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SacerdoteS 07

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Cilada Mágica

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Capítulo 7 – Cilada Mágica — Por que desistiu de ser uma Sacerdotisa? Mifitrin estava de cabeça baixa. Estava diante do General Manjou-rus, muitos anos atrás. Havia desistido do seu colar de Sacerdotisa e agora Manjourus lhe interrogava. — Você me pediu que te aceite como minha Aprendiz, mas não aceito qualquer um. Já te neguei isso Mifitrin, mais de uma vez. O que te faz pensar que desta vez será diferente? Mifitrin levantou a cabeça e Manjourus se assustou com o rosto que viu diante dele. Uma represa, foi o que ele pensou. É como uma repre-sa. Tanta coisa presa dentro dela, e parece que está prestes a ruir, a explodir… Não havia lágrimas em seus olhos, mas ele quase conseguia vê-las. Ele sentiu a necessidade que ela tinha de chorar, mas por que não fazia isso? — Desta vez é diferente – ela disse. – Eu desisti de ser uma Sacerdo-tisa. Já entreguei meu colar de Sacerdotisa do Tempo ao Mestre Kan-tus e não posso voltar atrás – Manjourus prestou atenção ao “não posso voltar atrás”. Claro que ela podia, qualquer um podia voltar atrás nessa decisão, mas ele percebia que não ela. E isso não se referia às regras ou a qualquer regulamento, isso se referia ao seu orgulho. E essa era uma das qualidades indispensáveis de um bom Guerreiro: o orgulho, e Mifitrin o tinha. – Se o senhor não me aceitar como sua Aprendiz agora, deixarei de ser uma protetora e procurarei meu lugar no mundo. — Não é o bastante – ele respondeu, com uma severidade típica de Generais escondida em seu tom de voz. – Não vou te aceitar por pena, não pense que isso vai funcionar comigo… — E não quero que me aceite por pena!

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— Então responda minha pergunta, Mifitrin. Não conseguiu ser uma Sacerdotisa, como sei que o próprio Morton lhe pediu antes de morrer, então o que a leva a acreditar que conseguirá ser uma Guerrei-ra? Por que desistiu de ser uma Sacerdotisa? Mifitrin vacilou antes de responder. Fez menção de baixar a cabeça novamente, mas não fez isso. Manteve-se firme. Essa represa precisa explodir. Ela não sabia a resposta. Na verdade havia tantas que po-deria dar, mas agora havia apenas uma resposta em sua mente: — Por que eu não consigo mais chorar! Agora vai explodir. Tem que explodir. Mas nenhuma lágrima caiu. Nenhuma sequer. E Manjourus finalmente percebeu que isso não aconteceria. Sabia que isso tinha que acontecer e Mifitrin também sa-bia. Ambos sabiam que ela não se libertaria enquanto não chorasse, mas ambos sabiam que isso podia nunca acontecer. — Eu entendo como se sente – disse o General, a mesma severidade escondida, mas visível. – Mas não é o bastante. Por que quer ser uma Guerreira? A cabeça de Mifitrin estava cheia de coisas e dizia a primeira que lhe vinha à boca: — Mataram Morton… — Vingança não é importante. Se isso é tudo pode ir embora. Pode ir encontrar o seu lugar no mundo… Manjourus lhe deu as costas e se afastou dela a passos largos, sem sa-ber se um dia iria vê-la novamente. A mágoa que você guarda dentro de você está te corroendo, Mifitrin. Esse sentimento bloqueia seus po-deres de protetora e se você não for capaz de vencê-lo, chegará o dia em que não sobrará mais nada dentro de você. Enquanto não for ca-paz de chorar, não irá se livrar dessa culpa. Será melhor que vá embo-

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ra, que deixe de ser uma protetora do Tempo. Vá Mifitrin, e encontre o seu lugar no mundo… Mas sua voz veio como um trovão e atingiu Manjourus de tal manei-ra que quase o desequilibrou. — EU QUERO SER FORTE! QUERO SER CAPAZ DE PROTEGER AQUELES QUE AMO… E NÃO QUERO MAIS PERDER NINGUÉM POR EU SER FRACA! Manjourus parou de andar, mas não se virou. Esperava não ver Mifi-trin nunca mais, mas ali estava ela, lhe gritando algo que validava seu desejo de ser uma Guerreira. Mifitrin tinha um objetivo, uma ra-zão para ser uma Guerreira do Tempo e Manjourus não poderia negá-la. — Amanhã começamos seu treinamento – disse o General do Tempo por fim, sem se virar e sem alterar o tom de voz. – Mas entenda que de agora em diante você é responsável pela vida daqueles que estão com você. E essas palavras jamais saíram da cabeça de Mifitrin.

♦ Estavam andando para o sul havia apenas algumas horas. Mifitrin sempre à frente, liderando o grupo. Ela aproveitava o terreno ainda fácil para fazer com que todos avançassem o mais rápido que podiam. O rio Arman seguia calmamente ao lado deles, mas Elkens, Mifitrin e Meithel não queriam se arriscar a se aventurar nele mais uma vez. Já tiveram experiências demais no rio por esta jornada. De agora em di-ante andariam com os pés firmes sobre o chão. O céu estava muito nu-blado esta manhã, e a luz de Tunmá, ou do Sol, como Laserin e Kano-les a conheciam, chegava pálida até eles. Mas o calor ainda predomi-

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nava, como era comum em grande parte do território de Gardwen nesta época. Meithel ria em silêncio cada vez que Laserin olhava para trás. Imagi-nava o quanto ela estaria insegura, o quanto sua decisão se tornaria amarga a cada passo que se distanciavam de Rismã. Mas a não ser por este gesto, que se repetiu com certa freqüência, Laserin não de-monstrava estar arrependida ou sequer em dúvida. Mantinha-se firme enquanto caminhavam no ritmo acelerado de Mifitrin e não reclamou uma única vez por estar com fome ou cansada. Elkens também observava que Laserin olhava com freqüência para trás mas, ao contrário de Meithel, ele chegou bem perto de compreen-der o que ela realmente sentia. Esta era uma qualidade que Elkens ti-nha, a de compreender as pessoas, seus sentimentos, suas dores e seus medos. Laserin não estava nem um pouco arrependida, como Meithel supôs, muito longe disso. Elkens sabia que ela não olhava para trás pensando em sua casa, olhava para trás por ter deixado lá algo impor-tante. Rismã não era a casa de Laserin e inclusive ela reconhecia isso agora, mas lá estavam as pessoas que mais importavam na sua vida. Uma delas era Tûm, que a criou com tanto carinho e dedicação; ela passou uma das mãos em seu cabelo e tocou sua nova faixa, tão azul quanto seus olhos infantis, e assim se lembrou da outra pessoa que era tão importante para ela, a pessoa que lhe deu este último presente an-tes de partir: Baldor, seu grande companheiro e um amigo que jamais esqueceria. Era por eles que Laserin olhava para trás, não por Rismã, e Elkens compreendia isso. Por enquanto todos eles carregavam os cantis meio vazios em suas bolsas, pois havia água em abundância ao lado deles e estariam carre-gando peso à toa. Mas logo o rio Arman faria uma curva, como Tûm lhes havia prevenido, então teriam de se abastecer e racionar água.

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Apesar de três deles serem protetores (usuários de magia, como Lase-rin e Kanoles ouviam falar deles) nenhum era capaz de conjurar água, pois técnicas de conjuração são mais difundidas entre a classe dos Fei-ticeiros, que as aprendem com muito mais facilidade. Cada um dos três protetores tem habilidades individuais: Mifitrin sempre focou seu treinamento na força, nas habilidades de luta. É extremamente limi-tada quando se trata de concentração, por isso suas habilidades mági-cas também são de nível inferior; mas sua falta em concentração é compensada por suas incríveis habilidades de luta, que dão inveja em qualquer Guerreiro. Elkens é o oposto de Mifitrin, completamente fo-cado na concentração, e graças à isso suas habilidades mágicas são amplamente desenvolvidas, mas desconhece qualquer arte de luta, a não ser feitiços de ataque que apenas são aprendidos por Sacerdotes. Mas Meithel se destaca entre os três, pois nunca se focou apenas em uma direção. É um Sacerdote, mas também conhece muitas habilida-des de luta dos Guerreiros, assim como feitiços que somente os Feiti-ceiros conseguem aprender. Ele sempre foi um dos Aprendizes mais promissores dentro dos Domínios da Magia e seu conhecimento ultra-passa em muito o de Elkens e Mifitrin juntos. Ele é até capaz de usar técnicas de conjuração, embora a água esteja longe do seu alcance. Uma hora mais tarde Mifitrin decidiu que deviam fazer uma breve pausa para descansarem. Sentaram-se à sombra de algumas árvores que margeavam o rio, e ali beberam água e comeram uns pães que tra-ziam em suas bolsas. A bolsa de couro de Laserin, onde todos sabiam estar o cristal que os permitiria entrar nos Domínios da Magia, estava segura sobre suas pernas, para onde Meithel e Mifitrin não conse-guiam parar de olhar preocupados. Temiam que algo acontecesse ao cristal, embora não houvesse nenhum sinal de que algum inimigo os

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rodeava. Certa hora Laserin surpreendeu Mifitrin olhando em sua di-reção, então desviou o olhar e resolveu perguntar: — Senhora Mifitrin… — Não me chame de senhora – Mifitrin repreendeu a garota de modo severo, também desviando o olhar para a água do rio que corria cal-mamente. – Não mereço o título de senhora, e tampouco Elkens e Meithel. Temos muito a aprender e a fazer antes de merecermos tal respeito… Laserin ficou muda um instante, mas resolveu ignorar o comentário e prosseguiu com o que queria dizer: — Mifitrin, você acha que poderemos ser atacados por aqueles demô-nios novamente? Digo, antes de chegarmos ao lago Lushizar? — Os kenrauers? – Mifitrin perguntou seriamente, mas ela não preci-sou ouvir a confirmação. Era óbvio que Laserin estava falando dos kenrauers, aqueles demônios que causaram tantas mortes na noite an-terior e que marcou a estada deles no vilarejo Rismã. – Vou te pergun-tar uma coisa Laserin: você sabe por que eles atacaram o vilarejo on-tem? — Para roubarem o cristal? – ela arriscou insegura, mas Mifitrin vol-tou a encará-la e confirmou com um leve aceno de cabeça. Laserin en-tão prosseguiu: – E você acha que eles nos encontrarão? Eles têm co-mo saber para onde estamos indo…? — Se está com medo ainda está em tempo de voltar. Pode se virar e chegar à Rismã antes do anoitecer. Laserin se sentiu ofendida e seus grandes olhos, azuis e infantis, se encheram de lágrimas. Ela ficou vermelha, mas não de vergonha, de raiva, e Elkens compreendeu o motivo: — Laserin não se preocupa por ela, Mifitrin – disse o Sacerdote se intrometendo na conversa das duas. – Ela pergunta pelos que deixou

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para trás em Rismã. Quer saber se os demônios voltarão a atacar sua casa ou se os deixarão em paz e virão atrás de nós. Não seja tão dura com ela. Mifitrin aquiesceu. A expressão em seu rosto não melhorou, mas ao menos ela não voltou a ser grossa com Laserin. Continuou encarando o rio Arman, e vários minutos depois, quando todos pensaram que o assunto estava encerrado, ela voltou a responder: — Se isso te faz sentir melhor, acredito que os kenrauers não perderão tempo em Rismã, pois nos viram lá e sabem que nós pegamos o cristal. Eles não são demônios comuns. Sua única necessidade de vida é cum-prir suas vontades. Todos compartilham uma única alma e a vontade de um é a vontade de todos eles. São a pior espécie de demônios que existe, então fique tranqüila. Eles virão atrás de nós. Logo irão saber onde estamos… — Ou já sabem – completou Kanoles, que estava afastado deles, em-bora atento à conversa. — Ou já sabem – Mifitrin concordou. Esse foi o fim da conversa. Logo guardaram suas coisas e partiram, tentando não deixar vestígios de que estiveram ali ou de quando esti-veram ali. Faziam isso a cada parada e Mifitrin sempre se certificava se não havia deixado nada que os denunciasse. Ela estava com medo, mas tinha dificuldade de admitir isso para si mesma. Estava com me-do desde que partiram dos Domínios do Tempo, e após Rismã seu me-do apenas aumentou. Você é responsável pela vida daqueles que estão com você. Essas palavras de Manjourus latejavam em sua cabeça, lembrando-a constantemente de sua responsabilidade. Elkens, Meithel, Kanoles e Laserin… sou responsável por eles. E realmente era, afinal de contas é uma Guerreira. Os olhos de Mifitrin iam de um lado para o outro, sempre procurando por qualquer sinal de perigo.

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Sem que se desse conta, estava andando com o arco em mãos, pronta para atacar ao menor indício de não estarem mais sozinhos. Sua maior preocupação era Laserin, não apenas por ela estar com o cristal, mas também por ser apenas uma criança. Aquela jornada era perigosa de-mais para Laserin estar nela. Perigosa demais… Mifitrin seguia à frente. Kanoles e Elkens seguiam um de cada lado de Laserin e Meithel vinha por último, fechando o cerco em torno da jovem. Faziam isso naturalmente, como se já tivesse sido combinado, mas na verdade não trocaram nenhuma palavra sobre o assunto. Fa-ziam isso porque a preocupação de Mifitrin também era a preocupa-ção de todos, e tentavam manter Laserin o mais protegida possível, mas faziam de modo que ela não percebesse. Ela não precisava saber o quanto estavam preocupados com ela, não precisava ficar com ainda mais medo do que já estava. Mas ela percebia e nem mesmo Elkens re-parou nisso. Laserin costumava se afastar do vilarejo em companhia de Baldor e já estava acostumada a ser protegida. Baldor nunca havia dito nada sobre isso, mas Mifitrin e os outros estavam fazendo a mesma coisa que Baldor fez com ela durante anos: estavam tentando protegê-la, mesmo sem lhe dizer isso, e ela se sentia grata. Iria conti-nuar fingindo que não percebia nada até o fim da jornada. Enquanto caminhavam, o olhar de Elkens se voltou para a bolsa de Laserin pela décima quarta vez desde que reiniciaram a jornada. Isso era comum agora, e ele não era o único a olhar. O cristal era a chave que os permitiria entrar nos Domínios da Magia, portanto todos se preocupavam com ele. Mas ao olhar para a bolsa mais uma vez, El-kens se deu conta de algo que não havia pensado até então: agora es-tavam com três relíquias. Uma relíquia de cada um dos Elementos. Meithel não sabia que Mifitrin e Elkens carregavam relíquias escon-didas, mas Mifitrin também já devia ter reparado nesse fato curioso.

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Mifitrin carregava uma relíquia do Tempo que Morton deixou es-condida para ela antes de morrer, e Elkens trazia a relíquia que ga-nhou de Kalimuns. E agora Laserin também trazia consigo uma relí-quia da Magia, uma das partes do Cristal de quatro Faces. Eles ti-nham um grande poder em mãos, só restava saber se saberiam como e quando usar esse poder. Relíquias Elementares podem ser tão perigo-sas quanto poderosas se usadas indevidamente. Uma hora se passou sem que ninguém dissesse coisa alguma. A paisa-gem continuava a mesma: o rio ao lado direito deles, com suas águas claras e mansas e pontilhadas aqui e ali por plantas aquáticas, e as árvores que cresciam em cada uma das margens. O céu continuava nu-blado e provavelmente continuaria assim pelo resto do dia. Ao menos não havia indícios de que choveria logo, pois Laserin receava que Mi-fitrin insistisse em continuar andando mesmo sob uma tempestade. O ritmo continuava acelerado, mas ela ainda não havia se queixado uma única vez, tampouco faria isso, mesmo que tivessem que prosseguir na tempestade. Em sua mente Laserin se recordava das canções que costumavam can-tar no pátio de Rismã durante as noites quentes, canções que falavam sobre aventuras, sobre o mar, sobre romances e sobre lírios, sua flor favorita, lírios brancos. Havia dezenas de canções e ela sabia cantar praticamente todas. Sem que percebesse estava cantarolando em voz baixa e ninguém a interrompeu. Elkens, que ainda caminhava ao seu lado, sorria enquanto apreciava as músicas que desconhecia, mas que logo também aprenderia a gostar. Assim como Tûm havia lhes prevenido, o rio Arman fez uma curva e os abandonou. Após abastecerem seus cantis, despediram-se do rio e prosseguiram viagem como se nada tivesse mudado, mas sabiam que

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voltariam a encontrar aquelas águas quando chegassem ao lago Lus-Lushizar, pois era lá que muitos rios desaguavam, inclusive Arman. Assim como o rio, as árvores também foram lentamente ficando para trás, transformando a paisagem de forma brusca. O caminho que se es-tendia diante deles agora estava completamente desprovido de vida vegetal, a não ser um ou outro arbusto que crescia timidamente em meio às pedras. O terreno agora era cheio de grotas, depressões e pe-dras, muitas pedras soltas que dificultavam a caminhada. Olhando para o horizonte além, mas ainda a uma distância considerável, esta-va a grande montanha Monaltag, em cujos pés se encontrava o lago Lushizar. Ainda era possível apenas discernir os fracos contornos da montanha, mas ela estava lá, ao alcance deles, e isso já era o suficien-te para renovar as forças e um gerar um novo estímulo para prosse-guir. Andaram por mais algumas horas, e o caminho ficava cada vez mais difícil. Em parte era por causa do cansaço que todos começavam a sentir, exceto Mifitrin talvez, mas o caminho que os separava da montanha Monaltag realmente não era fácil. Não havia uma trilha a seguir, eles apenas tentavam seguir em linha reta até a montanha, mas isso não era possível. Freqüentemente tinham que retornar por alguns caminhos para contornarem alguma pedra, barranco ou mesmo uma valeta cavada por enxurradas que passaram por ali há muito tempo. Isso sem mencionar os riscos de pequenos acidentes no caminho desconhecido e cheio de pedras soltas. Isso tudo somado ao fato de eles poderem ser atacados a qualquer momento por algum possível inimigo; e isso por si só já era o suficiente para tornar o caminho mais difícil, mesmo que na verdade não fosse. Laserin calculava que umas oito horas ou mais haviam se passado desde que saíram do vilarejo Rismã, o que significava que logo escure-

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ceria e eles teriam que procurar um abrigo para passar a noite. Ela não conseguia ter certeza de que horas eram, afinal de contas o sol fi-cou oculto atrás das nuvens durante todo o dia, nem ao menos sabia em que posição do céu ele se encontrava agora. Mas seu corpo lhe di-zia que não agüentaria por mais muito tempo, por isso ela rezava para que estivesse certa. E as nuvens também se transformaram no decorrer do dia, e agora estavam carregadas. Talvez chovesse durante a noite e, caso isso acontecesse, choveria bastante, o que significava que eles precisavam encontrar um bom abrigo rápido. Possivelmente teriam de ficar na primeira gruta que encontrassem. Grandes pedras os cercavam dos dois lados agora, e eles só tinham um caminho a seguir. Estavam em uma grande depressão do terreno e já não era possível ver a montanha Monaltag. Mifitrin prendia a respi-ração enquanto tentava ouvir qualquer ruído ao redor deles. Seu cora-ção estava se acelerando. Você é responsável pela vida daqueles que estão com você. Como pôde ser tão descuidada? O cenário em que se encontravam era perfeito para uma armadilha. Estavam presos num buraco, não havia como correr para os lados. O único caminho que po-diam seguir era em frente, ou voltarem para trás. Mas se estivessem caindo em uma armadilha, com toda certeza estariam sendo seguidos e o caminho de volta estaria bloqueado. — Meithel – ela chamou – fique atento às pedras acima de nós. Ka-noles cuida da nossa retaguarda e Elkens fica de olho em Laserin. Não tire os olhos dela. Os quatro pararam de andar imediatamente, assustados. — Não parem de andar – disse Mifitrin irritada. – E façam o que eu falei. — O que está acontecendo? – Kanoles perguntou.

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Sem virar seu corpo, Mifitrin olhou para trás, depois para cima, di-reita e esquerda, então seu olhar voltou para frente. Seus olhos se mo-viam ligeiros, indo de um ponto a outro, e sua mão já havia preparado uma flecha no grande arco. — Ela acha que podemos estar caindo em uma armadilha – Meithel respondeu por ela. ‒ E está certa. Se estiverem preparando uma arma-dilha para nos pegarem, este é o lugar ideal. Façam o que ela disse e não parem de andar. Os cinco prosseguiram. Kanoles segurava sua espada negra enquanto vigiava a retaguarda; Meithel e Elkens tocavam seus colares com a mão direita, Meithel olhando para cima, para as grandes pedras que os cercavam e de onde poderiam ser atacados sem nenhuma resistência, sem nenhum lugar onde pudessem se proteger, e Elkens segurava o braço de Laserin, pronto para protegê-la de qualquer ataque. A flecha de Mifitrin estava tencionada ao máximo em seu arco, pronta para ser disparada ao menor indício de inimigo. Você é responsável pela vida daqueles que estão com você. O vento soprou de repente, o primeiro si-nal de que uma tempestade se aproximava, e trouxe consigo uma nu-vem de poeira. Mifitrin olhou para trás e viu seus companheiros pro-tegendo os olhos e seu desespero aumentou. Estamos com a guarda baixa. Esse é o momento ideal para nos atacarem. Ela não tentou pro-teger os olhos da poeira, pois isso também a impediria de enxergar o inimigo. Mas seus olhos se encheram de poeira e pedras e ela não con-seguiu mantê-los abertos. Você é responsável pela vida daqueles que estão com você. Ela ficou em desespero. Vão nos atacar agora, a qual-quer momento. Seu desespero aumentou ainda mais. Estavam comple-tamente desprotegidos e a única coisa em que conseguia pensar era nos inimigos que estavam à frente, atrás e acima. Estavam cercados! Você é responsável pela vida daqueles que estão com você. O vento ficou

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mais forte. A mão que segurava a flecha tremia descontroladamente. Você é responsável pela vida daqueles que estão com você. Um pássa-ro que voava acima deles gritou assustado. É agora! — CORRAM! E todos correram. Elkens puxou Laserin, mantendo-a sempre bem próxima a ele. Ele e Laserin eram os únicos que usavam as vestes cas-tanhas feitas no vilarejo Rismã, vestes longas e com um capuz que agora eles usavam para proteger os olhos da nuvem de poeira. Elkens ouvia Meithel correndo bem ao seu lado, mas não era capaz de enxer-gá-lo, e também ouvia Kanoles, correndo à passos largos bem atrás de-les. Não há ninguém, pensou Meithel após quase um minuto correndo sem orientação. Levantou a cabeça um pouco e vislumbrou Mifitrin cor-rendo apenas alguns metros a sua frente, em meio à poeira, ainda com a flecha preparada em seu arco. Ela está com medo. Por algum motivo está com muito medo. Passou o dia todo procurando inimigos atrás de cada árvore, atrás de cada pedra, e agora acha que os encontrou. Acha que nos encontraram. Mas não há ninguém! Estamos correndo à toa, correndo o risco de cairmos num buraco que não podemos enxergar. Estamos correndo e não há ninguém. Não há armadilha alguma. — MIFITRIN! Mas seu grito foi sufocado pelo vento. — PARE MIFITRIN! Ela está desesperada. Preciso fazê-la parar antes que nos machuque-mos de verdade. Meithel acelerou o passo, tentando chegar até a Guerreira para obrigá-la a parar de correr. Correu o máximo que suas pernas suportavam, mas Mifitrin também era muito ágil. — NÃO HÁ NINGUÉM MIFITRIN! Mas ela não iria ouvir. O vento estava muito forte.

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— PARE MIFITRIN! PARE DE CORRER! Mas realmente não iria ouvir. Estava há três metros dela, talvez me-nos. Correu um pouco mais e diminuiu a distância, ainda gritando inutilmente para que ela parasse. Estendeu o braço e quase pôde tocá-la. Mas então tudo mudou de repente. O vento parou, a poeira sumiu. Mifitrin parou de correr sem aviso e Meithel se chocou com ela. Mas havia alguma coisa errada. Ele sentia como se tivesse acabado de atravessar uma parede d’água, onde já não havia vento, nem som, nem nada. Tudo parecia estar se movendo em câmera lenta, lenta de-mais. Inclusive seus pensamentos estavam lentos. Ele não fazia idéia do que estava acontecendo. Havia uma pequena colina diante deles, agora ele podia ver perfeitamente, pois já não havia poeira. Estava parado logo atrás de Mifitrin, e não sentia qualquer impulso de se mover. Elkens, Kanoles e Laserin estavam ao seu lado, todos agindo como ele, como se nada mais tivesse importância. Estavam todos imó-veis, sem se mover, sem pensar, apenas olhando para a colina diante deles. Meithel sentia sua consciência se esvaindo e algo o forçava a olhar para a colina. Havia alguma coisa lá, alguma coisa que ele ain-da nem sabia estar lá, mas que o forçava a olhar naquela direção. Que atraía seu olhar assim como a fogueira atrai a mariposa. Sabia que não devia olhar, tinha consciência de que isso poderia ser perigoso, mas não podia evitar. Havia alguém sobre a pedra. Era alguém alto, três metros de altura talvez, Meithel não conseguia raciocinar; estava encapuzado, e ne-nhuma parte do seu corpo estava visível. À sua volta se formava uma estranha e densa névoa azul-perolado e, apesar de não estarem próxi-mos, a respiração lenta e profunda da criatura era a única coisa que Meithel conseguia ouvir. Então o capuz se moveu um pouco e Meithel enxergou os olhos da criatura, olhos que brilhavam intensamente e que

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olhavam para ele. A criatura olhou para ele, para dentro dele, e as-sim sua consciência se apagou completamente.

Laserin estava correndo em meio à densa nuvem de poeira que o vento trazia em sua direção. Com os olhos cobertos pelo seu capuz, Laserin era guiada por Elkens que lhe puxava pelo braço enquanto corria. Ouviu Meithel gritando alguma coisa bem ao lado dela, algo como “não há ninguém” e “pare de correr”, e também achou que o Sacerdote da Magia estava gritando o nome de Mifitrin. Mas o que quer que fosse o vento não permitia que ela entendesse direito. Continuou cor-rendo, até que atravessou algo frio, algo que lhe parecia ser uma pare-de d’água ou coisa assim. Depois disso tudo ficou estranho. A última coisa de que teve consciência foi de olhar para o alto de uma colina

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diante deles e enxergar um vulto encapuzado com dois olhos brilhan-tes. Os olhos foram as últimas coisas que enxergou antes de tudo de-saparecer. Laserin estava sozinha no vazio. Tentou levar as mãos diante dos olhos, tentou olhar para seu próprio corpo, mas era como se ele não es-tivesse presente. Ela tinha consciência de que um par de olhos bri-lhantes continuava olhando para ela, para dentro dela, mas por algum motivo não conseguia encarar aqueles olhos. Ouviu o choro de uma criança e então pôde visualizar algo. Havia uma jovem deitada em uma cama, e uma velha mulher segurava um bebê nos braços, aparentemente recém-nascido. O bebê estava coberto de sangue, havia acabado de nascer. A velha limpava suas mucosas, mas deteve-se ao ver uma estranha marca gravada na nuca da criança. Sou eu, Laserin percebeu. Aquele bebê era ela, estava assistindo ao seu nascimento. Então seu olhar se voltou para a jovem deitada na cama, para sua mãe. Era bonita, muito bonita, mas algo estava terri-velmente errado. Sua mãe estava morta. Morreu no momento em que Laserin nasceu, talvez até mesmo antes. E era tão jovem… A velha parteira e a mãe de Laserin desapareceram, mas o bebê conti-nuava ali. Agora havia dois homens juntos de Laserin, ambos usando vestes semelhantes às de Meithel. Eram protetores da Magia. — Tem certeza de que é ela? – um deles perguntou ao outro, sem tirar os olhos do bebê. — Sim, olhe a marca em sua nuca, Shiron. É ela! Não pode ser um engano. O homem levantou uma pequena adaga de prata e apontou para a cri-ança.

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— Espere – disse o homem chamado Shiron, detendo seu compa-nheiro. — O que está fazendo, Shiron? Só precisamos matar esta criança e o serviço dos caçadores estará acabado. — Sim, mas se vamos pôr um fim nisso, que o façamos dentro dos Domínios da Magia. Vamos levá-la para lá. Tudo desapareceu mais uma vez. Agora estava vendo um velho, em um aposento que ela conhecia. Era a casa de Tûm. Seus pensamentos estavam muito confusos e ela levou tempo para reconhecer o velho: era Zurt, pai de Tûm e antigo líder de Rismã. Foi ele quem recolheu Lase-rin no vilarejo, mas morreu pouco tempo após sua chegada. Ela ape-nas o conhecia através de quadros. Havia umas cinco ou seis pessoas no aposento, todas de frente para Zurt, nenhuma das quais Laserin reconhecia. Um homem que estava mais a frente apontava o dedo pa-ra Zurt e dizia em tom enfurecido: — Esse bebê atrai o perigo para nosso vilarejo. Tem que se livrar dela. — Não – o velho respondia. – É só uma criança indefesa. Eu contei o segredo dela somente a vocês para que me ajudem a protegê-la. Preci-sam me ajudar. — Ela traz perigo para todos nós, para nossas famílias. Precisa se li-vrar dela. — Não posso. — Então estamos partindo do vilarejo com nossas famílias, Zurt. As pessoas que não sabem desse segredo estão sob sua responsabilidade, pode contar a elas ou não, mas você será responsabilizado por qual-quer coisa que aconteça por causa dessa criança. Adeus. Tudo voltou a desaparecer. As cenas que Laserin vivenciava eram muito confusas e ela não conseguia assimilar tudo. Nem tinha tempo para pensar, tudo acontecia tão rápido. Entre uma cena e outra, via

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imagens e ouvia vozes, mas não conseguia discernir nada do que via ou ouvia. Era tudo tão confuso. Após uma série de imagens e sons que continuava sem entender, finalmente voltou a ver algo. Quem estava diante dela era ela mesma, parecia até um pouco mais velha. Era algo que ainda não havia acontecido. Talvez fosse algo que ainda aconte-ceria. Havia uma mulher de armadura alva diante dela, uma mulher cuja beleza Laserin jamais havia visto igual em sua vida. Havia flores em seus cabelos e Laserin podia sentir seu perfume. A mulher disse com um tom de voz doce: — Eu vou te treinar. Você acha que é capaz de aprender? Ela não chegou a ver a resposta que ela mesma teria de dar. Tudo de-sapareceu, e reapareceu no mesmo instante. Estava enxergando tantas pessoas, muitas desconhecidas e poucas das quais se recordava. Esta-va uma verdadeira confusão. Todas elas diziam a mesma coisa: — Você precisa morrer. — Você precisa morrer. — Você precisa morrer. As pessoas apareciam e desapareciam diante dela, mas sempre diziam a mesma frase: — Você precisa morrer. — Você precisa morrer. De repente viu a si mesma diante dela, a única pessoa que achou que reconheceria, mas isso não foi verdade. Não reconheceu a si própria, estava muito diferente. Não tanto fisicamente, mas sua expressão pa-recia pertencer à outra pessoa. E quando ouviu sua voz, teve certeza absoluta de que não conhecia a si mesma: — Eu preciso morrer.

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Então acabou. Laserin sentiu como se tivesse acabado de voltar a superfície após um mergulho muito longo. Estava se sentindo confusa, mas aliviada. Tudo havia voltado ao normal, ao menos para ela. Quando olhou para os lados encontrou os companheiros, todos imóveis com o olhar preso na criatura encapuzada sobre a colina. A criatura com os olhos brilhantes que vigiou a alma de Laserin, que lhe forçou a ver coisas das quais não se recordava, mas que ainda lhe eram doloro-sas. Seus companheiros estavam com o olhar vidrado na criatura, apa-rentemente presos em algum encanto e passando pelo que ela havia acabado de passar. Elkens, ao seu lado, ainda segurava em seu braço, assim como fazia enquanto corriam, mas já não estava segurando com força, e nem parecia ter consciência de que ela estava ali. Laserin se-gurou o braço do Sacerdote da Alma e chamou por ele: — Elkens. Mas ele não respondeu. Agora era Elkens quem estava no vazio, completamente sozinho. Era a sua vez de ser analisado. Talvez não fosse escolhido, talvez fosse descartado assim como Laserin, ou talvez fosse a escolha. Ainda é ce-do para saber. Só havia ele no vazio, ele e o par de olhos brilhantes que continuava vigiando-o constantemente. Ele podia sentir o par de olhos, mas não conseguia olhar para eles. Estava tudo tão confuso, jamais havia ex-perimentado a sensação de ter sua alma vigiada. Era uma experiência nova para ele. Uma escuridão se formou ao longe, uma escuridão de terror que cres-cia rapidamente e vinha em sua direção. Elkens ficou com medo; quis fugir, mas não foi capaz. De repente apareceu alguém diante dele. Era Meithel. O Sacerdote da Magia estava de costas, a frente de El-

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kens com os braços estendidos. Estava entre ele e a escuridão que crescia. Apenas ouviu um grito de dor de Meithel e este desapareceu. Agora era o Mestre da Alma Kalimuns quem estava diante dele, tam-bém com os braços abertos. Agora era seu tutor quem estava ali, inter-pondo-se entre Elkens e a escuridão. Mais um grito de dor e Elkens ficou novamente sozinho, mas apenas por um segundo. A escuridão crescia rapidamente em sua direção, mas então uma terceira pessoa surgiu. Era Laserin, e ela repetia o mesmo gesto dos seus antecessores. Estão tentando me proteger, Elkens finalmente percebeu. Todos eles estão tentando me proteger. Estão se arriscando para me proteger. La-serin desapareceu, mas uma quarta pessoa surgiu para proteger El-kens. Depois uma quinta e uma sexta. Várias pessoas apareceram, uma após a outra, e todas tentando protegê-lo. Por último surgiu Mi-fitrin, mas esta não ficou mais tempo que os outros. Após um grito de dor também desapareceu. Estavam todos tentando protegê-lo. Esta-vam todos se machucando por ele, se arriscando por ele. Mas agora estava sozinho e teve medo. A escuridão vinha ao seu en-contro e ele desejou que mais alguém aparecesse para protegê-lo, mas não havia mais ninguém. Todos se foram. Mas após as imagens, come-çou a ouvir vozes. — Elkens é fraco – ele ouviu a voz de Mifitrin, apesar de ela não es-tar mais ali. – Ele precisa de mim. — Temos que proteger o garoto – esta voz com certeza era de Kano-les, sempre o tratando como se fosse uma criança. E por último veio a voz que tocou mais fundo em seu coração. Era Laserin, e parecia desesperada: — Não vou permitir que machuque o Elkens! Então as vozes se foram. Só restou ele e a escuridão, que crescia sem parar. Via muitas cenas, rápidas demais para que pudesse compreen-

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dê-las. Após uma sucessão de flashes que não faziam sentido algum, novamente uma pessoa apareceu entre ele e a escuridão. Mais uma vez era Mifitrin. Mas estava diferente. Parecia ter passado por muita coi-sa. E ela não estava mais de costas para ele, tentando protegê-lo da escuridão. Estava de frente para Elkens, olhando para ele. Estava ig-norando a escuridão que iria atingi-los a qualquer momento e olhava apenas para ele. Elkens encarou o olhar da Guerreira do Tempo e seu coração se acelerou. Então Mifitrin perguntou: — O que sente por mim, Elkens? Mas ele não deu a resposta. Mifitrin não tardou a desaparecer, dei-xando-o mais uma vez sozinho. A escuridão estava tão perto agora. Iria pegá-lo logo, iria atingi-lo, trucidá-lo, e ninguém poderia protegê-lo. Então uma nova cena se formou no vazio, entre ele e a escuridão. Agora via a si mesmo, um tanto quanto diferente, mais velho talvez, mas não muito. E Meithel estava com ele. Havia muita raiva em sua expressão e sua voz tremia quando ele disse: — Quando eu encontrá-la de novo vou matá-la! Tudo desapareceu mais uma vez. Tudo acontecia muito rápido, mas agora o tempo estava se esgotando. Ele já era capaz de sentir a escu-ridão, ela estava ali, tão perto. Estava chegando… Uma última pessoa surgiu. Apesar de lhe ser tão familiar, essa foi a pessoa que Elkens precisou de mais tempo para reconhecer. Era uma pessoa tão cheia de ódio e rancor. Jamais viu alguém tão cheio de ódio quanto a pessoa desconhecida diante dele. — Quem é você? – Elkens perguntou, mas seu coração gelou quando a reconheceu, um segundo antes de ouvir a resposta: — Eu sou você! Então a escuridão o pegou e acabou com tudo.

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Elkens cambaleou quando voltou a si, mas Laserin o amparou. — Elkens – ele ouvia a voz da jovem. – Está tudo bem? Não estava tudo bem. Ele tentou responder, mas não conseguiu. Es-tava respirando tão desesperadamente como se tivesse prendido a res-piração por tempo demais, quase como se o ar tivesse sido solidificado em seus pulmões. Suas pernas ainda tremiam e seu coração batia em ritmo muito acelerado, tudo por causa das coisas que viu e ouviu, mas seu cérebro não foi capaz de guardar nada do que viveu. Elkens não se recordaria de nada do que havia acontecido, mas seu corpo levaria algum tempo para se recuperar da experiência. — Elkens, o que está acontecendo? – a jovem voltou a perguntar, com medo. – O que é aquela criatura no alto da colina? O que ela está fazendo? O cérebro de Elkens voltou a funcionar quando olhou para o alto da colina e enxergou a criatura encapuzada. Agora entendia realmente o que estava acontecendo. E sentiu medo. — Elkens, o que é aquela criatura? — É Argon – ele respondeu imediatamente. – Argon-Tefai, uma das bestas celestiais. É a besta da Renovação e estamos com problemas… Não havia um chão sob seus pés, nem ar ao seu redor, tampouco um céu sobre sua cabeça. E também não havia ninguém com ele. Estava sozinho no vazio. A única exceção era o par de olhos sobre ele, olhos brilhantes que ele sentia estarem olhando para ele, mas para os quais ele não suportaria olhar. Por isso preferia continuar ignorando os olhos, como se realmente estivesse sozinho. Mas logo não estava mais sozinho e sentiu prazer com a imagem que viu. Estava vendo a si próprio, ainda um garoto, talvez com sete ou

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oito anos. Estava feliz. Corria por um campo florido, sua mãe segura em sua mão e os dois corriam juntos, sorrindo. Ele estava muito feliz. Mas então a imagem foi interrompida por uma visão de Sangrini, sua espada de lâmina negra e fria, tão fria quanto o gelo. Sangrini desapareceu, deixando a imagem de sua mãe voltar. Desta vez Kanoles não estava com ela, e Serena não estava sorrindo. Parecia preocupada. Estava sentada numa cadeira, de frente para uma mulher coberta por xales e um olhar misterioso. Uma vela brilhava entre as duas, enquanto conversavam. O garoto Kanoles não participava da cena, mas ele se recordava de ter visto aquela conversa, tantos anos antes. Estivera escondido atrás da porta, ouvindo tudo atentamente. — O que você descobriu? – perguntou Serena à mulher coberta de xa-les. Sua voz demonstrava o quanto estava ansiosa e até mesmo nervo-sa. Mas então Sangrini surgiu com um novo brilho negro e interrompeu a cena. Mais uma vez a bela e alegre Serena estava na cena, mas não estava mais bela, muito menos alegre. Estava coberta de sangue, caída no chão, e o jovem Kanoles chorava sobre seu peito, o peito em que o pro-fundo corte provocado pela lâmina de Sangrini ainda sangrava. Sere-na estava morta e Kanoles chorava desconsoladamente. Mais uma vez Sangrini surgiu, e fez a imagem se dissolver. Cada vez que ela surgia diante dele, era como se ele fosse ferido por sua lâmina, como se sua alma fosse ferida. Sangrini estava sempre em sua vida, sempre esteve e sempre estaria. A espada de seu pai, que passou para sua mãe e a acabou matando, e que por fim veio parar em suas mãos. A espada que tanto amava e tanto odiava em iguais proporções, mas da qual não conseguia se livrar. Sangrini representava seu amor e seu

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ódio, sua vida e possivelmente sua morte. Sua vida era guiada por aquela lâmina fria. — Não quero ficar sozinho, Artasil – ele ouviu sua própria voz, mais de vinte anos atrás. Estava novamente chorando e seu amigo Artasil estava com ele. — Vamos ficar juntos, Kanoles – o amigo respondeu. ‒ Assim nem eu nem você jamais ficaremos sozinhos. Um jamais abandonará o outro. Aqui não há mais nada para nós, vamos embora. Vamos partir e en-contrar outros que também estejam sozinhos, assim como nós estáva-mos. Sangrini novamente surgiu num flash rápido e transformou a cena. Viu ele e Artasil, quando partiram sem destino ou objetivo. Os garotos foram envelhecendo rapidamente enquanto Kanoles olhava para eles, e logo outros garotos foram se juntando a eles. Enquanto os anos pas-savam, o bando de Kanoles ia aumentando. Jamais esteve sozinho novamente, sempre esteve rodeado por seus amigos e cada vez mais amigos surgiam para repartirem sua dor. Então seu bando desapare-ceu de repente, sendo substituído pela imagem de Laserin, Mifitrin, Meithel, Elkens e mais algumas pessoas que ele ainda não conhecia. Esse é o meu bando agora, ele pensou. Então Sangrini voltou a aparecer e tudo foi alterado mais uma vez. Voltou para a cena em que Serena conversava com a mulher de xales. Ele continuava atrás da porta, ouvindo escondido. Ouviu quando sua mãe refez a pergunta: — O que você descobriu? Desta vez ele ouviu a resposta antes da cena se dissolver: — Acho que Kanoles tem um irmão. E a cena se foi. Agora só via Sangrini diante dele. A espada tinha um brilho negro, um brilho negro que tanto o atormentava. E estava co-

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berta por sangue, o sangue de sua mãe. Havia um corpo pairando no vazio atrás de Sangrini. Kanoles fez menção de fechar os olhos, pois não queria mais uma vez ver Serena morta, mas não era ela que estava ali e seus olhos se arregalaram de pavor. Era ele! O sangue na lâmina negra não era de sua mãe, era dele! Kanoles puxou o ar com força para seus pulmões. Não sabia o que ti-nha acontecido, não se lembrava de nada e queria continuar sem se lembrar. O que quer que fosse que tivesse acontecido, ainda o fazia so-frer e não queria se lembrar. Suas pernas bambearam quando voltou a si e ele caiu sobre seus joe-lhos. Ouviu Laserin chamando por ele, mas só foi capaz de responder quando sentiu a garota segurando em seu braço e tentando ajudá-lo a se levantar. — Estou bem, Laserin. Não se preocupe. Mas não estava bem. Nenhum deles estava bem. Ele estava com me-do. Laserin estava com medo. E Elkens com mais medo ainda. Meithel e Mifitrin continuavam sem reação alguma, como se estives-sem em um transe. — O que está acontecendo aqui? – Kanoles perguntou. – O que é aquela criatura? — É a Argon – Elkens voltou a responder. – A besta mística da Re-novação. Está analisando nossas almas, tentando desesperadamente fazer uma escolha. Laserin, você e eu passamos pelo teste, mas Meithel e Mifitrin ainda estão sendo testados. Se Argon fizer uma es-colha, seja ela quem for, essa pessoa morrerá. Kanoles olhou assustado para os companheiros que ainda estavam em transe. Mifitrin e Meithel continuavam com os olhos petrificados na

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criatura encapuzada sobre a colina. As mãos de Meithel tremeram levemente enquanto Kanoles olhava para ele. Meithel se sentiu sufocado pelos olhos brilhantes que o encaravam no vazio. Aqueles olhos que sugavam tudo o que ele sabia, que se alimen-tava de cada lembrança que havia dentro dele, que o fazia reviver su-as alegrias, suas tristezas, seus fracassos e seus triunfos. Que o fazia sentir as dores de cada tombo que já levou, que o fez assistir toda a sua vida num piscar de olhos, uma vida sem muitos problemas, onde ele apenas queria se superar cada vez mais e conseguia isso. Após vivenciar tudo pelo que já passou sem nenhuma emoção nova, viu diante dele duas pessoas. O Sábio da Magia Lakar, seu tutor, e o Feiticeiro Mudriack, seu grande amigo. Ambos sorriam, um sorriso triste, e balançavam as mãos como se dissessem adeus. Então Meithel viu seu tutor sendo assassinado, viu uma lâmina alva atravessando seu peito e o corpo sem vida do velho Sábio desabou no chão. Foi uma cena que Meithel jamais havia presenciado; sabia que seu tutor estava morto, mas não sabia como tinha acontecido. Lakar estava morto. Tudo desapareceu e só ficou Mudriack a sua frente, ainda dando adeus e com o mesmo sorriso triste. Meithel correu em sua direção, mas não conseguia se aproximar um centímetro sequer. Mudriack estava se despedindo e Meithel não podia tocá-lo. Mudriack também iria mor-rer, assim como seu tutor, e Meithel não podia fazer nada para evi-tar… — NÃO! Kanoles segurou o braço de Meithel e o impediu de cair no chão assim como havia acontecido com ele. Meithel tentava recuperar o fôlego

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perdido, mas lágrimas escorriam por seus olhos. Ele ficou em pé e as enxugou, sem saber o motivo de elas estarem ali. Assim como aconte-ceu com seus companheiros, ele não se recordava de nada do que tinha acontecido. Sentia apenas que havia acabado de se livrar de um en-cantamento que poderia ter durado de segundos a dias. Seus sentidos estavam voltando muito lentamente, mas ainda estava muito confuso. — NÃO OLHEM! – ele ouviu Elkens gritando. – NÃO OLHEM! Mas Meithel não iria olhar. Não queria nunca mais encarar aqueles olhos brilhantes da criatura que estava na colina. Jamais queria vol-tar a sentir aquilo, e não precisava que Elkens lhe dissesse o que fazer. — O que está acontecendo? – Meithel perguntou. — Você também passou pelo teste – Elkens estava apavorado. Agora Mifitrin era a única em transe. O que quer que Argon a estivesse obri-gando a ver, lhe causava muita dor. Apesar da expressão abobada do transe induzido, havia um pavor crescente em sua expressão. E medo. Havia muito medo no rosto da Guerreira. — NÃO OLHE MIFITRIN! – Elkens continuava gritando. Ficou de frente para a Guerreira, ficou entre ela e a besta, tentando inter-romper o contato visual, mas sabia que isso não funcionaria. – ACORDE MIFITRIN! PARE DE OLHAR! NÃO OLHE! Mas ela estava olhando e o que via a deixava apavorada. Argon esta-va gostando do que via e achou que talvez fizesse sua escolha. Talvez escolhesse Mifitrin. Talvez a escolhesse e acabasse de uma vez por to-das com os seus sofrimentos… Mifitrin se sentiu tão sozinha como jamais havia se sentido. Só havia ela e o par de olhos brilhantes, que olhavam para ela sem descanso, sem piscar. Sentiu frio. Sentiu solidão. E sentiu medo. Muito medo. Tentou gritar, pedir que alguém viesse ao seu encontro, mas não con-

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seguia. Estava sozinha e agora considerava o quanto tinha pavor da solidão. E a solidão que sentia agora a fazia entrar em pânico. A solidão foi uma tortura. Durou uma eternidade, mas finalmente al-go aconteceu. Não estava mais sozinha no vazio, agora havia mais alguém ali. Uma criança havia surgido. Uma menina que estava sen-tada no vazio, com os braços cruzados sobre os joelhos e a cabeça es-condida atrás deles. E a garota soluçava; estava chorando. Estava chorando sozinha e por isso Mifitrin a reconheceu. Sou eu, pensou. Esta era eu quando eu ainda podia chorar, mas isso foi há muito tempo. Já não sou capaz de chorar nem sozinha. Mifitrin ouvia os seus soluços desesperados e sentia pena de si mesma. E sentir pena de si mesmo era algo inadmissível para um Guerreiro como ela. Reconhecia isso e se torturou por isso. A Mifitrin criança continuava ali, ainda chorando, mas algo mais es-tava acontecendo simultaneamente. Ela olhou para baixo e descobriu que estava na beira de um precipício, e não mais no vazio. Estava no topo da montanha Arguelse, dentro dos Domínios do Tempo, e atrás dela estava o Templo das esferas. Sabia o que iria acontecer agora. Morton surgiu correndo e pulou para a morte. Apesar de ter visto isso centenas de vezes, Mifitrin sofreu tanto quanto na primeira vez que viu aquilo, quinze anos atrás. Então tudo voltou a desaparecer, dei-xando-a novamente no vazio, mas sua representação mais jovem con-tinuava chorando e soluçando diante dela. Sem que nada se alterasse, ouviu a voz de Morton, como se ele esti-vesse ali diante dela. Mas não estava e ela só ouvia sua voz: — Quero que você seja Aprendiz do Mestre Kantus, ele te aceitará e te tornará uma excelente Sacerdotisa do Tempo. Um pequeno intervalo se passou, então ela ouviu sua própria voz, não muitos anos antes. Foi uma frase que dissera para seu antigo tutor, o

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Mestre Kantus, que a tornara uma Sacerdotisa; no momento em que disse isso, estava entregando seu colar de Sacerdotisa e desistindo de tudo o que havia aprendido até então: — Agradeço por tudo o que me ensinou, por toda paciência que teve e por cada conselho que me deu, mas a partir de agora eu deixo de ser uma Sacerdotisa do Tempo. Novamente silêncio. Silêncio que apenas não era absoluto pelos solu-ços da jovem Mifitrin que continuava chorando no mesmo lugar, sen-tada no vazio. Uma sucessão de flashes e vozes se seguiu, viu coisas dolorosas em se-gundos e ouviu outras ainda piores. Sua vida era repleta de sofrimen-to e cada lembrança a atemorizava. De repente tudo parou e ela come-çou a ouvir vozes novamente: — O que sente por mim, Elkens? – era a sua própria voz, uma frase que não chegou a compreender, pois ainda não a havia dito. Talvez is-so chegasse a acontecer, talvez não. Ela estava muito confusa e não compreendia nada do que estava acontecendo. A próxima frase que ouviu era dita por Elkens, mas não era a resposta da pergunta que tinha acabado de ouvir. Por algum motivo a voz de Elkens estava carregada de ódio, quase irreconhecível: — Quando encontrá-la de novo vou matá-la. Então tudo começou a acontecer tão rápido que ela tinha dificuldades para acompanhar. Vários flashes e frases se fundiram e se chocaram, coisas que aconteceram e coisas que ainda aconteceriam. As frases em sua cabeça quase a deixavam louca. — Enquanto você não for capaz de chorar, não irá se libertar. Isso está te corroendo por dentro e pode chegar o dia em que não sobre mais nada dentro de você… — Torne-se uma Sacerdotisa, Mifitrin…

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— Não posso mais… — Quando encontrá-la de novo vou matá-la… — Meu poder se foi. Não sou mais uma protetora… — O que sente por mim, Elkens? Ela levou as mãos aos ouvidos, queria calar aquelas vozes, mas elas vinham de dentro. Não havia nada o que pudesse fazer para não ou-vi-las e aquilo era um tormento. Mifitrin queria que parasse. Não es-tava agüentando mais. A pequena Mifitrin continuava chorando so-zinha diante dela e essa visão a fazia sofrer mais ainda. Fechou os olhos, mas isso não diminuiu sua dor. Queria que tudo acabasse, não importava como. O pensamento de morte invadiu sua mente como se algo a chamasse para isso e ela chegou a desejar que isso realmente acontecesse. Talvez fosse a única forma de se livrar… — PARE DE OLHAR, MIFITRIN! Elkens continuava gritando desesperadamente, mas não havia nada que pudesse fazer para livrá-la do transe. Seu teste estava demorando muito e ele temia que Argon a escolhesse. Seus companheiros estavam todos ao seu lado, tentando entender o que estava acontecendo. — O que é isso, Elkens? – a voz era de Meithel, mas Elkens não a ouvia. – O que está acontecendo, Elkens? — ACORDE MIFITRIN! ACORDE ANTES QUE ARGON TE ESCOLHA! – Elkens estava desesperado, mas não havia nada que pudesse fazer para livrar Mifitrin do encanto. Seria analisada até o fim e havia uma chance de ser escolhida. – NÃO MIFITRIN, ACORDE. NÃO DEIXE ELA TE ESCOLHER. VOCÊ NÃO PODE MORRER… Ao ouvir Elkens falar em morrer, o coração de Meithel se acelerou ainda mais. Ele ainda não tinha entendido o que estava acontecendo,

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apenas suspeitava de que Mifitrin estava em perigo. Seus movimen-tos rápidos, quase instintivos, o fizeram levar a mão ao colar e execu-tar um feitiço, mesmo sem realmente ter pensado nisso. Fazendo um movimento vertical com o braço, Meithel criou uma bar-reira de luz maciça. A densa barreira ficou entre eles e a besta no alto da colina. Assim que o contato visual da besta foi interrompido, Mifi-trin desmoronou no chão. Sua respiração estava acelerada e ela pare-cia ter passado por algo extremamente doloroso. Elkens a ajudou a se levantar e constatou se estava tudo bem com ela. Ela tentou falar, mas sua voz não saiu. Estava claro que a experiên-cia dela foi a mais dolorosa de todas. Uma experiência que nem che-gou ao final, que foi interrompida quando Meithel levantou a barreira entre eles e a besta. — Quem… o que é aquilo? – a pergunta de Meithel era a mesma que atormentava a cabeça de todos agora. Pelo visto, Elkens era o único que compreendia o que havia acontecido, por isso todos olhavam para ele. — Não a reconheceram? – Elkens perguntou surpreso. – Nenhum de vocês a reconheceu? Ninguém respondeu. Realmente ele era o único ali que tinha idéia do que estava acontecendo. Elkens abriu a boca para responder, mas nis-so a barreira conjurada por Meithel se desmanchou. Instintivamente todos olharam para o alto da colina, mas se tivessem um segundo a mais para pensar não teriam feito isso; pelo contrário, teriam coberto os olhos, assim como Laserin fez. Mas isso não era necessário, pois não havia mais nada sobre a colina. Ao verem que a besta tinha desa-parecido, novamente entraram em pânico. Ela podia estar em qualquer lugar.

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— Precisamos sair daqui! – disse Elkens em tom firme. Segurou Mi-fitrin pelos braços e a puxou; os outros seguiram logo atrás dele. O Sacerdote da Alma nem se deu conta disso, mas havia tomado a lide-rança pela primeira vez. Nesse momento ele era o líder, ele sabia o que estava fazendo e todos contavam com ele. Elkens era o líder e nem Mifitrin se igualava a ele agora. Caminharam por caminhos sem saída, se depararam com bifurcações, mas Elkens sempre escolhia o caminho a seguir e ninguém se opunha a ele. Andaram rápido, sem correr, mas perto disso. Por meia hora nin-guém disse nada; novamente começou a ventar e ao longe ouviram os roncos das nuvens carregadas. Uma tempestade se aproximava. Mas sob a liderança de Elkens, encontraram uma caverna e ali ele decidiu que passariam a noite. Assim que estavam a salvo, ou assim imagina-vam, Mifitrin segurou Elkens pelo braço, tão forte que o machucou, e perguntou: — O que era aquela coisa? O que ela fez com nós? — Aquela era Argon, a besta mística da Renovação. Ninguém se preocupou em preparar o acampamento. Ninguém tomou a iniciativa de acender uma fogueira, nem de preparar a comida, tam-pouco os leitos onde deitariam; sequer abriram suas bolsas. Todas as atenções agora estavam em Elkens e o que quer que tivessem que fa-zer, iria esperar até que o Sacerdote da Alma dissesse tudo o que que-riam ouvir. — Mas ela não parecia querer nos ferir – disse Kanoles – sequer car-regava armas. Então por que nos fez correr como se nossas vidas de-pendessem disso? — Estar ou não armado não significa nada quando você está lidando com magia – Meithel explicou para o caçador de recompensas. – Não é, Elkens?

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— Sim. Mas eu não corri por mim, nem por nenhum de vocês – disse enquanto olhava para Meithel, Laserin e Kanoles. ‒ Nenhum de nós estava mais correndo perigo quando fugimos, pois todos nós passamos no teste ‒ então ele olhou para Mifitrin, que ainda segurava com for-ça em seu braço. ‒ Eu corri por você, pois você não foi analisada até o fim. Quando Meithel criou aquela barreira entre você e Argon seu tes-te foi interrompido. — Do que está falando? – perguntou Mifitrin com medo, sem afrou-xar o aperto no braço do companheiro, mas sem demonstrar que tinha consciência disso. ‒ Que teste é esse? Elkens colocou suas mãos sobre os ombros de Mifitrin. Ela estava tremendo. O que quer que Argon a tivesse forçado a ver e ouvir, mes-mo que ela não pudesse se recordar disso, foi tão aterrorizante que a Guerreira não conseguia se acalmar. Elkens a encarou nos olhos e ten-tou tranqüilizá-la. Somente quando ela lhe soltou o braço e desviou o olhar, foi que ele recomeçou a falar: — Existem dezessete bestas místicas que caminham sobre a face de Gardwen, cada uma com um propósito. Muitos protetores da Alma dedicaram suas vidas para estudarem essas bestas, mas mesmo assim são poucas as informações que temos. Não sabemos quem as criou, por que ou mesmo quando. Talvez tenham nascido junto com a própria Gardwen. Cada uma das bestas tem um objetivo; três delas protegem cada um dos Elementos da Vida e o restante se certifica de que as coi-sas em Gardwen seguem como devem seguir. “Argon é a besta da Renovação. Nos Domínios da Alma, quando uma alma está precisando muito reencarnar, seja qual for o motivo, é Ar-gon quem as ajuda. Para uma alma poder voltar para Gardwen, outra precisa partir, é um ciclo perfeito e contínuo. Então Argon procura por almas que já cumpriram sua missão em Gardwen, analisa toda a

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vida da alma, passado e futuro, e julga se ela deve ou não continuar a viver. Esse foi o teste pelo qual passamos. Argon olhou no íntimo de nossas almas, nossos sentimentos, dores e medos. Está procurando uma alma que esteja pronta para partir, para permitir que outra alma reencarne”. — Ela queria nos matar? Kanoles parecia não acreditar no que ouvia. Não podia se recordar das coisas que Argon o forçou a ver e ouvir, mas tudo ainda o ator-mentava, mas a idéia de que pudesse ter sido morto naquele instante o atormentava ainda mais. — Sim – Elkens respondeu. – Ela está sedenta. Está desesperada pa-ra fazer uma escolha. Deve haver alguma alma nos Domínios da Al-ma que esteja realmente querendo reencarnar e pediu ajuda à Argon. Mifitrin voltou a olhar para Elkens; embora tivesse parado um pouco de tremer, não parecia menos perturbada do que estava minutos antes. — Então quer dizer que eu poderia estar morta caso Meithel não le-vantasse aquela barreira? Quer dizer que eu poderia ter sido a esco-lha? Elkens confirmou com a cabeça e acrescentou: — O seu teste foi muito mais longo que qualquer outro. Por algum motivo Argon estava demonstrando interesse pelas coisas que viu em sua alma. — E você acha que ela pode me encontrar de novo? Elkens fez um longo tempo de silêncio antes de responder, pois Mifi-trin havia transformado em palavras o medo que ele próprio estava sentindo. — Eu te disse: ela está desesperada para fazer uma escolha. Então sim, ela pode estar procurando por você e confesso que estou com medo

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de ela nos encontrar. Sou um Sacerdote da Alma, não posso desafiar uma besta mística, tampouco impedir que ela faça seu trabalho. E isso botou um ponto final na conversa. Elkens não havia dito isso diretamente, mas o significado de suas palavras era claro: não defen-deria Mifitrin caso Argon voltasse. Talvez fosse por isso que Meithel levantou a barreira de luz entre Mifitrin e a besta, e não Elkens. Tal-vez fosse apenas por Meithel ter a capacidade de agir mais rápido que qualquer um, ou talvez fosse porque realmente Elkens não quis fazer aquilo. Esse pensamento esfriou o relacionamento do grupo, pois sig-nificava que um deles não estava oferecendo ajuda, ao menos naquela situação, mas isso levantava questões. Quem entre eles faria tudo pa-ra proteger o companheiro? O quanto uns se importavam com os ou-tros para se arriscarem por eles? Eram um grupo, ou cada um por si? Essas são questões que podem ou não levar tempo para serem respon-didas, mas na essência é tudo uma questão de confiança. E confiança se conquista, não se impõem. Para serem um grupo de verdade, preci-sariam de um tempo para conquistarem essa confiança uns pelos ou-tros. Meithel saiu da caverna sem dizer nada e voltou três minutos depois, carregando um punhado de gravetos secos que havia encontrado. Ele os juntou no chão, entre algumas pedras, e ali conjurou uma fogueira. Conjurar coisas sólidas não era algo fácil para Meithel, afinal de con-tas não era um Feiticeiro, mas o fogo apresentava uma certa facilida-de desde que houvesse algo para sustentá-lo. Ao redor da fogueira eles se prepararam para dormir logo depois de comerem alguns pedaços de pães, mas não houve conversa alguma en-tre eles. Mifitrin disse que faria o primeiro turno da vigia, talvez por medo de Argon reaparecer, e assim eles passaram a primeira noite após o vilarejo Rismã. O vento uivava lá fora, e trovões eram ouvidos ao

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longe. Mas apesar da desagradável experiência que tiveram por hoje, Meithel conseguiu dormir tranquilamente, pois estiveram enganados. Não estavam sendo seguidos. Aquilo não foi uma armadilha, foi ape-nas o acaso, o destino que os colocou frente a frente com Argon. Defi-nitivamente não foi uma cilada.

A noite foi tranqüila, apesar dos trovões que se aproximavam cada vez mais. Por duas ou três vezes o vento soprou tão forte que a fo-gueira de Meithel precisou ser reacendida, mas fora isso não houve nenhum contratempo. Quando acordaram pela manhã, ainda faltava uma hora para Tunmá nascer, mas isso não fazia a menor diferença. O céu estava completamente negro, coberto por nuvens carregadas que pareciam prestes a romperem-se num dilúvio. E estava frio. Eles se agasalharam como podiam e retomaram a jornada após fazerem o des-jejum. Mifitrin havia se recomposto e retomado a liderança, como se jamais a tivesse perdido. E assim iniciou-se mais um dia de jornada. O cenário por onde andavam parecia relutante em se alterar. Continu-avam caminhando entre pedras, num lugar onde a vida vegetal quase não existia. Um forte relâmpago cortou o céu com um estrondo espan-toso. Laserin sentiu medo, mas não se manifestou. Mifitrin parou de andar de repente e colocou sua bolsa no chão. De lá tirou uma capa de chuva e a vestiu por cima do agasalho. — Vai chover em um minuto. Todos seguiram o seu exemplo, preparando-se para um árduo dia de caminhada. Agora Laserin percebia que seus receios do dia anterior eram verdadeiros: Mifitrin não interromperia a jornada mesmo que ca-ísse uma tempestade. Se o minuto dado por Mifitrin fosse cronome-

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trado estaria correto, pois exatamente um minuto depois a chuva co-começava ruidosamente. Ela estava usando seu sexto sentido a seu fa-favor, a previsão, e assim foram prevenidos. Esse foi um dia extremamente desagradável. Laserin passou frio, fome e cansaço. A chuva ficou mais forte no meio do dia e não voltou a se alterar. Os ruídos da água somados aos trovões e o vento não permitiu que eles conversassem muito, por isso também foi um dia solitário. Es-tava tão escuro que era impossível ver o topo da montanha Monaltag, o que fazia Laserin se perguntar se Mifitrin tinha alguma orientação enquanto os conduzia, embora não duvidasse dela. Várias horas mais tarde encontraram um abrigo abaixo de uma grande pedra que caía sobre outra. Não era tão espaçoso quanto a caverna que passaram a noite anterior, mas era fechado o bastante para os protegerem do vento e da chuva. — Hoje será impossível encontrar gravetos secos – Meithel anunciou. Ele caminhou até o centro do abrigo e tocou seu colar. Concentrando-se por um segundo, conjurou um fogo alvo que flutuou centímetros acima do chão. ‒ Como não há nada para alimentar esse fogo, ele está se alimentando da minha energia, por isso não vou mantê-lo aceso por muito tempo. Assim que comermos eu anularei o feitiço. Isso encerrava aquele dia desagradável de maneira ainda pior: teriam uma noite fria e escura. Após algum tempo todos se deitaram e adormeceram, mas Kanoles fi-cou de vigia. Ele disse que poderia ficar de guarda durante toda a noi-te, mas após discutirem algum tempo ficou decidido que Elkens reve-zaria a noite de guarda com Kanoles. Ficou resolvido que na próxima noite Mifitrin e Meithel é que fariam a vigia enquanto os outros des-cansavam.

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Algumas horas depois Kanoles estava sentado encostado na parede fria de pedra, observando seus companheiros adormecidos e imaginan-do o que ele estaria fazendo ali. Uma vez ou outra ele surpreendeu Mifitrin com um dos olhos semicerrados, observando-o. Kanoles achou engraçado o fato de Mifitrin ser a única precavida o suficiente para não confiar demais nele. Talvez ela achasse que Kanoles apenas con-cordou em vir para roubar o cristal durante a noite, e essa era real-mente a conclusão mais sábia e ele apoiou sua desconfiança, apesar de não comentar nada com ela. Kanoles ainda não entendia o que estava fazendo ali, mas de uma forma ou de outra sabia que estava fazendo a coisa certa. A fogueira de Meithel já havia desaparecido há tempo, mas Kanoles sabia que o fogo poderia atrair alguma fera ou inimigo, por isso se sentiu aliviado. Algum tempo depois Elkens acordou e trocou de lugar com Kanoles, e somente então foi que Mifitrin dormiu de verdade. Elkens ficou aten-to à escuridão lá fora, mas a noite toda foi tranqüila e não se ouviu nenhum sinal de perigo. Na manhã seguinte o céu continuava nublado, mas a chuva havia pa-rado uma hora antes de acordarem, o que animou o grupo. Havia ape-nas uma fina garoa, o que os fez continuarem com suas capas de chu-va, mas já estava bem melhor. — Estou preocupada – Mifitrin disse enquanto faziam o desjejum. – Não vimos nenhum sinal de inimigo desde Argon… — Argon não é inimiga – Elkens a interrompeu. – Pode representar perigo, mas nunca devemos designá-la como inimiga. — Tudo bem – Mifitrin concordou encerrando o assunto de Argon. – O que quero dizer é que o inimigo já deve saber onde estamos e…

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— Para onde estamos indo – Meithel completou. – Creio que estão nos aguardando pelo caminho. Enquanto comiam, Mifitrin caminhou pelo abrigo, eliminando qual-quer vestígio de que estiveram ali. Isso já havia se tornado rotina e ninguém a questionava ou interrompia. Após terminarem de comer, eles se aprontaram e partiram. O chão estava molhado e escorregadio, mas não havia lama, pois ele era feito praticamente de pedra. Por isso as árvores não cresciam por ali. O terreno agora era plano até onde podiam ver, a exceção de uma pe-dra ou outra que havia pelo caminho. Mifitrin e os outros tomavam o cuidado de manter Laserin sempre no meio deles, mesmo sem estarem vendo qualquer sinal de inimigo. Estavam na metade do dia quando se depararam com uma árvore soli-tária, cujas raízes cresciam fundo o bastante para encontrarem água. Ali fizeram a primeira parada para descansarem, pois a árvore os pro-tegia da garoa fina. Enquanto comiam algo, uma nova discussão foi iniciada por Kanoles: — Desde que partimos de Rismã eu ouço vocês falarem de um tal inimigo, mas quem é esse inimigo? — Não viu os kenrauers? – Mifitrin perguntou seriamente. ‒ Eles são os inimigos… — Sim, mas há um mestre por trás daqueles demônios, não há? — Não há dúvidas quanto a isso. Apenas os mais sábios e poderosos sabem de quem se trata esse inimigo. Meu tutor, Morton, sabia, e o seu também Elkens. — O Mestre Nai-Kalimuns… ‒ Elkens disse pensativo, como se es-tivesse se lembrando de alguém que não via há muito tempo. – Sim ‒ concluiu ‒ ele sabe.

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— O nome é Mon – Meithel disse olhando para a escuridão além deles. ‒ Eu ouvi o Guardião da Magia falar dele alguns dias antes de eu ficar preso fora dos Domínios da Magia. Mon é o nome dele. — Isso mesmo – Mifitrin concordou, muito pensativa. ‒ Esse é o nome. Lembro-me de Morton ter falado nele durante a batalha contra os kenrauers quinze anos atrás. Ouvi ele dizer em todas as vezes que voltei no tempo para assistir aquela batalha… — Mas não podemos ficar assim – Kanoles parecia irritado. – Não podemos ficar sem saber de nada. Como iremos enfrentar um inimigo que não sabemos como age? É loucura! — Mas eles sabem – disse Mifitrin com a voz firme. ‒ Nossos tutores sabem e são eles que nos guiam agora. Logo, creio eu, saberemos quem é esse inimigo dos Elementos da Vida e de Gardwen. Eles ficaram em silêncio por algum tempo, enquanto desfrutavam de algumas frutas que ainda haviam em suas bolsas. Eles estavam co-mendo as frutas porque elas estragariam logo, mas os pães ainda agüentariam por semanas. Elkens, Meithel e Mifitrin concordavam com Kanoles que era loucura enfrentar um inimigo sem nem ao menos saber quem ele era, mas diziam que confiavam em seus tutores, e tam-bém sempre lembravam que a missão não era lutar contra o inimigo, apenas levar o cristal até o lago Lushizar e abrir o portal para os Domínios da Magia. Mas apesar disso tudo o inimigo já os havia ata-cado em Rismã e havia muitas chances de eles voltarem a aparecer. — Mas seremos atacados e vocês sabem disso – Kanoles voltou a in-sistir no assunto. – Já fomos atacados. E se os kenrauers voltarem? Não podemos confiar nossas seguranças apenas nesse cristal, o próprio Tûm disse que o cristal decide quando agir… — Mas ele me protegerá! – disse Laserin, falando pela primeira vez naquele dia. – Sempre me protegerá, eu sei disso, pois temos uma liga-

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ção mágica. E se os kenrauers aparecerem eles serão expulsos pelo cristal da mesma forma como aconteceu no meu vilarejo. — E eu não duvido disso – Kanoles afirmou. – Mas como você disse, o cristal protegerá você. Não protegerá a nós… — Estive pensando nisso também – o caçador de recompensas havia tocado num assunto que também estivera perturbando Mifitrin nos últimos dias. – Acho que o cristal só afugentou os kenrauers de Rismã porque Laserin corria perigo. Creio que não faria o mesmo por nós. A discussão foi encerrada nesse ponto, pois ninguém tinha argumen-tos para contradizer Mifitrin. Laserin tentou dizer que o cristal pro-tegeria quem estivesse com ela, mas ela sabia que isso não era verdade. Sem saber o que dizer, os cinco reiniciaram a jornada. Eles prosseguiram sem dizer nada. O terreno continuava plano e com pedras, embora em menor quantidade, e quase completamente despro-vido de vida vegetal. Seguiam sempre em frente, como se o topo da montanha Monaltag estivesse lá guiando eles, mas Laserin era inca-paz de vê-lo. Os cinco caminharam sem pausa alguma durante horas até que a garoa finalmente se extinguiu. Encontraram uma cavidade no chão cheia d’água da chuva e ali reabasteceram seus cantis. Cami-nharam por mais meia hora até que pararam assustados. Enquanto caminhavam descontraídos algo aconteceu. Uma labareda de chamas alvas surgiu no chão diante deles, uma labareda semelhante àquela conjurada por Meithel na noite anterior. Mas desta vez ela não foi conjurada pelo Sacerdote da Magia. Todos olhavam assustados para a labareda que havia surgido do nada e se alimentava do nada. Nin-guém sabia o que significava. Mifitrin já tinha uma das mãos em seu colar, preparada para algum ataque. A labareda passou a dançar e a crescer, como se tivesse sido atirado algum combustível nela. Meithel sabia qual era o combustível:

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magia! A labareda branca correu para os lados rapidamente e os fe-chou dentro de um círculo de fogo. Foi muito rápido e nem mesmo Mi-fitrin teve tempo para fazer qualquer coisa, pois ninguém entendia o que aquilo significava. Estavam presos no interior de um círculo de chamas brancas e ninguém sabia por quê. Estava presa e esta idéia amedrontava Mifitrin. Ela sempre gostou de ter o controle da situação, o que não era possível quando se está sob o controle de outra pessoa. Só de pensar em ficar presa ali dentro ela se apavorava. Não podia deixar isso acontecer. Você é responsável pela vida daqueles que estão com você. Tomou impulso e correu contra a parede de chamas brancas. Iria atravessar tão rápido que não se quei-maria… — FIQUE PARADA, MIFITRIN! E ela parou no meio de sua tentativa de fuga, olhando para Meithel sem compreender. Por mais que ela estivesse apavorada, viu que Meithel estava muito mais. Ele não disse nada, nem a encarou. Esta-va olhando através das chamas procurando por alguma resposta. Es-tavam presos por um fogo alvo. Alvo, esta era a cor da Magia; possi-velmente era algum conhecido de Meithel que estava por trás daquilo e ele sentiu medo. Sentiu medo ao pensar em Shiron, o Cavaleiro da Magia que havia atacado o Guardião e que provavelmente estava por trás de toda aquela confusão. Se fosse Shiron quem estava fazendo is-so eles seriam derrotados. Não tinham chances de enfrentar um dos nove Cavaleiros da Magia, um dos mais poderosos, se não o mais po-deroso. — O que está acontecendo, Meithel? – Kanoles estava mais confuso que com medo. Por não compreender a magia, a idéia de um fogo os rodear não o assustava tanto. Mas definitivamente ele não compreen-

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de a magia e nem imagina o real perigo disso. Agora sim haviam caí-do em uma armadilha. Esta era uma cilada mágica! Meithel e Mifitrin tinham as mãos em seus colares. Elkens não sabia o que fazer, mas se certificou de ficar com Laserin para protegê-la. — Quem está ai? – perguntou Meithel para alguém invisível além das chamas. ‒ QUEM ESTÁ AI? Ninguém respondeu imediatamente, mas uma risada foi ouvida vários segundos após a pergunta. Uma risada insana, forçada, sem emoção alguma. — Não me conhece mais, Meithel? A voz petrificou Meithel por um momento, mas logo ele se viu alivia-do. Sentiu uma alegria tão grande, um calor que encheu uma parte do seu coração que estava vazia há dias. Seus olhos brilharam de emoção quando alguém surgiu do outro lado das labaredas. Era um protetor da Magia, assim como Meithel, mas suas vestes alvas não eram de Sa-cerdote, eram de Feiticeiro, assim como o colar que pendia em seu pei-to. O medo que Meithel sentia desde que seu tutor morreu foi destruído, pois a prova de que seu amigo estava vivo estava em carne e osso di-ante dele. — Mudriack, meu amigo. Que bom ver você.

O Feiticeiro aparentava ter praticamente a mesma idade que Mifitrin e os dois Sacerdotes, algo em torno de trinta anos, não mais. A expres-são competitiva que Meithel tanto conhecia estava em seu rosto, as-sim como o sorriso de alguém que diz constantemente: Pode fazer me-lhor? Este é Mudriack, o Feiticeiro da Magia que Meithel considera

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como um irmão. A pessoa que sempre esteve ao seu lado, que sempre lhe ajudou e lhe desafiou. Talvez por isso Meithel fosse tão bom em tantas coisas que fazia, porque sempre teve um adversário à altura. Ele e Mudriack sempre tentaram um superar o outro, não por rivali-dade, mas para mostrar para si mesmos até onde podiam ir. Meithel não tinha descanso, mas Mudriack também não; era um desafio atrás do outro, tudo se tornava uma competição e assim foi a vida dos dois desde que se tornaram protetores. Mudriack não olhou para os outros, apenas continuou encarando Meithel com aqueles olhos. Aí vem outro desafio, Meithel pensou sor-rindo abertamente. Mas não havia tempo para isso. Mudriack havia se juntado ao grupo e ajudaria Meithel a vingar a morte de seu tutor e colocar as coisas em ordem nos Domínios da Magia. A alegria de Meithel era radiante. Estava ao lado da pessoa mais importante na sua vida e nada poderia estragar esse momento. — Isso é um desafio, Mudriack? – perguntou Meithel ainda sorrin-do, contendo uma vontade de rir abertamente e ir correndo abraçar o amigo. – Não temos tempo para isso agora. Precisamos vingar a morte de Lakar. Fico contente que tenha se juntado à nós. Mas Mudriack não fez nada. Não moveu um músculo sequer e não demonstrou nenhuma intenção de libertá-los do círculo de chamas. Meithel ficou confuso. — Pode nos soltar, Mudriack. Eles são meus companheiros de missão. Mas o amigo não fez nada. Ele encarou Meithel com as sobrancelhas arcadas e fez sinal para que fizesse algo. — Isso não é um desafio, Mudriack – disse ele irritando-se um pouco. ‒ Liberte-nos desse fogo… Mas ele não fez nada a não ser dizer: — Não consegue se livrar, Meithel?

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Só então Meithel compreendia: aquilo realmente era um desafio. Mudriack estava desafiando-o a sair de dentro das labaredas alvas e ele não sabia por quê. Por que Mudriack estava agindo de modo tão estranho? — Mudriack – Meithel começou, mas o que quer que fosse dizer mor-reu em sua garganta. Estava sem saber o que dizer e, aparentemente, sem saber o que pensar também. O que estava acontecendo era ilógico, não podia ser real. Mudriack podia estar apenas levando suas brinca-deiras a sério, como sempre fazia, podia estar apenas se divertindo às custas de Meithel, mas… aquele olhar! Meithel conhecia aquele olhar perfeitamente. Era um desafio! ‒ NÃO TEMOS TEMPO PARA ISSO, MUDRIACK. SOLTE-NOS AGORA! TEMOS MUITO O QUE FAZER… — Não recebo ordens suas, Meithel. Ninguém ousava se meter na discussão dos dois amigos, mas todos percebiam que alguma coisa estava errada. Como aqueles dois podiam se considerar amigos? Neste momento eram tudo, menos amigos. Pare-ciam mais dois rivais, que são capazes de qualquer coisa para se so-bressair sobre o outro. Pelo menos era o que Mudriack parecia. Kanoles estava com a mão sobre o cabo de Sangrini, pronto para sacar a espada negra caso algo acontecesse. — Eu recebi ordens para vir até aqui te encontrar, Meithel. Recebi ordens para vir buscar você e o cristal. Como sabe sobre o cristal?, foi a primeira coisa em que Meithel pen-sou. Como poderia saber? Mas ele disse que havia recebido ordens, por isso enfrentá-lo estava fora de cogitação. Se ele foi ordenado a vir até ali, só poderia ter sido por Zander, o Guardião da Magia, então esta-va tudo bem. Meithel não precisaria enfrentá-lo como chegou a cogi-tar em seu íntimo.

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Dando as costas ao amigo, Meithel caminhou até onde Laserin es-tava, ainda sob a proteção de Elkens e lhe pediu algo: — Me dê o cristal, Laserin – seu tom de voz era bondoso. Laserin ficou receosa em entregar o cristal, mas não disse nada. Meithel lhe estendeu a mão, pedindo que ela lhe entregasse a relíquia da Magia que ela carregava. Laserin soltou sua bolsa de couro no chão e tirou o cristal lá de dentro, mas não conseguiu entregá-lo para o Sacerdote. Com dificuldade e relutância, e após muito tempo medi-tando, ela finalmente estendeu a mão para que ele pegasse o que pe-diu. — NÃO! – Mifitrin gritou, interpondo-se entre Meithel e Laserin. — Mifitrin! ‒ exclamou Meithel sobressaltando-se. – Ele veio sob ordens do Guardião da Magia. Não podemos lhe negar o cristal, temos a obrigação de entregá-lo. Mifitrin não acreditava no que ouvia. Não acreditava que Mudriack havia vindo sob ordens de Zander. Havia algo muito errado ali, ela podia sentir; algo tremendamente errado. — Ele não está dizendo a verdade, Meithel – disse ela tentando abrir os olhos do companheiro. ‒ Não percebe isso? Os Domínios da Magia estão trancados, como ele pode ter vindo de lá? E se ele realmente está sob ordens do Guardião, deve ter o pingente real… O que Mifitrin dizia era verdade e sua falta de raciocínio atingiu Meithel de forma inesperada. Parecia finalmente ter acordado para uma realidade que relutava em aceitar. Mas ela estava ali, bem diante dele. Estavam lhe esfregando isso na cara e ele não queria enxergar. — Onde está seu pingente real, Mudriack? – perguntou o Sacerdote virando-se para o amigo novamente. ‒ Se é verdade que Zander te en-viou até aqui deve ter o pingente real, não tem? Ou sua missão não é oficial?

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Mudriack riu com a pergunta, uma risada fria, insana e sem emoção. Meithel não reconhecia seu amigo. — Como você é tolo, Meithel. Você acha que Zander me mandou aqui? Eu não sigo mais ordens do Guardião da Magia. Entregue-me o cristal e deixarei que saiam do círculo de chamas… — Não, Mudriack. Eu não estou entendendo o que está acontecendo, e gostaria que você me explicasse. Mas não me levará, tampouco o cristal. — Você não está em posição de negar nada, Meithel. O que aconteceu com o seu raciocínio lógico? Veja a situação em que se encontra e pen-se melhor. Sabe que fogo é este que está te cercando? Este é o Fogo da Magia, um feitiço que está muito além da sua compreensão e poder… — E se não me engano também está longe do seu poder! – agora Meithel usava o tom de desafio, respondendo à altura. ‒ Eu me lem-bro bem que você tinha apenas cinco pingentes em seu colar de Feiti-ceiro quando saí dos Domínios da Magia. E se não me engano um Feiticeiro só pode aprender a usar esse feitiço avançado ao atingir o nono pingente… — Isso era antes, mas as coisas estão diferentes agora. Novos tempos começaram. Ainda continuo com cinco pingentes em meu colar, mas isso não é tão importante quanto foi antes. Logo estaremos indepen-dentes de nossos colares, pois nosso poder fluirá em nosso sangue… — O que isso quer dizer, Mudriack? Trapaça? — Chame como quiser, mas este é o primeiro passo para a Revolução Elementar. — IDIOTA! – berrou Meithel tão irritado quanto nenhum deles ha-via visto. ‒ Não é possível que esteja dizendo isso, Mudriack, não de-pois de tudo o que estudamos. De todos os livros que lemos. Isso só

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poderá nos levar ao Desequilíbrio Elementar, sabe o que isso signifi-ca, sei que você sabe. Será o fim… Mifitrin e Elkens também ficaram chocados com o que ouviram do Feiticeiro. Todos os protetores devem ter conhecimento do que isso significa, pois todos devem lutar contra isso. Mudriack antecipou a manipulação do Fogo da Magia, algo que deveria levar algum tempo para aprender. Passou por cima de muita coisa e destruiu o ciclo de aprendizado. Essa quebra do ciclo pode parecer insignificante, mas ela trás conseqüências… Pessoas muito mais poderosas que ele tinham que estar envolvidas nisso, pois jamais poderia ter feito sozinho. Nos pergaminhos ancestrais está escrito que o Desequilíbrio Elementar po-de destruir os Elementos da Vida e conseqüentemente toda Gardwen sofrerá. A luta pelo poder é o que pode causar esse desequilíbrio, pois um Elemento pode tentar se sobressair sobre o outro. O que Mudriack fez para manipular o Fogo da Magia é um exemplo concreto da busca pelo poder e isso prova que o desequilíbrio pode estar próximo. Elkens, Meithel e Mifitrin precisam entrar o quanto antes nos Domínios da Magia e descobrir o que há de errado por lá, pois algo está tremenda-mente errado e Mudriack é a prova disso. — Quem está fazendo isso, Mudriack? Quem está por trás de toda essa sujeira e por que você entrou nela? ‒ Meithel tinha um tom de súplica na voz. Ainda não conseguia acreditar que seu bom e velho amigo estivesse fazendo aquilo. Mudriack continuava sorrindo como um maníaco, rindo do espantou de Meithel, o que o irritou novamen-te: ‒ ME RESPONDA MUDRIACK: QUEM ESTÁ FAZENDO ISSO? — Os quatro Sábios estão mortos – Mudriack recitou aquelas pala-vras como se estivesse repetindo algo dito por outra pessoa. Sua voz não trazia qualquer tipo de emoção, parecia completamente indiferen-

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te ao que dizia. ‒ O Guardião está aprisionado. São os nove Cava-leiros que controlam tudo lá dentro agora. Está tudo nas mãos deles e foram eles que me ordenaram que viesse aqui pegar o cristal. Sou leal a eles agora.

Um relâmpago cortou o céu, e o estrondoso som do trovão veio logo a seguir. A tempestade que tanto os ameaçou finalmente chegou. As nuvens carregadas romperam-se, derramando sobre eles tanta água que parecia preceder um dilúvio. O vento forte fazia a chuva cair num ângulo quase horizontal, que chegava a arder quando se chocava com a pele. O uivo do vento era ininterrupto. Os raios pareciam cair um após o outro. Finalmente a tempestade chegou, mas mesmo o vento e a chuva combinados não eram o bastante para apagar o Fogo da Ma-gia, que parecia não sofrer nada com a fúria da natureza. Meithel perdeu o chão. Suas pernas bambearam e foi uma surpresa ele conseguir se manter em pé. Os quatro Sábio estão mortos, disso ele ti-nha certeza; seu tutor era um dos quatro. Quanto ao Guardião estar aprisionado, isso também poderia ser verdade. Mas e os nove Cavalei-ros? Teriam mesmo todos os Cavaleiros se voltado contra a Magia? E Kam, o Cavaleiro de quem Meithel sempre gostou, com quem tem uma amizade que só perde para a amizade que tem com Mudriack. Ou ti-nha, Meithel nem sabe mais o que pensar. — Eles mataram nosso tutor, Mudriack! Como pode estar do lado de-les? — Eles mataram muita gente, Meithel. Mas tudo em nome de uma causa maior.

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A cabeça de Meithel não parava de pensar nem por um segundo. Elaborava teorias, pensava em probabilidades, tentava encontrar res-postas coerentes, mas ele não conseguia aceitar muitas coisas. Talvez todos os Cavaleiros realmente tivessem se rebelado contra Zander; Meithel acreditava nisso, afinal de contas, julgava que Mudriack se-ria o último a apoiar algo assim, mas ali estava ele. Mas ainda assim havia coisas que não se encaixavam. Em sua cabeça as perguntas pai-ravam sem respostas, mas havia respostas das quais ele nem ao menos sabia qual era a pergunta. Definitivamente as coisas não se encaixa-vam e a cada segundo Meithel alimentava esperanças de que seu ami-go estivesse mentindo. — Duas coisas me obrigam a duvidar de você, Mudriack – disse Meithel após um bom tempo meditando. – A primeira delas é que os Domínios da Magia estão trancados, então mesmo que tudo seja ver-dade, não haveria como você ter vindo de lá. A segunda delas é o fato de você ter dito que todos os Cavaleiros participam dessa rebelião con-tra a Magia. Você sabe tão bem quanto eu que Kam jamais participa-ria disso. Kam é o quarto Cavaleiro da Magia, um dos melhores amigos de Meithel dentro dos Domínios da Magia. Inclusive foi tutor de Meithel em diversas ocasiões; ele próprio ensinou a Meithel as artes de luta que ele conhecia. Todos os Cavaleiros pareciam ser justos, mas Kam é o único que Meithel conhece de verdade para poder afirmar que ele jamais participaria de algo assim. Mudriack não deixava seu sorri-so malicioso de lado sequer um segundo, o que fazia a segurança de Meithel se abalar em relação a tudo que pensava e acreditava. — As coisas mudam, Meithel – disse o Feiticeiro da Magia que ainda estava do outro lado das chamas alvas. – Nem mesmo eu acreditava que um dia participaria de tudo isso, mas aqui estou eu, não é mesmo?

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Kam pensa da mesma forma que eu. E quanto ao fato de os Domí-nios da Magia estarem fechados, eu não saí pelo portal principal. Saí por um dos portais paralelos… — MENTIRA! – Mifitrin gritou entrando na conversa e desafiando o possível novo inimigo. – O Mensageiro do Tempo Arkas foi até cada um dos portais paralelos e constatou que realmente estão fechados. Você não estava nos Domínios da Magia quando ele foi trancado, es-tá mentindo. Mudriack olhou para Mifitrin e analisou-a por alguns segundos, en-tão respondeu: — Os portais estão trancados porque não queremos que nenhum in-truso entre lá por enquanto. Mas foram os nove Cavaleiros que tran-caram os portais e eles podem abrir quando quiserem. Foi assim que saí e vim até aqui. Uma forte rajada de vento surgiu de repente, mas as chamas alvas não se abalaram. Durou apenas alguns segundos, então se foi. — Me entregue o cristal, Meithel – Mudriack pediunovamente, de-monstrando um pequeno tom de impaciência na voz. — NÃO! – gritou Meithel ainda mais impaciente. – VOCÊ NÃO O TERÁ! Mudriack fechou os olhos ao ouvir isso, como alguém que perde a pa-ciência e tenta se conter. O sorriso malicioso havia desaparecido de seu rosto, dando lugar à uma expressão de descontentamento. Ainda de olhos fechados, ele tocou seu colar com uma das mãos e com a outra fez um gesto como se estivesse tentando empurrar algo invisível. Ime-diatamente as chamas obedeceram seu desejo e seguiram o movimento de sua mão, caminhando lentamente em direção à Elkens e os outros e diminuindo o tamanho do círculo. Todos caminharam ao centro do cír-culo, tentando ficarem o mais longe possível das chamas. Mas logo

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Mudriack baixou a mão e as chamas pararam de avançar. Ele abriu os olhos e o sorriso voltou aos seus lábios quando ele viu a expressão de pânico nos olhos de Meithel e dos outros: — Você deve saber Meithel, creio eu, o que o Fogo da Magia é capaz de fazer, mas explicarei para os seus colegas. O Fogo da Magia é ca-paz de queimar qualquer forma de magia existente. Vocês não poderão atravessá-lo, do mesmo modo que nenhuma magia que lancem daí. Se tentarem me atacar, o feitiço será queimado assim que tocar o fogo. Mifitrin resolveu testar o que Mudriack dizia. Tocou seu colar e con-jurou centenas de fagulhas anis no ar, que em um segundo voaram contra Mudriack. As fagulhas iriam perfurar todo o corpo do Feiticei-ro, mas ele nem tentou se defender, pois nenhuma fagulha atravessou as chamas brancas. Elas se queimaram assim que tocaram o fogo. — Pode tentar, Guerreira do Tempo – disse Mudriack rindo. – Fica-rei assistindo suas tolas tentativas… Mas Mifitrin não tentou mais. Estava convencida de que Mudriack estava com a razão. — Me entregue o cristal, Meithel, ou serei obrigado a fazer o fogo re-cuar ainda mais contra vocês… — Você não pode controlá-lo, não é Mudriack? – Meithel o inter-rompeu abrindo um sorriso de ameaça. – Sei que não pode controlá-lo. Você pode ter aprendido a usá-lo, mas seu colar não aprendeu. Você rompeu o processo de aprendizado! Será punido… Ao ouvir isso, Mudriack novamente fez o fogo avançar contra eles, mas parou logo em seguida. Mudriack provou que dominava o fogo o suficiente para queimá-los. — Você sempre adorou me humilhar, não é verdade Meithel? Mas quem venceu agora? Quem? Prove que é melhor que eu. Crie um Fogo da Magia para me enfrentar!

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— Ambos sabemos, Mudriack – respondeu Meithel sem se exaltar – que não posso criar um Fogo da Magia, assim como você também não deveria. Mesmo que eu criasse um fogo, dois fogos iguais não compe-tem, unem-se… — E o mais forte o controla – completou Mudriack sorridente. – Não terão escapatória, Meithel. Queimarei todos vocês. Creio que o meu fogo não é forte o bastante para queimar o cristal, portanto depois de acabar com vocês, levarei o cristal da mesma forma. — Então porque não faz? – Meithel provocou-o. – Acabe com tudo de uma vez… — Quero me divertir, Meithel. Quero ver terror em seu rosto para compensar minhas humilhações… ‒ Mudriack estava assumindo um tom de voz insano, mas Meithel não prestava mais atenção nele. Mi-fitrin estava comunicando-se telepaticamente com Meithel. Deve haver alguma maneira de sairmos daqui, disse Mifitrin em sua mente. Não vejo nenhuma maneira. Não podemos usar magia, pois ela não passará pelas chamas… Eu acho que posso nos tirar daqui, disse Elkens entrando na conversa. Mas precisarei de tempo… — O QUE ESTÃO FALANDO? – perguntou Mudriack com raiva. O Fogo da Magia agora estava atrapalhando ele também, pois não ti-nha como usar a telepatia para ouvir a conversa dos três. Seu feitiço não podia atravessar o fogo. Eu atrasarei Mudriack por algum tempo, disse Mifitrin telepatica-mente como se a conversa não tivesse sido interrompida. Comece ago-ra, Elkens. Imediatamente Elkens começou a se concentrar em seu colar. Ele con-centrou-se nos Domínios da Alma, onde sabia que havia alguém espe-

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rando para ajudá-lo. Era a segunda vez que executaria este feitiço. Da primeira vez usou contra o bando de Kanoles, na primeira noite que passou fora dos Domínios da Alma. Elkens estava tentando invo-car sua alma-protetora, Nai-Peleguir. Não era um feitiço complicado, mas estavam muito longe de qualquer portal para os Domínios da Al-ma e Elkens precisaria de tempo para guiar Nai-Peleguir até ali. Enquanto isso, Mifitrin tirou um colar de baixo de suas vestes. Não era o seu colar de Guerreira do Tempo, era um colar muito mais belo. Era um colar de Mago do Tempo; o colar que o próprio Morton deu para Mifitrin. Ela passou a concentrar-se nesse colar, esforçando-se ao máximo para elevar sua concentração. Embora a concentração fos-se seu grande ponto fraco, Mifitrin dependia dela agora. Você é res-ponsável pela vida daqueles que estão com você. Ela fechou os olhos e tentou sentir a essência do colar de Morton, quase esquecendo-se do seu próprio colar. Precisava reencontrar a magia que ainda existia na-quele colar, os últimos vestígios de magia que Morton jamais chegou a usar. Precisava ativá-lo mais uma vez, depois de tantos anos em desu-so. Concentre-se Mifitrin, preciso elevar minha concentração… só mais um pouco. Mais uma rajada de vento e algo se chocou com força contra o rosto de Mifitrin. Talvez fosse uma pedra ou algum graveto, mas ela nem se importou quando um filete de sangue escorreu pela lateral do rosto. Estava tão concentrada no colar de Morton que sequer reparou que foi ferida. O sangue que escorria era lavado pela chuva e levado pelo vento. Os minutos se passaram antes de algo finalmente acontecer, mas en-tão Mifitrin sentiu o colar de Morton se aquecer e o feitiço em que es-tava concentrada finalmente se concretizou. No interior das chamas

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brancas, outras chamas apareceram, mas não eram brancas. Eram anis como o céu durante uma tarde sem nuvens, e contornaram as chamas de Mudriack pelo lado de dentro, formando um novo círculo. Mifitrin havia conjurado o Fogo do Tempo. — O que acha que está fazendo? – perguntou Mudriack assustado, encarando Mifitrin. — Assim como você, também conjurei um Fogo Mágico – respondeu Mifitrin com dificuldades perante o esforço que lhe custava manter as chamas acesas. — Uma Guerreira dominando um Fogo Mágico? – perguntou Mu-driack descrente. – Mas os fogos são da classe dos Feiticeiros… — Para o seu conhecimento – disse Mifitrin forçando um sorriso ao ver o assombro de Mudriack – fui Aprendiz de um dos maiores Magos que o Tempo já teve. — Também trapaceando? – perguntou o Feiticeiro. – Desrespeitando as sagradas leis dos pergaminhos ancestrais que vocês tanto prezam? Pensei que rejeitasse a minha atitude. — Não estou trapaceando – respondeu a Guerreira seriamente. – Vi meu tutor executando o Fogo do Tempo dezenas de vezes e aprendi a teoria. Mas não estou trapaceando, pois é a primeira vez que executo esse feitiço e não estou utilizando o meu colar. Ele não me permitiria isso, então estou utilizando o colar de meu tutor Morton, que me deu de livre e espontânea vontade antes de morrer. Não estou desrespei-tando as leis dos pergaminhos ancestrais, pois o colar me permite… Laserin e Kanoles assistiam tudo aquilo sem dizer nada. Estavam muito impressionados com tudo o que viam, mas igualmente assusta-dos. Kanoles montava guarda ao lado da garota, pronto para protegê-la caso o estranho Mudriack fizesse algo para pegar o cristal.

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Enquanto isso, Elkens estava concentrado em seu colar e não ouvia nada da discussão entre a Guerreira e o Feiticeiro. Estava em um ní-vel de concentração tão elevado que sequer sentia a chuva e o vento batendo em seu rosto. Nai-Peleguir, ele estava chamando mentalmente. Nai-Peleguir, preci-so de sua ajuda. Por favor… O feitiço da telepatia exigia que a pessoa estivesse vendo a outra ou que soubesse exatamente onde ela estava, o que exigia mais esforço, mas o mesmo não se aplicava com as almas-protetoras. Elkens sabia que ela estava nos Domínios da Alma, mas não sabia exatamente on-de ela estava. Mas mesmo assim ele podia se comunicar com Nai-Peleguir, pois ela era sua alma-protetora e tinham uma ligação mágica entre eles; ela estava o tempo todo esperando que ele pedisse por aju-da, pronta para ajudá-lo em qualquer circunstância. Nai-Peleguir logo atendeu ao seu chamado e assim Elkens passou a guiá-la até onde ele estava. Mifitrin e Mudriack ainda se encaravam, cada um concentrado em seu Fogo Mágico. O medo de Mifitrin desde que partiram naquela missão era de não conseguir proteger seus companheiros. A voz de seu tutor Manjourus ainda ecoava em sua mente. Você é responsável pela vida daqueles que estão com você. Mas agora, finalmente, tudo estava nas mãos de Mifitrin e ela tinha a chance de provar que era capaz, que poderia salvar todos eles. Ela sentiu seu coração inflar-se com es-sa possibilidade e, apesar da situação em que se encontravam, apesar de todo o perigo, estava contente. — Qual é a habilidade do Fogo do Tempo? – perguntou o Feiticeiro voltando a sorrir.

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— O Fogo do Tempo tem muitas habilidades – informou Mifitrin – que não são importantes para mim agora. Eu estou apenas contando com a habilidade de o Fogo do Tempo arder eternamente! Com essa noticia o sorriso de Mudriack foi arrancado violentamente do seu rosto. Por muito tempo Mudriack ficou sem saber o que dizer, mas logo o sorriso voltou a brotar em seu rosto: — Então pelo que me disse, é a primeira vez que executa o Fogo do Tempo, não é? Realmente acha que ele irá arder para sempre? Logo o meu fogo queimará o seu, pois você não o domina… — Assim como você! – interrompeu Mifitrin em tom de desafio. – Vamos ver quem agüentará mais… Mifitrin estava jogando o jogo de Mudriack. Se ele quer desafio, terá um. E é bom que esteja acostumado a perder, pois eu não estou.

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♦ Mudriack novamente fez um gesto com as mãos, empurrando as cha-mas brancas e as chamas anis em direção ao centro do círculo, onde todos estavam. Mifitrin fez o mesmo gesto com as mãos e imediata-mente as chamas pararam de avançar. As chamas brancas e chamas anis eram impulsionadas em direções opostas e ficavam oscilando en-tre avançar e recuar. Enquanto Mifitrin e Mudriack disputavam quem tinha maior contro-le sobre as chamas, Elkens continuava concentrado em Nai-Peleguir e não via nem ouvia nada. Seu feitiço funcionava normalmente porque não precisava atravessar as chamas de Mudriack. O feitiço ia direta-mente até Nai-Peleguir, sem percorrer o espaço que os separava. Os dois estavam ligados um ao outro, a mesma ligação que Kalimuns dis-se que nasceu entre eles da primeira vez em que a alma ajudou o Sa-cerdote. As chamas brancas estavam empurrando as chamas anis lentamente, e aos poucos eles iam ficando encurralados. Mifitrin caiu de joelhos e esforçou-se o máximo que pôde, então conseguiu fazer as chamas pa-rarem e recuarem contra Mudriack por algum momento, mas ela não resistiria por muito tempo. Sua reserva de energia se esgotava numa velocidade assustadora. Escute-me Kanoles, tenho um plano. O caçador de recompensas assus-tou-se ao ouvir a voz de Meithel em sua mente. Meithel estava comu-nicando-se telepaticamente com Kanoles para que Mudriack não ou-visse. Acho que Mudriack ainda não percebeu que você e Laserin são humanos. Nenhum de vocês está usando vestes de protetores, mas El-kens também não está. Mudriack viu o colar de Elkens e sabe que ele

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é um protetor, por isso deve estar achando que vocês também estão disfarçados… Kanoles ouvia tudo atentamente, tentando agir normalmente para que Mudriack não percebesse. Acho que sei como tirar vantagem disso, continuou Meithel. O Fogo da Magia não poderá queimá-lo, pois você não é um protetor. Por achar que você não é um humano assim como nós, Mudriack não está esperando que você atravesse as chamas. Aproveite enquanto ele está tão concentrado no seu fogo para derrotar Mifitrin e atravesse as chamas para atacá-lo. Se isso acontecer ele irá se desconcentrar e o Fogo da Magia poderá apagar. Laserin não percebeu nada de estranho, apenas continuava amedron-tada com as chamas anis e alvas que hora recuavam, hora avançavam contra ela. Segurava a bolsa de couro com os dois braços, abraçando o cristal contra o peito para protegê-lo. Mas de repente ouviu a voz de Meithel em sua mente e assustou-se: Laserin, prepare-se para correr. Você e Kanoles podem atravessar o fogo de Mudriack normalmente. Kanoles irá atacar Mudriack. Quan-do ele correr para atacá-lo, você deve correr para o lado oposto, atra-vessar os fogos, correr para o mais longe que puder e ficar escondida. O fogo de Mudriack não é forte o bastante para queimar o cristal, en-tão não acontecerá nada com ele. Kanoles apertou os ombros de Laserin e afastou-a para detrás dele. À frente da garota, ele segurou com força o cabo de sua espada negra e esperou pelo aviso de Meithel. AGORA! Kanoles levantou sua espada negra e, gritando, avançou contra Mu-driack a toda velocidade. Assim como Meithel dissera, Kanoles atra-

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vessou os dois fogos sem se ferir, nem ao menos chegou a sentir calor algum. Mas o mesmo não aconteceu com sua espada… Enquanto atravessava as chamas, a espada de Kanoles esquentou-se de tal maneira em suas mãos que ele teve de soltá-la. Kanoles atraves-sou as chamas, mas sua espada não! Mudriack percebeu o que estava acontecendo. Percebeu que Kanoles não era um protetor como ele estava acreditando, mas era fácil acabar com isso. Conjurando uma grande esfera de luz alva, Mudriack ati-rou-a contra Kanoles, que foi atirado longe quando o feitiço explodiu e caiu inconsciente no chão. A primeira parte do plano de Meithel fa-lhou. Ainda dentro dos círculos de chamas, Laserin correu para o lado opos-to que Kanoles e se preparou para atravessar os dois Fogos, mas essa parte do plano também falhou. Meithel ficou abismado pelas coisas que ignorava, coisas que descobriu simultaneamente numa hora em que não poderiam acontecer… A jovem atravessou as chamas anis normalmente, mas assim que atingiu as chamas brancas soltou um gri-to de dor e caiu de costas. Laserin chorou enquanto pressionava o bra-ço esquerdo que ardia. Laserin se queimou! Enquanto conjurava a esfera para atacar Kanoles, Mudriack se des-concentrou do Fogo da Magia e Mifitrin aproveitou para reagir. Com as duas mãos erguidas ela fez o Fogo do Tempo avançar, empurrando as chamas brancas para longe deles. — MALDITA! – gritou Mudriack com raiva. Seus olhos brilhavam de fúria quando ele empurrou as chamas com as duas mãos. Eu vou conseguir, esse era o único pensamento de Mifitrin e ela real-mente acreditava nisso. Estou conseguindo. Vou proteger a todos. Es-tou cumprindo minha obrigação, senhor Manjourus. Estou protegendo eles…

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Sua alegria era inigualável. Estava se superando, estava sendo ca-paz de proteger não somente a si própria, mas todos os outros que de-pendiam dela. Passou tanto tempo realizando apenas missões sozinha, mas agora via que também podia agir em grupo. Eu vou conseguir… Mas a raiva de Mudriack explodiu ao ver que estava sendo derrotado no seu próprio desafio, e junto com ela também veio sua última reser-va de magia. O Fogo da Magia cresceu violentamente, duplicando de tamanho. O fogo de Mifitrin, pelo contrário, passou a reduzir. O Fo-go da Magia era muito mais poderoso e estava queimando a magia do Fogo do Tempo. Eu vou conseguir… — MORRAM! – Mudriack usou toda a energia que tinha e fez suas chamas avançarem rapidamente contra o grupo que parecia indefeso. Mifitrin, ainda de joelhos, gritou enquanto se esforçava inutilmente para deter as chamas de Mudriack. Mas o Fogo da Magia estava muito perto e ela não conseguia sequer fazê-lo parar. Eles seriam queimados e mortos caso o fogo branco avançasse mais um metro. Vo-cê é responsável pela vida daqueles que estão com você. — Está chegando – murmurou Elkens feliz. O Fogo da Magia aproximava-se cada vez mais e Mifitrin já sentia o calor intenso das chamas brancas. Meithel ajudou Laserin a ficar em pé para afastar-se das chamas, mas não adiantava, pois logo todos se-riam queimados. Mudriack ria loucamente dos esforços fúteis de Mifi-trin e as chamas brancas não paravam de avançar. Então Mifitrin não agüentou mais. Justo quando achou que iria se superar, quando estava feliz por acreditar nisso, falhou. Se ela conse-guisse chorar, esse seria o momento em que faria isso. Estava confian-te de que poderia protegê-los, de que poderia salvá-los usando o colar de Morton, mas falhou. Não conseguiu. Você é responsável pela vida

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daqueles que estão com você, mas ela falhou. O Fogo do Tempo apa-gou-se e Mudriack ficou livre para queimá-los, o que não hesitou em fazer… Mas um rugido cortou o céu noturno! O rugido profundo amedrontou Mudriack. O Feiticeiro da Magia não sabia de onde o rugido vinha, mas ficou amedrontado e procurou a toda a volta. Mais uma vez o rugido se fez ouvir e ficou claro que alguma fera estava se aproxi-mando numa velocidade assombrosa. O rugido se sobressaia aos tro-vões, mesmo os piores deles. Ninguém sabia onde a fera estava, a não ser Elkens, que podia senti-la. Estava bem próxima… Um terceiro rugido foi ouvido, e a este último rugido todos viram sua origem. Mudriack virou-se para trás assustado. Num segundo viu um grande e estranho felino formado por luz verde vindo em sua direção, no outro foi jogado de costas quando a enorme pata atingiu seu peito. O felino, por mais que corresse sobre suas patas, não parecia tocar o chão. Por onde passava deixava um rastro de luz verde. Mifitrin reconheceu aquela fera com a forma de um grande felino. Era um rangar, mas não era como os outros rangars, pois este era formado por luz, assim como uma alma. No desespero de Mudriack, seu Fogo da Magia minguou e minguou até que finalmente se extinguiu. Estavam livres! Todos observaram Mudriack se levantar do chão e tentar se defender de um novo ataque. Tentou atacar a estranha fera, mas qualquer feitiço que ele usasse não funcionava contra a fera. O rangar de luz brincava com o Feiticeiro desesperado, correndo em círculos em volta dele e atacando-o quando menos esperava. — ELKENS! – gritou Mifitrin. – O QUE ESTÁ ESPERANDO? PRECISAMOS CORRER.

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Meithel estava carregando o corpo de Kanoles, enquanto Mifitrin ajudava Laserin a manter-se em pé para correr. Elkens começou a cor-rer junto à eles, mas deu uma última olhada para trás e encarou o rangar. Por um momento a forma do rangar foi substituída pela forma de uma grande e bela ave, a verdadeira forma de Nai-Peleguir, forma-da pela mesma luz verde que emanava de seu interior. A bela ave en-carou Elkens por um momento, mas logo voltou a assumir a forma de um rangar e atacou Mudriack com as patas mais uma vez. Estava dando a eles a oportunidade de fugirem. Elkens virou-se e começou a correr atrás dos outros. Estava feliz. Re-encontrou Nai-Peleguir e foi salvo por ela. Realmente, assim como Kalimuns disse, nasceu uma forte ligação entre Nai-Peleguir e ele. Elkens estava muito feliz…

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