havia colocado homens em todas as possíveis en-tradas, homens que ficavam de vigia dia e noite, sob sol ou sob chuva. E mesmo assim ele não se sentia seguro. — Tûm – ele ouviu a voz de sua pequena chamando-o ainda sobre seus ombros. – Eu quero correr… — É a última vez? — Sim Tûm… Só mais uma vez… E ele correu. Correu até a ponte e atravessou o rio. Laserin dava gar-galhadas e Tûm também. Mas assim que atravessou a ponte ele parou e a colocou no chão. — Ah, Tûm… – Laserin reclamava. – Só até o carvalho… — Mas o vilarejo está logo à frente – disse Tûm. – Temos que fingir que somos sérios, já se esqueceu? A garota sorriu e concordou, então seguiram andando lado a lado. Enquanto andavam, Laserin ia contando as coisas que havia apren-dido com as curandeiras no dia anterior. Tûm ouvia com atenção. La-serin tentava ensinar à ele como cuidar de uma queimadura, e descre-via cada passo com entusiasmo. Não conseguia se lembrar os nomes dos medicamentos, mas os inventava na hora apenas para mostrar a Tûm que ela os conhecia. — Espere um pouco – disse Tûm, e Laserin parou assustada. Ele fi-cou de frente para ela e disse: – Tem um galho preso no seu cabelo.

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Ele se abaixou para retirar o pequeno ramo de folhas secas que se prendera no cabelo de Laserin, mas ela deu um passo para trás e o evi-tou: — TÛM! – ela exclamou chateada. – É uma flor! Eu ganhei do Bal-dor. — Mas está seca – ele insistiu, ainda tentando tirar as folhas secas, mas Laserin afastou suas mãos. — Mas estava bonita quando ganhei. Ela murchou… — Então vamos procurar uma flor nova e mais bonita. — NÃO! Eu dei ao Baldor uma pedra da lua e ele me deu essa flor. Não posso jogar meu presente fora… Tûm ia perguntar o que era uma pedra da lua, mas não teve tempo. À sua frente, às costas de Laserin, um homem vinha em direção ao vila-rejo, atravessando a ponte de madeira que havia sobre o rio. O homem usava vestes de protetor, vestes rubras de um protetor da Alma. — Vá embora Laserin – ele disse com medo do que pudesse acontecer. – Vá brincar com o Baldor. Não chegue perto do rio. A garota concordou animada em ir brincar com seu amigo, então dei-xou Tûm sozinho com o recém-chegado. Quando ele tinha certeza de que a garota não o ouviria mais, disse: — O que veio fazer aqui, Kalimuns? Ele estava assustado. Após a morte de Morton, Kalimuns só voltara uma vez ao vilarejo para contar o que tinha acontecido. Depois nunca mais deu as caras. Sequer se importou em mandar qualquer mensagem mágica. Simplesmente se esqueceu de Tûm, de Rismã, do cristal e de Laserin. — O que quer aqui Kalimuns, depois de tanto tempo?

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O tom de voz que Tûm usava era severo, mas Kalimuns o cumpri-mentou com o mesmo respeito e tão gentil quanto há quase três anos, quando se viram pela última vez. — Desculpe por ter te deixado no escuro por tanto tempo, Tûm – o Mestre da Alma se desculpou e parecia realmente lamentar por isso. – Sei que você gostava de se manter informado quanto aos nossos as-suntos, mas depois da morte de Morton muita coisa mudou entre os Elementos. Shiron me alertou para o fato de eu ficar fazendo visitas regulares à Rismã, e eu concordei com ele. Morton se foi e tudo está diferente. Resolvi cortar completamente os vínculos de Rismã com qualquer tipo de magia, para evitar pôr Laserin em um risco desneces-sário. Agora que ela está segura com o cristal aqui, não há mais moti-vos para eu vir até Rismã. — Então o que está fazendo aqui? – Tûm perguntou com medo do que pudesse ouvir. – A proteção de Laserin está comprometida? — Não – o Mestre se apressou em dizer. – Enquanto o cristal estiver aqui Laserin não poderá ser encontrada. — Então qual é o problema? — É que eu e mais alguns amigos estamos levando os planos de Mor-ton adiante – Kalimuns revelou. – Ele nunca te contou isso, mas já havíamos pensado nessa possibilidade. Talvez um dia, daqui a alguns anos, o cristal tenha que ser levado de Rismã. — O quê? O líder de Rismã não conseguia acreditar no que ouvia. O cristal, a proteção definitiva de Laserin, levado de Rismã? — Por que está fazendo isso Kalimuns? Por que você quer levar o cristal? Como Laserin ficará sem ele? — Eu sinto muito, Tûm. Mas não há outra maneira. Pode acontecer daqui um ano, ou daqui dez anos. Eu não posso saber, depende de co-

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mo muitas coisas ocorrerão, mas um dia o cristal deixará Rismã para sempre, e a proteção de Laserin estará acabada. Tûm sentia vontade de pular em Kalimuns, de socar seu nariz até sangrá-lo e continuar batendo nele ainda mais. — E o que eu faço com Laserin? Como vou protegê-la contra os caça-dores dela? Eles são protetores como você, que chances eu tenho de en-frentá-los? — Você terá que fugir com ela mais uma vez – disse Kalimuns. – Te-rão de passar o resto de suas vidas fugindo. Não poderão ter um lar, não poderão ficar no mesmo lugar por mais de um dia… — Não… isso não vai funcionar. Essa não é a vida que ela merece. — Todos nós sabemos disso, Tûm. Ela não merece essa vida, mas aci-ma de tudo ela merece viver. Se você a ama deverá fugir com ela. Shi-ron pode continuar enganando eles, mas não conseguirá evitar que eles descubram a localização dela. É por isso que vocês devem viver fugin-do. — Isso é impossível Kalimuns – disse Tûm já chorando de desespero. – E você sabe disso tão bem quanto eu. Mais cedo ou mais tarde nos pegarão, não conseguiremos fugir para sempre. — Eu sei que parece impossível Tûm, mas é a única maneira. Morton confiava que você seria capaz de fazer isso. Tûm fechou os olhos e começou a pensar numa saída para aquele pro-blema. Imaginou a si mesmo saindo de Rismã no meio da noite, cor-rendo com Laserin sobre seus ombros. Imaginou-os dormindo na flo-resta, em cavernas, em cidades desabitadas, cada dia em um lugar di-ferente, sob chuva e vento, caçando para comer. Que vida era aquela? Para uma garota que amava ajudar e cuidar das pessoas, que vida ela teria?

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— Não vou permitir que Laserin viva uma vida de fugitiva – ele disse finalmente. – Quando vierem para buscar o cristal, seja daqui um ano ou dez anos, eu mandarei Laserin com ele. Aonde quer que o cristal vá, Laserin irá junto. — Então preciso lhe dizer que o cristal irá para dentro dos Domínios da Magia, justo para o local de onde vêm os seus caçadores. — Não irão reconhecê-la. Não saberão que é ela. Ao contrário do que Tûm imaginava, Kalimuns não protestou. — Eu lhe disse ainda há pouco que Morton acreditava que você seria capaz de fugir com Laserin e protegê-la. Mas ele não acreditava que você faria isso. Eu duvidei que ele estivesse certo, mas ele sempre me disse que você mandaria Laserin junto com o cristal. Vejo que mais uma vez nosso velho amigo acertou – Kalimuns sorriu, um sorriso triste. – E quer saber de mais uma coisa, Tûm? Morton realmente queria que você mandasse Laserin junto com o cristal. Ele sempre quis isso.

— Eu vou – ela tornou a dizer com uma voz mais firme e segura. – Esta decisão é minha. Só cabe a eu decidir o que vou fazer. Eu vou com vocês, senhora Mifitrin. Laserin não sabia explicar o que estava sentindo, mas de certa forma estava feliz pela oportunidade que tinha. Ela queria seguir jornada junto com Mifitrin e os demais e, apesar de todos os perigos que pode-ria correr, estava muito feliz. — Então está decidido – disse Tûm querendo pôr um ponto final à discussão, sem deixar brechas para Mifitrin protestar. – Em uma hora vocês quatro estarão partindo…

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Ouviu-se um forte estrondo e a porta da sala foi escancarada. Ainda do lado de fora da casa veio uma voz: — Cinco! – o homem que dissera aquilo deu um passo e entrou na pe-quena casa de Tûm. – Eu também irei! Kanoles olhou para cada um dos presentes, mas não voltou a dizer mais nada. Esteve ouvindo toda a conversa do lado de fora e achou este o momento mais propício de se revelar. Assim como Laserin, ele também não sabia explicar o que estava sentindo exatamente, mas também estava feliz. Por algum motivo que nem ele mesmo compreen-dia direito, queria ir nessa jornada junto daqueles que para ele ainda não passavam de desconhecidos. — NÃO! – Elkens foi capaz de prever a reação de Mifitrin. Ficou surpreso por ela ter demorado tanto tempo para finalmente protestar. Mas agora ela estava fazendo isso e estava irritada. – Você não vai – disse apontando o dedo indicador para Kanoles, quase como se o ame-açasse. Não disse nada quanto à Laserin, mas apenas encarou a jovem e seu olhar já disse tudo. – Morton disse que deveríamos partir em três: Elkens, Meithel e eu… — E fizemos isso, Mifitrin – Meithel a interrompeu com um tom de voz extremamente oposto ao dela, completamente tranqüilo. – Parti-mos em três. Mas Morton jamais disse que deveríamos prosseguir a jornada sozinhos. Mifitrin encarou Meithel com tamanha severidade que Elkens chegou a sentir medo. Mas passado alguns segundos, seu olhar já transpassa-va Meithel. Já não o enxergava, apesar de estar olhando em sua dire-ção. Estava novamente presa em pensamentos; em sua mente havia um conflito entre o que ela queria fazer e o que acreditava ser correto. Após um longo tempo de meditação finalmente pareceu se decidir, e cedeu:

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— Você tem razão… — Então está decidido – Tûm não perderia esta brecha por nada. – Em uma hora Mifitrin, Meithel, Elkens, Kanoles e Laserin estarão partindo.

♦ Assim que saiu dos aposentos de Tûm, Kanoles saiu do vilarejo e se-guiu para as margens do rio Arman, onde seus companheiros estavam acampados, juntamente com os cavalos. — Escutem-me – disse ele com autoridade entre seus homens – preci-sarei deixá-los por algum tempo. Os homens olharam assustados para Kanoles e protestaram, sem en-tender o que estava acontecendo. Kanoles fechou os olhos e fingiu não ouvir os protestos de seus companheiros, então continuou: — Artasil, você será o líder dos caçadores de recompensas durante a minha ausência. Será de sua responsabilidade todo o bando, mas deve-rão continuar seguindo as minhas regras. Artasil, cujo rosto levava uma grande cicatriz, levantou-se e cami-nhou até Kanoles, então perguntou num sussurro: — O que está acontecendo, Kanoles? Por que vai nos deixar? O homem deu um profundo suspiro e respondeu, também num sussur-ro: — Me perdoe, Artasil. Sempre te contei tudo o que acontecia comigo, mas desta vez não tenho nada para dizer. Nem mesmo eu sei por que estou indo nesta jornada, mas sinto que devo ir. Não sei por quanto tempo ficarei com eles, mas eu os encontrarei novamente…

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— Como, Kanoles? – Artasil perguntou com um tom de súplica, co-mo se implorasse para que Kanoles mudasse de idéia. – Se nos sepa-rarmos agora nunca mais iremos nos ver… — Vamos sim Artasil, vamos nos encontrar com certeza – Kanoles encarava seu amigo com uma profunda dor em seu coração; estava abandonando aquele que se juntou a ele logo que perdeu tudo; estava abandonando aquele que sempre o apoio, que sempre gostou dele, e que repartiu sua dor por longos anos. – Da mesma forma que sinto que devo partir agora, também sinto que iremos nos encontrar… Todos os homens observavam a conversa entre Kanoles e Artasil, mas nenhum deles interrompia. — Prometa que protegerá o bando e que irá seguir as minhas regras – ele pediu. — Prometo Kanoles, mas… — Cuide do Selo também, sempre foi um ótimo cavalo, mas não pode-rei levá-lo comigo. Kanoles passou o resto da hora que tinha conversando com seus ho-mens. Quando o tempo se esgotou, Kanoles levantou-se, deu às costas para todos e foi embora sem dizer nada. Seguindo seu próprio costume não houve despedidas, mas todos os homens cravaram suas espadas no chão num sinal de grande respeito… — Estão todos prontos? – Tûm perguntou quando Elkens, Mifitrin, Meithel e Kanoles estavam no pátio do vilarejo. — Sim – a Guerreira respondeu – mas onde está Laserin? — Ela foi buscar o cristal – respondeu Tûm – mas já deve estar che-gando. As bolsas de Elkens, Meithel e Mifitrin estavam cheias de alimentos e seus cantis foram completados com água fresca, embora água não fos-

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se problema enquanto estivessem às margens do rio Arman. Kanoles também recebeu uma bolsa com comida e água. — Aqui tenho três peças de roupas do meu povo – disse Tûm mos-trando vestes castanhas, as mesmas que Elkens usava após ter as suas próprias rasgadas no rio; eram confortáveis, feitas de um pano leve e cuidadosamente costuradas sob medida. – Será melhor que Meithel, Kanoles e você, Mifitrin, também estejam com essas vestes, assim co-mo Elkens e Laserin, pois elas destacam menos e talvez possam passar despercebidos aos olhos de algum possível inimigo… — Perdoe-me Tûm – disse Mifitrin recusando as vestes oferecidas pe-lo líder de Rismã. – Seria uma desonra eu trocar minha armadura pa-ra me safar do perigo, uma vez que fui treinada para enfrentá-lo – Meithel concordou e Kanoles fez menção de dizer algo, mas Mifitrin continuou: – Creio que se Elkens ainda tivesse as suas vestes, também não as trocaria. Elkens concordou com a cabeça, ligeiramente envergonhado. — Também continuarei com as vestes do meu bando – disse Kanoles. – O negro me camufla durante a noite, que é quando costumo agir… Nesse instante Laserin apareceu no pátio. Trazia em suas costas uma bolsa de couro, para a qual todos olharam sem disfarces. Ali estava o cristal. Suas vestes eram as habituais dos habitantes de Rismã, mas havia trocado a faixa de cabelo. Estava usando uma faixa azul, mui-to bonita, que combinava incrivelmente com seus grandes olhos infan-tis. — O rio Arman – disse Tûm – de qualquer forma irá chegar ao lago Lushizar, mas um pouco a frente ele irá fazer uma curva e vocês per-derão muito tempo se forem acompanhando-o – Mifitrin estranhou o fato de Tûm saber para onde eles estavam indo, pois até então nin-guém havia comentado sobre o destino. Tûm nunca demonstrou curio-

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sidade em saber, portando já devia saber disso há muito tempo. – Quando o rio fizer a curva, vocês deverão permanecer em frente. Se andarem rápido verão o pico da montanha Monaltag no meio da tar-de. Guiem-se sempre por ele e assim chegarão ao lago Lushizar em poucos dias. Tûm despediu-se de cada um deles e desejou-lhes boa sorte. Laserin fi-cou por última e parecia que Tûm receava em despedir-se dela. Ela significava muito para ele e, embora ela achasse que tomou sozinha a decisão de partir nessa jornada, esta decisão foi dele próprio. Temia que a estivesse colocando em um perigo ainda maior. — Cuide-se – disse Tûm forçando um sorriso, mas sua voz falhou por um momento. Ele abaixou-se, pois era mais alto que a jovem, e beijou-lhe carinhosamente o rosto. Então ele se levantou, deu às costas para todos e seguiu rumo aos seus aposentos sem dizer mais nada. — Eu voltarei, senhor Tûm – Laserin disse meigamente, como uma criança que ignora o perigo. – Não se preocupe… Tûm parou por um momento ao ouvir a voz de Laserin, apreciando aquela que talvez fosse a última vez, mas logo voltou a seguir decidi-do para seus aposentos, sem nem ao menos olhar para trás. — Vamos – disse Mifitrin reiniciando a jornada que foi interrompida por mais de um dia no vilarejo. Elkens e Meithel seguiram logo atrás dela, e Kanoles acompanhou-os. Laserin ficou para trás, pois, embora estivesse ansiosa com aquela jornada, receava em deixar o vilarejo Rismã, local em que foi abandonada ainda bebê, mas que foi muito bem recebida. Ela estava deixando muitas pessoas importantes para trás, como Tûm e o jovem Baldor, seu grande amigo de infância. Es-tava deixando para trás sua casa, o lugar em que cresceu e aprendeu a cuidar das pessoas.

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Os olhos de Laserin estavam brilhando quando eles finalmente dei-xaram o vilarejo Rismã para trás, mas ela não chegou a chorar. Aque-la jornada significava muito para ela, pois com essa jornada descobri-ria muitas coisas. Descobriria o seu passado, descobriria quem real-mente era. Laserin não conhecia a si própria, mas esperava descobrir sua história nessa importante jornada, que de uma forma ou de outra, ela sempre soube que faria parte. Eles deixaram Rismã e ela não olhou para trás.

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