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1 e 2Crônicas Introdução e comentário Martin J. Selman SÉRIE CULTURA BÍBLICA- VIDA NOVA

1 e 2 Crônicas - Introdução e Comentário (Martin J. Selman)

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LIVRO

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1 e 2CrônicasIntrodução e comentário

Martin J. Selman

SÉRIE CULTURA BÍBLICA- VIDA NOVA

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COMENTÁRIOS BÍBLICOS DA SÉRIE CULTURA BÍBLICA

Os comentários da Série Cultura Bíblica foram elaborados para ajudar o leitor a alcançar uma compreensão do real significado do texto bíblico.

A introdução de cada livro dá às questões de autoria e data um tratamento conciso, embora completo. Isso é de grande ajuda para o leitor, pois mostra não só o propósito de cada livro como as circunstâncias em que foi escrito. E também de inestimável valor para professores e estudantes que buscam informações sobre pontos-chaves, pois aí se vêem combinados o mais alto conhecimento e o mais profundo respeito com relação ao texto sagrado.

Veja a riqueza do tratamento que o texto bíblico recebe em cada comentário da Série Cultura Bíblica:

Os comentários tomam cada livro e estabelecem as respectivas seções, além de destacar os temas principais. O texto é comentado versículo por versículo.São focalizados os problemas de interpretação.Em notas adicionais, as dificuldades específicas de cada texto são discutidas em profundidade.

O objetivo principal dos comentários é buscar o verdadeiro significado do texto da Bíblia, tornando sua mensagem plenamente compreensível.

VIDA INOVA

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e 2CrônicasMartin J. Selman

Tradução Daniel de Oliveira

\w«J w ê f

VIDA NOVA

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Copyright © 1994 Martin J. SelmanTítulo do original: 1 Chronicles - Tyndale Old Testament Commentaries Título do original: 2 Chronicles - Tyndale Old Testament Commentaries Traduzido a partir das edições publicadas pela Inter-Varsity Press (38 De Montfort Street, Leicester LEI 7GP, England)

l.aedição: 2006

Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados por S o c ie d a d e R e l ig io s a E d iç õ e s V id a N o v a ,

Caixa Postal 21266, São Paulo, SP, 04602-970 www.vidanova.com.br

Proibida a reprodução por quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos, gravação, estocagem em banco de dados, etc.), a não ser em citações breves com indicação de fonte.

ISBN 85-275-0372-7

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

D ir e ç ã o E d it o r ia l

Aldo Menezes

C o o r d e n a ç ã o E d it o r ia l

Marisa Lopes

A s s is t ê n c ia E d it o r ia l

Ubevaldo G. Sampaio

C o o r d e n a ç ã o d e P r o d u ç ã o

Sérgio Siqueira Moura

D ia g r a m a ç ã o

Kelly Christine MaynarteSérgio Siqueira Moura

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SUMÁRIO

PREFÁCIO GERAL.............................................................................................. 7

PREFÁCIO À EDIÇÃO EM PPORTUGUÊS...................................................... 9

PREFÁCIO DO AUTOR...................................................................................... 11

ABREVIATURAS PRINCIPAIS......................................................................... 15

BIBLIOGRAFIAS SELECIONADAS................................................................. 19

INTRODUÇÃO..................................................................................................... 21I. Título..................................................................................................... 21

II. A que tipo de livro pertence Crônicas?............................................ 22III. O cronista como intérprete................................................................. 27IV. A mensagem do cronista..................................................................... 42V. As origens de Crônicas....................................................................... 58

ANÁLISE.............................................................................................................. 67

1CRÔNICAS

COMENTÁRIO.................................................................................................... 75

2CRÔNICAS

COMENTÁRIO 225

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PREFÁCIO GERAL

O objetivo desta série de comentários sobre o Antigo Testamento, tal como aconteceu nos volumes equivalentes sobre o Novo Testamento, é ofere­cer ao estudioso da Bíblia um comentário atual e prático de cada livro, com a ênfase principal e maior na exegese. As questões críticas mais importantes são discutidas nas introduções e notas adicionais, ao passo que detalhes excessi­vamente técnicos são evitados.

Nesta série, cada autor possui, naturalmente, plena liberdade para pres­tar suas çtóçtias contribuições, e exjpressat seu ponta de vista pessoal em todas as questões controvertidas. Dentro dos limites necessários de espaço, eles muitas vezes procuram chamar a atenção para interpretações que eles mesmos não endossam, mas que representam conclusões defendidas por ou­tros cristãos sinceros.

Embora os dois livros de Crônicas sejam muito negligenciados, eles têm, como demonstra com tanta competência o Dr. Martin Selman, uma mensagem de esperança perene que também se aplica à igreja de hoje. Os leitores que os estudarem, com a ajuda deste comentário, sem dúvida irão adquirir o novo en­tendimento de seu papel no cânon do Antigo Testamento.

No Antigo Testamento em particular, nenhuma tradução por si só conse­gue refletir o texto original. Os autores desta série utilizam livremente várias versões ou oferecem a sua própria tradução. Onde necessário, as palavras do texto aparecem transliteradas, para ajudar o leitor que não esteja familiarizado com as línguas semíticas a identificar precisamente a palavra em questão. Presu­me-se, a cada passo, que o leitor tenha livre acesso a uma ou mais versões fidedignas da Bíblia.

O interesse no significado e na mensagem do Antigo Testamento continua constante, e esperamos que esta série venha a incentivar o estudo sistemático da revelação de Deus, de sua vontade e de seus caminhos registrados nas Escrituras. A oração do editor e dos publicadores, bem como dos autores, é que estes livros ajudem muitos a entender a Palavra de Deus e a lhe prestar obediên­cia nos dias de hoje.

D J. Wiseman

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PREFÁCIO À EDIÇÃO EM PORTUGUÊS

Todo estudioso da Bíblia sente a falta de bons e profundos comentários em português. A quase totalidade das obras que existem entre nós peca pela superficialidade, tentando tratar o texto bíblico em poucas linhas. A Série Cultu­ra Bíblica vem remediar esta lamentável situação sem que peque, de outro lado, por usar de linguagem técnica e de demasiada atenção a detalhes.

Os comentários que fazem parte desta coleção são ao mesmo tempo com­preensíveis e singelos. De leitura agradável, seu conteúdo é de fácil assimilação. As referências a outros comentários e a notas de rodapé são reduzidas ao míni­mo, mas nem por isso são superficiais. Reúnem o melhor da perícia evangélica (ortodoxa) atual. O texto é repleto de observações esclarecedoras.

Trata-se de obra cuja característica principal é a de ser mais exegética do que homilética. Mesmo assim, as observações não são de teor acadêmico. E muito menos refletem debates infindáveis sobre minúcias do texto. São de gran­de utilidade na compreensão exata do texto e proporcionam assim o preparo do caminho para a pregação.

Cada comentário consta de duas partes: uma introdução que situa o livro bíblico no espaço e no tempo e um estudo profundo do texto, a partir dos grandes temas do próprio livro. A primeira parte trata as questões críticas quan­to ao livro e ao texto. Examinam-se as questões sobre destinatários, data e lugar de composição, autoria, bem como ocasião e propósito. A segunda parte analisao texto do livro, seção por seção. Atenção especial é dada às palavras-chave, e a partir delas procura-se compreender e interpretar o próprio texto. Há bastante substância para se digerir nestes comentários.

Com preços moderados para cada exemplar, o leitor, ao completar a cole­ção, terá um excelente e profundo comentário sobre todo o Antigo Testamento. Pretendemos, assim, ajudar os leitores de língua portuguesa a compreenderem o que o texto veterotestamentário de fato diz e o que significa. Se conseguirmos alcançar este propósito, seremos gratos a Deus e ficaremos contentes, porque este trabalho não terá sido em vão.

Richard J. Sturz

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PREFÁCIO DO AUTOR

Recomendar a seus leitores que o livro que realmente devem ler não é o que ele escreveu é um estranho privilégio de todo comentarista. Nesse sentido, sua função não é diferente da de João Batista, cuja habilidade em apontar para além de si mesmo, em direção a alguém muito maior, deveria tomá-lo o patrono dos comentaristas.

Meu sincero desejo, portanto, é que você faça sua própria leitura do livro de Crônicas. Para isso este comentário foi escrito, na esperança de que você tenha uma orientação no estudo e oração sobre essa parte da palavra de Deus.

Embora o cronista tenha sido meu companheiro por vários anos, nunca deixei de me encher de admiração pela amplitude de sua visão e extraordinária percepção. Sua convicção de que a mensagem de Deus também é essencialmen­te uma mensagem de esperança justifica que sua obra seja descrita como “as boas novas segundo o cronista”. Também me causa admiração a relevância de sua obra para o mundo moderno, especialmente para cristãos que são minoria em sua sociedade, que chegam até a sofrer por sua fé, e que têm pouca esperan­ça de ver uma mudança positiva no contexto político em que vivem; também para aqueles que perderam a esperança de um dia ver por si mesmos tempos gloriosos como os vividos pelos cristãos das primeiras gerações; para aqueles que estão preocupados com a saúde espiritual de sua nação e gostariam de descobrir que função os cristãos devem desempenhar para serem uma influên­cia benéfica; para aqueles que desejam ter uma ampla visão dos propósitos de Deus para sua vida e para a igreja; e para aqueles que querem entender o que significa o Antigo Testamento como um todo e por que ele faz parte da Bíblia.

Talvez no passado você tenha sido desestimulado a ler os livros de Crônicas por causa de sua extensão, ou porque seu conteúdo trate de história antiga, ou principalmente por causa de suas listas de nomes estranhos, em especial nos primeiros nove capítulos. Entretanto, nenhum desses obstáculos é insuperável para gostar de Crônicas. Principalmente se você nunca tentou ler Crônicas a sério antes, permita-me sugerir que você comece em lCrônicas 10 e simplesmente deixe de lado as listas, até que se sinta pronto para elas. Seria uma pena perder tudo o que Deus tem para dizer, só por causa de um problema sobre onde começar.

A preocupação do cronista é que seus leitores experimentem uma cura genuína, e o que ele tem a dizer sobre o assunto vai muito mais longe que a maioria do debate e ensino contemporâneos. É minha oração que cada um de

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le 2CRÔN1CAS

vocês receba algo dessa cura e restauração, e que ao fazer isso, vocês descu­bram mais sobre o coração do próprio Deus (cf. 2Cr 7.14,16).

Uma característica especial deste comentário é a informação que aparece no começo de algumas seções. Em primeiro lugar é dada uma citação, seleciona­da da seção de texto bíblico que segue. Essa citação pretende resumir a idéia da seção. É notável a freqüência com que a própria Bíblia toma cristalino o tema de uma passagem de uma forma sucinta e conveniente. A citação geralmente é seguida de algumas referências bíblicas, que podem ser bastante extensas. Es­sas se referem a passagens que são de alguma forma paralelas à passagem em estudo. De fato, elas provavelmente indicam as fontes que o cronista usou. A identificação dessas fontes é uma característica essencial deste comentário, já que nele se afirma que o cronista pressupõe em seus leitores familiaridade com seu material anterior. Parece que o cronista está de fato comentando essas par­tes anteriores das Escrituras, e que ele o faz por vários métodos. Se os livros de Crônicas são lidos com essa perspectiva em mente, o leitor atual muitas vezes achará útil consultar as partes relevantes do Antigo Testamento, ao mesmo tempo em que lê o texto de Crônicas. Isso ajudará muito a esclarecer o significa­do do texto bíblico, e produzirá uma consciência muito mais profunda do poten­cial significado da palavra de Deus naquele tempo e hoje.

As citações bíblicas neste comentário em língua portuguesa são da ver­são de Almeida Revista e Atualizada, segunda edição. Mas muitas outras ver­sões também foram usadas, como por exemplo, a Bíblia de Jerusalém. O leitor deve ser capaz de usar esse comentário consultando qualquer versão da Bíblia, já que ele é, em última instância, baseado no texto hebraico do Antigo Testamen­to, geralmente chamado de Texto Massorético. Considerando que nenhuma versão sozinha pode transmitir todas as riquezas do original hebraico, o uso de diversas versões no comentário de fato dá ao leitor uma genuína vantagem no entendimento do que Deus está dizendo.

Somente aqueles que realmente já tenham escrito um livro podem entender quanto um autor está em dívida com outros. A contribuição deles é uma parte vital de todo o empreendimento, e eu reconheço com profunda gratidão a ajuda de todos que me encorajaram, especialmente quando isso incluía tolerar minha ausência em outras atividades. Sou especialmente grato aos meus colegas no Spurgeon’s College, que assumiram responsabilidades em meu lugar várias ve­zes para que o projeto pudesse enfim ser terminado, e aos editores, por pacien­temente esperarem muito mais do que foi programado no início. Os conselhos administrativos do Spurgeon’s College e da Tyndale House, Cambridge, gene­rosamente forneceram apoio financeiro essencial. Comentaristas anteriores, e em especial aqueles que recentemente escreveram livros e monografias sobre Crônicas, estimularam muito o meu pensamento. Algumas igrejas tiveram que ouvir sermões inesperados sobre o cronista. O comentário é dedicado especial­mente àquelas igrejas que foram as primeiras a produzir em mim o amor pelas

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PREFÁCIO DO AUTOR

Escrituras, e que aceitaram a mim e às minhas idiossincrasias como parte de sua comunhão. Por último, e acima de tudo, meras palavras de gratidão não são suficientes para expressar o encorajamento vindo de minha família, que muitas vezes foi privada de minha companhia, e que suportou minha dedicação ao cronista do início ao fim. Eu sou profundamente grato pelo apoio de todos que tomaram parte na produção deste comentário, e não tenho a menor dúvida de que ele ficou muito melhor em razão dessas participações.

Páscoa, 1993 Martin Selman

Spurgeon’s College, Londres

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ABREVIATURAS PRINCIPAIS

AASOR Annual o f the American Schools o f Oriental Research.AB Anchor Bible.AHwb W. von Soden, Akkadisches Handwõrterbuch, 3 vols. (Wi-

esbaden: Harrassowitz, 1965ss.).Albright W. F. Albright, “The chronology of the divided monarchy of

Israel”, BASOR 100,1945, p. 16-22.ANET J. B. Pritchard (ed.), Ancient Near Eastern Texts Relating to

the Old Testament (Princeton: Princeton University Press, 1950).

AOAT Alten Orient und Alten Testament.Aram. Aramaico.Ass. Assírio.BA BiblicalArchaeologist.Barthélemy,CTAT D. Barthélemy, Critique Testuelle de VAncien Testament, vol.

1, Orbis Biblicus et Orientalis 50/1 (Gõttingen: Vandenhoeck &Ruprecht, 1982).

BASOR Bulletin o f the American Schools o f Oriental Research.BBET Beitràge zur biblischen Exegese und Theologie.Begrich J. Begrich, Die Chronologie der Kõnige von Israel und Juda

(Tübingen: Mohr, 1929).Bib. BiblicaBTB Biblical Theology Bulletin.BZAW Beiheft zur Zeitschrift fü r die altestamentliche Wissenschaft.CAD A. L. Oppenheim, et al., Chicago Assyrian Dictionary (Chica­

go: Oriental Institute, 1956ss.).CBC Cambridge B ible Commentary.CBOTS Coniectanea Biblica Old Testament Series.CBQ Catholic Biblical Quarterly.Childs B. S. Childs, Isaiah and the Assyrian Crisis (London: SCM

Press, 1967).Exp.T. Expository Times.FOTL Forms of Old Testament Literature.GK E. Kautzch e A. E. Cowley (eds.), Genesius ’Hebrew Grammar

(Oxford: Clarendon Press, 1910).

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le 2CRÔNICAS

HAT Handbuch zum Alten Testament.HTR Harvard Theological Review.Hughes, Secrets J. Hughes, Secrets o f the Times, JSOTS 66 (Sheffield: JSOT

Press, 1990).IBD The lllustratedBible Dictionary (Leicester: IVP, 1980).ICC International Criticai Commentary.IDB Interpreter’s Dictionary o f the Bible (Nashville: Abingdon,

vols. I-IV, 1962; Supplement, 1976).IEJ Israel Exploration Journal.Japhet, Ideology S. Japhet, The Ideology ofthe Book o f Chronicles (Frankfurt:

P. Lang, 1989).JBL Journal o f Biblical Literature.JETS Journal o f the Evangelical Theological Society.JQR Jewish Quarterly Review.Johnstone, ‘Guilt’ W. Johnstone, ‘Guilt and Atonement: the theme of 1 and 2

Chronicles’, in J. D. Martin e P. R. Davies (eds.), A Word in Season, JSOTS 42 (Sheffield: JSOT Press, 1986), p. 113-138. Journal fo r the Study ofthe New Testament, Supplement Series. Journal fo r the Study o fthe Old Testament.Journal fo r the Study ofthe Old Testament, Supplement Series. Journal o f Theological Studies.L. Koehler and W. Baumgartner (eds.), Hebrãisches undAra- mãisches Lexikon (Leiden: B rill.3 1967ss.).C. F. Keil, The Books ofthe Kings (Edimburgo: T. & T. Clark,21883). J. Kleining, The L o r d ’s Song: The Basis, Function and Signi- ficance o f Chorai Music in Chronicles, JSOTS 156 (Sheffield: JSOT Press, 1993).S. L. McKenzie, The Chronicler’s Use o fthe Deuteronomic History, Harvard Semitic Monographs 33 (Atlanta: Scholars Press, 1985).

R. A. Mason, Preaching the Tradition (Cambridge: Cambrid­ge University Press, 1990).R. Mosis, Untersuchungen zur Theologie des chronistischen Geschichtwerkes, Freiburger Theologische Studien 29 (Frei- berg: Herber, 1973).New Century Bible.C. Brown (ed.), New International Dictionary o f New Testa­ment Theology, 3 vols. (Exeter: Patemoster Press, 1975-78). Old Testament Library.Oudtestamentische Studien.Palestine Exploration Quarterly.

JSNTSJSOTJSOTSJTSKB

KeilKleining, Song

McKenzie, Use

Mason,Preaching

Mosis, UTCG

NCBNIDNTT

OILOTSPEQ

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PRINCIPAIS ABREVIATURAS

Polzin, Typology R. Polzin, Late Biblical Hebrew: Toward an Historical Typo- logy o f Biblical Hebrew Prose, HSM 12 (Missoula: Scholars Press, 1976).

SBB Stuttgarter Biblische Beitrãge.SBLMS Society o f Biblical Literature Monograph Series.SVT Supplements to Vetus Testamentum.TB Tyndale Bulletin.TC R. Le Déaut and J. Robert, Targum des Chroniques, 2 vols.

(Rome: Biblical Institute Press, 1971).TDOT G. Botterweck e H. Ringgren (eds.), Theological Dictionary o f

the Old Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1974ss.).Thiele E. R. Thiele, The Mysterious Numbers o fth e Hebrew Kings

(Grand Rapids: Eerdmans, 31983).Throntveit, Kings M. A. Throntveit, When Kings Speak, Society of Biblical Lite­

rature Dissertation Series 93 (Atlanta: Scholars Press, 1987).TOTC Tyndale Old Testament Commentary.VE Vox Evangélica.von Rad, GCW G. von RAd, Das Geschichtsbild des chronistischen Werkes

(Stuttgart: Kohlhammer, 1930).VT Vetus Testamentum.WBC Word Biblical Commentary.Willi, CA T. Willi, Die Chronik ais Auslegung (Gõttingen: Vandenhoe-

ck&Ruprecht, 1972).Williamson, IBC H. G. M. Williamson, Israel in the Books o f Chronicles (Cam­

bridge: Cambridge University Press, 1977).WTJ Westminster Theological Journal.ZAW Zeitschrift fü r die alttestamentlische Wissenschaft.

Textos e VersõesAr Antiga Versão Árabe do Antigo Testamento.AV Versão Autorizada (King James), 1611.EW Versões inglesas.GNB Good News Bible, (Today ’s English Version), 1976.JB Jerusalem Bible, 1966.LXX Septuaginta (versão grega pré-Cristã do Antigo Testamento).LXX(A) Septuaginta, Codex Alexandrinus.LXX(L) Septuaginta, recensão de Luciano.NEB New English Bible, 1970.NIV New International Version, 1984.NRSV New Revised Standard Version, 1989.

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le 2CRÔNICAS

NVI Nova Versão Internacional, 2000.P Peshitta (a tradução siríaca da Bíblia).REB Revised English Bible, 1989.RSV Revised Standad Version, 1952.RV Revised Version, 1881.Tg. Targum.TT Tradução inglesaTM Texto Massorético (o texto hebraico padrão do Antigo Testa­

mento).vss Versões, i.e. as antigas traduções da Bíblia, especialmente a

grega (LXX), a aramaica (Tg.), a siríaca (P), e a latina (Vulg.).VL Antiga tradução latina da Bíblia.Vulg. Vulgata (a principal tradução latina da Bíblia, feita por Jerôni-

mo no final do séc. IV).

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BIBLIOGRAFIAS SELECIONADAS

Comentários sobre 1 e 2Crônicas (comentários introdutórios são mar­cados com um *)Ackroyd

Allen

Bertheau

Braun Coggins

Curtis and Madsen

de Vries

Dillard

Japhet

McConville

Michaeli

Myers,1 Chronicles J. M. Myers, I Chronicles, AB 12 (Nova York: Doubleday,

1965).Myers,2 Chronicles J. M. Myers, II Chronicles, AB 13 (Nova York: Doubleday,

1965).Rudolph W. Rudolph, Die Chronikbücher, H AT (Tübingen: Mohr,

1955).Wilcock M. Wilcock, The Message o f Chronicles, The Bible Speaks

Today (Leicester: IVP, 1987).*

P. R. Ackroyd, I & II Chronicles, Ezra, Nehemiah, Torch Commentary (London, SCM Press, 1973).L. C. Allen, 1, 2 Chronicles, The Communicator’s Commentary (Waco: Word Books, 1987).*E. Bertheau, Commentary on the Books o f Chronicles (Edim- burgo:T.&T. Clark, 1857).R. L. Braun, 1 Chronicles, WBC 14 (Waco: Word Books, 1986). R. J. Coggins, The First and Second Books o f Chronicles , CBC (Cambridge: Cambridge University Press, 1976).*

E. L.Curtis e A. L. Madsen, The Books o f Chronicles, ICC (Edimburgo: T. &T. Clark, 1910).S. J. de Vries, 1 and 2 Chronicles, FOTL 11 (Grand Rapids: Eerdmans, 1989).R. B. Dillard, 2 Chronicles, Old Testament Library WBC 15 (Waco: Word Books, 1987).S. Japhet, I & II Chronicles, Old Testament Library (London: SCM Press, 1993).J. G. McConville, Chronicles, Daily Study Bible (Edimburgo: St Andrew Press, 1984).*F. Michaeli, Les livres des Chroniques (Neuchâtel: Delachaux &Niestlé, 1967).

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le 2CRÔNICAS

Williamson H. G. M. Williamson, 1 and 2 Chronicles, NCB (Londres: Marshall, Morgan & Scott, 1982).

Comentários sobre 1 e 2Samuel e l e 2ReisAnderson Cogan and Tadmor

GrayHertzberg

Hobbs Jones

McCarter Nelson

Sanda

Wiseman

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A. A. Anderson, 2 Samuel, WBC (Waco: Word Books, 1989).

M. Cogan e H. Tadmor, II Kings, AB (New York: Doubleday, 1988).J. Gray, I andIIKings, OTL (London: SCM Press, 31977).H. W. Hertzberg, Iand II Samuel, OTL (Londres: SCM Press, 1964).T. R. Hobbs, 2 Kings, WBC (Waco: Word Books, 1985).G. H. Jones, IandIIK ings, NCB (Londres: Marshall, Morgan & Scott, 1984).P. K. McCarter, II Samuel, AB (Nova York: Doubleday, 1984). R. D. Nelson, First and Second Kings, Interpretation (Atlanta John Knox Press, 1987).A. Sanda, Die Bücher die Kõnige (Munster: Aschendorffscher Verlag, 1911-12).D. J. Wiseman, I and2 Kings, TOTC (Leicester: IVP, 1993).

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INTRODUÇÃO

I. TítuloO título dos dois livros de Crônicas tem uma história incomum. Ele não

provém nem do original hebraico, nem (a despeito do fato de que “crônica” deriva da palavra grega chronikon) da Septuaginta, a tradução grega do Anti­go Testamento. Não foi, de fato, senão no quarto século d.C. que Jerônimo, o famoso tradutor da Bíblia, aplicou pela primeira vez a esses livros o termo “Crônicas”. Ele sugeriu, no prólogo à sua tradução latina de Samuel e Reis, que no lugar do título grego Paraleipomena, comumente dado à obra, “pode­ríamos simplesmente chamá-la de crônica (chronikon) de toda a história sa­grada”. Embora Jerônimo não tenha escrito nenhum comentário sobre Crôni­cas e tenha mantido o título grego tradicional, sua proposta tornou-se, no final das contas, a base do título usado agora na Bíblia em inglês, português etc. A influência mediadora veio da tradução de Lutero, cujo título em alemão, Die Chronika, passou para o inglês, quando as traduções da Bíblia proliferaram, durante o período da Reforma.

Apesar de sua aparição relativamente tardia, ‘crônica’ é uma boa tradução da expressão idiomática diberê hayyãmim, o título da obra adotado em hebraico. Essa frase significa literalmente “os acontecimentos dos dias”, i.e. “anais, crôni­cas” e embora apareça somente uma vez no texto de Crônicas (lC r 27.24), ela passou a ser associada à obra por causa de sua aparição freqüente no livro de Reis (cf. e.g. IRs 14.19,29; 15.7, 23, 31). Existe ainda a possibilidade de ela ter sido usada desde cedo como um título para Crônicas, a julgar pelo uso seme­lhante da frase em outros livros do Antigo Testamento aproximadamente do mesmo período (cf. Ne 12.23; Et 2.23; 6.1; 10.2). Os tradutores do Antigo Testa­mento para o grego, no entanto, elaboraram um título completamente diferente, a saber, Paraleipomena, “as coisas omitidas”, i.e. omitidas de Samuel e Reis. Isso reflete um entendimento bem diferente do livro daquele sugerido pelo título hebraico, e foi o ponto de vista grego que teve maior influência na opinião da igreja sobre Crônicas no decorrer dos séculos. Infelizmente, isso também contri­buiu para a negligência generalizada do livro, visto que o título grego implicava que Crônicas era um tipo de suplemento ou apêndice, e portanto tinha apenas um valor secundário no Antigo Testamento.

A divisão de Crônicas em duas partes, a saber, 1 e 2Crônicas, remonta à Septuaginta, embora ela só seja atestada no terceiro século d.C. Na tradição hebraica, ela não é mais antiga que a primeira edição impressa da Bíblia hebraica,

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le 2CRÔNICAS

em 1448 d.C. Essa divisão provavelmente foi feita por razões práticas, e não possui outro significado. Por outro lado, a história textual da Bíblia hebraica, bem como o conteúdo e a ideologia de 1 e 2Crônicas mostram que os dois livros são, na realidade, uma unidade. Uma vez que isso seja admitido, a exten­são e o escopo da obra deixam claro que ela é uma parte extremamente impor­tante do Antigo Testamento. Seu tema abarca toda a história israelita, desde a criação (1 Cr 1.1) até perto da época do próprio autor (IC r 9.2-34), e em termos de número de capítulos é a terceira maior compilação no Antigo Testamento, ficando atrás somente dos Salmos e Isaías.

II. A que tipo de livro pertence Crônicas?A existência de títulos diferentes para o livro levanta a questão fundamental

da sua natureza e propósito. Esta questão deve ser considerada desde o início, visto que as expectativas do leitor do livro devem ter um efeito direto sobre o modo como ele o interpreta. Se a pessoa deixar de compreender sua real natureza, é provável que ela perca a essência daquilo que o autor diz. Da variedade de opiniões alternativas que têm sido apresentadas, quatro serão examinadas aqui.

(a) Antes de mais nada, Crônicas pode ser tratado como um livro de história. Essa suposição está implícita tanto no título hebraico quanto no grego, embora cada um deles envolva compreensões bem diferentes de qual tipo de escrito histórico se trata. Se o livro é realmente uma crônica, por exem­plo, é provável que o leitor espere um relato de eventos reais na vida nacional israelita durante o período considerado. Com base nisso, Crônicas seria uma versão paralela ou alternativa do relato histórico de Samuel e Reis. Essa abor­dagem à interpretação de Crônicas há muito tempo é seguida tanto por judeus quanto por cristãos, e com base nisso Crônicas foi freqüentemente considera­do, até o final do século dezenove, como uma fonte adicional para a história pré-exílica israelita.1 Ainda que em tempos mais recentes, a contribuição do cronista, como historiador, tenha por vezes sido compreendida mais em ter­mos de provisão de um quadro global de interpretação do que em termos de compilação de um relato objetivo dos acontecimentos, classificar Crônicas como uma obra de história ainda é muito comum.2

Entretanto, é duvidoso se essa descrição é adequada, mesmo levando em conta diferenças nas atitudes quanto ao relato histórico em tempos bíblicos em comparação com os tempos modernos. Um problema imediato e óbvio é que é

1 Exemplos clássicos dessa abordagem são J. G. Eichhom no século XVIII (Einleitung im A lte Testam ent, L eipzig: W eidm ann, 1780-83, 3 ed., 1803) e C. F. K eil no século XIX (Apoio getischer Versuch über die Biicher der Chronik, Berlin: Oehmigke, 1833; The Books o f the Chronicles, TI, Edimburgo: T. & T. Clark, 1872 (1980)), embora Keil especificamente exclua a idéia de que Crônicas seja baseado em anais.

2 Cf. de Vries, p. 15-16.

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INTRODUÇÃO

difícil ver por que um segundo relato histórico do período monárquico é neces­sário, ao lado de Samuel e Reis e das freqüentes referências ao período em muitas obras proféticas. E ainda mais importante, a seletividade do conteúdo e estrutura de Crônicas não apóia essa abordagem. As genealogias e listas exten­sas, por exemplo, marcam Crônicas como algo diferente de Samuel e Reis, e não são adequadas em uma obra primariamente histórica. Uma comparação mais detalhada com a História Deuteronômica (termo comum para Deuteronômio a 2Reis) confirma este ponto de vista, pois é claro que os interesses do cronista são mais estreitamente focalizados. No lugar de uma história das monarquias de Israel, o cronista concentra-se no Reino do Sul e em reis individuais como Davi, Salomão, ou Ezequias, embora também pareça adotar uma atitude mais favorável para com o Norte do que o autor do livro de Reis. Sua preocupação com ques­tões técnicas tais como o templo, a oração, o culto, e os levitas também indica que seu interesse real está fora da esfera puramente histórica.

Se Crônicas não é uma alternativa histórica a Samuel e Reis, então também não é um complemento histórico a esses livros, no sentido sugerido pelo título da Septuaginta, “coisas omitidas (de Samuel e Reis)”.3 Embora a versão grega reconheça corretamente que Crônicas é dependente de partes anteriores do Antigo Testamento, a implicação de que se relaciona apenas com Samuel c Reis é muito limitada. Também é errôneo ver Crônicas como preenchimento de algu­mas lacunas daqueles livros, como se simplesmente suprisse informação adi­cional de fontes de outro modo desconhecidas. Na realidade, o cronista tanto omite quanto acrescenta material; ele substitui e reescreve passagens e rees- trutura seções inteiras, e cita muito mais material bíblico do que Samuel e Reis.4 Ele também tem objetivos e ênfases diferentes refletidos por todo o livro em seu propósito, estilo, composição e teologia individuais.

Estes comentários não implicam que o cronista não esteja interessado no que realmente aconteceu na história israelita, embora seja verdadeiro que sua veracidade histórica tenha sido freqüentemente questionada.5 Ainda que o foco primário do cronista não seja relatar a história do passado de Israel, seria ilógico deduzir disso que sua apresentação das questões históricas é, por isso, suspei­ta. Na realidade, o cronista trata daquilo que está escrito em outras partes do Antigo Testamento de maneira bastante séria, e se utiliza em muito da história de Samuel e Reis como base para sua própria contribuição. Seu interesse particular pelo método histórico pode ser visto em sua referência explícita ao material fonte, a freqüência com que ele cita vários tipos de fontes à sua maneira, e sua

3 22 Cf. e.g. W. F. A lbright, “O m étodo do cronista ao ed itar o L ivro de Reis devia suplem entar, não reescrever” , JBL 40, 1921, p. 104-124 (citação da p. 120).

4 Cf. J. Goldingay, T h e Chronicler as a theologian’, Biblical Theology Bulletin 5 1975, p. 99-126, especialm ente p. 99-108.

5 E.g. de Vries, p. 11-12; Coggins, p. 4-5.

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prontidão em reter o conteúdo de suas fontes adicionais mesmo onde isso parece criar problemas de incoerência. Onde o cronista apresenta um quadro mais completo de incidentes particulares do que Samuel e Reis, tem sido admiti­do que o material adicional possui valor histórico independente, e que “onde somos capazes de verificar seu relato contra dados extrabíblicos, o quadro é de um autor cauteloso” .6 Podemos acrescentar ainda mais dois comentários. O primeiro é que onde o material do cronista permanece não corroborado por outras fontes antigas, bíblicas ou não, é preciso uma certa humildade da parte do leitor moderno, dadas as grandes lacunas em nosso conhecimento de toda a história antiga. De fato, em um bom número de passagens, o cronista está clara­mente desenvolvendo aspectos de textos bíblicos mais antigos que podem não ter recebido muita atenção anteriormente. Em segundo lugar, todo escrito histó­rico, tanto moderno quanto antigo, envolve certo elemento de interpretação. Afirmam que o nível interpretativo fica mais perto da superfície em Crônicas do que ocorre em outras histórias bíblicas não implica, necessariamente, em uma crítica ao méíodo histórico do cronista.

(b) Se as características históricas de Crônicas são de interesse mais se­cundário que primário, talvez deva ser dada maior atenção a suas ênfases teoló­gicas. Dillard, por exemplo, resume a obra como “um ensaio completamente teológico;... é um tratado”,7 e o cronista tem sido até mesmo descrito como “o primeiro teólogo do Antigo Testamento”.8 O interesse nessa abordagem surge em particular de dois fatores. O primeiro é que o cronista parece tratar seu material histórico mais como um meio para um fim do que como um fim em si mesmo. Ele demonstra maior interesse pelo significado subjacente dos eventos do que pelos próprios eventos, como é ilustrado por seus interesses especiais. Estes incluem, por exemplo, discursos e orações freqüentes, a repetição de te­mas, um interesse pelas instituições básicas da sociedade tais como o sistema do culto ou a monarquia, e um interesse pela intervenção direta de Deus nos assuntos humanos. Embora cada um desses esteja presente em Samuel e Reis, seu papel teológico em Crônicas é muito mais proeminente.

Igualmente importante, no entanto, é o contexto no qual o cronista es­creve, visto que é de admirar que toda sua preocupação com relação ao passa­do exclui qualquer referência direta a seu próprio tempo. Isto é muito mais significativo já que o autor enfatiza as características dos primeiros anos de Israel que eclipsam completamente tudo que era realizado em sua própria épo­ca. O glorioso templo de Salomão e a monarquia divinamente eleita são de muito mais valor, ainda que não existam mais, e em contraste com a história do status anterior de Israel como uma nação ou nações independentes, na época

6 Dillard, p. xviii; cf. M yers, 1 Chronicles, p. xv, xxx .1 Dillard, p. xviii.8 P.R. Ackroyd, ‘The C hronicler as exegete’, JSO T 2, 1977, p. 24.

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em que a obra foi compilada o povo de Deus havia sido reduzido a nada mais do que um dente em um a vasta engrenagem imperial.

Tudo isto indica que o autor estava mais do que informando a seus leitores sobre o que acontecera no passado; ele pretendia explicar o sentido da história de Israel. Infelizmente, no entanto, o seu propósito exato jamais foi explicitado, de maneira que os leitores são levados a inferi-lo por si mesmos. Uma sugestão óbvia, dada a proeminência do templo, é que ele desejava mostrar que o templo de Jerusalém era o único lugar legítimo de culto para o povo de Deus.9 Isso significa, no entanto, desconsiderar a grande atenção dada à monarquia davídica, ainda que os comentaristas não concordem sobre o exato significado dessa ênfase. Segun­do alguns, “a pessoa e a dinastia de Davi” são “a pulsação de toda a teologia do cronista”, enquanto outros pensam que o interesse em Davi indique que o cronis­ta deva ser visto como “o guardião da tradição messiânica”.10 Outros intérpretes lêem a ênfase teológica do cronista de maneira bem diferente. Algumas das pro­postas mais importantes sugerem que o livro seja uma parábola extensa sobre a importância de se buscar a Deus, 11 e que ele apresenta um caminho dado por Deus para a expiação de uma culpa profunda de Israel,12 ou que ele aponta para uma via de restauração para Israel por meio do exílio e do juízo.13 Análises mais cautelosas argumentam que nenhum tema é mais importante do que outro, 11 ou ainda que o autor se contentava mais em sublinhar o valor da continuidade com o passado do que em defender grandes mudanças.15

Essa dificuldade de se chegar a um consenso sobre o objetivo do livro sugere ou que o autor não foi muito claro ou que a natureza e propósito do livro estão em outra parte. Portanto, ainda que as próximas duas análises concordem que Crônicas seja de caráter teológico, elas dão maior peso a ou­tros aspectos do livro.

(c) A freqüência de discursos ou sermões em Crônicas levou alguns à conclusão de que o autor estava “ ‘pregando’ a história de seu povo”, ou que ele era “um pregador de teologia pastoral” .16 De maneira mais específica, é dito que “toda sua obra assume o caráter parentético de um “sermão levítico”, exortando e encorajando seus contemporâneos a uma fé responsiva que pode

c) Cf. Braun, p. xxviii.111 R. N orth, ‘T heo logy of the C h ro n ic le r’, JB L 82, 1963, p. 376; G. von R ad, Old

Testament Theology, I. (London: SCM Press, 1962), p. 351.11 G. Begg, ‘ “Seeking Y ahw eh” and the purpose o f C hron ic les’, Louvain Studies 9,

1982, p. 128-141; cf. G. E. Schafer, ‘The significance o f seeking God in the purpose o f the C hron icler’, Th.D ., Louisville, 1972.

12 Johnstone, ‘G uilt’, p. 113-138.13 P. R. A ckroyd, ‘The theology o f the C h ro n ic le r’, em The C hronicler in his Age,

JSO TS 101 (Sheffield: Sheffield A cademic Press, 1991), p. 273-289.14 Cf. W illiam son, p. 24; Japhet, Ideology, p. 7.15 Cf. Coggins, p. 6.16 Ackroyd, p. 27; Allen, p. 20.

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novamente clamar pela misericórdia de seu D eus.17 A tese do “sermão levítico” baseia-se na observação de que muitos discursos são homiléticos em sua forma, ainda que a maioria deles seja proferida por reis e profetas.18 A função pedagógica atribuída aos levitas em 2Crônicas 19.8-11 também é considerada como algo de significado especial.

Embora seja verdade que os discursos são fundamentais à estrutura da obra, é questionável se é correto ou proveitoso descrevê-los como sermões ou pregação. Por um simples motivo, o estilo escrito do cronista é bem diferente da prática de pregação de hoje. Além disso, as dificuldades incluem a falta de critérios claros para se definir o conceito de sermão do cronista e a ampla varia­ção na forma destes supostos sermões. Embora as passagens relevantes mos­trem uma familiaridade genuína com as Escrituras mais antigas, elas, por exem­plo, raramente se baseiam em um texto específico. O que é ainda mais prejudicial para essa teoria, no entanto, é que os supostos “sermões levíticos” quase nun­ca são proferidos por levitas!19 Portanto, é preferível falar mais de discursos ou palestras do que de sermões. A freqüência desses discursos é também uma base insuficiente para aplicar o termo “pregação” a Crônicas como um todo.20

(d) Finalmente, o cronista tem sido descrito “como uma pessoa que interage com textos”, ou em outras palavras, alguem que produziu uma obra de interpreta­ção ou de exegese.21 Embora este ponto de vista compartilhe algumas caracterís­ticas com o anterior, ele tem mais base. Enquanto a concepção do cronista como pregador é efetivamente derivada apenas dos discursos, esta via leva em conta toda a obra.

Embora Samuel e Reis claramente proporcionem o quadro para a seção histórica principal de Crônicas (IC r 10 — 2Cr 36), o autor explora bem mais aquilo a que chamamos agora de Antigo Testamento. O início e o fim da obra dão um bom exemplo disso. Crônicas começa com Adão, que é mencionado no pri-

' meiro livro do Antigo Testamento (1 Cr 1.1; cf. Gn 2.20; 5.1), e termina com o edito de Ciro em Esdras-Neemias, um livro que data aproximadamente da mesma épo­ca do cronista (2Cr 36.22-23; cf. Ed 1.1-3). Entre esses dois pontos, as citações e alusões a outras partes do Antigo Testamento são freqüentes. Trechos do Pentateuco, por exemplo, são encontrados nas genealogias de ICr 1— 9, como o uso de passagens tais como Gênesis 46.9-10,12 e Números 26.5-6,12-13,19-22

17 W illiamson, p. 33; cf. J. M. M yers, T h e kerygm a of the Chronicler’, Interpretation 20, 1966, p. 268.

18 G. von Rad, ‘The lev itical serraon in 1 and 2 C hron icles’, in The Problem o f the H exateuch (Edimburgo: O liver & Boyd, 1966), p. 267-280.

19 E. g. M ason, Preaching, p. 133-144; cf. Throntveit, Kings, p. 127.20 Cf. Mason, ibid.21 Dillard, p. xviii; cf. W illi, CA , passinr, P. R. Ackroyd, ‘The Chronicler as exegete’,

JSO T 2, 1977, p. 2-32; K. Striibind, Tradition ais Interpretation in der Chronik, BZAW 201 (Berlin: De Gruyter, 1991).

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(cf. 1 Cr 2.3-8; 4.24; 5.3). As genealogias também contêm excertos de livros histó­ricos, tais como as listas de colonização de Josué 21.4-40 (lC r 6.54-81) ou o sumário dos motivos para o exílio em 2Reis 17.7-23 (lCr5.25-26;c/ 2Rs 15.19,29). Os Salmos têm papel importante em Crônicas, e especialmente no uso de trechos dos salmos 96,105 e 106 em lCrônicas 16.8-36 e a adaptação de alguns versículos do salmo 132 em um ponto crucial em 2Crônicas 6.41-42. Os livros proféticos também são freqüentemente mencionados, como no uso de trechos de Ezequiel 18 para formar a estrutura do relato de Joás (2Cr 24) e do reinado de Jotão, Acaz e Ezequias (2Cr 27— 32). As frases-chave em Crônicas podem depender de cita­ções de quase qualquer parte do Antigo Testamento. Por exemplo, um dos prin­cípios mais importantes de Crônicas, aquele que diz que os que buscam o Se­nhor certamente o encontrarão, aparece tanto na lei quanto nos profetas (lC r 28.9; 2Cr 15.2; c f Dt 4.29; Jr 29.13-14; Is 55.6). Outros exemplos incluem o uso de Êxodo 14.13-14eNúmeros 14.41 nas profecias importantes de 2Crônicas 20.17 e 24.20 respectivamente, ou a citação de Zacarias 4.10 em 2Crônicas 16.9.

Esses exemplos um tanto aleatórios demonstram claramente que o Antigo Testamento como um todo tem um papel central em Crônicas. De fato, é conclu­são deste comentário que o objetivo global do cronista era oferecer uma inter­pretação da Bíblia tal como ele a conhecia. De maneira mais precisa, seu princí­pio condutor era demonstrar que as promessas de Deus, reveladas na aliança davídica, ainda eram tão dignas de confiança e eficazes como quando foram feitas pela primeira vez, ainda que os primeiros leitores vivessem séculos depois de quase todos os eventos que ele relatou. A evidência sobre a qual essa opi­nião se fundamenta será examinada em seguida com mais detalhes.

III. O cronista como intérprete.Qualquer avaliação do propósito do cronista deve levar em conta a estru­

tura distinta da obra. O autor é um pensador minucioso e um artista de mérito literário considerável, cuja mensagem só pode ser adequadamente compreendi­da depois de se ter uma visão geral de sua obra. Ela foi construída pela combina­ção das contribuições do próprio autor com extensas fontes, tanto bíblicas como de outra natureza, o que resultou em uma série de unidades claramente definidas que foram entrelaçadas mediante uma variedade complexa de padrões.

Partindo do nível mais simples possível, podem-se identificar três seções principais:

lC r 1— 9 Genealogias desde Adão até o período pós-exílico.lC r 10— 2Cr 9 A monárquica unida de Davi e Salomão.2Cr 10— 3 6 Judá no período da monarquia dividida.

Embora a seção central seja por vezes também subdividida nos reinados de Saul (lC r 10), Davi (lC r 11— 29) e Salomão (2Cr 1—9), estudos recentes têm

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enfatizado que estes reis, principalmente Davi e Salomão, são apresentados como uma peça única. Na verdade, é precisamente no relato combinado de Davi e Salomão que se encontra o tema central de toda a obra. A primeira seção da obra que contém listas e genealogias (lC r 1— 9) é nitidamente preparatória, e enfatiza a unidade original de Israel e sua preservação pela graça de Deus. A terceira seção relembra os princípios básicos pelos quais Deus trata com seu povo ao traçar as variadas respostas dos reis e do povo. O cerne da obra é, portanto, a seção central, que contém duas palavras de Deus que são de significado teológico fundamental. A primeira é em geral conhecida como a aliança davídica (lC r 17.3-14). Por esta palavra, Deus prometeu que ele construiria uma casa ou dinastia eterna para Davi e que um dos descendentes de Davi construiria uma casa ou templo para Deus. A segunda palavra é a mensagem de Deus para Salomão em resposta à sua oração na dedicação do templo (2Cr 7.11-22). Esta também possui caráter de promessa, a saber, que Deus sempre está pronto para perdoar e restaurar seu povo, embora eles no fim serão removidos de sua terra e verão o seu templo destruído se deixa­rem de tirar vantagem desta oferta graciosa. O fato de essas duas palavras divinas não terem paralelo em Crônicas tanto em termos de extensão quanto de detalhes testifica em favor de sua importância e indica que a monarquia davídica e o templo são centrais para a compreensão que o cronista tem da história. Este ponto de vista é confirmado pelo desenvolvimento de ambos os temas no restante da obra.

Em acréscimo a essa estrutura básica, o cronista usa um bom número de refinamentos para ampliar o que ele tem a dizer.

(a) Antes de qualquer coisa, a segunda e terceira seções maiores são subdivididas de várias maneiras para destacar temas específicos:

I. A Monarquia Unida de Davi e Salomão.(i) lC r 10— 12 Davi toma-se rei sobre todo Israel.(ii) lC r l3 — 16 Davi traz a arca para Jerusalém.(iii) 1 Cr 17—21 A promessa de Deus a Davi e a ocupação final da

terra.(iv) 1 Cr 22—29 Davi faz preparativos para o templo.(v) 2Cr 1— 9 Salomão constrói o templo.

II. Judá sob a Monarquia Dividida.(i) 2CrlO— 12 Os padrões de arrependimento e resistência.(ii) 2C rl3— 16 Os benefícios da confiança em Deus.(iii) 2Cr 17—23 Uma aliança profana resulta em compromisso e

desastre.(iv) 2Cr24— 26 Três reis começam bem, mas acabam mal.(v) 2Cr 27— 32 Três reis contrastantes.(vi) 2Cr 33— 35 Três reis e o arrependimento humilde.(vii) 2Cr 36 Quatro reis, exílio e restauração.

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Essas subseções podem ser identificadas por dois mecanismos literários distintos. Um é o uso repetido de palavras e frases-chave, como em 2Crônicas 13— 16 onde “buscar (a Deus)” aparece nove vezes e “confiar (em Deus)” mais cinco vezes. O outro, que é usado no relato da monarquia dividida, é o modo pelo qual trilogias de reis são relacionadas conforme padrões de comporta­mento distintos, demonstrando de maneiras diferentes a importância da res­ponsabilidade individual pelo pecado e também o valor do arrependimento individual (2Cr 24— 35). Joás, Amazias e Uzias, todos caíram após mostrar evidência de fé (2Cr 24—26); Jotão, Acaz e Ezequias, cada um deliberadamente rejeita os caminhos de seus respectivos pais (2Cr 27— 32); e Manassés, Amom e Josias ilustram atitudes contrastantes quanto ao arrependimento (2Cr 33— 35). Esse tipo de padronização apoia a tese de que o objetivo do cronista era mais extrair princípios espirituais e teológicos do que produzir uma história alternativa a Samuel e Reis.

(b) Uma segunda característica é a preferência do cronista pela divisão da história em períodos. Essa característica já foi admitida na divisão da história de Israel em três períodos: antes, durante e depois da época de Davi e Salomão, e no agrupamento dos reis em 2Crônicas 24— 35.0 mesmo fenômeno é também eviden­te dentro dos reinados dos reis individuais. O remado de Davi, por exemplo, é dividido em quatro seções que marcam o seu reconhecimento como rei e os vários estágios de seus preparativos para o templo. Um outro exemplo é o reinado de Asa. Após períodos de bênçãos (2Cr 14) e de reforma (2Cr 15), perto do fim de sua vida ele se desvia completamente e abandona a Deus (2Cr 16). Joás (2Cr 24) e Uzias (2Cr 26) proporcionam mais exemplos surpreendentes. Joás mudou totalmente sua política uma vez que seu sumo sacerdote e mentor, Joiada, morreu (2Cr 24.17), enquanto que Uzias, “havendo-se já fortificado” (2Cr 26.16), a bênção que anterior­mente ele conhecera foi substituída pelo juízo divino por causa de seu orgulho.

(c) Um outro padrão é quando pessoas ou acontecimentos são moldados segundo um exemplo a seguir ou evitar. O caso mais óbvio é a apresentação de Davi como um segundo Moisés, e por isso digno do mesmo tipo de reconheci­mento de seu ilustre predecessor. Davi recebeu a revelação divina assim como Moisés (e.g. ICr 28.11-19) e adequou as leis de Moisés às circunstâncias de tempos posteriores (e.g. ICr 15.23). Porém, esse não é um esquema rígido, visto que Salomão também seguiu na tradição mosaica. Muitos detalhes do templo de Salomão seguiram o plano de Moisés para a tenda ou tabemáculo original (2Cr 3— 4) e o padrão básico do culto no templo era fiel aos princípios mosaicos (2Cr 8.13). Josué também serve de modelo para Davi e para Salomão. Salomão formou um tipo de equipe de ministério com Davi assim como Josué havia feito com Moisés (ICr 22.6-9,11-13,16; 28.3,7-10,19-20) e Davi seguiu os passos de Josué ao completar a conquista da Terra Prometida (cf. 1 Cr 18— 20). Uma variação sobre o mesmo tema é o modo pelo qual Salomão continuou a obra de Davi (cf. 2Cr 1.8-9;6.16-17; 8.14-15), como se fosse meramente um estágio a mais na mesma era.

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Outras analogias também são evidentes, tendo Ezequias como o foco de diversas comparações. Por exemplo, sua reorganização do templo e seu culto refletem a era de Davi e Salomão (2Cr 29— 30). As conexões mais próximas de Ezequias, porém, são com Asa (2Cr 14— 16; 29— 32). Estes dois reis prosperaram ao buscar a Deus de coração e obedecer às suas leis, e ambos convidaram os israelitas do norte para participar da renovação da aliança (2Cr 15.9-15; 29.10; 30.1- 5,10-11). Por outro lado, Ezequias é claramente contrastado com Jeroboão I de Israel (como descrito por Abias, 2Cr 13.8-12) e com seu próprio pai Acaz (2Cr 28.22- 24), especialmente em suas atitudes para com a idolatria. Outros padrões de com­portamento a serem evitados são aqueles nos quais Acaz seguiu Jeroboão I (2Cr 13.8-12,16-17; 28.1-8,22-25) e Manassés seguiu Acaz (2Cr 28.2-4,25; 33.2-6). Até mesmo a morte de Josias é moldada segundo a de Acabe, porque ambos deixaram de ouvir o que Deus estava dizendo (2Cr 18.19-34; 35.22-24).

Eventos diferentes também podem ser associados uns aos outros; destes a sombra lançada sobre toda a obra pelo exílio oferece o exemplo mais significa­tivo. O exílio é visto como uma punição consistente pela infidelidade para com Deus nos dois reinos, o do norte e o do sul (lC r 5.25-26; 2Cr 36.14-20). Por outro lado, a inversão dos juízos do tipo exílico experimentada por Saul (1 Cr 10) e Acaz (2Cr 28) mostra que nem tudo estava perdido mesmo quando o pior parecia ter acontecido (lC r 10.14; 2C r29.5-ll). O valor do arrependimento nessas situações é bem ilustrado por Davi. A rebeldia de Davi é indicada em Crônicas por seu censo desastroso (cf. 2Sm 11— 12;2Sm24; 1 Cr 21), contudo, sua simples confis­são, ‘eu pequei’, repetida do famoso incidente com Bate-Seba (2Sm 12.13; 24.10; lC r 21.8), ilustra o caminho para o perdão que se toma um dos princípios co­muns do cronista (2Cr 7.14).

Vários padrões estão associados ao templo. A sucessão de Davi por Salomão, como o construtor do templo, está baseada em um gênero de instala­ção ou comissionamento previamente ilustrado pela transmissão do cargo de Moisés a Josué. A característica importante é que nem o templo nem a ocupação da terra podem ser atribuídos à obra de um indivíduo, mas são resultado do trabalho em equipe. O valor da oração é enfatizado pelo chamado padrão “per- gunta-resposta” no relato de Salomão, que confirma que Deus regularmente vai além das expectativas humanas quando responde uma oração (2Cr 1.8-12; 6.14- 42; 7.1-3,12-22). Essa analogia ainda se estende às atividades de providências na correspondência entre Salomão e Hirão (2Cr 2.3-16). Finalmente, o padrão de culto de Israel é revelado por um “esquema de festival” no qual celebrações maiores são reunidas de acordo com um formato comum. Em cada caso, são dados detalhes da data, dos participantes, das cerimônias minuciosas e da ale­gria de cada ocasião de adoração (2Cr 7.4-10; 15.9-15; 30.13-27; 35.1-19).22

22 D e Vries, p. 264-265. E m bora a abordagem m orfocrítica a C rônicas de de Vries apresente muito mais exemplos de esquemas, fórmulas e gêneros literários, poucos podem ser aceitos com confiança.

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Esses exemplos mostram que esse uso dos modelos é tanto extenso como detalhado, e analogias individuais podem às vezes compartilhar uma meia dúzia de características comuns. Seu efeito global é sublinhar que os princípios pelos quais Deus trata com seu povo permanecem coerentes através dos séculos, e os leitores do cronista podem, como resultado, se sentir convenientemente mais encoraja­dos. Em tudo isso, um exemplo se eleva acima dos demais, a saber, que Davi, Salomão e o templo ocupam um lugar nos propósitos de Deus que é tão funda­mental como o de Moisés, Josué e a Tenda (cf. ICr 17.10-14; 22.11 -13; 28.8-10; 2Cr 7.12-22). A monarquia davídica que continua a obra de Deus começou em Moisés, e é exigido que ela continue nos mesmos padrões. A mensagem parece ser que se Israel procura esperança para o futuro, ele deve continuar na mesma tradição.

(d) Uma outra característica estrutural é o modo pelo qual vários discur­sos ou alocuções, incluindo tanto profecias quanto orações, são usados para revelar a ênfase especial da obra.23 Alguns dos discursos reais, por exemplo, são em geral localizados no início de seções, onde eles funcionam como docu­mentos ou manifestos políticos.24 Um bom exemplo disso é o primeiro discur­so de Davi em Crônicas (1 Cr 13. 2-3), onde o plano de Davi para restaurar a arca ao seu lugar legítimo, no centro da vida de Israel, dá o tom para toda a seção seguinte (IC r 13— 16). Do mesmo modo, o encorajamento de Davi a Salomão constrói uma espécie de esquema ideológico acerca dos propósitos de Deus para o templo (e.g. IC r 22.7-16; 28.2-10,20-21). Os discursos feitos por alguns dos reis “bons” durante a M onarquia Dividida também desempenharam um papel similar. Os pontos principais da mensagem do cronista estão resumidos no apelo de Abias a Jeroboão I de Israel, por exemplo, (2Cr 13.4-12), onde se deixa claro o que se espera dos reis que sucederão Abias. Os mesmos temas também são resumidos nas mensagens de Ezequias aos sacerdotes e levitas e a toda população, especialmente em sua ênfase sobre a prioridade do culto no templo em Jerusalém (2Cr 29.5-11; 30.6-9). O que toma as palavras desses dois reis particularmente estratégicas é seu contexto, pois a própria identidade da nação israelita estava sob ameaça em ambos os casos. A Judá de Ezequias estava em perigo pela combinação do paganismo de Acaz com a queda do reino do norte de Israel, enquanto o reino inexperiente de Judá de Abias pode­ria facilmente ter sido destruído por Jeroboão I. Os discursos de Abias e Ezequias, portanto, resgataram o povo de Deus das conseqüências da apostasia e o levou de volta ao caminho desejado por Deus. Um exemplo final da importância dos discursos é o papel desempenhado pelo edito de Ciro no

23 Cf. acima, p. 23.24 Os discursos dos reis de Judá são os seguintes: IC r 13.2-3; 15.2, 12-13; 17.1; 22.1;

22.5, 7-16, 17-19; 23 .25-26; 2 8 .2 -10 , 20-21; 29.1-5, 20; 2C r 2.3-10; 6.3-11; 8.11; 13.4- 12; 14.7; 19.6-7, 9 -11; 20 .20 ; 2 8 .2 3 ; 29 .5 -11 , 31; 30 .6 -9 ; 32 .7-8; 35 .3-6 . H á tam bém discursos feitos por reis estrangeiros (2Cr 35.21; 36.23), sum os sacerdotes (2Cr 26.17-18; 31.10), e por líderes de Israel (2C r 28.11-13).

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fim do livro (2Cr 36.23). Ainda que como a carta de Ezequias (2Cr 30.6-9) ele esteja em forma escrita, é na realidade uma proclamação régia para o próximo estágio da história do povo de Deus. O convite de Ciro aos exilados para retornarem para a Terra Prometida é também um chamado para retornar aos caminhos de Deus, e mostra que o futuro com Deus nunca está encerrado.25

Profecias e orações têm a mesma importância que os discursos dos reis. Ambas ocorrem freqüentemente e estão localizadas em pontos estratégicos.26 A importância central das palavras proféticas em lCrônicas 17.4-14 e 2Crôni- cas 7.12-22 já foi mencionada; contudo, o papel crucial da profecia é ilustrado por vários outros exemplos. As vezes, o curso dos eventos futuros é mudado por uma profecia particular, como no caso da renovação da aliança por Asa ou a reforma de Josias (2Cr 15.1-7; 34.23-28). Em contraste, quando a palavra de um profeta é rejeitada, uma profecia adicional pode dar base para o juízo de Deus (2Cr 16.7-10; 24.20; 25.15-16). Particularmente instrutivas são as referên­cias à profecia no reinado de Josafá. Uma espécie de profecia- modelo, dada por alguém que nem mesmo era um profeta, sugere que em princípio o dom profético estava disponível a qualquer um que se abrisse à inspiração do Espírito (2Cr 20.14-17). A profecia, portanto, é democratizada em Crônicas, embora não pela primeira ou única vez na Bíblia (cf. Nm 11.29; J12.28-29; ICo 14.1). Ainda mais notável é que na mesma passagem a fé na palavra dos profe­tas é considerada como igual a ter fé em Deus (2Cr 20.20). Não pode haver nenhum testemunho mais claro quanto à sua importância.27

As orações em Crônicas possuem um lugar igual ao das profecias na estrutura da obra. Os relatos de Davi e Salomão, por exemplo, freqüentemente incluem orações importantes.28 Davi mostra a importância de responder ao que Deus disse e fez, dando graças pela chegada segura da arca a Jerusalém (IC r 16.8-36), pela promessa de Deus de uma dinastia eterna (1 Cr 17.16-27), e pela provisão dos recursos necessários para o templo ( ICr 29.10-20). A oração está muitas vezes estreitamente relacionada ao templo. A cadeia de eventos através da qual o templo foi construído surgiu da oração de confissão de Davi

25 Para uma opinião diferente sobre o significado estrutural dos discursos dos reis, cf. T h ron tveit, Kings, p. 113-120.

26 As que se seguem podem ser entendidas como profecias, em bora nem sempre sejam identificadas como tais: IC r 12.18; 17.4-14; 21.9-12; 2Cr 7.12-22; 12.5, 7-8; 15.1-8; 16.7- 10; 18.7-27; 19.1-3; 20 .14-19 , 37; 21 .12-15; 24 .20; 25 .7 -9 , 15-16; 28 .9 -11 ; 34 .23-28. Profecias são descritas em form a de sumário (e.g. IC r 11.2-3; 21.18-19; 25.1-3; 2Cr 24.19, 27; 35.26; 36.12, 21, 22), e com o fontes de m ais inform ação.

27 Sobre profecia em Crônicas, cf. R. Micheel, Die Seher- und Prophetenüherliefemngen in der Chronik, BBET 18 (Frankfurt: P. Lang, 1983); I. L. Seeligmann, ‘Der Auffassung von der Prophetie in der deuteronom istischen und chronistischen G eschichtsschreibung’, SV T 29, 1979, p. 254-284.

2S A s orações de Davi e Salom ão estão em IC r 14.10,13; 16.8-36; 17.16-27; 19.13; 21.8,17; 29.10-20; 2Cr 1.8-10; 6.1-2, 14-42.

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INTRODUÇÃO

(lC r 21.8), a fonte real dos fundos para a construção é belamente expressa pelo louvor de Davi, e a oração de Salomão em sua inteireza é duplamente respondida pelo fogo do céu e a promessa programática de Deus de restaura­ção (2Cr 7.1-3,12-22). O templo, com certeza, era uma casa de oração do ponto de vista do cronista (cf. Is 56.7; Mt 21.13 etc.). Todas as orações no relato do período da Monarquia Dividida ilustram os princípios apresentados em 2Crô- nicas 7.12-22.29 Como os discursos reais e as profecias, elas tendem a ocorrer em pontos críticos, tais como a invasão no tempo de Josafá (2Cr 20.3-13) ou o momento decisivo na conversão de Manassés (2Cr 33.12-13).

Não pode haver dúvida de que vários discursos, profecias e orações sintetizam e expõem os elementos essenciais dos temas principais de Crônicas. Como ocorre com outras características estruturais, eles tendem a concentrar-se sobre a aliança davídica e o templo, sublinhando sua prioridade nos propósitos de Deus na vida nacional de Israel.

(e) Finalmente, o cronista gosta de usar o que é conhecido como quiasmo ou padrão quiástico. Essa é uma estrutura literária em geral encontrada na literatura hebraica onde a forma ou o significado é repetido com variação. Em um quiasmo as partes internas e externas de uma unidade literária são equilibradas umas com as outras, e usualmente enfocam as declarações no centro da unidade. Pode haver, no entanto, uma variação considerável no número de partes e na natureza do equilíbrio, e nenhum dos padrões quiásticos em Crônicas é idêntico a outro. Na verdade, é exatamente essa criatividade que estimula o interesse do leitor.

O quiasmo pode ser encontrado em grande escala, como no relato de Salomão (2Cr 1— 9), ou em pequena escala, como em uma das orações de Davi (1 Cr 29.10-13). O significado primário de padrões quiásticos individuais pode se basear na relação entre as partes internas (2Cr 2.2-18), na relação entre pares de subunidades (lC r 11.1— 12.40; 2Cr 14.2— 16.12), em uma grande seção central (1 Cr 16.1 -43), ou até mesmo em um quiasmo embutido em um grande quiasmo (1 Cr 2.3— 4.23). Uma estrutura quiástica pode até implicar um sentido de movi­mento. Por exemplo, 1 Crônicas 11.1— 12.40 confirma o crescente apoio a Davi por um movimento a partir das partes externas (11.1-3; 12.38-40) em direção ao centro (12.8-15,16-18), enquanto o quiasmo do reinado de Salomão enfoca o desenvolvimento para o clímax da dedicação do templo (cf. o papel de 2Cr 3.1— 5.1 e 5.2—7.22 dentro do relato de Salomão).

Os livros de Crônicas são claramente uma obra literária produzida com cuidado. O autor é igualmente hábil ao integrar nos padrões já descritos um bom número de fontes externas, tomadas em parte de outras seções da Bíblia e em parte de documentos extrabíblicos. Para apreciar o método do cronista

29 Orações registradas do tempo da m onarquia dividida são encontradas cm 2Cr 14.11; 20.3-13; 30.18-20, 27; 32.20, 24; 33.12-13. A s orações m encionadas nas genealogias se­guem esses mesmos princípios (cf. lC r 4.10; 5.20).

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com mais precisão, o próximo estágio de estudo é analisar a maneira pela qual essas fontes foram transformadas. Na prática, isso significa que só o material bíblico pode ser examinado, visto que infelizmente nenhuma das fontes extrabíblicas estão disponíveis para comparação.

Esse processo deve ser realizado em duas etapas. O lugar óbvio para começar é o quadro narrativo de Crônicas que o autor tirou dos livros bíblicos de Samuel e Reis. A narrativa básica desde a morte de Saul (1 Cr 10; cf. 1 Sm 31) até o exílio é a mesma nas duas obras, contudo, um exame mais detalhado revela que0 cronista fez extensas adaptações.

(a) Seções substanciais de Samuel e Reis foram omitidas. Os dois exem­plos mais notáveis são a falta de interesse direto no reino do norte e a omissão da maior parte dos detalhes pessoais de cada rei. Sabe-se agora que o primeiro desses não é resultado do preconceito do autor para com os do norte, quer pertencessem ao reino de Israel ou à comunidade samaritana. Antes, é um refle­xo de sua preocupação para com os propósitos de Deus a longo prazo para os representantes da dinastia de Davi que reinaram em Jerusalém. E pela mesma razão que muitos incidentes da vida pessoal dos reis de Judá, principalmente Davi e Salomão, também foram deixados de lado. Esse material omitido inclui não apenas os altos e baixos da vida da família de Davi (2Sm 9— 20), seu adultério e assassinato (2Sm 11— 12) ou os detalhes sombrios da ascensão de Salomão e seus excessos financeiros e maritais (IRs 1— 2,11), mas também os relatos muito mais positivos das primeiras unções e subida ao poder de Davi (1 Sm 16— 2Sm 4) e seu testemunho quanto à bondade de Deus (2Sm 22.1— 23.7.).

Uma das razões para a omissão deste material é que se espera que o leitor tenha um conhecimento razoável de Samuel e Reis, e também de muitas outras partes das Escrituras. Quanto aos primeiros textos (Samuel e Reis) foi incluído o suficiente para identificar incidentes particulares, mas o autor, às vezes, é capaz de reduzir drasticamente seções inteiras de Samuel ou Reis, resumindo-as até em uma única frase. “A palavra do S e n h o r ” que Saul deixou de observar, por exem­plo, (lC r 10.13), refere-se na realidade a uma série de mensagens dirigidas ao primeiro rei de Israel, mas somente o leitor que conhece o relato de Saul em1 Samuel está familiarizado com os detalhes subjacentes. Um exemplo bem dife­rente de uma presumida familiaridade com os livros de Samuel diz respeito à omissão do adultério e assassinato de Davi (2Sm 11— 12). Nesse caso, o cronis­ta inclui pistas suficientes para mostrar que ele está bem informado da história original, mas deseja interpretá-la de uma maneira nova. O início e o fim do relato original sobre Bate-Seba reaparecem inequivocamente em lCrônicas 20.1-3, mas outros elementos vitais da estrutura e vocabulário do primeiro relato foram entrelaçados na narrativa sobre o infame censo de Davi (lC r 21; cf. 2Sm 24). Deste modo, os leitores que sabem alguma coisa de 2Samuel reconhecerão não somente o modo criativo pelo qual o autor combinou as duas narrativas, mas também que os pecados de Davi foram mais destacados do que suprimidos.

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(b) Em outras passagens, o cronista amplamente resumiu o texto de Samuel e Reis. As vitórias militares de Davi, por exemplo, foram coletadas de várias partes de 2Samuel e colocadas em uma única seção, mas de uma maneira muito mais reduzida (IC r 18— 20). O cuidado do autor ao selecionar aquelas seções mais relevantes para seu propósito ao mesmo tempo preservando a ordem do texto original mostra seu respeito pelo texto bíblico que lhe foi transmitido (cf. a tabela no comentário sobre 1 Cr 18). O relato sobre Salomão também é muito menor em Crônicas do que em Reis. Qualquer coisa que não tenha relação com o tema do templo é claramente supérflua para as necessidades do cronista, mesmo que isso inclua fatos como a sabedoria de Salomão, sua administração, suas esposas e suas guerras (lR s 3.16— 4.34; 11.1-40). Um método distinto de sumário foi empregado para o período final anterior ao exílio (2Cr 36). Os reina­dos de quatro reis foram apresentados quase como se fossem um, e a crescen­te brevidade de suas descrições sublinha de maneira mais efetiva a ameaça cada vez mais inevitável do exílio.

(c) Pequenas mudanças podem ter sido feitas para destacar características particulares já presentes no material mais antigo. Um exemplo importante a respei­to do tema do reino de Deus é a mudança de “a tua [i.e. de Davi ] casa e o teu reino" para “na minha casa e no meu reino” (ICr 17.14; cf. 2Sm7.16). Uma série relaciona­da de mudanças mostra como as promessas de Deus sobre Davi (1 Cr 17.10-14) foram desenvolvidas e aplicadas a várias circunstâncias novas. Estas incluem o papel de Salomão como construtor do templo (1 Cr 22.7-10), os temas em 1 Crônicas28.2-8 tais como remanescente, eleição, e o Reino de Deus, e o agradecimento pela conclusão da obra do templo em 2Crônicas 6.4-11. Um conjunto diferente de alterações menores, mas importantes, envolve as referências a “Israel” em 2Crôni- cas 10.16-19 (cf. 1 Rs 12.16-19). A tese do cronista, que está ausente de Reis, é que sob Roboão a casa de Davi foi realmente separada dos israelitas, tanto no sul como no norte, contrastando com a unidade tribal experimentada sob Davi.

(d) Porções substanciais de texto podem ter sido adicionadas a Samuel e Reis. O exemplo mais notável diz respeito aos preparativos do templo de Davi (IC r 22— 29), onde uma breve passagem em IReis 2.1-12 foi expandida para incluir instruções detalhadas sobre os levitas e sacerdotes e encorajamentos extensos a Salomão e o povo. Outros acréscimos importantes incluem deta­lhes dos bons atos de Josafá e da impiedade de Acaz (2Cr 17; 19— 20; cf. lRs 22.41-50; 2Cr 28.5-25; c / 2Rs 16.5-18), e especialmente a informação sobre a primeira parte da vida de Josias que não tem paralelo em Reis (2Cr 34.3-7). Cada uma dessas passagens levanta questões importantes de interpretação, mas nenhuma mais do que a inclusão de 2Crônicas 7 .12b-16a, uma seção que está no centro da teologia do cronista. Sua oferta de perdão imerecido é muito diferente do chamado à obediência na passagem equivalente em IReis 9.3, e compreender as razões para esse tipo de mudança é essencial para se interpre­tar o cronista corretamente.

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Material adicional do cronista por vezes até parece contradizer partes anteriores do Antigo Testamento. A conversão de Manassés sem dúvida apre­senta o problema mais sério desse caso (2Cr 33). Tendo sido previamente descrito como o pior rei na linhagem davídica (2Rs 21.1-18), Manassés é ines­peradamente retratado em Crônicas como um exemplo notável de arrependi­mento. Um aspecto desse problema, que nem sempre foi reconhecido, é que outros exemplos do mesmo fenômeno também existem em Crônicas. Um caso deste tipo envolve Roboão, que de acordo com Reis “fez [...] o que era mal perante o S e n h o r ” (IR s 14.22), mas agora ilustra o valor do arrependimento humilde (2Cr 11— 12). Da mesma forma, a ênfase do cronista na fidelidade de Abias está em contraste direto com a avaliação anterior de que ele “andou em todos os pecados que seu pai havia cometido” (IRs 15.3). Um exame mais apurado desses três exemplos, no entanto, sugere que Crônicas, em cada caso, na verdade faz referência ao relato anterior. O que o cronista está dizen­do é que mesmo reconhecendo as sérias falhas na vida desses líderes, Deus sempre responde graciosamente àqueles que se arrependem. Ninguém é desqualificado, nem mesmo aqueles que cometeram publicamente delitos gra­ves. Embora esse tipo de explicação não tenha nenhuma pretensão de resolver todas as questões levantadas pelas aparentes contradições do cronista, pelo menos mostra o respeito dado pelo autor aos primeiros textos, mesmo onde ele os altera significativamente.

Depois de construir o seu quadro básico a partir de Samuel e Reis, o cronista incorporou a ele uma série de fontes do Antigo Testamento. Essas referências mais amplas são usadas de dois modos diferentes. Um grupo pe­queno, mas significativo, dessas referências foi usado para proporcionar um quadro externo, enquanto a maioria foi usada como parte da constmção inter­na do texto por todo o livro. Tomadas em conjunto, as duas abordagens de­monstram em definitivo que a perspectiva de Crônicas é muito mais ampla do que simplesmente a de Samuel e Reis.

O quadro externo compreende um resumo de Gênesis (1 Cr 1) e uma citação de Esdras-Neemias (2Cr 36.22-23). A importância dessa disposição é maior do que parece à primeira vista. É preciso lembrar, antes de tudo, que Gênesis e Esdras-Neemias cobrem o primeiro e último estágios respectivamente da histó­ria israelita, e que fora Crônicas, eles formam o primeiro e último livros da atual Bíblia hebraica.30 Em segundo lugar, uma citação de Esdras-Neemias também ocorre no final das genealogias, isto é, no fim da primeira seção principal do livro. Em outras palavras, o fragmento de Esdras 1.1-2 em 2Crônicas 36.22-23 tem uma analogia no uso de Neemias 11.3-19 em lCrônicas 9.2-17,22. Ainda que Esdras 1.1-2 e Neemias 11.3-19 se refiram a pontos diferentes na época pós- exílica, o fato de que citações do mesmo livro do Antigo Testamento se encon­

30 Originalmente, Esdras e N eem ias formavam um único livro, e não dois.

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INTRODUÇÃO

tram na conclusão de duas das três principais seções da obra do cronista certa­mente não é acidental. Em terceiro lugar, as duas passagens emprestadas de Esdras-Neemias estão intimamente relacionadas uma com a outra pelo fato de que ambas se referem ao retorno dos israelitas à terra de Israel. De fato, o convite em 2Crônicas 36.22-23 para subir a Jerusalém e reconstruir a “casa” parece se cumprir em lCrônicas 9.2-17,22 por aqueles que reinstalaram o culto no templo. Em outras palavras, os propósitos de Deus para o templo foram transmitidos, por meio do edito de Ciro (2Cr 36.22-23) para o período pós-exílico, pelos levitas e outros em sua preocupação com o culto adequado.

Até aqui o quadro exterior aludiu a um possível relacionamento entre a obra do cronista e as gerações que precederam imediatamente sua própria épo­ca, que é o período ao qual lCrônicas 9.2-34 parece se referir. Há algum meio pelo qual esse elo pode ser mais bem elucidado? Uma solução começa a surgir quan­do se compara o início e o fim das genealogias. Essas duas passagens unem a criação da raça humana em Adão e a restauração do culto do templo, uma cone­xão que também se aplica ao início e ao fim do livro. Em outras palavras, as genealogias e o quadro externo do livro demonstram que o templo reconstruído representava de algum modo a continuação ou a restauração da obra que Deus iniciara ao criar Adão. O templo, portanto, não poderia ser uma opção extra, mas era um elemento central nas intenções de Deus para com Israel e a própria humanidade. Quando Crônicas é visto por essa perspectiva, Samuel e Reis não ocupam mais do que um capítulo, embora seja um capítulo importante, em uma história que permaneceu inacabada nos dias do cronista.

O material que foi tecido no corpo da obra é tão importante quanto o quadro externo. Ele também oferece uma interpretação de Samuel e Reis, mas desta vez baseada nos princípios enunciados em toda a lei e nos profetas. Essa abordagem capacita o autor a mostrar que o que Deus disse e fez, durante o período monárquico, foi coerente com o restante do Antigo Testamento, e que nem um nem outro foi obscurecido pelo desastre do exílio. Essa mensagem é transmitida por uma varie­dade de métodos que dão mais evidência da criatividade do cronista.

(a) Como em seu uso de Samuel e Reis, o cronista freqüentemente resu­me outras partes das Escrituras. Isso é feito ou pelo uso de citações ou mesmo pela condensação da mensagem de uma seção inteira das Escrituras em uma única frase. Um exemplo é o modo pelo qual as seções em Gênesis que come­çam com as palavras “são estas as gerações de...” (Gn 10.1-29; 25.1-4 , 12-16 etc.), foram selecionadas para formar a estrutura das seções principais de lCrônicas 1. Deste modo, todo o Gênesis foi espetacularmente reduzido a um único capítulo. Ainda que a informação original tenha sido convertida inteira­mente em listas genealógicas, a mensagem subjacente do amor de Deus, mos­trado na eleição, nas narrativas associadas de Gênesis foi claramente preser­vada. Um exemplo de onde uma citação foi usada para resumir uma área bem mais ampla das Escrituras encontra-se no encorajamento de Josafá quando

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diz “tenham fé nos profetas do S e n h o r e vocês serão sustentados (NVI)” (2Cr 20.20). Embora a identidade dos profetas dos quais o rei fala não seja absolu­tamente certa, é provável que aqui, como em outras partes, o cronista esteja resu­mindo a mensagem dos profetas como um todo (cf. 2Cr 24.19; 29.25; 36.16).

(b) O método preferido do cronista de se referir ao restante do Antigo Testamento é o uso de alusões. Seu conhecimento de uma vasta extensão do Antigo Testamento e sua fluência ao incorporar fraseologias características de outros livros bíblicos em sua própria obra lembram a avaliação que C. H. Spurgeon fez de John Bunyan: “Perfure-o em qualquer parte, e você descobrirá que ele tem Bíblia no sangue!”31. Passagens individuais podem conter, ao mesmo tempo, referências a diversos livros bíblicos, como no caso do censo de Davi (lC r 21). Embora o fundamento subjacente deste capítulo esteja baseado em uma combi­nação de elementos de 2Samuel 11— 12 e 24, toda uma variedade de alusões bíblicas também foi incorporada. Essas incluem o anjo destruidor na Páscoa do Egito (v. 15; cf. Êx 12.23), a aquisição por Abraão de um lugar para sepultamento (v. 22-25; cf. Gn 23), o encontro de Gideão com um anjo (v. 20-21,26; cf. Jz 6.11-24) e o fogo do céu no tempo de Arão (v. 26; cf. Lv 9.24)! Um outro exemplo rico de associações bíblicas é a oração de agradecimento e louvor de Davi (lC r 29.14- 19). Além de conter alusões passageiras a Salmos, tais como a idéia de que o povo de Deus é “forasteiro e peregrino” (v. 15; c f SI 39.12), e que apropria vida é apenas uma sombra (v. 15; cf. SI 102.11), ela enfatiza os conhecidos modos como Deus trata com o coração humano. Embora ele prove o coração (v. 17; c f Jr 12.3), ele procura por atitudes internas que sejam leais a si (v. 18. cf. Gn 6.5).

(c) A citação direta é igualmente significativa, e, embora seja menos usada do que a alusão, dois métodos distintos são evidentes. Às vezes uma frase ou versículo em particular pode resumir toda uma seção, como no uso de Êxodo14.13-14 em 2Crônicas 20.15,17 ou Números 14.41 em2Crônicas 24.20. Essa prática tem uma vaga analogia com um texto de sermão, embora as diferenças, de caráter e função, entre Crônicas como obra literária e como sermão proferido oralmente, sugiram que esse tipo de comparação não deve ser levado muito longe. Em outras ocasiões, o cronista toma emprestado frases importantes de outras partes do Antigo Testamento como um veículo para sua própria mensagem. Dois exemplos disso se destacam acima de todos os outros. O primeiro é o princípio de que aqueles que procuram a Deus o encontrarão, mas que Deus rejeita aqueles que se esquecem dele. Essa é uma doutrina fundamental da teologia do cronista, que está baseada em frases tanto da lei quanto dos profetas, às quais somente pequenas alterações foram feitas (Dt 4.29; Jr 29.13-14; Is 55.6). Isso é por duas vezes visto como o padrão teológico explícito pelo qual o relacionamento de Israe! com Deus é comparado (lC r 28.9 e 2Cr 15.2), e também ilustra freqüentemente os modos contrastantes pelos quais Deus trata com seu povo. O outro exemplo é o famoso

31 C. H. Spurgeon, Autobiography, 2 (Edimburgo: Banner o f Truth, 1973), p. 159.

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encorajamento de Moisés a Josué, “Sê forte e corajoso” (cf. Dt 31.7,23; Js 1.6-9). Essa frase é proferida em Crônicas por Davi (1 Cr 22.13; 28.20) e Ezequias (2Cr 32.7) em três ocasiões distintas, nenhuma dessas tem paralelo nos textos mais antigos, e uma expressão semelhante também é atribuída a Joabe (1 Cr 19.13; cf. 2Sm 10.12). Deste modo, as palavras originais de Moisés se tomaram o modelo pelo qual outros são encorajados a exercer uma fé audaciosa por si mesmos.

(d) As vezes, o cronista aplica passagens e conceitos tomados de outras partes do Antigo Testamento como um padrão ou paradigma para sua própria descrição dos eventos. O maior exemplo disso é sem dúvida o uso da Tenda (ou tabernáculo) de Moisés como um modelo para a construção do templo. Esse recurso é utilizado várias vezes, e inclui a revelação dos planos de cons­trução a Davi (IC r 28.11-19; cf. Êx 25.9,40), os esforços de arrecadação de fundos (IC r 29.6-9; cf. Êx 25.1-7; 35.4-9,20-29), a necessidade de consagração para a tarefa (IC r 29.5; cf. Êx 28.41; Lv 8.33), a ordem em que o edifício é construído (2Cr 3— 4; cf. Êx 36.1— 39.32), e o aparecimento da glória de Deus na cerimônia de abertura (2Cr 5.13-14; cf. Êx 40.34-35). O ensino de Ezequiel sobre a necessidade de arrependimento individual oferece mais dois exemplos do mesmo processo. Primeiramente, a descrição de uma pessoa justa, que deixa seus antigos caminhos e comete pecados (Ez 18.24-32), combina exata­mente com as circunstâncias de Joás, Amazias, e Uzias (2Cr 24— 26). O segun­do exemplo é fornecido pelos próximos três reis de Judá, onde os reinados piedosos de Jotão e Ezequias são separados pelo idólatra Acaz (2Cr 27— 32).

Isso se harmoniza perfeitamente com o esquema de Ezequiel 18.1 -20, onde três gerações sucessivas recusam-se a seguir o comportamento justo ou ímpio de seus respectivos pais. Todo o trecho de 2Crônicas 24.32 é apresentado de maneira clara como um comentário vivido sobre a palavra do profeta.

(e) Uma característica especialmente fascinante é a habilidade do autor de combinar passagens de partes diferentes das Escrituras. Os preparativos para o templo proporcionam um bom número de exemplos. A chegada da arca ao novo templo, por exemplo, combina aspectos da condução da arca por Davi a Jerusalém com as cerimônias de dedicação da Tenda de Moisés (2Cr 5; cf. Êx 40.34-35; ICr 13— 16). O local do templo é similarmente associado à aparição de Deus a Abraão e a Davi (2Cr 3.1; cf. Gn 22.2,11; 1 Cr 21.16). Essa abordagem sublinha a continuida­de dos propósitos de Deus que o templo representava, um assunto de grande importância para o cronista. Um ponto semelhante vem do modo como a duração do exílio é descrita. O fato de que o período de setenta anos cumpriu tanto a lei quanto os profetas (Lv 26.34-35; Jr 25.11-14; 29.10) pretende transmitir que o fim do exílio e também sua existência faziam parte da conhecida vontade de Deus. Os primeiros leitores do cronista não precisavam mais viver à sua sombra.

Todos esses exemplos mostram muito claramente a importância de toda a Escritura para a tarefa de interpretação do cronista. Embora Samuel e Reis pro­

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porcionem muito do material bruto, seu contexto real é o Antigo Testamento como um todo. Sua obra é de fato um bom exemplo do que se tornou conhecido como “exegese bíblica interna”, ainda que o método do cronista seja sem para­lelo no Antigo Testamento em termos tanto de escopo quanto de profundida­de.32 Enquanto o desenvolvimento do material mais antigo seja bastante comum no Antigo Testamento, como no uso das tradições históricas de Israel no culto (e.g. S178,105e 106) ou o cumprimento de passagens tanto da lei (cf. 23.14-15) quanto dos profetas (Jr 26.18; cf. Mq 3.12), Crônicas continua sozinho em sua tentativa de interpretar do início ao fim o Antigo Testamento. O livro de Crôni­cas é também adequadamente colocado no final do cânon da Bíblia hebraica, como aquele livro do Antigo Testamento que resume os demais. Os responsá­veis por estabelecer a ordem dos livros da Bíblia hebraica talvez entendessem mais da sua natureza do que em geral lhes é creditado. Embora esse ponto de vista seja um pouco divergente das análises comuns de Crônicas, o excesso de dependência nas análises Cristãs (embora não judaica) contemporâneas de Crô­nicas de seu lugar na Bíblia grega é parte da razão porque sua natureza real nem sempre foi entendida. Portanto, os leitores modernos não devem ser muito influ­enciados por sua posição entre Reis e Esdras-Neemias das versões traduzidas, seja em inglês ou em outra língua qualquer. A Bíblia hebraica é um guia mais seguro, tanto em termos de sua posição quanto de sua estrutura e conteúdo.

A análise detalhada da abordagem do cronista à exegese exige que seja feita uma distinção entre seus métodos primário e secundário. Na primeira cate­goria devem ser incluídas aquelas mudanças gramaticais e lexicais que não afe­tam a mensagem global do livro.33 Elas incluem a atualização da ortografia dos nomes próprios (e.g. Ornã em lugar deAraúna, lC r 21.15 e seguintes; Abias em lugar de Abião 2Cr 13.1 e seguintes) ou desenvolvimentos lingüísticos como a tendência de transformar substantivos em verbos (e.g. “fazer reparos” 2Cr 34.10; cf. 2Rs 22.5; “impor tributo” 2Cr 36.3; cf. 2Rs 23.33).34 Na mesma categoria está a inclinação natural para amenizar algumas das dificuldades e a linguagem anti­quada do texto original. Os exemplos abrangem desde simples alterações, como substituir uma palavra obscura como “tamargueira” (1 Sm 31.13) por uma mais conhecida como “carvalho” (1 Cr 10.12), até uma possível correção da referência inexplicável à guerra contínua entre Roboão e Jeroboão I, durante a vida de Abias (2C rl3 .2 ;c f IRs 15.6).

Embora esses ajustes nos textos mais antigos sejam muito importantes para uma compreensão adequada do método global do cronista, eles não fa­zem parte da essência da mensagem do autor. Ele é muito mais do que um

32 Veja e.g. M. W eiss, The B ible from Within (Jerusalém : M agnes Press, 1984); M. Fishbane, Biblical Interpretation in A ncient Israel (Oxford: Clarendon Press, 1985).

33 Sobre o efeito dos textos disponíveis ao Cronista sobre sua obra, veja a seguir, p. 74.34 Para mais exem plos, veja e.g. W illi, CA, p. 78-91; Polzin, Typology, p. 28-69. O

mesmo fenômeno é também evidente nos empréstimos do inglês americano para o britânico!

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escriba e um modernizador de textos antigos. Ele se empenha acima de tudo na exegese teológica, empreendida de acordo com o princípio de permitir a pró­pria Escritura interpretar a Escritura. No centro de seu empreendimento está a convicção de que “a palavra de nosso Deus permanece eternamente” (Is 40.8;1 Pd 1.25). A palavra de Deus é tanto o tema de que o autor trata como também o método pelo qual ele o faz.

Essa preocupação com a palavra de Deus leva o cronista a sublinhar duas características distintas. A primeira é que a palavra de Deus é o padrão final sobre o qual suas relações com seu povo estão baseadas em cada geração. Os princípios subjacentes à sua palavra são imutáveis, embora os modos nos quais eles podem ser aplicados a novas situações sejam surpreendentemente adaptáveis. Isso é bem exemplificado tanto pela lei quanto pelos profetas. As leis de Deus permanecem válidas, por exemplo, em questões tão variadas como o transporte da arca (1 Cr 15; cf. Dt 10.8; 18.5) ou a data da Páscoa (2Cr 30.2; cf. Nm 9.9-13). Um exemplo particular­mente interessante da eficácia da palavra de Deus é proporcionado por duas experi­ências contrastantes da vida de Josias. Em um incidente, o rei leva muito a sério uma confirmação profética, sobre a ameaça de juízo divino contida em um rolo da lei recentemente descoberto, e ainda que a ameaça fosse real, o juízo foi retardado (2Cr34.14-31). Posteriormente, no entanto, Josias deliberadamente ignorou o que c de maneira fascinante descrito como “[o que o faraó] Neco lhe falara da parte de Deus” (2Cr 35.22), e pagou por sua negligência com sua vida. Do ponto de vista do cronis­ta, a palavra de Deus, quer antiga quer moderna, escrita ou falada, não é relíquia morta da história, mas algo que permanece vivo e efetivo (cf. Hb 4.12).

A segunda característica é a ênfase especial dada às duas “palavras” de Deus que já foram identificadas como sendo o centro da obra do cronista. Escri­tas num tempo em que o severo empobrecimento de Israel parecia ter tornado a palavra de Deus impotente, essas duas passagens são interpretadas de uma nova maneira para a geração do cronista. O autor mostra como as promessas da aliança de Deus com Davi podiam assumir um novo significado, ainda que os israelitas vivessem em uma versão muito inferior da Terra Prometida, o templo tivesse sido negligenciado e eles não tivessem um rei próprio. Mediante vári­as emendas pequenas, mas importantes, à versão antiga da primeira “palavra”, mostra-se que Deus está eternamente comprometido com suas promessas de aliança e com Salomão como sucessor de Davi e construtor do tempo (IC r17.1-15; cf. 2Sm 7.1-17). A segunda “palavra” concentra-se no significado po­tencial do templo para os leitores do cronista, embora as adaptações textuais sejam mais extensas neste caso (2Cr 7.11 -22; cf. lRs 9.1 -9). A associação ante­rior em Reis entre o templo e a obediência à palavra de Deus é substituída por uma ênfase na promessa de restauração através da oração respondida e da presença pessoal de Deus no templo (cf. lR s 9.3). Essa nova mensagem se estabelece pela ligação direta da oração de Salomão com a resposta de Deus (cp. 2Cr7.13 com 2Cr 6.26,28 = lRs 8.35,37), e também pela incorporação de

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várias promessas escriturísticas sobre o perdão de Deus (2Cr 7.14; cf. Lv 26.41; Jr 30.17; 33.6). Entre elas, as duas “palavras” enfocam o compromisso contínuo de Deus com Israel e o papel central desempenhado pelo templo como uma casa de oração e o símbolo da eterna vontade de Deus de perdoar.

Um sinal da importância dessas duas “palavras” em Crônicas é a recorrência de seus temas principais e a repetição de frases-chave, freqüentemente nas passagens sem paralelo nos livros anteriores. Referências importantes à aliança davídica aparecem em lCrônicas 22.6-13; 28.2-10; 2Crônicas 6.4-11,14-17; 13. 5,8; 21.7; 23.3; 36.23, enquanto a promessa de restauração aparece de uma forma ou outra em 2Crônicas 12.5-12; 13.13-18; 20.1-30; 32.24-26; 33.10-23, com seu oposto em 2Crônicas 16.12; 24.17-26; 33.22-25; 36.15-20. A promessa de restau­ração é tratada de um modo programático em todo o texto de 2Crônicas 10-36, com uma variedade de exemplos de como os princípios básicos podiam ser aplicados. Exemplos especialmente notáveis ocorrem no caso de Roboão, pri­meiro rei do reino do sul (2Cr 12.5-12), e de Manassés, que de acordo com Reis foi o pior rei de Judá (2Cr 33.10-23; cf. 2Rs 21.1-16). Os temas das duas palavras também são freqüentemente combinados. A aliança davídica, por exemplo, é muito mais intimamente ligada à ideologia do templo do que em Reis, como na declaração sobre o templo, feita por Davi (IC r 22.6- i 3; 28.2-10), ou no ponto de vista do cronista quanto ao futuro. Embora Deus finalmente pronunciasse o veredicto de (lit.) “não curai-” (2Cr 36.16; cf. 2Cr 7.14) sobre Israel, o que aparen­temente queria dizer que eles estavam fora do alcance da redenção, um novo começo ainda era possível, através da alusão de Ciro à aliança davídica e a um novo templo. A importância estratégica dessa reinterpretação das palavras de Deus é inequívoca.

IV. A Mensagem do Cronista(a) AliançaDe acordo com Crônicas, a aliança davídica é o elemento que mais clara­

mente expressa o significado da vida constante de Israel como o povo de Deus. Embora essa forma de aliança seja explicitamente mencionada somente em três passagens (2Cr 7.18; 13.5; 21.7), ela é muitas vezes referida, especialmente em relação comas promessas de Deus a Davi (e.g. ICr 17.18,23,26; 2Cr 1.9; 6.10,15, 42; 21.7; 23.3). Ela é também a corrente principal da qual fluem dois dos maiores temas que percorrem os livros de Crônicas, a saber, a dinastia davídica (1 Cr 28.5; 29.23; 2Cr 6.10,16; 2Cr 13.8; 23.3), e o templo de Salomão (IC r 17.12; 22.6-11;28.2-10; 2Cr 6.7-11). Em seus fundamentos e expressões visíveis, portanto, a aliança davídica é claramente central ao pensamento de Crônicas.

A característica primária da apresentação da aliança davídica feita por Crôni­cas é que sua própria existência depende da promessa de Deus. Todo se sustenta sobre o que Deus propõe, diz e faz. As boas intenções de Davi sobre a construção

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de um templo, por exemplo, devem ser postas de lado por que o caminho de Deus e o tempo de Deus têm de ter prioridade. Deus deve primeiro construir uma casa para Davi (lC r 17.10) e também escolher o construtor do templo (lC r 17.12; 28.6). Deus é também aquele que resgata e restaura a aliança quando sua conti­nuação é ameaçada, como aconteceu até sob a liderança de Davi quando a espada do juízo de Deus foi dramaticamente levantada contra Jerusalém (lC r 21.15). Na verdade, a linhagem davídica esteve em perigo de ser destruída por uma aliança desastrosa entre as dinastias de Davi e Acabe (2Cr 18— 23; especi­almente 21.6-7), se não fosse o fato de que “o S e n h o r não quis destruir a casa de Davi” (2Cr 21.7). Deus estava comprometido com essa aliança mesmo durante o exílio, como o cronista mostra por sua declaração de que o S e n h o r estava por trás do edito de Ciro de “edificar uma casa em Jerusalém” (2Cr 36.23).

A concepção de Deus como o inspirador e sustentador da aliança é reforçada por um interesse na eleição divina que não tem paralelo fora do Deuteronômio no Antigo Testamento. A escolha que Deus faz do povo e de lugares ocorre diretamente em nove passagens, somente três das quais têm algum tipo de paralelo nas fontes anteriores.35 Em acréscimo a isso, o conceito de eleição claramente sustenta a teologia das genealogias (lC r 1— 9), mesmo que o verbo “escolher” não apareça. A escolha propositada de Deus é indicada pelo modo no qual algumas linhagens vão até o fim e outras não, e pela proe- minência especial dada às tribos de Judá e Levi. Similarmente, o elo direto entre as genealogias tribais e a era pós-exílica (cf. lC r 9.2-34) é um claro sinal do compromisso de Deus para com sua escolha original.

A eleição em Crônicas está intimamente associada à aliança, como em Deuteronômio e, em menor extensão, em outras partes do Antigo Testamento. Em contraste com os textos mais antigos, no entanto, os objetos da escolha do Senhor estão quase todos associados mais com a aliança davídica do que com a mosaica. No lugar do interesse do Deuteronomista na eleição de Israel e do "lugar que Javé escolheu”, o cronista está preocupado com a escolha da família de Davi; especialmente Davi e Salomão (e.g. lC r 28.4-10; 29.1; 2Cr 6.5-6), a cidade de Jerusalém e seu templo (2Cr 6.6, 34, 38; 7.12,16; 12.13; 33.7) e os sacerdotes e levitas (lC r 15.2; 2Cr 29.11). A escolha de Davi e Jerusalém e de Salomão como sucessor de Davi e construtor do templo se destacam de maneira particular. Mesmo a escolha dos sacerdotes e levitas está tão associada à regu­lamentação que Davi faz da função deles como com sua indicação original (cf. ICr 15.2). Arejeição das casas de Saul (lC r 10.6; 12.29) e Acabe (2Cr 21.6-7; 22.3- 9) também confirma a eleição da dinastia davídica. Essa concentração na eleição c na aliança tem a intenção não somente de salientar sua relevância intrínseca

35 Veja IC r 15.2; 28.4-10; 29.1; 2Cr 6.5-6 (cf. IRs 8.16); 6.34, 38 (= IR s 8.44, 48); 7.12, 16; 2Cr 12.13; 29.11; 33.7 (= 2Rs 21.7).

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para Israel, mas também de confirmar aos leitores do cronista a contínua impor­tância da linhagem de Davi e do templo para a própria geração deles.

O garantido compromisso de Deus para com Israel também é expresso através de uma ênfase reforçada na permanência e inviolabilidade da aliança. Por exemplo, o refrão bem conhecido dos Salmos, “Por que seu amor dura para sempre”, ocorre muitas vezes, embora nenhuma das citações tenha paralelo nos livros de Reis (e.g. ICr 16.41; 2Cr5.13; 7.3,6; 20.21). Sua ocorrência freqüente é uma indicação de que a continuidade da aliança depende mais do amor de Deus do que das obras de Israel. O uso que o cronista faz da frase “para sempre” também é instrutivo. Em alguns lugares, como em lCrônicas 17.23 ou 2Crônicas 33.4, ela foi acrescentada ao texto mais antigo para confirmar a imutabilidade dos planos divinos. No próprio material do cronista, menção sempre é feita ou à natureza eterna da aliança, ou à imutabilidade dos propósitos de Deus. Deus tem a intenção de habitar permanentemente no templo de Jerusalém (ICr 23.25; 2Cr 30.8), onde os sacerdotes e levitas devem ministrar diante dele para sempre (1 Cr 15.2; 23.13). A terra foi prometida para sempre a Israel (2Cr 20.7), durante o tempo em que eles forem obedientes a seus mandamentos (ICr 28.8). O reinado conce­dido à família de Davi é um dom irrevogável, uma promessa que Deus garante pessoalmente (ICr 22.10; 28.4,7; 2Cr 13.5). Acitação feita por Abias da expressão “aliança de sal” (2Cr 13.5; cf. Nm 18.19) é um modo particularmente forte de indicar que Deus sempre preserva e protege sua relação com Israel.

Abias também menciona um outro aspecto muito importante e distintivo do envolvimento de Deus no conceito da aliança em Crônicas, a saber, o reino de Deus. Além dos Salmos e de Daniel, Crônicas é o único livro no Antigo Testamen­to que trata da noção de reino de Deus com algum detalhe. Visto que a realidade desse reino é revelada em Crônicas mediante a monarquia davídica e o templo de Jerusalém, ele é claramente um conceito de aliança. A força dessa conexão é con­firmada pela mudança na promessa de Deus de “tua casa e teu reino”, referindo-se a Davi, para “minha casa e meu reino” (ICr 17.14; cf. 2Sm 7.16). O ponto central aqui não é que esses fossem reinos diferentes na perspectiva do cronista, mas que um era expresso através do outro. O trono sobre o qual Davi e seus sucessores se assentaram é, na verdade, o trono de Deus, e o reino sobre o qual eles regeram é o reino de Deus (ver especialmente ICr 28.5; 29.23; 2Cr 9.8; 13.5,8). O autor repetida­mente associa o templo com o reino de Deus, como na afirmação de Davi ao completar os preparativos para a nova construção: “Teu, S e n h o r , é o reino” (ICr29.11). Como ocorre com o interesse na eleição, a nova ênfase sobre a permanên­cia da aliança davídica e a realidade do reino de Deus demonstrou que a aliança e o reino estavam ainda muito vivos, apesar da devastação causada pelo exílio.

Isso não quer dizer que Crônicas negligenciou as exigências da aliança do Sinai ou a necessidade dos seres humanos de reconhecer a responsabilidade por seu pecado. Longe disso, apesar da amplamente reconhecida falta de refe­rência direta por parte do cronista ao êxodo e às repetidas ordens da aliança do

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Sinai para a obediência de Israel. O motivo dessa situação bastante surpreen­dente é que no pensamento do cronista a aliança do Sinai é o fundamento para as promessas de Deus a Davi. O cronista, de fato, reteve referências ao êxodo em diversas passagens-chave, principalmente na promessa original da aliança davídica (IC r 17.5; 21; 2Cr5.10; 6.5; 7.22; 20.7). Ele também reteve dos textos mais antigos exigências de obediência às leis que Deus transmitiu a Moisés (2Cr 6.16; 7.17; 33.8), e sublinhou em passagens exclusivas de Crônicas a necessidade de se manter os padrões de Deus (1 Cr 22.13; 28.7; 2Cr 14.4).

O cronista também vê o valor positivo da lei da aliança como algo que foi continuamente relevante e efetivo, e não uma relíquia do passado. A lei, que é descrita como “a lei do S e n h o r ” (IC r 16.40; 2Cr 31.3), “a lei de Moisés” (2Cr 23.18; 30.16), ou “a palavra do S e n h o r , dada por intermédio de Moisés” (2Cr 35.6; cf. 1 Cr 15.15; etc.), muitas vezes ocorre em passagens que não têm paralelo, e é consistentemente vista como a expressão máxima da autoridade de Deus em Israel. Embora Davi e outros reis exerçam autoridade, sua autoridade é depen­dente do dom de Deus e está sujeita às exigências da lei, da mesma forma que para os demais. Ela é também uma autoridade limitada, visto que a interpretação que Davi dá à lei de Deus está restrita a áreas específicas da organização dos rituais e pessoal do templo, e o estabelecimento da parte musical da adoração no templo.36 Embora isso tenha levado Davi a ser visto como um segundo Moisés, só serve para sublinhar a supremacia da própria lei mosaica. É a lei mosaica que é a base de uma sucessão de movimentos de reforma, que recebem mais desta­que como uma sucessão de eventos relacionados do que em Reis. Embora a reforma de Josias seja bem conhecida (2Cr 34— 35 = 2Rs 22— 23), o cronista menciona ainda uma campanha de alcance nacional sob Josafá para instruir a população no “Livro da lei do S en h o r ” (2Cr 17.1 -9; cf. 19.4-11), e uma cerimônia de renovação da aliança durante o reinado de Asa baseada na tradição da alian­ça do Sinai (2Cr 15.12-15). Uma aliança também ocorreu no reinado de Ezequias (2Cr 29.10) restabelecendo o padrão de culto exigido pela lei mosaica (2Cr 29.15- 35) e as instruções suplementares de Davi sobre os levitas (2Cr 29.25-26,30). Esses vários incidentes demonstraram claramente que aos olhos do cronista a lei permanecia um conceito vivo, que necessitava ser periodicamente restaura­do à sua legítima prioridade na vida de Israel.37

Da mesma maneira, a confiança do cronista nos inabaláveis propósitos de Deus para com Davi não foi alcançada à custa de ignorar as fraquezas de Davi e Salomão, embora seja muitas vezes alegado que ele os apresentou como reis imaculados que não podiam errar.38 Aqueles que apontam para a omissão de

36 Cf. Japhet, Ideology, p. 234-239.37 Cf. T. W illi, ‘T hora in den biblischen C hronikbüchern’, Judaica 36, 1980, p. 102-

105, 148-151.38 E.g. D illard, p. 1-5; M ichaeli, p. 143-168; G. von Rad, Old Testam ent Theology, I

(London: SCM Press, 1962), p. 350-351.

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falhas óbvias como o adultério e o assassinato praticados por Davi ou a poligamia e a extravagância financeira de Salomão, não compreenderam bem que ele está muito mais interessado no modo como os propósitos da aliança de Deus se mani­festam em suas vidas. A prioridade maior do ponto de vista do cronista sobre Davi e Salomão é que Deus deu à família deles o dom realeza e confirmou isso através da obediência de Salomão ao construir o templo. Nesse contexto, as falhas de Davi que o cronista menciona são muito mais sérias, visto que eles dizem respeito à sua incapacidade de discernir o que Deus estava fazendo. Ele se equivoca quanto à verdadeira natureza da santidade de Deus na arca (1 Cr 13) e seu orgulho egoísta o impede de compreender a verdadeira natureza de Israel como povo de Deus (ICr 21). O templo, portanto, toma-se tanto um meio de expiação para o pecado de Davi como um sinal da fidelidade de Deus na aliança. A enfoque, sobre o templo no relato de Salomão apenas confirma essa tese. Embora o templo seja um sinal de que Deus guarda sua promessa e da obediência de Salomão (cf. ICr 28.2-10; 2Cr6.3-10,14-17), ele também é necessário para todos em sua necessidade de perdão “pois não há homem que não peque” (2Cr 6.36).

O interesse do cronista na aliança é em grande parte devido a seu inte­resse na verdadeira identidade de Israel, embora seja notável que ele se con­centre mais na aliança davídica do que na mosaica para expressar seu pensa­mento. O que é surpreendente é que no Antigo Testamento a aliança mosaica está principalmente relacionada a todo o povo de Israel, ao passo que a alian­ça davídica, em geral enfoca apenas uma família dentro de Israel. A razão de Crônicas preferir aplicar a aliança davídica ao povo não é porque haja alguma deficiência na aliança mosaica, visto que já foi mostrado que esta última tem um papel de destaque em Crônicas. Uma explicação mais provável é que como a vinda do exílio levou ao fim da monarquia, a aliança davídica começou a ser interpretada de uma nova maneira. Essa nova interpretação é em especial des­tacada em Isaías 55.3, onde a promessa de uma aliança eterna para Davi é explicitamente estendida a todo o povo: “convosco farei uma aliança eterna” . Visto que o cronista usa esse versículo diretamente em uma passagem impor­tante em 2Crônicas 6.42, parece que ela teve uma grande influência em sua compreensão do significado das alianças de Deus para Israel.

O fato e a qualidade da relação de Israel com Deus era mais importante do que sua situação política na época, e seu status como o povo de Deus valia mais do que a cidadania do império persa ou do grego. O que quer que tivesse acontecido a Israel no passado, nada mudaria o fato de seu relacionamento com Deus, e o cronista certamente teria concordado com a declaração de Paulo de que nada “poderá separar-nos do amor de Deus” (Rm 8.39). Embora essa inter­pretação da aliança tenha algumas diferenças de ênfase, quando comparada a dos profetas ou a dos autores da História Deuteronômica, os contrastes são o resultado do contexto diferente, a partir do qual o cronista estava escrevendo. Enquanto os autores mais antigos salientavam que era possível quebrar a alian­

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ça e que Israel seria punido por desobedecer às leis de Deus, uma perspectiva com a qual o cronista ainda estava de pleno acordo (e.g. 2Cr 7.19-22), uma nova ênfase era necessária agora que o castigo merecido do exílio havia passado. Embora os padrões de Deus não tivessem mudado, agora estava mais claro do que nunca que a participação de Israel na aliança seria preservada somente mediante o compromisso de amor de Deus para com eles. Israel tinha de começar a aprender novamente tudo o que significava estar em aliança com Deus.

(b) Israel como povo da aliançaQuais as implicações práticas de se estar ligado a Deus por meio de uma

aliança? A resposta do cronista a essa pergunta era quase com certeza diferente da resposta da maioria dos seus contemporâneos e também da resposta da obra de Esdras-Neemias. Enquanto muitos israelitas pós-exílicos se inclinavam a pen­sar em si mesmos como abatidos, modestos, culpados, fracos, um grupo de extraviados sempre na defensiva, o cronista era um otimista teológico que dese­java trazer nova esperança a seu povo.

A questão mais importante para os leitores do cronista era sua própria atitude para com os outros israelitas do passado e do presente. O autor lembrou a eles primeiro que sua linhagem não remontava apenas a Davi, mas podia ser traçada até o próprio Adão (1 Cr 1.1). A comunidade pós-exílica era parte do que Deus havia planejado, não apenas para Israel, mas desde a própria criação da raça humana. Eles desfrutavam de um lugar especial entre as nações do mundo e não estavam, portanto, em última análise, sujeitos aos caprichos da política estrangeira e suas decisões militares. Igualmente importante, no entanto, era que os israelitas admitissem sua verdadeira amplitude, pois eles não estavam restritos aos membros de Judá e Benjamim que formavam a maioria da comunida­de pós-exílica. Conforme as genealogias de lCrônicas 2.1—9.1, eles eram des­cendentes de todos os doze filhos de Jacó. De fato, o cronista se esforça muito para salientar que as antigas divisões de norte e sul eram na realidade uma conseqüência de um juízo temporário sobre os excessos de Salomão, mas que cada oportunidade deveria ser aproveitada para a reconstrução da comunidade integral. O convite de Ciro para os exilados retomarem é dirigido, por exemplo, a “quem dentre vós é de todo o seu povo” (2Cr 36.23), oferecendo oportunidade a qualquer pessoa de descendência israelita a retornar à terra de Israel (cf. ICr 9.3; 11.1-3; 12.38-40; 2C rl 1.13-17; 15.9; 30.1-12; 34.9; 35.18).

O cronista jamais perde de vista a importância da unidade de Israel. A frase “todo Israel” aparece com mais freqüência que em suas fontes e com novo signi­ficado, enfatizando que o norte e o sul são ambos verdadeiramente Israel (e.g. 2Cr10.16— 11.3).39 Na mesma linha, os israelitas são por repetidas vezes chamados de

39 Cf. a aplicação de “todo Israel” ao norte (2Cr 13.4,15; 30.1,6) e ao sul (2C r 12.1; 24.8; 28.23). veja ainda, Japhet, Ideology , p. 270-278; W illiam son, IBC, p. 87-131.

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“irmãos”, em passagens sem paralelo em Samuel e Reis, particularmente em con­textos onde uma tensão real existia entre os vários grupos (e.g. ICr 12.39; 13.2; 2Cr11.4; 28.8,11,15). Representantes das tribos do norte também são elogiados quan­do apropriado (e.g. 1 Cr 5.1 -2; 2Cr 11.16-17; 28.12-15), e um bom número de casa­mentos mistos são mencionados sem qualquer forma de censura (e.g. 1 Cr 2.4,17, 34-35; 4.18; 2Cr 8.11). Aunidade, porém, não deve ser obtida a qualquer preço. Além de sublinhar que a divisão da monarquia era a vontade de Deus (2Cr 10.15), Crônicas rejeita quaisquer formas de reunificação que possam resultar da violên­cia e da cobiça (2Cr 11.1-4; 13.3-20; 22.10— 23.21; 28.5-11) ou que estejam basea­das em alianças profanas (2Cr 18.1— 19.3; 20.35-37; 25.6-10). A única base genu­ína para unidade envolvia uma nova abordagem ao culto do Senhor, quando o norte e o sul pudessem se unir novamente diante do altar de Deus. Isso, é claro, significava abandonar todas as formas de idolatria (e.g. 2Cr 11.15-17; 13.8-9; 28.1- 5, 22-25) em favor de um reconhecimento de que o templo de Jerusalém era a escolha de Deus para sua morada terrena. O culto unido então poderia se tomar realidade, particularmente em ocasiões especiais como as cerimônias da aliança (2Cr 15.8-15) ou a Páscoa (2Cr 30.1 -20; 35.1S).4"

Crônicas, portanto, mostra pouca evidência de uma atitude anti-samaritana, apesar de alegações anteriores em contrário.41 Esses pontos de vista dependiam em grande medida da aceitação de um elo estreito entre Crônicas e Esdras- Neemias, embora nos últimos anos os eruditos tenham identificado diferenças substanciais entre as duas obras sobre esse e um bom número de outros assun­tos. De fato, a negligência do cronista quanto ao reino do norte deve ser explicada mais em termos de suas convicções positivas acerca da monarquia davídica e do templo de Jerusalém do que por qualquer preconceito inato.

Uma característica distintiva da visão que o cronista tem de Israel é o que tem sido designado como tendência “democratizante”.42 Embora essa descrição precisa possa ser questionada, está claro que o cronista consistentemente des­taca o papel do povo em contraste com o do rei. Incidentes que em Samuel e Reis envolviam o rei e um grupo de associados são freqüentemente atribuídos a todo opovo(<?.g. ICr 11.4; 13.5; 15.25; 2Cr 1.2-5). No próprio material do cronista, uma série de incidentes concentra-se sobre o papel desempenhado pelo povo, inclu­indo as contribuições para o templo (1 Cr 29.5-6; 2Cr 31.2-10), a revolta de Joiada contra Atalia (2Cr 23.2-3) e a cruzada antiidólatra de Ezequias (2Cr 31.1). Esse

411 Sobre a idéia de que o templo é apresentado como um foco de unidade israelita, veja H. G. M. W illiamson, in W. Horbury (ed.), Templum Amicitiae, JSNTS 48 (Sheffield: Sheffield A cadem ic Press, 1991), p. 15-31.

41 E.g. von Rad, GCW , p. 24; R udolph, p. IX; J. A. Soggin, Introdutiou to the Old T estam ent (London: S C M ,2 1976), p. 418. U m a o p in ião co n trá ria é a p re se n ta d a em W illiam son, IBC, p. 87-140; Braun, p. xxxv-xxxvii; R. J. Coggins, Sam aritans and Jew s (Oxford: Blackwell, 1975).

42 Japhet, Ideology, p. 417-427.

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INTRODUÇÃO

interesse é mantido mesmo onde o povo não apoiou as reformas do rei como o cronista teria desejado, como nos reinados de Jotão (2Cr 27.2) e Ezequias (2Cr30.10). Talvez mais incrível, no entanto, seja a menção regular de assembléias do povo e o freqüente elogio dos reis que fizeram consultas. Davi era particular­mente disposto a agir junto com a assembléia, quer envolvesse vários tipos de líderes quer todo o povo (IC r 13.2-5; 22.2; 23.1; 28.1; 29.1), e diversos reis segui­ram seu exemplo (e.g. 2Cr 15.9-15; 20.5,14,26; 28.14; 29.4; 30.2). Os mesmos reis também faziam questão de consultar seus súditos, inclusive Davi (IC r 13.1), Salomão (2Cr 1.2), Josafá (2Cr 20.21), e Ezequias (2Cr 30.2; 32.3), embora, em contraste, alguns que buscaram o conselho de um grupo limitado de partidários tendenciosos tenham caído em profunda desgraça (2Cr 10.6-14; 25.16-17). O interesse na assembléia sem dúvida reflete o costume da época do próprio cro­nista (cf. Ed 10.1-5,7-15; Ne 7.73b— 8.18), e era também um lembrete de que durante toda a história de Israel, o povo podia ter um impacto decisivo sobre o destino da nação. Não é por acaso que o principal apelo à restauração seja endereçado ao “meu povo” (2Cr 7.14).

Certas atitudes eram esperadas de Israel como o povo da aliança de Deus, das quais a mais importante na terminologia do cronista é que eles devem “bus­car” constantemente a Deus. Passagens nas quais a palavra ocorre têm um destaque especial, muitas vezes no início do reinado de um rei de um modo que dá o tom para o que se segue (e.g. ICr 13.3; 2Cr 1.5; 14.4,7; 20.4; 34.3). Ela é uma ênfase-chave nas falas de despedida de Davi (IC r 22.19; 28.8-9), e é um tema contrastante nos relatos de Roboão (2Cr 11.16; 12.14) e Asa (14.4; 15-12.13;16.12). Deixar de buscar o Senhor era tomar-se passível do juízo de Deus (e.g. ICr 10.13-14; 15.13; 2Cr 12.14; 25.15,20), enquanto que buscar novamente a face de Deus fazia parte do processo de restauração (2Cr 7.14). O termo descreve não uma busca por Deus, mas a orientação de toda a vida para ele. Isso era particu­larmente refletido no culto que era fiel ao Senhor (1 Cr 13.3;2Cr 1.5;2Cr 15.12-13; 31.21), mas também podia incluir atividade de construção (ICr 11.8-9; 2Cr 14.7) e êxito militar (e.g. 2Cr 20.22-26; 32.7). Apesar da freqüência e importância do termo, no entanto, há pouca evidência para apoiar a reivindicação de que, por si só, resuma o que significa a obra do cronista.43

Aqueles que fizeram do hábito de buscar a Deus como um modo de vida podiam esperar as bênçãos de Deus de várias maneiras (ICr 14.10,13; 28.9; 2Cr 14.7; 31.21), mesmo em circunstâncias desfavoráveis (2Cr7.14; 20.3-4; 30.18-19). Os benefícios podiam incluir Deus estar “com” seu povo (1 Cr 22.11,16; 2Cr 15.2,9;17.3-4; 20.17), a “ajuda” de Deus ou seu apoio (ICr 15.26; 2Cr 14.11; 26.7,15), prosperidade (ICr 22.13; 2Cr 26.5), “cura”, isso é, integridade espiritual e física

43 Contra C. Begg, ‘ “Seeking Yahweh” and the purpose o f Chronicles’, Louvain Studies9, 1982, p. 128-141; cf. G. E. Schafer, ‘The significance o f seeking God in the purpose of the C hron icler’, Th.D ., Louisville, 1972.

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(2Cr7.14; 30.20; cf. 2Cr 36.16), uma grande família (1 Cr 26.5; 2Cr 13.21; 24.1-3), paz e repouso (2Cr 14.7; 20.29-30; 23.21), e um reconhecimento por parte dos estran­geiros da realidade do poder de Deus (ICr 14.17; 2Cr 20.29-30; 32.23). Por outro lado, o fato de que reis piedosos sofreram sérias atribulações em diversas ocasi­ões (2Cr 14.9-11; 20.1-13; 32.1) indica que a fidelidade a Deus não era garantia automática de sucesso. A bênção sempre foi tratada pelo cronista como sendo essencialmente um dom imerecido, embora Deus sempre estivesse pronto para ser generoso com aqueles que positivamente se orientavam para ele. As orações, de maneira especial, destacam esse sentido de dependência da graça de Deus, pois até quando o povo tinha sido generoso, eles só podiam dar porque Deus havia lhes dado algo anteriormente que pudessem ofertar (ICr 29.16)! Nesta mesma linha, o ato de Davi de trazer a arca para Jerusalém foi reconhecido como “o que ele [i.e. Deus] tem feito (NVI)” (ICr 16.8), e o trono de Salomão e seu templo foram patentemente atribuídos à fidelidade de Deus às suas promessas (2Cr 6.10; cf. 2Cr1.1-12). Os israelitas do período pós-exílico estavam sendo, de maneira especial, lembrados de que não só deviam sua própria existência ao amor fiel de Deus, mas também que seriam abençoados ainda mais se buscassem a ele e a seus caminhos.

Duas bênçãos especiais da aliança se destacam em Crônicas, das quais a primeira é a presença de Israel na Terra Prometida. O fato de que o autor atualiza as informações daqueles que repovoaram Jerusalém sob Neemias confirma a impor­tância da terra para a comunidade pós-exílica. Há também uma impressão de que a posse que Israel tinha da terra e o usufruto de seu “descanso” era algo para cada geração experimentar novamente.44 Todo o tema da terra remonta à promessa da aliança de Deus com Abraão (1 Cr 16.15-18; 2Cr 20.7; cf. 1 Cr 28.8), onde a presença de Israel na terra foi vista, desde o início, como uma questão mais de dom do que de direito. Atenção também é dada à expansão das tribos em diferentes partes da Terra Prometida (especialmente ICr 4.24— 5.26). Embora a terra tivesse sido dada a Israel, ela também teve de ser ocupada com a ajuda de Deus, como é expresso de forma muito bela na oração simples de Jabez, “Oh! Tomara que me abençoes e me alargues as fronteiras” (ICr 4.10). Da mesma forma, Davi completar a tarefa de Josué de ocupar a terra é vital, já que essa é uma precondição para a construção do templo. Por outro lado, ameaças à presença de Israel na terra são vistas como um desafio aos propósitos declarados de Deus (cf. 2Cr 20.6-11; 32.9-20). A maior ameaça foi naturalmente o exílio, embora seus efeitos pudessem ser revertidos pelo arrependimento (2Cr 30.9) e a fé ativa (2Cr 36.23).

A segunda dessas bênçãos é a presença de Deus com seu povo. Os israelitas tinham muita consciência disso quando estavam sob ataque militar, como quando Ezequias descobriu por si mesmo que o Senhor é um Deus que intervém para salvar e libertar seu povo (2Cr 32.22; cf. 32.10-17). Esse não é de forma alguma o único exemplo, no entanto, porque a presença de Deus assegu­

44 Japhet, Ideology, p. 386-393.

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rou vitórias inesperadas para os exércitos de Israel em várias ocasiões (e.g. ICr 14.9-16; 2Cr 14.8-15; 18.28-32; 20.15-17,22-26). Opovo de Deus, no entan­to, não podia contar com o fato de que ele sempre estaria a seu lado. Houve ocasiões quando Deus lutou tanto contra Israel (2Cr 24.23-26) como contra Judá (2Cr 28.5-8), e Abias deu um alerta rude a Jeroboão I: “não pelejeis contra o S e n h o r , Deus de vossos pais, porque não sereis bem-sucedidos” (2Cr 13.12). Não obstante, Deus jamais abandonou seu povo àqueles que lhes trouxeram atribui ações, e embora Israel nem sempre o honrasse, a causa deles era em última instância sua causa. Nem mesmo o desastre do exílio podia mudar isso.

(c) O templo como o lugar do culto centrado na aliançaO templo de Jerusalém e seu sistema de culto claramente dominam boa parte

de Crônicas. A maior parte do reinado de Davi é dedicado aos preparativos para o templo e todo o reinado de Salomão gira em tomo da construção do templo. O templo também tem um destaque nos reinados de Abias, Uzias e principalmente Ezequias que não tem nos livros dos Reis (cf. 2Cr 13,26,29— 31), e os levitas, que contribuíam no serviço do templo, são muitas vezes mencionados.

O interesse do cronista no templo, no entanto, tem menos a ver com sua aparência física do que com seu significado, como foi ilustrado por sua abrevi­ação do relato da construção do templo (2Cr 3-4) e sua expansão das cerimônias de dedicação (2Cr 5-7), como aparecem no livro de Reis. O ponto de vista do cronista sobre o templo não coincide com o de Reis, onde o templo é o lugar escolhido pelo Senhor para o culto de Israel em contraste com os santuários idólatras por toda a terra. Embora essa ênfase tenha sido mantida, o cronista deu uma nova prioridade a um outro tema presente em Reis, a saber, a ligação entre o templo e a aliança davídica. Essa conexão é repetidamente mencionada em uma série de passagens sem paralelo em Samuel e Reis a respeito das duas casas que Deus prometeu a Davi (1 Cr 22.6-13; 28.2-10; 2Cr 6.4-11,14-17; 13.4-12). Ela tam­bém é confirmada pelo testemunho de Salomão de que Deus guardou sua pro­messa a respeito das duas casas (2Cr 6.10). A dinastia de Davi e o templo de Salomão juntos representavam ‘o centro do reino do Senhor na terra’.45

O elo entre o templo e a família real se mantém através do cuidado contínuo da dinastia davídica para com o templo e seus serviços. Além do interesse detalha­do de Davi nos preparativos para a construção (1 Cr 22— 29), presume-se que seus sucessores serão fiéis guardiões do culto do Senhor. Abias, por exemplo, de­monstrou seu compromisso para com as intenções de Deus com sua adesão fiel ao templo e seu culto (2Cr 13.4-12). Reis como Josafá, Joás e Ezequias que lideraram reformas religiosas foram destacados com elogios, ainda que nenhum detalhe desses eventos sejam dados nos Livros dos Reis (2Cr 24.1— 16; 29.1—31.21).

45 M yers, I Chronicles, p. LXVIII.

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O cronista se importava particularmente com o pessoal do templo, suas atividades e as atitudes de seus adoradores. Entre toda a parafernália, são as várias funções dos levitas no “serviço” ou “ministério” que são destacados (e.g. ICr 23.2-5, 28-32), acima até das atividades dos sacerdotes. O propósito principal por trás disso parece ser sublinhar a suprema importância do louvor e do sacrifício. O sacrifício é mais proeminente em Crônicas do que em Reis, como é indicado pelo uso da descrição pós-exílica do templo como “casa do sacrifí­cio” (2Cr 7.12; cf. Ed 6.3). O cronista inclui vários resumos do ritual sacrifícial do templo em contraste com um único versículo sobre o assunto em Reis, desse modo sublinhando a importância do culto regular (ICr 23.11; 2Cr3.4; 8.13; 13.11; 31.3; cf. lRs 9.25). A contribuição dos levitas a esse padrão de culto foi crucial (IC r 9.28-32; 23.28-32; 2Cr 8.14; 13.10), e eles foram congratulados em mais de uma ocasião por cuidar daquilo que o Senhor exigia (cf. 2Cr 11.14; 29.34).

E, no entanto, na parte musical do culto que o papel dos levitas tem sua contribuição de destaque (lCr6.31-32; 15.16-28; 16.4-6,37-42; 25.1 -31; 2Cr 5.12-13; 7.6; 20.19,21; 29.25-30). A organização feita por Davi da divisão dos levitas em três grupos de músicos é muitas vezes mencionada (1 Cr 6.31-48; 15.16-22; 25.1 -31; 2Cr 8.14; 29.25-30), como o envolvimento deles no louvor de Israel (cf. e.g. ICr 16.4-6, 37-42; 2Cr 5.11-14; 7.4-10). Sua função principal é, na verdade, conduzir o povo no louvor, sem o qual os diversos rituais sacrificiais de Israel seriam pouco mais que um testemunho silencioso da aliança. Os levitas “foram nominalmente designa­dos para louvarem o S en h o r ” (ICr 16.41), e o famoso refrão dos Salmos, “pois seu amor dura para sempre”, freqüentemente encontra-se no louvor que eles conduzi­am (ICr 16.34,41; 2Cr 5.13; 7.3,6; 20.21), como se fosse um tipo de canção levítica. Esse louvor não era para benefício dos próprios levitas, mas para o do povo (ICr15.16-28; 2Cr 7.4-10; 20.14-23). A tarefa dos levitas era capacitar o povo a se tomar um povo de adoradores e a terem consciência do que Deus podia fazer através de e por eles. Com o incentivo dos levitas, o povo restituiu a arca a seu lugar legítimo (ICr 15.16-28), celebrou os festivais designados (2Cr 7.4-10), e exerceu a fé coletiva em tempo de crise nacional (2Cr 20.14-23). O louvor musical também tinha um aspecto de profecia, e uma passagem até usa “levitas” onde “profetas” é encon­trado no texto mais antigo (2Cr 34.30; cf. 2Rs 23.2). Como em outras partes da Bíblia, a profecia em Crônicas é um termo abrangente que inclui tanto o louvor dos levitas a Deus (ICr 25.1-5) quanto sua habilidade em falar palavras específicas de direcionamento (2Cr 20.15-17; cf. 2Cr 24.20).

Esses exemplos ilustram a importância central do templo para cada geração de israelitas. A atitude deles quanto ao seu culto era um tipo de barômetro espiri­tual de seu compromisso para com Deus, assim como uma oportunidade através da qual Deus podia abençoá-los novamente (2Cr7.10; 31.21; cf. 24.16). O conceito do cronista de culto aceitável envolvia sacrifícios físicos junto com oração e louvor. Tudo isso era necessário, mas se surgisse um conflito entre a intenção de uma pessoa de adorar a Deus e as exigências rituais da lei, uma atitude correta de

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coração era claramente a maior prioridade diante de Deus (2Cr 30.18-20). O cronista certamente teria aprovado a instrução de Jesus: “os verdadeiros adoradores ado­rarão o Pai em espírito e em verdade” (Jo 4.23). Embora a observância apropriada da lei ritualista proporcionasse o quadro correto para o culto, a maior preocupação do cronista era que o culto resultasse de um coração completamente comprometi­do com Deus. Deus procura por Israel para que esse o sirva “de coração íntegro” (ICr 28.9; cf. e.g. 1 Cr 29.9,19; 2Cr 6.14; 11.16; 31.21; 34.31), da maneira que as tribos vieram de “todo coração” e “de um só coração” para reconhecer a escolha que Deus fez de Davi como rei (IC r 12.38). Deus responde àqueles que expõem o “desejo” de seu “coração” diante dele (2Cr 1.11), e até os pecadores são aceitos quando se arrependem de todo coração e alma (2Cr 6.38; 29.10).

O culto verdadeiro em Crônicas se caracteriza pela alegria, generosidade e união. A ênfase notável sobre a alegria mostra que o autor não é um ritualista severo e rígido, mas alguém que está na tradição do ensino de Jesus de que a alegria é uma conseqüência natural da obediência ao Pai (cf. Jo 15.10-11). Esse regozijo era em geral uma experiência coletiva em Crônicas, e era expresso tipica­mente nas celebrações das principais festas, quer de tipo regular, quer em ocasi­ões especiais (ICr 12.40; 15.25; 29. 9,22; 2Cr 7.10; 15.15; 20.27; 30.26). Às vezes também ele era acompanhado de exemplos de generosidade incomum que estimu­lavam mais o testemunho da bondade de Deus (e.g. 1 Cr 29.6-9; 2Cr 31.4-10).

O cronista via no culto do templo a maior esperança de restauração de um sentimento de identidade de Israel como o povo de Deus. Isso era particu­larmente verdadeiro a respeito das Páscoas celebradas por Ezequias e Josias (2Cr 30.1 -13; 3 5.17-18), mas a mesma ênfase também ocorre com força em ou­tras ocasiões (2Cr 7.4-10; 11.14-16; 15.9-15). O templo expressava a própria es­sência de Israel como uma comunidade de adoradores, incluindo os estrangei­ros (1 Cr 13.13-14; 2Cr 6.32-33) que reconheciam o Senhor como o Rei de aliança.

(d) A aliança como uma base para a restauraçãoAinda que o cronista goste de salientar a identidade de Israel como o povo

da aliança de Deus, a nação consistentemente deixava de cumprir com suas obrigações. A infidelidade de Israel é um dos temas mais repetitivos de Crônicas, e uma das razões principais para destacar-se a aliança davídica e o templo é o papel vital que eles desempenham na provisão de Deus para a restauração. A atenção centra-se novamente nas duas palavras de Deus, que além de seu foco na inviolabilidade da aliança também afirmam o compromisso de Deus de perdoar e renovar seu povo.

O fracasso de Israel é particularmente expresso por meio de duas pala­vras hebraicas relacionadas, m ã‘al e ma 'al, que significam “agir infielmente” e “infidelidade”, respectivamente. A distribuição dessas palavras pela obra mos­tra que do início ao fim, Israel é culpado diante de Deus (lC r2 .7; 2Cr36.14). Em razão dessa infidelidade, tanto o reino do norte quanto o do sul estavam

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sujeitos ao castigo do exílio (ICr 5.25-26; 2Cr 36.15-20). Reis individuais que se comportavam do mesmo modo sofreram diversos revezes tais como exílio pes­soal (2Cr 33.19), a invasão de sua terra (2Cr 12.2; 28.19), ou mesmo a perda de seu reinado (1 Cr 10.13-14).

Infidelidade é claramente um termo-chave em Crônicas. Fez-se uma tenta­tiva de deduzir seu significado preciso a partir da lei do Pentateuco que diz respeito à oferta de culpa ou de reparação (Lv 5.14— 6.7) onde ele tem o sentido de privar Deus daquilo que lhe é devido.46 Seu uso em Crônicas, no entanto, parece corresponder mais de perto a Levítico 26.40 e em menor extensão ao livro de Ezequiel, onde a culpa é mais de toda a comunidade do que de apenas um indivíduo. A passagem em Levítico 26.40-45 é particularmente significativa em vista de sua influência em passagens-chave em Crônicas tais como 2Crônicas 7.14 e 36.21. Mâ ‘ai também não está restrita em Levítico 26 a formas de pecado específicas, mas se refere de forma mais genérica a agir pecaminosamente contra Deus. Isso é coerente com o uso que o cronista faz dele como um virtual sinôni­mo da expressão freqüente, “abandonar (a Deus)” (heb. ãzab).41 A rejeição pes­soal de Deus é mais importante em Crônicas do que simplesmente deixar de cumprir suas exigências, e essa ênfase se confirma pelo uso de mâ ‘al no contex­to da infidelidade conjugal (Nm 5.12,27).

Os exemplos de infidelidade e rejeição a Deus por parte de Israel são repeti­dos tantas vezes que parece que nada pode desviar o castigo de Deus. Todas as gerações estão implicadas, mesmo aquelas que tiveram reis bons. Davi deixa de reconhecer a verdadeira natureza da arca (ICr 13) e do povo de Deus (ICr 21), Salomão coloca um jugo pesado sobre o povo (2Cr 10.3,9-11,14), Asa reverte sua boa política anterior (2Cr 16), e Josafá se envolve em uma aliança desastrosa com a casa de Acabe (2Cr 18.1— 19.3; 20.35-37). Joás se volta para a idolatria uma vez que a influência refreadora de seu guardião Joiada é removida (2Cr 24.17-27), Ezequias sucumbe ao orgulho pelas suas próprias obras (2Cr 32.25, 31), e Josias deixa de admitir a liderança de Deus mostrada em um conselho sensato de um rei estrangeiro (2Cr 35.20-24). Além, portanto, dos reis que foram mais conhecidos por seus caminhos ímpios, está claro em Crônicas que a culpa de Israel deveu-se também aos chamados bons reis (ICr 21.3,8; 2Cr 19.10; 24.18; cf. 2Cr 28.10, 13; 33.23). O resultado do comportamento desses reis foi que Deus ficou furioso (ICr 13.11; 15.13; 2Cr 19.2,10; 24.18; 32.25-26; ç/: 2Cr 25.15; 28.9,25; 29.8,10; 36.16) e lhes infligiu uma variedade de castigos {cf. lC r21.7-16; 2Cr 12.5; 16.7-10; 20.37). Omais sério desses castigos foi a realidade do exílio, que foi visto como algo muito maior do que o evento único da queda de Jerusalém, em 587 a.C. A queda do reino do norte em 722 a.C. resultou na experiência do exílio compartilhada com os cidadãos do sul (ICr 5.25-26; 2Cr 29.9; 30.6). Apesar das boas intenções de Ezequias e

46 Johnstone, ‘G uilt’, p. 113-138.47 E.g. IC r 28.9; 2Cr 7.19, 22; 15.2; 24.20, 24; 28.6; 29.6.

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INTRODUÇÃO

Josias, essa experiência jamais foi completamente removida, e a ameaça do exílio final paulatinamente ganhou força durante as últimas poucas décadas da existên­cia de Judá até o ponto em que não houve mais adiamento (2Cr 33.11; 34.23-24,28; 36.4,6,10,20). É claro que, após o fim total de Judá, a experiência como um todo entrou profundamente na psique de Israel, e os efeitos ainda foram sentidos por um bom tempo depois que alguns começaram a retomar (1 Cr 9.1 -2).

Esse resumo da situação de Israel é bem diferente da explicação comumente associada com a teoria da retribuição imediata, uma idéia que se afirma ser um elemento central do pensamento do cronista desde a época de Wellhausen (1878).48 De acordo com esse ponto de vista, “recompensa e castigo não são adiados, ao contrário, seguem de perto os eventos que vão acontecendo”.49 Sem dúvida, é verdade que, mais que a maioria dos autores do Antigo Testamento, o cronista afirma a existência de um forte elo entre a obediência e a bênção e a desobediência e o juízo na vida dos indivíduos, mas esse princípio não é nem simplista nem automático. O juízo, por exemplo, pode ser cumulativo, como no caso do exílio ou do modo como os reis rejeitaram completamente os ensinamentos dos profetas (cf. 2Cr 24.19; 36.16). Em outras ocasiões, o juízo prometido contra um indivíduo ou nação muitas vezes não ocorre, devido a uma resposta de arrependimento a uma advertência profética (cf. ICr 21.15-19; 2Cr 12.5; 15.1-8; 36.15).50 Deus freqüentemente faz essas advertências numa tentativa de impedir que seu povo passe por maiores tribulações. Além disso, a confirmação do cronista de que não há ninguém que não peque (2Cr 6.36) indica que todos merecem o juízo. Essa conclusão foi diversas vezes obscurecida por aqueles que descreveram Davi como um “rei santo e imaculado que faz orações solenes”, ou Salomão como “inteiramente sem faltas em seu relacionamento com Javé”. 51 Contudo, essas últimas avaliações não correspondem nem à realidade nem ao texto do cronista.

Parece, portanto, que retribuição imediata é um termo muito restrito para expressar adequadamente a teologia de juízo e bênção do cronista, e seria sábio revisar substancialmente o uso do termo. Ao menos três aspectos distintos reque­rem nova consideração. Primeiramente, o interesse do cronista em correlacionar pecado e juízo tem mais a ver com a maneira do juízo do que com o fato dele. Ele tem plena convicção sobre o bem conhecido princípio bíblico de que o castigo deve ser adequado ao crime, como na expressão “se o deixardes, [ele] vos deixará” (2Cr 15.2, cf. lCr28.9; 2Cr 7.19-22), e dá vários exemplos práticos (2Cr 21.13-18; 24.21- 26; 28.23). O juízo que de fato ocorre está diretamente relacionado ao delito origi­

48 Cf. J. Wellhausen, Prolegomenu to the History o f Israel (TI. Edimburgo: Black, 1885), p. 203-210; cf. e.g. R. N orth, ‘T heology of the C hro n ic le r’, JBL 82, 1963, p. 369-381, especialm ente, p. 372-374; G. von Rad, Old Testament Theology, I (London: SCM Press, 1962), p. 348-350; D illard, p. 77-81.

49 Dillard, p. 77.50 Cf. Japhet, Ideology, p. 176-191; W illiam son, p. 32.51 G. von Rad, op. cit., p. 350; R. Braun, JBL 92, 1973, p. 512.

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nal. Em segundo lugar, é preciso levar em conta as muitas ocasiões quando o povo não recebe o castigo que lhe é devido. Em contraposição ao ponto de vista de que “para o cronista o pecado sempre traz juízo e desastre’, 52 a mensagem do cronista é muito melhor resumida nas palavras de Davi: “caia eu, pois, nas mãos do S en h o r ,

pois são muitíssimas as suas misericórdias” (1 Cr 21.13). Um bom número de des­cendentes de Davi é tratado de maneira mais positiva do que em Reis, não porque o cronista seja de alguma forma mais leniente mas por que ele vê em suas vidas evidência explícita da bondade de Deus para com o indigno. De fato, é precisa­mente porque o cronista não acredita na retribuição automática que seu relato sobre regentes como Salomão ou Roboão (2Cr 11— 13). Abias (2Cr 13) e especial­mente Manassés (2Cr 33) difere tanto do de Reis.

Em terceiro lugar, e mais importante, o cronista está interessado acima de tudo em enfatizar mais a esperança de restauração do que a triste realidade da retribuição. O texto-chave é sem dúvida 2Crônicas 7.12-16, no qual o templo é apresentado como o canal para o perdão e a restauração divinos segundo os princípios da aliança davídica. O meio pelo qual isso teria lugar primariamente envolvia o arrependimento e a oração. O cronista certamente acreditava no poder e na realidade da oração, e ele dá inúmeros exemplos da resposta de Deus àqueles que levaram suas tribulações ao S e n h o r , na linha que segue o pedido básico de Salomão (2Cr 6.18-42). Aqueles que em diversos tipos de dificuldade, mesmo no exílio, responderam ao convite de Deus (2Cr 7.13-14) receberam o perdão de Deus e seu auxílio em tempos de necessidade (e.g. 1 Cr 21.13,17; 2Cr 14.11; 20.1-13; 32- 20,24; 33.13,19; Heb 4.16). Entretanto, o cronista não acreditava na fé sem ação e a confissão do pecado tinha de ser acompanhada por atos específicos de arrepen­dimento humilde (e.g. 2Cr 12.6-12; 30.11; 33.12,19; 34.27). Algumas vezes, isso tomava a forma de uma cerimônia nacional de renovação da aliança, a que o cronista de maneira interessante deu mais destaque do que ela tem no livro de Reis (2Cr 15.12-14; 23.16 = 2Rs 11.17; 29.10; 34.31-32 = 2Rs 23.3). Essas ocasiões davam ao povo oportunidade para reformar as práticas de sua fé em uma escala nacional e especialmente restaurar o templo para seu uso adequado (cf. 2Cr 14.3-5; 15.1-8;24.4-16; 29.12— 31.21; 34.3— 35.19). Josafá também conduziu uma reforma seme­lhante baseada no ensino da palavra de Deus, embora não seja relatado que ele tenha participado de uma renovação formal da aliança.

Em tudo isso, Deus é regularmente retratado como a fonte de perdão e restauração. Foi ele que decidiu que o templo seria um lugar de expiação (1 Cr28.11) e que respondeu às orações por perdão com fogo do céu (1 Cr 21.26; 2Cr7.1-3). Ele foi também, em última análise, responsável por designar os sacerdo­tes araônicos para oferecer sacrifícios e se apresentar no Santo dos Santos para a expiação dos pecados de Israel, tanto nas ocasiões costumeiras (IC r 6.49) quanto nas ocasiões especiais (2Cr 29.24; 30.13-16). Além disso, eleja-

52 Dillard, p. 77.

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INTRODUÇÃO

mais esteve longe de seu povo, pois o templo era o lugar de sua morada terrena. Era seu “lugar de habitação” (2Cr 6.21 etc.) onde ele aparecia em sua glória (2Cr 5.13-14; 7.1-3), a casa de oração onde ele era acessível a todos que o invocavam . Ele levava seu Nome, um term o freqüente na H istória Deuteronômica que o cronista tomou emprestado de maneira considerável (e.g. ICr 17.24; 2Cr2.1,4; 6.5-10; 7.16,20; 20.8-9). Qualquer israelita ou estran­geiro que orasse a ele podia, portanto, estar certo de que Deus estava aguar­dando para ouvir, mesmos que eles não estivessem fisicamente no templo (e.g. 16.8; 2C r6 .24 ,26; 7.14; 14.11). Uma passagem memorável promete até mesmo que o coração do próprio Deus estava no templo (2Cr 7.16).

O que isso indica é que o templo era primariamente um testemunho ao Deus ali cultuado. E através do culto do templo que ele é reconhecido como aquele que vive tanto no céu (2Cr 20.6) como na terra (2Cr 6.18). Tudo que há no céu e na terra lhe pertence (1 Cr 29.11-12), porque ele não pode ser limitado por nada, nem pelo céu mais elevado nem pelo próprio templo (2Cr 2.6; 6.18). Ele é único (IC r 17.20; 2Cr 6.14) e supremo sobre todos os possíveis rivais, incluindo outros deuses (2Cr2.5). Sua grandeza é admitida até por estrangeiros (1 Cr 16.18; 17.24; 2Cr 2.12; 9.8), pois ele salva seu povo de todas as formas de poder huma­no, por mais irresistíveis que eles possam parecer (2Cr 32.7-8,22).

E importante notar nesse contexto que o cronista está mais interessado na presença do reino de Deus em Israel do que na sua vinda no futuro. Não há evidência em Crônicas de uma intensa esperança messiânica, apesar das opi­niões de alguns comentaristas que salientaram a importância da aliança davídica c a forma idealizada de representar Davi e Salomão.53 Na realidade, entretanto, o cronista não se concentra no futuro mas na continuidade entre o passado distante e o presente ou o passado recente. As três passagens onde o relato do cronista mais se aproxima de sua própria época antes salientam toda essa ligação do que despertam qualquer esperança explícita para o futuro. A conti­nuação pós-cxílica da linhagem de Davi (IC r 3.17-24), o relato do restabe­lecimento de Jerusalém (ICr 9.2-34), e o resumo do edito de Ciro (2Cr 36.22-23), (udo indica que Deus ainda está construindo sua casa e que convida seu povo a continuar participando dessa tarefa.

No entanto, seria um erro grave concluir que o cronista não tem interesse além do presente.54 As gerações pós-exílicas não apenas continuam o passa­do, mas estão presas na corrente de um fluxo contínuo. Apesar do empobreci­mento de Israel e da perda da monarquia davídica, o templo reconstruído é um

51 E.g. von Rad, GCW, p. 119-132: A. M. Brunet, ‘La théologie du Chroniste: theocratieol m essianism e’, em J. Coppens (ed.), Sacra Pagina (Louvain: U niversitaires de Louvain,1959), p. 384-397; W. Stinespring, ‘Eschatology in Chronicles’, JBL 80, 1961, p. 209-219.

54 Contra e.g., R udolph, p. xiii-xxiv; O. Plõger, Theocracy and Eschatology (Oxford: lilackw ell, 1968); Japhet, Ideology, p. 493-504.

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sinal visível de que Deus ainda opera. A comunidade que adorava no templo, portanto, tinha um papel vital a desempenhar ao passar sua fé às gerações futuras. Eles devem levar bastante a sério a ocupação da terra, e adorar o Deus que promete o reinado eterno à linhagem de Davi. Os propósitos de Deus permanecem incompletos, e o futuro está aberto a todo aquele que crê que Deus não abandonará o que ele começou (cf. F1 1.6). Ele ainda manterá sua promessa de estabelecer um dos descendentes de Davi “na minha casa e no meu reino para sempre” (1 Cr 17.14).

V. As origens de Crônicas(a) A relação entre Crônicas e Esdras-NeemiasA maior parte das principais questões crítico-literárias sobre as origens de

Crônicas dependem da opinião que se tenha sobre sua relação com Esdras-Neemias. Desde 1832, eruditos de uma variedade de tendências teológicas aceitaram a hipó­tese de que Crônicas e Esdras-Neemias foram originalmente uma única obra que cobria a história de Israel que ia de Adão ao tempo de Neemias.55 Ocasionalmente, argumenta-se até que o próprio Esdras foi o cronista.,6 Essa perspectiva padrão reinou suprema por muitos anos apesar de questionamentos ocasionais como o de Welch (1935), e foi somente após a nova avaliação das questões feita por Japhet (1968) que a opinião erudita como um todo começou a mudar.57 De fato, tanto movimento tem ocorrido nas últimas duas décadas que embora a abordagem tradicional ainda tenha seus defensores, os livros de Crônicas e Esdras-Neemias agora têm maior probabilidade de serem vistos como compilações separadas.58

53 Como 1 e 2Cronicas, a evidência claramente indica que Esdras e Neemias formavamoriginalmente um só livro (cf. H. G. M. W illiamson, Ezra, Nehemiah, WBC) (Waco: Word),p. xxi-xxiii. A idéia que Crônicas e Esdras-N eem ias eram duas partes da m esm a obra foi proposta pela primeira vez por L. Zunz, “Dibrehajamim oder die Bücher der Chronik” , Die gottesdienstlichen Vortrãge der Judea historisch entwickelt (Berlin: Asher, 1832), p. 13-26.

56 E.g. W. F. Albright, ‘The date and personality o f the C hronicler’, JBL 40, 1921, p. 104-124.

57 S. Japhet, ‘The supposed com m on au thorsh ip o f C hronicles and E zra-N ehem iah investigated anew ’, VT 18, 1968, p. 330-371; cf. A. Welch, Post-Exilic Judaism (Edim bur­go: B lackw ood, 1935). Veja tam bém especialm ente W illiam son, IBC, p. 5-82; R. Braun, ‘Chronicles, Ezra and Nehemiah: theology and literary history’, SVT 30, 1979, p. 52-64; e os comentários por Braun, Dillard e de Vries.

58 Aqueles que ainda não foram convencidos pelos argumentos de Japhet e outros inclu­em Mason, Preaching, p. 9; Mckenzie, Use, p. 17-25; Polzin, Typology, p. 70-75. Por outro lado, uma com paração entre os p rim eiros e ú ltim os escritos de P. R. A ckroyd sobre o C ronista revela que sua própria posição tornou-se claram ente mais cautelosa (cf. os vários artigos em P. R. A ckroyd, The C hronicler in his Age, JSO TS 101 (Sheffield: S heffield Academic Press, 1991).(cf. os vários artigos em P. R. Ackroyd, The Chronicler in his Age, JSOTS 101 (Sheffield: Sheffield Academic Press, 1991)).

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INTRODUÇÃO

Os principais fatores envolvidos nesse debate são os seguintes:(a) Os últimos dois versículos de Crônicas (2Cr 36.22-23) também são encon­

trados no início de Esdras (Ed 1.1-3), embora a situação seja complicada pelo fato de que o elo entre as duas obras seja menos óbvio na Bíblia hebraica onde Esdras- Neemias precede Crônicas. A explicação comum dessa sobreposição separa o assunto da compilação das duas obras do da inclusão de ambas no cânon. En­quanto a ordem das Bíblias em português, inglês e grego (LXX) sugere que a narrativa de Crônicas seja simplesmente continuada em Esdras, a ordem inversa dos livros na Bíblia hebraica é geralmente explicada como resultado de Esdras- Neemias ser aceito no cânon primeiro, como uma continuação adequada da histó­ria em Samuel-Reis. Crônicas foi então acrescentado como um suplemento ao relato principal, como implicado pelo seu título grego, “as coisas omitidas”. No entanto, essa reconstrução carece de convicção. É difícil evitar a impressão de que o fato da ordem diferente dos livros nas Bíblias grega e hebraica tenha sido con­venientemente adaptado para tratar de problemas diferentes sem a devida consi­deração do quadro global. Visto que a evidência direta sobre por que e como Crônicas e Esdras-Neemias foram admitidas no cânon de fato não existe, a ade­quada metodologia sugere que atenção seja dada antes mais à disposição hebraica que à grega. E notável, de fato, que o apoio à continuação de Crônicas em Esdras- Neemias e para tratar Crônicas como um relato suplementar pertence à tradição grega e não à hebraica, e não é necessariamente original. Além disso, uma forte evidência sugere que longe de Esdras continuar a narrativa de Crônicas, 2Crôni- cas 36.22-23 é na realidade dependente de Esdras 1.1-3. O final abrupto de Crôni­cas, “que suba” (2Cr 36.23), faz muito mais sentido como uma abreviação do que se fosse a versão original. Também a diferença entre o hebraico para “por boca de .leremias” em 2Crônicas (bpy) e Esdras 1.1 (mpy) é mais facilmente explicada pela iidluência secundária de 2Crônicas 36.21 sobre 2Crônicas 36.22, visto que uma expressão idêntica ocorre nos dois versículos.59

(b) Uma obra da Septuaginta chamada lEsdras cruza a junção entre os dois livros, sem interrupção e sem repetir o material de sobreposição. Esse livro é uma narrativa histórica que começa em 2Crônicas 35— 36 e prossegue por todo Esdras e por Neemias 7.72— 8.13a, mas que também inclui material adicional limitado. Os eruditos estão divididos quanto a se lEsdras é uma parte de uma tradução mais antiga da forma original de Crônicas + Esdras- Neemias ou se é uma obra secundária. A opinião majoritária favorece esse último ponto de vista, já que há evidências de que lEsdras é uma compilação derivada e de natureza parafrástica.60 Embora a tese do fragmento ainda tenha seus defensores, é preciso notar que a contribuição de lEsdras parece ser um

w C f W illiamson, IBC, p. 9-10.Cf. ibid., p. 12-36; de Vries, p. 9.

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outro assunto que tem mais a ver com o desenvolvimento do texto grego do que com a forma hebraica original dessas obras.61

(c) Semelhanças substanciais existem entre a linguagem de Crônicas e a de Esdras-Neemias, e longas listas das características comuns foram compiladas nos séculos XIX e início do XX.62 A pesquisa mais recente, no entanto, prefere concluir a partir da mesma evidência que as duas obras pertencem a um dialeto distinto agora chamado de Hebraico Bíblico Tardio. Mais complicações surgem porque a quantidade de literatura escrita nesse dialeto é muito limitada, e porqueo material não sinótico em Crônicas compreende de longe a maior unidade literá­ria escrita em Hebraico Bíblico Tardio. A evidência, portanto, para avaliar se Crônicas e Esdras-Neemias podem ser atribuídos a um único autor é na verdade bastante restrita. Mesmo Polzin, que argumenta em favor de uma “incrível seme­lhança lingüística” entre a linguagem de Crônicas, Esdras e as Memórias de Neemias, prefere falar apenas de semelhança e não de identidade de autoria.63 Talvez mais importante seja o ponto de vista de Throntveit, que, aceitando que Crônicas e Esdras-Neemias pertençam ambas ao Hebraico Bíblico Tardio, acre­dita que o peso da evidência esteja fortemente contra a autoria comum.64

(d) Crônicas e Esdras-Neemias claramente compartilham de certo número de interesses comuns. Esses incluem o templo e seu culto, a lei mosaica, a renovação da aliança, e o senso de continuidade entre o Israel pré e pós-exílico. A questão principal, no entanto, é saber se essa ideologia comum é sólida o bastante para garantir que elas sejam tratadas como partes diferentes da mesma obra ou não. Simplesmente identificar as semelhanças não é suficiente, e um quadro abrangente deve estudar os contrastes entre elas. De fato, as duas obras apresentam diferenças significativas tanto na amplitude quanto na profundida­de de seus interesses. Elas não somente cobrem tópicos diferentes, mas, mais importante, elas tratam dos mesmos temas de maneiras contrastantes. A lista de exemplos é surpreendentemente extensa, e inclui Davi e a aliança davídica, casa­mentos mistos, o Sábado e os levitas, o interesse do cronista no patriarca Jacó/ Israel em oposição ao êxodo e a conquista em Esdras-Neemias, a queda do reino do norte e o destino de seus habitantes, o conflito com os do norte, abordagens à profecia e à historiografia. A existência dessas diferenças foi amplamente reconhecida e sua importância devidamente admitida.65

61 Para uma defesa da tese do fragmento, c f K. F. Pohlmann, Studien zum dritten Esra (Gõttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1970); R. W. Klein, 'Studies in the Greek text of the C hronicler’, tese de Ph.D não publicada, Harvard, 1966; M cKenzie, Use, p. 18-25.

62 E specialm ente S. R. D river, In troduction to the L iterature o f the O ld Testam ent (Edimburgo: T. & T. Clark, 91913), p. 535-540; Curtis e M adsen, p. 27-36.

63 Polzin, Typology, p. 70-75. A citação é da p. 75.64 M. A. Throntveit, ‘L inguistic analysis and the question o f authorship in Chronicles,

Ezra and N ehem iah’, VT 32, 1982, p. 201-216.65 E.g. W illiamson, IBC, p. 60-69; R. Braun, ‘Chronicles, Ezra and Nehemiah: theology

and literary h isto ry’, SV T 30, 1979, p. 52-64.

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INTRODUÇÃO

Menos atenção foi devotada às variações na natureza das duas obras. Isso é em parte o resultado de se considerar Crônicas uma obra histórica, suplementar a Samuel-Reis além de preparatória a Esdras-Neemias. Se, no entanto, como se argumentou acima, Crônicas é realmente uma interpretação da Escritura anterior, incluindo Esdras-Neemias, então é muito menos provável que elas compartilhem de um propósito comum ou tenham uma autoria comum. Isso é bem ilustrado pelos tratamentos variantes acerca do repovoamento da terra, com o que Esdras-Neemias mostra maior preocupação. Essa última obra dedica muito mais espaço à questão de quem deve retornar à Terra Prometida e como isso deve ser realizado, ao passo que o cronista parece tomar o fato do retomo como algo mais ou menos resolvido. Seu interesse está em como o retomo se encaixa nos propósitos globais de Deus para Israel, e especialmente em relação aos tratamentos de Deus com Jacó e Davi. Toda a sua perspectiva é bastante diferente. Onde Esdras-Neemias fala de Israel como estando ainda no cativeiro (Ed 9.7; Ne 9.36) e termina com uma nota de expectativa não cumprida (Ne 13), o cronista enfatiza como as intenções de Deus continuam sendo cumpridas, seja através do convite de Ciro, seja por aqueles que repovoaram Jerusalém ( í Cr 9.2-34; 2Cr 36.22-23).®’

Todos esses fatores, e especialmente o tema diferente, sugerem que há bons motivos para tratar Crônicas como uma entidade separada, livre de conclu­sões a respeito das origens e natureza de Esdras-Neemias. Em qualquer caso, é importante examinar Crônicas como uma obra completa em si mesma, com seu próprio caráter e estrutura. Neste comentário essa separação é tomada como ponto de partida, como é a forma final do texto hebraico de Crônicas. Embora muitas fontes tenham sido usadas na compilação de Crônicas, e tanto a época quanto a contribuição precisa da pessoa geralmente referida como o cronista permaneçam desconhecidas, o texto hebraico completo deve ser visto como o padrão objetivo fixado para se interpretar a obra.

(b) A data e a autoria de CrônicasQualquer avaliação da data de Crônicas está inevitavelmente ligada a ques­

tões relativas à composição e desenvolvimento da obra. Se, por exemplo, se considera que Crônicas está ligada a Esdras-Neemias, então a data de Crônicas não pode ser anterior ao último item de Esdras-Neemias. Por outro lado, se o lema Esdras-Neemias é posto de lado e além disso as genealogias de CrônicasI —9 são tratadas amplamente como um suplemento que deriva de uma mão posterior à do cronista, então o restante de Crônicas poderia ser situado já no período da restauração pouco antes do fim do sexto século a.C.

Não é de admirar, portanto, que avaliações acerca da data de Crônicas tenham variado tanto, de tão cedo como 529-515 a.C. (Newsome) até tão tarde

“ Veja J. G. M cC onville, ‘E zra-N ehem iah and the fu lfillm ent o f p rophecy’, VT 36, 1986, p. 204-22, e cf. W. J. Dumbrell, ‘The purpose of the books o f Chronicles’, JETS 27, 1984, p. 257-266.

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como 200 a.C. (Noth, Gressmann).67 Mesmo quando as propostas são reduzidas às alternativas principais, a variação ainda é bastante ampla. Elas incluem as quatro opções do período da restauração (e.g. Freedman, a primeira edição de Cross), o período pós Esdras-Neemias (e.g. Myers, Albright, a terceira edição de Cross), o último período persa (e.g. Ackroyd, Williamson), e o período grego (e.g. Rudolph, Curtis e Madsen, Welten).68 O próprio livro de Crônicas oferece poucos indícios quanto a sua data de escrita. A evidência mais clara ocorre nas genealogias de abertura de lCrônicas 1— 9, embora haja um debate sobre quan­to dessa seção pertencia originalmente ao corpo da obra. Duas passagens são de interesse especial. A primeira diz respeito à lista daqueles que repovoaram Jerusalém (ICr 9.2-34), que aparentemente depende de uma lista semelhante em Neemias 11.3-19. Com base nas mudanças de alguns dos nomes e o pequeno aumento do cronista nos números daqueles que habitam na cidade, a versão de Crônicas parece pertencer a um período de aproximadamente meia geração após a lista de Neemias. O que é menos certo é se lCrônicas 9.2-34 é um pouco posterior a Neemias no fim do quinto século a.C. ou se depende da referência aos bisnetos de dois contemporâneos de Neemias (Uzzi da linhagem de Matanias, Ne 11.22, e Jadua, o sumo sacerdote, Ne 12.11,22) e portanto pertence à primeira metade do quarto século. A segunda passagem é a lista dos descendentes davídicos pós-exílicos em lCrônicas 3.17-24, embora novamente sua interpreta­ção seja cercada pela incerteza. A lista pode se estender por um mínimo de cinco ou um máximo de dez gerações depois de Zorobabel, que foi governador em Jerusalém pouco antes do fim do sexto século a.C. Portanto, poderia chegar ou ao fim do quinto século ou ao fim do quarto século. Sobre a evidência destas duas passagens, uma data para Crônicas por volta de 400 a.C. é mais provável, mas qualquer data no quarto século seria bastante razoável.

Uma data antiga tem, nos últimos tempos, atraído novo apoio, em parte por causa do elo óbvio entre o interesse do cronista pelo templo e em sua reconstrução, e porque a liderança de Zorobabel teria despertado novo inte­resse na dinastia davídica. Entretanto, essa perspectiva enfrenta um bom nú­mero de dificuldades, principalmente a duvidosa exigência de se ver lCrônicas 1— 9, que se refere a eventos de uma data posterior, como um acréscimo pos­terior. Também é questionável se o cronista compartilhava do mesmo tipo de

67 J. D. Newsome, ‘Towards a new understanding of the Chronicler and his purposes’, JBL 94, 1975, p. 201-217; M. Noth, The Clironiclers History, JSOTS 50 (Sheffield: Sheffield A cadem ic P ress, 1987), p. 69-75; H. G ressm ann , D ie Sch riften des A lte n T estam ents (G õttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1925).

68 D. N. Freedman, ‘The Chronicler’s purpose’, CBQ 23, 1961, p. 436-442; F. M. Cross, ‘A reconstruction o f the Judean resto ration’, JBL 94, 1975, p. 4-18; W. F. A lbright, ‘The date and personality o f the C hronicler’, JB L 40, 1921, p. 104-124; M yers, 1 C hronicles; A ckroyd ; W illiam so n ; R ud o lp h ; C urtis e M adsen ; P. W elten , G esch ich te und GescliichtsdarsteUung in den Chronikbiichern (N eukirchen-V luyn: N eukirchener, 1973).

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INTRODUÇÃO

interesse sobre o templo como Ageu e Zacarias. Enquanto os dois profetas estavam preocupados em ver o segundo templo realmente construído, o cro­nista mostra maior interesse no uso e nos oficiais do templo. Da mesma forma, a preocupação do cronista com a dinastia davídica não significa necessaria­mente que ele estava muito interessado em Zorobabel em si, ou que ele procu­rasse uma restauração política sob sua liderança. Uma outra dificuldade é queo uso em 2Crônicas 16.9 do que seria um texto contemporâneo de Zacarias 4.10 é pouco provável quando comparado com outras citações freqüentes dos profetas em Crônicas. Finalmente, a data mais antiga para Crônicas está relaci­onada à menção da moeda dárica persa (lC r 29.7), que recebeu o nome em homenagem a Dario I (522-486 a.C.) e que não se tem conhecimento de ter sido cunhada antes de 515 a.C. Esse fator em particular torna difícil acreditar em uma data para o texto no fim do sexto século.

Com relação a quem o autor de Crônicas possa ter sido, nada pode ser concluído com certeza. Há uma possibilidade de que ele possa ter sido um levita, e os ajustes feitos a trechos do Salmo 106 em lCrônicas 16.34-35 podem refletir sua atividade levítica, como alguém que estava envolvido nos ministé­rios de condução do louvor e da interpretação das Escrituras. Também é muito provável que, como levita, ele pudesse ter acesso a parte das fontes que estão por trás da obra. Como a maioria dos autores bíblicos, no entanto, ele deve permanecer anônimo, sendo conhecido pela posteridade somente por seu títu­lo misterioso, “O cronista”.

(c) O desenvolvimento de CrônicasO cronista claramente fez uso de uma variedade de fontes que foram incor­

poradas na forma final de sua obra. Embora o fato desse processo seja ponto pacífico, a extensão e natureza desse material, e a maneira pela qual ele foi incorpo­rado à composição global, são amplamente debatidas. É portanto necessário co­mentar sobre as fontes que estavam disponíveis ao cronista e o uso que ele fez delas como um meio de entendermos como Crônicas chegou à sua forma atual.

A primeira tarefa é classificar as fontes do cronista. Elas podem ser dividi­das em três categorias, as citações e alusões bíblicas, as fontes mencionadas nas citações do cronista, e outros materiais não bíblicos. Visto que já foi explica­do que o principal material bíblico foi tomado de Samuel-Reis e de outras partes do Antigo Testamento, seu uso não terá explicações adicionais.

As fontes que são explicitamente citadas foram usadas com a intenção de ilar aos leitores originais mais informação sobre determinados reis. Dois tipos diferentes de fórmula são mencionados, umas de caráter profético e outras de caráter político. As citações políticas são conhecidas a partir dos livros de Reis, apesar de um bom número de mudanças no fraseado. Eram espécies de relatos oficiais, distintos dos livros bíblicos de Reis, e deve-se perguntar se ainda esta­vam disponíveis nos dias do cronista.

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le 2CRÔN1CAS

Os dois conjuntos de citações revelam várias características importan­tes dos métodos e interesses do cronista. Em primeiro lugar, todas as citações políticas incluem “Israel” no título, mesmo que esse termo nunca fosse usado a respeito dos reis de Judá nos livros de Reis. No lugar de “o Livro da História dos reis de Judá”, o cronista apresenta as seguintes variações: “o Livro da História dos Reis de Judá e Israel” (e.g. 2Cr 16.11), “... dos reis de Israel e Judá’ (e.g. 2Cr 27.7), ou mesmo “... dos reis de Israel” (e.g. 2Cr 33.18). M Esse é um dos métodos pelos quais o cronista apresenta a importância de o povo de Deus ser sempre identificado como Israel, sejam quais forem as divisões e desastres que eles possam ter sofrido. Em segundo lugar, o cronista introdu­ziu citações proféticas, o que não tem paralelo em Reis. Elas refletem o interes­se diferenciado do cronista na profecia, e de acordo com as citações ele fez uso de pelo menos dois tipos diferentes de literatura profética. Algumas das referências são ao material profético contido em Samuel-Reis (e.g. ICr 29.29; 2Cr 9.29), sugerindo que o cronista considerava essas obras como sendo basicamente mais proféticas do que históricas. Outras, no entanto, estão in­cluídas nas fontes políticas conhecidas como “História dos reis de Judá e Israel” etc. (e.g. 2Cr 20.34; 33.18-19), o que indica que essas também eram vistas como histórias proféticas. Se todas as citações proféticas podem ser atribuídas a essas duas fontes, ou se outras coleções proféticas independen­tes estavam envolvidas, não fica muito claro. Em favor da primeira opção estáo fato de que todas as passagens onde o cronista cita somente uma fonte profética têm paralelo em uma referência a uma fonte política em Reis (exceto para Davi, ICr 29.29). Por outro lado, a menção de “Isaías o profeta, filho de Amós” como uma fonte para Uzias (2Cr 26.22) não é necessariamente uma referência seja aos livros bíblicos de Reis ou Isaías seja aos registros históri­cos usuais não bíblicos. Nem Reis nem Isaías contêm muita coisa sobre Uzias, especialmente porque esse último menciona o chamado do profeta no ano da morte de Uzias (Is 6.1). A alteração de “Livro da História dos reis de Judá” (2Rs 15.6) para essa fonte profética pode portanto ser uma indicação de material independente. Em terceiro lugar, as citações indicam a dependência do cronis­ta de fontes externas e seu cuidado em identificá-las. Ao passo que somente algumas dessas fontes externas são especificamente mencionadas nas cita­ções, como várias cartas (2Cr 2.11-16; 21.12-15; 30.6-12), muitas outras são identificáveis ou por comparação com outras partes da Bíblia ou por sinais de estilo e conteúdo característicos. Essas fontes não bíblicas incluem genealogias e outras listas, registros militares (ICr 5.18,26; 7.2-5) e tribais (1 Cr 4.34-43; 5.7- 10), registros do templo (IC r 16.4-7, 37-42), fontes jurídicas (2Cr 19.5-11), e fontes proféticas (2Cr 25.7-16). Embora a existência dessas fontes de fora da Bíblia não possa ser absolutamente verificada, a variedade de estilos e con-

69 A exceção é o “o midrash do livro de reis” (2Cr 24.27).

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INTRODUÇÃO

leúdo, especialmente nas passagens que refletem uma perspectiva diferente da própria época do cronista, é um ponto forte a favor de sua autenticidade.

Além disso, o próprio cronista era naturalmente também responsável por uma parte significativa do material. Seu estilo literário diferenciado, suas estru­turas e padrões, e seu vocabulário especial são muitas vezes facilmente identifi­cados, especialmente nos vários discursos, profecias, e orações de que ele gosta tanto. O mais difícil é separar sua própria contribuição do material que ele já encontrou pronto. Sem o benefício de controles externos, só se pode especu­lar sobre toda a extensão do uso que ele fez de suas fontes, mas sua atenção ao detalhe de indicar com freqüência ao leitor outras fontes de informação sugere que ele foi cuidadoso para basear suas próprias contribuições sobre um funda­mento histórico adequado.

A situação tem se tornado um tanto mais complicada à luz de evidências r ecentes sobre o texto hebraico real disponível ao cronista. Relativamente falan­do, até pouco tempo muitas vezes se assumiu que quaisquer diferenças entre Crônicas e suas principais fontes bíblicas tinham resultado do próprio cronista. Um estudo mais recente indicou, no entanto, que em acréscimo ao Texto Massorético hebraico, Crônicas foi influenciado por outras tradições textuais, incluindo a LXX luciânica (L) e um manuscrito de partes de Samuel encontrado entre os Rolos do mar Morto (4QSama). Embora a relação precisa entre Crônicas c 4QSama ainda esteja sendo estudada, já ficou claro no caso de Samuel que onde o cronista se baseou em fontes escritas ele em geral manteve-se bem próximo a elas, seja à tradição do Texto Massorético seja à representada por 4QSama. Fatores textuais devem portanto ser levados em conta ao explicar as variações entre Crônicas e suas fontes conhecidas, e a evidência confirma o cuidado do autor ao manusear o que lhe estava disponível.70

A questão acerca de como a obra se desenvolveu até sua forma atual tem gerado uma gama particularmente ampla de hipóteses. Na verdade, a própria variedade pre v avelmente indica tanto sobre os diferentes pontos de partida dos eruditos ao fazerem as propostas como mais alguma coisa. Elas podem ser redu­zidas a três tipos básicos de abordagens, incluindo aquelas que aceitam que a obra como um todo é efetivamente a produção do próprio cronista (e.g. Myers, Michaeli), aquelas que argumentam por acréscimos menores (e.g. Williamson, de Vries), e aquelas que crêem que Crônicas é resultado de extensa revisão secundária (e.g. Rudolph, Cross). A maior parte dos principais debates gira em (orno da função e proveniência das genealogias em lCrônicas 1— 9 e do material relativo aos levitas em lCrônicas 15— 16; 23— 27. Certamente esse material é

70 Veja especialm ente F. M. Cross, ‘The history of the biblical text in the light o f the discoveries in the Judean desert’, HTR 57, 1964, p. 281-299; idem, “The contribution of the Qumran discoveries to the study of the biblical text” , IEJ 16, 1966, p. 81-95; W. E. Lemke, "The synoptic problem in the C hronicler’s history”, HTR 58, 1965, p. 349-363; McKenzie, Use, p. 49-73; Braun, p. xxi-xxiii.

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le 2CRÔNICAS

muito variado, e o editor algumas vezes preferiu permanecer fiel às suas fontes individuais antes que resolver contradições superficiais (cf. as confusas genealogias de Calebe em lCrônicas 2.18-24, 42-55; 4.1-8, ou as referências contrastantes aos lugares altos em 2Crônicas 14.3,5; 15.17; 17.6; 20.33). Por­tanto, como de Vries observou, a decisão de um bom número de eruditos de amputar a maioria das genealogias é uma “rendição barata”, muitas vezes feita porque seu propósito não foi plenamente entendido.71 De fato, as várias listas e genealogias normalmente preparam o leitor para a seção seguinte da narrati­va.72 Elas confirmam como as ações de Davi ou Ezequias, por exemplo (cf. ICr 15— 16; 23— 27; 2Cr 29.12-24), refletem sua fidelidade à lei mosaica ou aos p ropósitos de Deus em esco lher e p reservar seu povo.E las tam bém freqüentemente complementam os temas principais da narrativa do cronista, tais como todo o Israel, o culto do templo, os levitas, a oração eficaz, e a infidelidade de Israel, tanto pela escolha de listas específicas como pela inclu­são de anotações. Se as listas e genealogias forem lidas sob essa ótica, não há grande dificuldade em aceitar a obra em sua íntegra como composição do próprio cronista.

71 De Vries, p. 12.72 C f tam bém M. O em ing, D as wahre Israel, BW ANT 128 (Stuttgart; Kolham m er,

1990), cap. 7.

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ANÁLISE

1. As t r i b o s d e I s r a e l (1 Cr 1.1— 9.44)A. De Adão a Esaú (1.1 -54)

i. De Adão a Noé (1.1 -4a)ii. Os descendentes de Noé (1.4b-23)iii. De Sem a Abraão (1.24-27)iv. Abraão (1.28-34)v. Esaú e Edom (1.35-54)

B. As tribos de Israel (2.1—9.1)i. Os filhos de Israel (2.1-2)ii. A tribo de Judá (2.3— 4.23)

a. De Judá a Hezrom (2.3-8)b. Os descendentes de Rão (2.9-17)c. Os descendentes de Calebe (2.18-24)d. Os descendentes de Jerameel (2.25-41)e. Outros descendentes de Calebe (2.42-55)f. A família real de Davi (3.1 -24)g. Outros clãs de Judá (4.1 -23)

iii. A tribo de Simeão (4.24-43)iv. As tribos da Transj ordânia (5.1 -26)

a. A tribo de Rúben (5.1-10)b. A tribo de Gade (5.11-22)c. Ameia tribo de Manassés (5.23-26)

v. A tribo de Levi (6.1 -81)a. Os sumo sacerdotes aronitas (6.1-15; TM, 5.27-41)b. A genealogia dos levitas (6.16-30; TM, 6.1-15)c. A genealogia dos músicos levitas (6.31-48; TM,

6.16-33)d. As tarefas dos sumo sacerdotes aronitas (6.49-

53; TM, 6.34-38)e. As cidades dos levitas (6.54-81; TM, 6.39-66)

vi. As tribos da margem ocidental do Jordão (7.1-40)a. A tribo de Issacar (7.1-5)

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1 E2CRÔNICAS

b. A tribo de Benjamim (7.6-12a)c. Atribo de Dã (?) (7.12b)d. Atribo de Naftali (7.13)e. Ameia tribo de Manasses (7.14-19)f. A tribo de Efraim (7.20-29)g. Atribo de Aser (7.30-40)

vii. Atribo de Benjamim (8.1-40)a. Fixação das famílias benjamitas (8.1-28)b. Genealogia da família de Saul (8.29-40)

viii. Conclusão das listas de tribos (9.1)C. Repovoando Jerusalém (9.2-34)

i. Repovoando as cidades (9.2)ii. Leigos em Jerusalém (9.3-9)iii. Sacerdotes em Jerusalém (9.10-13)iv. Levitas em Jerusalém (9.14-16)v. Porteiros em Jerusalém (9.17-32)vi. Músicos em Jerusalém (9.33)vii. Conclusão (9.34)

D. A genealogia da família de Saul (9.35-44)

II. O r e i n o d e D a v i e S a l o m ã o (1 Cr 10.1— 2Cr9.31)A. Transferindo o reino para Davi (10.1— 12.40)

i. O fim da casa de Saul (10.1-14)a. A morte de Saul (10.1 -5)b. O fim da casa de Saul (10.6-7)c. O cadáver de Saul (10.8-10)d. O sepultamento de Saul (10.11-12)e. A transferência do reino de Saul (10.13-14)

ii. Todo Israel reconhece Davi como rei (11.1— 12.40)a. Davi é ungido sobre todo Israel em Hebrom (11.1-3)b. A capital de Davi (11.4-9)c. Os valentes de Davi (11.10-47)d. Apoio tribal em Ziclague: os benjamitas (12.1 -7)e. Apoio tribal na fortaleza: os gaditas (12.8-15)f. Apoio tribal na fortaleza: os de Benjamim e os de

Judá (12.16-18)g. Apoio tribal em Ziclague: os manassitas (12.19-22)h. Apoio tribal em Hebrom (12.23-37)i. Celebração de Davi como rei em Hebrom (12.38-40)

B. Davi traz a arca para Jerusalém (13.1— 16.43)i. A arca começa sua jornada (13.1-14)

a. A decisão de transportar a arca (13.1 -4)

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ANÁLISE

b. O transporte da arca (13.5-8)c. A santidade mortal de Deus (13.9-12)d. Abênção incondicional de Deus (13.13-14)

ii. Bênçãos de Deus sobre o reinado de Davi (14.1-17)a. O palácio de Davi (14.1 -2)b. Os filhos de Davi (14.3-7)c. As guerras de Davi com os filisteus (14.8-16)d. A fam adeD avi (14.17)

iii. A arca completa sua jornada (15.1 -29)a. Preparando um lugar para a arca (15.1-3)b. Preparando o povo para transportar a arca (15.4-10)c. Preparando os líderes (15.11-15)d. Os preparativos para uma alegre celebração

(15.16-24)e. A alegre celebração do povo (15.25-29)

iv. Bênção, adoração e louvor (16.1 -43)a. Bênçãos para todos os israelitas (16.1 -3)b. Levitas designados em Jerusalém (16.4-7)c. O Senhor é rei (16.8-36)d. Levitas designados em Jerusalém (16.37-38)e. Levitas designados em Gibeão (16.39-42)f. Bênção para a casa de Davi (16.43)

C . A aliança de Deus com Davi (17.1 -27)i. As boas intenções de Davi (17.1-2)ii. A promessa da aliança davídica (17.3-15)

a. Introdução (17.3-4a)b. Davi não deve construir um templo (17.4b-6)c. Deus manteve suas antigas promessas (17.7-10a)d. Deus construirá uma casa para Davi (17.10b-14)e. Conclusão (17.15)

iii. A oração de Davi (17.16-27)a. Louvor pela singularidade de Deus (17.16-22)b. Pedido para que Deus confirme suas promessas

(17.23-27)D. O império de Davi (18.1— 20.8)

i. As vitórias de Davi sobre as nações (18.1-17)a. Vitórias sobre os filisteus (18.1)b. Vitórias sobre os moabitas (18.2)c. Vitórias sobre Hadadezer, rei de Zobá (18.3-10)d. As ofertas de Davi (18.11)e. Vitórias sobre os edomitas (18.12-13)f. O gabinete de Da vi (18.14-17)

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1 E 2CRÔNICAS

ii. As vitórias de Davi sobre os amonitas (19.1—20.3)a. Primeira vitória sob o comando Joabe (19.1-15)b. Segunda vitória sob o comando Davi (19.16-19)c. Vitóriafmal (20.1-3)

iii. Vitórias sobre os filisteus (20.4-8)E. Os preparativos de Davi para o templo (21.1—29.30)

i. O pecado de Davi e a graça de Deus (21.1— 22.1)a. O recenseamento (21.1-6)b. Uma segunda escolha (21.7-14)c. Arrependimento de Deus e do homem (21.15-17)d. Um novo altar (21.18-27)e. A nova casa de Deus (21.28— 22.1)

ii. Os preparativos iniciais de Davi para o templo (22.2-19)a. A preparação dos trabalhadores e materiais (22.2-5)b. A preparação do construtor do templo (22.6-16)c. A preparação dos líderes de Israel (22.17-19)

iii. Os levitas se preparam para o templo (23.1—26.32)a. Salomão é designado como rei (23.1)b. O recenseamento dos levitas (23.2-6a)c. Os clãs dos levitas (23.6b-23)d. Grupos de levitas (23.24—26.32)

iv. Outros líderes preparam-se para o templo (27.1-34)a. As divisões do exército (27.1-15)b. Os oficiais das tribos (27.16-24)c. Os oficiais do rei (27.25-34)

v. Os preparativos finais de Davi para o templo (28.1—29.25)a. Davi fala sobre o construtor do templo (28.1-10)b. Davi conta a Salomão os planos de Deus (28.11-19)c. Davi comissiona Salomão (28.20-21)d. Davi pede a consagração de Israel (29.1 -5)e. Ofertas para o templo (29.6-9)f. A oração de Davi (29.10-20)g. Salomão é ungido rei (29.21-25)

vi. Fórmula de conclusão para Davi (29.26-30)F. Salomão se prepara para o templo (2Cr 1.1—2.18)

i. O esplendor de Salomão (1.1-17)a. O reino de Salomão é estabelecido (1.1)b. A adoração prestada por Salomão (1.2-6)c. A sabedoria de Salomão (1.7-13)d. A riqueza de Salomão (1.14-17)

ii. Os preparativos de Salomão (2.1-18)a. Instruções sobre a construção (2.1)

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ANÁLISE

b. Censo dos trabalhadores (2.2)c. A carta de Salomão para Hirão (2.3-10)d. A carta de Hirão para Salomão (2.11-16)e. Censo dos trabalhadores não-israelitas (2.17-18)

G. Salomão constrói o templo (3.1— 5.1)i. Começando a construir o templo (3.1-2)ii. Os alicerces e o pórtico (3.3-4a)iii. O templo de ouro (3.4b-l 3)iv. O véu (3.14)v. As colunas (3.15-17)vi. Os utensílios do templo (4.1-22)

a. O altar de bronze (4.1)b. O mar de fundição (4.2-6,10)c. Os dez candeeiros de ouro e as dez mesas (4.7-8)d. Os pátios (4.9)e. Utensílios de bronze (4.1 lb-18)f . Objetos de ouro (4.19-22)

vii. A conclusão do templo (5.1)H. Salomão dedica o templo (5.2— 7.22)

i. A arca e a nuvem (5.2-14)a. Salomão reúne todo Israel (5.2-3)b. A jornada final da arca (5.4-6)c. O lugar de repouso definitivo da arca (5.7-10)d. Aglória de Deus e o louvor de Israel (5.11-14)

ii. O louvor e a adoração de Salomão (6.1 -42)a. Salomão responde à glória de Deus (6.1-2)b. O testemunho de Salomão à promessa de Deus

(6.3-11)c. A oração dedicatória de Salomão (6.12-42)

iii. Aresposta de Deus à oração (7.1-22)a. O fogo e a glória de Deus (7.1-3)b. O sacrifício e o louvor de Israel (7.4-10)c. As promessas de Deus (7.11-22)

I. Salomão termina o templo (8.1-16)i. As outras construções de Salomão (8.1-6)ii. Estrangeiros no reino de Salomão (8.7-11)iii. As cerimônias e o pessoal do templo (8.12-15)iv. O templo é completado (8.16)

J. O esplendor de Salomão (8.17— 9.31)i. As relações internacionais de Salomão (8.17— 9.12)

a. Salomão e o rei de Tiro (8.17-18; 9.10-11)b. Salomão e a rainha de Sabá (9.1-9,12)

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/ E2CRÔNICAS

ii. A sabedoria, a fama e a prosperidade de Salomão (9.13-28)a. O ouro de Salomão (9.13-21)b. A supremacia internacional de Salomão (9.22-28)

iii. Fórmula de conclusão para Salomão (9.29-31)

III. O r e i n o d e Judá (2Cr 10.1— 36.23)A. Roboão (10.1— 12.16)

i. Israel se separa de Judá (10.1-19)a. Os planos frustrados de coroação de Roboão (10.1 -5)b. Conselho para Roboão (10.6-15)c. Divisão entre Israel e Judá (10.16-19)

ii. A força de Roboão (11.1-23)a. Paz entre Israel e Judá (11.1-4)b. Judá é fortificada (11.5-12)c. A verdadeira adoração é mantida (11.13-17)d. A família real cresce (11.18-23)

iii. O arrependimento de Roboão (12.1-12)a. Sisaque, do Egito, ataca (12.1-4)b. O humilde arrependimento de Judá (12.5-12)

iv. Fórmulas de conclusão (12.13-16)B. Abias e Asa (13.1— 16.14)

i. Abias (13.1— 14.1)a. Fórmula introdutória (13.1 -2a)b. Guerra civil entre Israel e Judá (13.2b-19)c. O poder de Abias (13.20-21)d. Fórmula de conclusão (13.22— 14.1)

ii.Asa(14.2— 16.14)a. Asa busca a Deus e prospera (14.2-7)b. Asa confia em Deus e é vitorioso (14.8-15)c. Asa obedece à palavra de um profeta (15.1-8)d. A aliança de Asa com Deus (15.9-19)e. A aliança de Asa com Ben-Hadade (16.1-6)f. Asa rejeita a palavra de um profeta (16.7-10)g. Asa não busca a Deus (16.11-12)h. Fórmula de conclusão (16.13-14)

C. Josafá (17.1— 21.1)i. Introdução (17.1-19)

a. Josafá fortalece seu reino (17.1-6)b. As bênçãos de Josafá (17.7-11)c. Os recursos militares de Josafá (17.12-19)

ii. Josafá, Acabe e os profetas (18.1-19.3)a. Uma aliança para a guerra (18.1-3)

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ANÁLISE

b. Os profetas e a guerra (18.4-27)c. O cumprimento da profecia de Micaías (18.28-34)d. Aprofeciade Jeú (19.1-3)

iii. As reformas judiciais de Josafá (19.4-11)a. Renovação religiosa (19.4)b. Indicação de juizes (19.5-7)c. Indicação de outros oficiais (19.8-11)

i v. A fé de Josafá (20.1 -30)a. Judá é invadido (20.1-2)b. Josafá ora (20.3-13)c. Jaasiel profetiza (20.14-19)d. Judá crê (20.20-26)e. Jerusalém se alegra (20.27-30)

v. Fórmula de conclusão (20.31 — 21.1)D. Judá e a casa de Acabe (21.2— 22.12)

i. Jeorão (21.2-20)a. Deus preserva a casa de Davi (21.2-7)b. Deus pune Jeorão (21.8-20)

ii. Acazias (22.1 -9)a. Acazias e a casa de Acabe (22.1 -4)b. Ruína e morte de Acazias (22.5-9)

iii. Atalia (22.10-12)E. Três reis decadentes (23.1— 26.23)

i. Joás (23.1—24.27)a. Ascensão de Joás sob a liderança de Joiada (23.1-21)b. A fidelidade de Joás durante a vida de Joiada (24.1-16)c. A apostasia de Joás depois da morte de Joiada

(24.17-27)ii. Amazias (25.1—26.2)

a. A força de Amazias (25.1 -4)b. Guerra contra Edom (25.5-16)c. Guerra contra Israel (25.17-24)d. O fim de Amazias (25.25-26.2)

iii. Uzias (26.3-23)a. Uzias busca a Deus e obtém êxito (26.3-15)b. O orgulho e a queda de Uzias (26.16-23)

F. Três reis se alternam (27.1— 32.33)i. A obediência de Jotão (27.1-9)

a. O contraste entre Jotão e seu pai (27.1-2)b. A continuidade entre Jotão e seu pai (27.3-6)c. Jotão descansa com seus pais (27.7-9)

ii. A infidelidade de Acaz (28.1-27)

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1 E 2 CRÔNICAS

a. A apostasia de Acaz (28.1 -4)b. Massacre e misericórdia (28.5-15)c. Falsa ajuda (28.16-21)d. A apostasia de Acaz aumenta (28.22-25)e. O sepultamento de Acaz (28.26-27)

iii. As reformas de Ezequias (29.1— 31.21)a. Convite para a consagração do templo (29.1 -11)b. Renovando o culto no templo (29.12-36)c. Convite para a Páscoa (30.1-12)d. Celebrando a Páscoa (30.13— 31.1)e. Reorganização dos dízimos e ofertas (31.2-21)

iv. Deus salva Judá pela fé de Ezequias (32.1 -33)a. Ezequias se defende (32.1 -8)b. Senaqueribe ataca (32.9-19)c. O Senhor salva (32.20-23)d. Sucessos e fracassos de Ezequias (32.24-33)

G. Três reis e o arrependimento (33.1— 36.1)i. Manassés (33.1-20)

a. A maldade sem paralelo de Manassés (33.1-9)b. O arrependimento de Manassés e o favor de Deus

(33.10-20)ii. Amom não se arrepende (33.21-25)iii. Josias (34.1—36.1)

a. Josias busca a Deus fielmente (34.1-7)b. Josias se arrepende por causa da palavra de Deus

(34.8-33)c. Josias celebra a Páscoa (35.1-19)d. A morte de Josias (35.20— 36.1)

H. Quatro reis e o fim do reino (36.2-20)i. A queda de Jeoacaz (36.2-4)ii. A queda de Jeoaquim (36.5-8)iii. A queda de Joaquim (36.9-10)iv. A queda de Zedequias e do reino (36.11 -20)

I. Começando a reconstruir a casa de Deus (36.21-23)

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COMENTÁRIO

I. AS TRIBOS DE ISRAEL (ICr 1.1—9.44)Certa vez, um estudioso gentio perguntou a um estudioso judeu qual era

sua parte preferida da Bíblia. E este respondeu: “Os oito primeiros capítulos deI Crônicas”. O gentio ficou admirado, mas quando seu amigo começou a mostrar seus motivos, ele passou a entender algo sobre a atração misteriosa desses capítulos. “Do meu (gentio) ponto de vista”, refletiu ele, “eu muitas vezes me perguntei porque Deus permitiu que tanto espaço em sua Palavra fosse ‘gasto’ com tais trivialidades. Mas para um hebreu (e para muitas outras sociedades no inundo que se baseiam no parentesco), listas genealógicas dessa natureza de­monstram do modo mais claro a especificidade do amor e cuidado de Deus que repousam no coração do evangelho.”1

E improvável, no entanto, que os primeiros leitores do cronista tenham visto as coisas de modo tão positivo. Apesar de sua herança judaica, eles esta­vam muito preocupados com uma esmagadora crise de identidade e um profun­do sentimento de culpa e vergonha para dar alguma atenção ao significado do amor de Deus. Presos e muitas vezes ignorados num canto longínquo do Impé­rio Persa, o maior império que o mundo já vira, eles tinham dúvidas sobre se Israel poderia de novo realmente ser o povo de Deus. Além disso, muitos judeus sentiam que sua situação precária na época era a vontade de Deus e um castigo por seus pecados do passado. E esses problemas aparentemente intratáveis são quase que certamente o tipo de assunto que as listas e genealogias de lCrôni­cas 1— 9 pretendem confrontar. O sentimento de pertença e de continuidade que elas transmitiam eram, até onde diz respeito ao autor, claramente evangelho ou boas novas. Elas mostram que a geração do cronista não tinha, afinal de contas, sido expulsa de seu ancoradouro histórico, geográfico e espiritual. Se eles ape­nas olhassem para trás, olhassem ao redor, e para cima, eles veriam que ainda pertenciam a “Israel”, e que sua desagradável situação não era incorrigível.

Três respostas específicas para seus problemas são reveladas nos capítu­los 1—9:

1 Citado em C. Kraft, Christianity and Culture (M aryknoll: Orbis, 1979), p. 229.

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1 CRÔNICAS

(a) Um resumo das “gerações” de Gênesis, de Adão a Edom/Esaú, mos­tra que todas as nações são criação de Deus e portanto parte de seus propó­sitos especiais para Israel (1.1-54);

(b) A pequena comunidade judaica daquela época ainda era descenden­te dos doze filhos de Jacó e de “todo o Israel” que havia herdado a Terra Prometida (2.1 —9.1);

(c) O exílio não tinha cortado o cordão umbilical da vida da comunidade pós-exílica, porque aqueles que agora viviam e cultuavam em Jerusalém conti­nuavam sendo herdeiros das promessas de Deus (9.2-34).

Esse quadro basicamente simples de lCrônicas 1—9 contém vários padrões de listas e genealogias. Os nomes podem ser listados verticalmente, em geral em ordem descendente a partir do mais antigo (e.^. 6.1-15), embora uma ordem ascen­dente que começa com o nome mais recente ocasionalmente seja usada (e.g. 6.33- 47). Uma outra variação, encontrada no capítulo 1, é uma ordem descendente onde a família-chave em cada geração (não necessariamente relacionada ao filho mais velho) é deixada por último. As formas de expressão também variam consideravel­mente. A fórmula mais comum é “os filhos de x: y, z etc.” (e.g. 2.1-9), contudo, há também simples listas de nomes (e.g. 1.24-27) assim como a famosa fórmula “ge­rou” (cf. ARA), embora esta última seja mais rara (e.g. 2.10-13,36-41).

Essa variedade é uma forte indicação de que as listas não são invenção do cronista, mas que ele mesclou para seu propósito particular listas de natureza diversa de diferentes períodos. Algumas estão baseadas em material bíblico mais antigo, como no capítulo 1 e em algumas das listas tribais mais curtas em4.24— 5.26; 7.1-40. Outras são tomadas de diversas fontes oficiais, como as dos registros tribais e do templo, algumas delas relacionadas ao serviço militar. A maior parte das listas, com a exceção maior de 9.2-34, é pré-exílica na origem, embora novamente haja muita variedade.2

O resultado parece ser uma verdadeira confusão, às vezes com lacunas bastante óbvias (e.g. nenhum detalhe é dado sobre a tribo de Zebulom, porém cf. 2.1). Um exame mais detalhado, no entanto, revela a presença de algumas linhas de conexão que dão à peça um ar real de projeto:

(a) Israel pertence ao passado, mas não deve viver nele. O fato de a linha­gem davídica (3.17-24) e o esboço do Israel pós-exílico (9.2-34) se aproximarem da, ou mesmo alcançarem a, própria geração do cronista mostra que as listas não pretendem ser um deleite do historiador. Um sentimento adequado de história envolve a compreensão dos caminhos de Deus nos dias passados de maneira que a fé possa ser renovada no presente (cf. F1 1.16).

2 Sobre as origens das listas, veja e.g. J. P. Weinberg, ‘Das Wesen und die funktionelle Bestim m ung der Listen in 1 Chr 1-9’, ZAW 93, 1981, p. 91-114. Para um a útil introdução geral às genealogias do Antigo Testamento, veja Braun, p. 1-12.

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1 CRÔNICAS

(b) Algumas pessoas têm um significado especial nos propósitos de Deus. No período mais antigo, Adão (1.1) e Israel (=Jacó; 1.34; 2.1-2) são os nomes- chave, enquanto representantes da obra criadora e redentora de Deus para e através da humanidade. Os propósitos de Deus em seguida continuam por meio de três tribos, Judá (2.3— 3.24), Levi (cap. 6), e Benjamim (7.6-12; 8.1-40; 9.35-44), que ocupam a maior parte das listas tribais e formam um quadro global para elas. A linhagem de Davi que continua em Judá (3.1-24) sustenta uma esperança de que o reino de Israel possa reaparecer, enquanto a presença de Levi indica provisão contínua para a expiação, o sacrifício e o louvor (6.1-81).

(c) A ocupação da Terra Prometida permanece uma prioridade. Muito dos capítulos 2— 8, de fato, estão preocupados em mostrar como todas as tribos linham vivido na terra, ainda que isso às vezes tivesse envolvido dor e oração (cf. 4.9-10). O corolário disso para os leitores do cronista era a necessidade de continuar se dedicando à reconstrução de Jerusalém e seu templo (cf. 9.2-34).

(d) As nações do mundo pertencem a Deus. Embora a lista de nações se limite ao capítulo 1, o ponto vital é que suas genealogias são também a genealogia de Israel. Não há linha divisória. Todos são parte dos propósitos soberanos de Deus, com as nações tendo de reconhecer o poder de Deus (cf.I Cr 14.17; 2Cr 20.29), e até o poderoso Ciro cumpre a palavra profética de Deus (cf. 2Cr 36.22-23). Israel não só não deve se sentir ameaçado, mas pode até ter u ma visão positiva, pois Abraão (1.27-34) era uma prometida fonte de bênçãos para as nações (cf. Gn 12.2-3).

(e) Todo tipo de pessoa tem um lugar dentro dos propósitos de Deus. O bom, o mau e o feio estão incluídos nas listas. Todas as tribos estão lá, inclusive os dois lados da antiga divisão norte-sul. Os estrangeiros e aqueles envolvidos nos casamentos mistos estão também incluídos (cf. 2.3,34-35; 4.18). Pessoas comuns, lotalmente esquecidas fora dos registros de seus nomes, aparecem ao lado de alguns dos grandes nomes do passado de Israel. O povo de Deus em toda sua variedade e seu fracasso é de fato o assunto central das listas. Na mente do compilador, com certeza essas não eram velhas e áridas genealogias. Elas tratavam de lugares reais e pessoas reais que, apesar da “infidelidade” de Israel (ver notas sobre 2.7; 5.25; 9.1), tinham um papel na contínua atividade de Deus.

Esse tipo de material tem alguma relevância para os cristãos? A resposta deve ser sim, visto que cada um dos temas acima tem uma contraparte cristã. A herança espiritual da igreja, por exemplo, é um tema importante, na medida em que é um lembrete do significado da geografia espiritual. Deus ainda está execu- lando seus propósitos soberanos por todo o mundo, e se importa com cada lugar onde os cristãos vivem e trabalham.

Duas questões são dignas de se ponderar com mais detalhes. A primeira é a verdade de que tanto cristãos quanto israelitas estão em Adão (cf. ICr 1.1). limbora Adão seja freqüentemente associado à idéia de que a raça humana está sob a escravidão do pecado e da morte (Rm 5.12-19; ICo 15.21-22, 45-49), a

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1 CRÔNICAS 1.1-54

Bíblia, e isto inclui Crônicas, possui também um outro ponto de vista mais posi­tivo acerca dele (cf. Lc 3.38; At 17.26). Areferência de Crônicas a Adão alude à descrição em Gênesis onde ele foi criado através da vontade pessoal de Deus segundo sua imagem. Embora essa imagem tenha sido danificada pelo pecado, ela não foi destruída, e todos os descendentes de Adão compartilham de alguma coisa de sua dignidade original. Mas Jesus Cristo também é um filho de Adão (Lc 3.38). Isso não significa somente que Jesus seja um homem real, mas que ele é capaz de redimir aqueles que caíram no pecado de Adão. Portanto, mais do que separar os cristãos de sua humanidade ou “adanidade”, Jesus os capacita a cumprir a humanidade para a qual foram criados. Crônicas, em outras palavras, parte de uma árvore genealógica à qual pertencem os povos de todas as nações, mas onde apenas aqueles que estão em Cristo podem encontrar sua verdadeira herança como filhos de Deus e filhos de Adão.

A segunda questão diz respeito à natureza e propósito do povo de Deus. A diversidade de Israel oferece uma analogia à variedade que constitui a igreja. A diversidade de Israel oferece uma analogia para a variedade que constitui a igreja. A igreja não é uma unidade homogênea, mas uma mistura de pessoas de todos os tipos e condições: Na verdade, isso é verdade até mesmo em maior medida do que para Israel, visto que a igreja deriva de muitas nações e não apenas de uma. Pelo fato de ser semelhante a um corpo (Ef 4.16) ou a uma construção (Ef 2.21), a igreja tem muitas partes e recebeu muitas variedades de dons (Ef 4.7-8,11-12). Infelizmente, ela também, como Israel, tem um histórico de “infidelidade” (cf. Ef 2.2; 2Tm 2.13). A resposta de Crônicas a esse problema encontra-se nas genealogias de Judá e Levi, pois agora é Jesus quem cumpre as funções reais e sacerdotais representadas por essas tribos. Como Rei ele rege sobre os interesses das nações, e como Sumo Sacerdote ele assegura aos cren­tes que seus pecados foram tirados para sempre. Como Israel, portanto, a igreja não precisa ser intimidada por qualquer ameaça, seja ela externa ou interna. A intenção de Deus hoje ainda é restaurar seu povo com base em seus propósitos de longa data, do mesmo modo que ele fez pela comunidade pós-exílica.

A. De Adão a Esaú (1.1-54)O capítulo de abertura tem uma majestosa extensão que cobre todo o perío­

do que vai de Adão (v. 1) a Esaú e Jacó (sempre citado em Crônicas como Israel, v.34; cf. 2.1). Ele é na verdade um breve comentário sobre Gênesis, estruturado ao redor da frase famosa e recorrente daquele livro, “Estas são as gerações de...”. Essa frase originalmente formava um cabeçalho a várias listas que agora foram reunidas, fora as passagens associadas à primeira (Gn 2.4) e à última (Gn 37.2) ocorrências da frase. Crônicas, às vezes, combina duas listas por motivo de eco­nomia, particularmente onde uma originalmente era muito curta (cf. v.4a e Gn 6.9- 10; 10.1; v.27-28 e Gn 11.10,27; v.35 e Gn 36.1,9), mas, por outro lado, todas as passagens relevantes aparecem de uma forma ou de outra. As listas originais

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1 CRÔNICAS 1.1-54

íbram privadas de todos os cabeçalhos, sumários, e diversos detalhes pessoais, e, às vezes, somente os próprios nomes são preservados (v.l-4a, 24-27).

Este capítulo, portanto, tornou-se uma visão panorâmica do trato de Deus com a humanidade tanto na criação quanto na redenção. Naturalmente, o nome deI )eus não aparece, mas sua atividade é visível em toda parte para o leitor atento. O Cronista presume que a história básica e as personalidades do Gênesis são conhe­cidas. Ele também pôs em pontos estratégicos nomes que têm grande significado na história primitiva do povo de Deus, especialmente Adão (v. 1), Noé (v.4), Abraão (v.27, 28, 32, 34), e Israel (v.34; 2.1). As seções estão dispostas de maneira tal que a pessoa que faz o elo de Adão a Israel é tratada por último em cada geração. A estrutura pode ser representada como no diagrama abaixo:

Adão (v. 1)

(10 gerações, v. l-4a)

Noé (v. 4)

„ ̂ Cam (I. 8-16)S e m . J a fe(o mais velho, I (v. 5-7)

(10 gerações, v. 24-27)V. 17-23)

Abraão (v. 28)

Ism ael (o m ais velho, v. 29-31)Isaque i os tilh os de(v 34) |_______________I_______________ I Q uetura (v. 32-33)

I s r a e l E saú(caps. 2-8) (mais velho, v. 35-54)

A retenção de nomes-chave dessa forma é única nos capítulos 1— 9, e cha­ma a atenção para o último nome de cada geração. Isso nem sempre corresponde à ordem de nascimento, pois algumas vezes o filho mais velho vem primeiro (e.g. Sem), em outras um filho mais moço (e.g. Isaque, Israel). A linha escarlate oculta que liga todos esses nomes separados em um único manto sem costura é o amor de Deus que os elege, e pelo qual duas ênfases são produzidas. Primeiro, todas as nações são apresentadas em um tipo de mapa-múndi, colocando-as claramente mais dentro do que fora dos propósitos gerais de Deus.3 Em segundo lugar, e até mais importante, Israel está no centro desse esquema. O Israel da época do cronis­ta não estava somente unido com o primeiro Israel, mas pertencia às nações como um todo e era inclusive descendente do primeiro homem.

3 Cf. M. Kartveit, Motive und Schichten der Landtheologie in 1 Chronik 1-9, CBOTS 28 (Stockholm : A lm qvist & W iksell, 1989), pp. 110-117.

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1CRÔN1CAS 1.1-54

Em contraste com as genealogias dos capítulos 2— 9, muitas linhas neste capítulo são traçadas por apenas uma geração ou em tomo disso. Somente a linha de Israel é contínua. Mas embora as linhas descontínuas não possam transmitir as promessas de Deus, elas ainda têm um papel importante nos propó­sitos soberanos de Deus. O interesse nas nações é um tema típico em Crônicas, e daí surgem duas implicações. Uma é que os poderes imperiais do exílio e mesmo posteriores são vistos como descendentes diretos da atividade criadora de Deus em Adão. Portanto, eles ainda estão sujeitos à sua vontade soberana (os Medos e os Gregos, Madai e Javã, v.5, são explicitamente mencionados, embora não a Babilônia ou a Pérsia). A outra é que os gentios também prospera­ram, quer indiretamente na resposta à ordem de Deus que dizia “sede fecundos, multiplicai-vos” (Gn 1.28), quer em associação com as promessas da aliança de Deus (Ismael, v. 29-31, cf. Gn 21.13,18; Esaú, v. 35-37, cf. Gn 33.9; 36.1 ss.).

i. De Adão a Noé (l.l-4a)cf. Gênesis 5.1-32Esta lista de dez gerações é extraída de Gênesis 5. Somente aqui Adão

aparece fora do Gênesis. E uma declaração teológica arrojada remontar a ances- tralidade de Israel não apenas a Abraão, mas à própria criação. Quando se con­sidera que o cronista escrevia em uma época de grande fragilidade israelita, é difícil conceber uma associação mais esplêndida do que esta para começar seu relato. Lucas remonta sua genealogia de Jesus à mesma fonte (Lc 3.23-38).

ii. Os descendentes de Noé (1.4b-23)cf. Gênesis 10.1-29Esta lista, que se baseia muito na Tábua das Nações (Gn 10.1 -29), apresen­

ta os descendentes dos três filhos de Noé, Sem (v. 17-23), Cam (v. 8-16) e Jafé (v. 5-7). Como é comum neste capítulo, eles são tratados na ordem inversa, embora neste caso seja o mais velho quem proporciona a continuidade. Os nomes são mais seletivos que abrangentes, com muitas linhagens não desen­volvidas. Ela parece cobrir o mundo conhecido mas sem entrar em detalhes. Os jafetitas eram basicamente vizinhos do oeste e norte de Israel (e.g. Javã = Grécia, v.5; Quitim - Chipre, v.7), os camitas incluem o norte da África (Cuxe = Etiópia, Mizraim — Egito, v.8) e Síria/Palestina (cf. v. 13-16), e os Semitas, ou descendentes de Sem, habitavam no leste (e.g. Elão = Pérsia antiga, Assur = Assíria v. 17).

4. O cronista não incluiu uma declaração sobre a ascendência dos filhos de Noé (ver RSV, JB). Isto se deve muito provavelmente mais à compressão do que à falta de cuidado, já que a mesma coisa acontece mais duas vezes (v. 17,36), e é uma indicação de que o autor espera que seus leitores tenham alguma fami­liaridade com suas fontes. Não obstante, muitas versões trazem os filhos de Noé, seguindo a LXX.

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1 CRÔNICAS 2.1—9.1

7. Rodanin, provavelmente Rodes, é “Dodanim” em Gênesis 10.4, e é uma das pequenas variantes textuais existentes.4 Diversas notas breves de GênesisI oram preservadas (v. 10,12,19), embora a relativa a Ninrode seja muito abrevia­da. Elas ilustram pontos de interesse contemporâneos, mas também demons­tram até onde chega a fidelidade do cronista para com suas fontes.

17. Os filhos de Arã é mais um exemplo de ascendência omitida no TM, mas em geral fornecida nas versões (cf. v.4). “Más” (NEB, cf. Gn 10.23) deve ser preferido a Meseque do TM (RSV, NVI etc.). Expandir um nome pelo acréscimo dc uma consoante (em heb.) não tem paralelo neste capítulo, e o TM aqui prova­velmente foi influenciado pelo versículo 5.

iii. De Sem a A braão (1.24-27)cf. Gênesis 11.10-32Estes nomes são extraídos de Gênesis 11.10-32, e, como nos versículos

I -4a, são dadas dez gerações. O cronista permanece fiel aos mínimos detalhes de sua fonte, ainda que isso produza uma sobreposição à seção anterior (c f v.24-25 com v.17-19).

iv. Abraão (1.28-34)1.29-31 - cf. Gênesis 25.12-161.32-33-c f. Gênesis25.1-4O cronista mostra maior liberdade com suas fontes desta parte do capítulo

tio que em qualquer outra seção. Nem o cabeçalho (v.28) nem a conclusão (v.34) possuem paralelo direto em Gênesis, e a fonte para os descendentes de Ismael (v. 29-31) foi rearranjada de maneira mais extensa que o normal. A seção sobre Quetura (v. 32-33) também é distinta. Ela se baseia mais na concubina de Abraão do que em seu filho, ela interrompe a ordem das genealogias originais, e não é derivada de uma passagem que originalmente começa com “Estas são as gera­ções de...” (ver acima). Todas essas características apontam para o fato de que embora Abraão (v.27, 28, 32, 34) talvez não seja o centro das atenções nestes capítulos, ele ainda é merecedor de reconhecimento especial. Os detalhes exten­sos sobre Esaú e Edom (v. 35-54) provavelmente também procuram mostrar algo da bênção sobre a família mais ampla de Abraão.

v. Esaú e Edom (1.35-54)1.25-37 - cf. Gênesis 36.10-141.38-42-c f. Gênesis 36.20-281.43-54 - cf. Gênesis 36.31 -43

4 A m aior parte dessas variantes tem a ver com a alternância de duas letras escritas de lorma semelhante, ou d e r, como aqui (também Difate, v.6, NVI nr. e Gn 10.3; Hanrão, v.41 c Gn 36.26; Hadade, v.50 e Gn 36.39), ou w/o/u e y/i/e (Ebal, v.22 e Gn 10.28; Zefi, v.36 e Gn 16.11; Homã, v.39 e Gn 36.22; Aliã, v.40 e Gn 36.23; Sefô, v.40 e Gn 36.23; Paú, v.50 e Gn 16.39; Alva, v.51 e Gn 36.40).

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1 CRÔNICAS 2.1— 9.1

Quatro listas distintas são combinadas tendo Esaú como o denominador comum. Os descendentes de Esaú (v. 35-37) são seguidos por seus vizinhos, os filhos de Seir (v. 38-42; cf. Gn 36.9,20), e por duas listas de líderes edomitas, seus reis (v. 43-5 la ) q príncipes (v.5 lb-54). A quantidade imprevista desses nomes é em parte explicada por seu relacionamento com Abraão, mas deve-se mesmo mais ao fato de serem paralelos aos descendentes do irmão de Esaú Israel (v.34 e caps. 2— 8). Esaú, na verdade, se multiplicou, embora isso fosse como nada em comparação com o milagre que Deus operou pela família de seu irmão.

Timna (v.36) é um outro caso de abreviação. Ela é na realidade mãe de Amaleque (cf. v.39; Gn 36.12), como sugere a NVI. A associação de Edom (v. 43, 51, 54) com Esaú é um bom exemplo da fluidez entre o individual e o nacional neste capítulo (cf. também v.11-15). Morreu Hadade (v.51a) é um acréscimo a Gênesis 36.40, e provavelmente seja o modo de o cronista levar esta parte da lista a um final natural.

B. As tribos de Israel (2.1— 9.1)Judá (2.3— 4.23) encabeça as genealogias tribais, e recebe um tratamen­

to mais extenso do que as demais tribos. A razão desta proeminência especial encontra-se na posição central da linhagem de Davi (2.10-17; 3.1-24) que por sua vez surge da importância dada à aliança davídica em Crônicas ( lC r 17 etc.). A linha que traça os propósitos de Deus de Adão a Israel (cap. 1) é agora restringida à família de Davi. Em outras palavras, através desta multidão de nomes amplamente desconhecidos, o Cronista destaca que os propósitos da eleição de Deus ainda estavam operantes apesar das vicissitudes da história de Judá (e.g. 2.3,7) e do exílio (e.g 3.17-24).

Para compreender o método e a mensagem do cronista nesta seção, é preciso que ela seja lida como um todo. Toda a genealogia de Judá tem uma estrutura quiástica, isto é, um quadro no qual os padrões de pensamento e vocabulário das seções externas e internas correspondem uns aos outros.5 Esse padrão funciona em dois níveis, o primeiro dos quais diz respeito ao perío­do que vai de Judá a Hezrom, da seguinte maneira:

a.Os cinco filhos de Judá (2.3-4)b.Os descendentes dos filhos gêmeos de Judá, Perez e Zerá (2.5-8)c. Os descendentes do filho de Perez, Hezrom (2.9— 3.24)b 1. Mais descendentes de Perez (4.1 -20)a l. Mais descendentes do filho de Judá, Selá (4.21-23).

Um segundo quiasmo é em seguida desenvolvido para os filhos de Hezrom (2.9— 3.24):

5 H. G M . W illiamson, ‘Sources and redacíion in the C hroriider’s genealogy o f Judah’, JBL 98, 1979, pp. 351-359.

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1 CRÔNICAS 2.1— 9.1

a. Os filhos de Rão, a Davi (2.10-17)b.Os filhos de Calebe, a Bezalel (2.18-24)c.Os filhos de Jerameel (2.25-33)c l . Mais descendentes de Jerameel (2.34-41)b l . Mais descendentes de Calebe (2.45-55)a l . Mais descendentes de Rão, de Davi (3.1-24)

O foco da camada externa recai sobre a seção central e sobre as duas seções externas da camada interna, nos dois casos, naturalmente, apontando diretamente para Davi. Isso não é para dividir sua linhagem de maneira artificial, como alguns têm alegado, mas para tomá-lo o divisor de águas de sua família. Assim ele se toma um ponto de divisão mais importante do que o exílio, em contraste com as outras tribos.

As fontes para esta seção permanecem amplamente desconhecidas. Poucas passagens breves a respeito dos estágios mais antigos da tribo e da família de Davi foram emprestadas diretamente de outras partes do Antigo Testamento (ver os cabeçalhos de cada seção). Em acréscimo a essas linhagens e à linhagem real (3.1-16), listas de diversos períodos e com características diferentes parecem ter sido empregadas, resultando em uma certa falta de fluência. A relação das listas suplementares no capítulo 4 com a lista como um todo nem sempre é clara, e existe mais variação na forma e natureza dos nomes, que são em parte pessoais, em parte tribais, e em parte geográficos. Somente as variações mais importantes podem ser notadas aqui, embora para mais distinções comentários maiores possam ser con­sultados. Não obstante, os detalhes não necessariamente depreciam a perspecti­va mais ampla que pode ser obtida de uma visão global.

i. Os filhos de Israel (2.1-2)2 A -2 -c f. Gênesis 35.23-26Esta breve lista, que segue o padrão do capítulo 1, é paralela da dos

filhos de Esaú (1.35). Ela é um cabeçalho dos capítulos 2— 8, não uma conclu­são do capítulo 1, visto que as passagens similares em 1.4,28, 34 são todas de natureza introdutória. O cronista pensa em larga escala de m aneira teológica, histórica, e em termos de projeto literário. De fato, esta curta passagem é o principal elo entre a perspectiva internacional do capítulo 1 e o desenvolvi­mento das tribos de Israel. A ordem dos nomes segue Gênesis 35.23-26, com uma exceção. Dã é esperado depois de Benjamim, e nenhum motivo convin­cente foi apresentado para a mudança (cf. também Êx 1.2-4). U m a ordem dife­rente é usada nos capítulos seguintes.

ii. A tribo de Ju d á (2.3— 4.23)2.3b - cf. Gênesis 38.72.10-12-c/Rute4.19-22

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3.1-4a-c f. 2Samuel 3.2-53.4b - c f 2Samuel 5.53 .5 -8 -c / 2Samuel5.14-16

a. Judá a Hezrom (2.3-8). Esta seção, que dá os nomes de cinco filhos de Judá (v.3-4) e dos descendentes de seu filho mais jovem, Zerá (v.6-8), baseia-se somente em duas outras genealogias de Judá no Antigo Testamento (Gn 46.12; Nm 26.19-22), sendo que ambas param em Hezrom e Hamul (v.5). Ela salienta o envolvimento de Deus na linhagem de Judá tanto no juízo quanto na eleição. O juízo é bem exemplificado pelo fim repentino de Er, ()nãeA car(v3J: cf. Gn38.6- 10). Aprimeira menção de Crônicas de “o S e n h o r ” mostra a intolerância de Deus para com o pecado mesmo em uma tribo escolhida: “Er, primogênito de Judá, foi mau aos olhos do S e n h o r , e ele o matou” (v.3, RSV = Gn 38.7). Ela também refleteo interesse especial de Crônicas no cumprimento dos propósitos de Deus atra­vés da supressão dos primogênitos (v.3; ver ainda comentários sobre 5.1-2; também 26.10). A menção dos gêmeos Perez e Zerá (v.4) alude à eleição ou escolha por parte de Deus de uma família em particular. As circunstâncias incomuns de seus nascimentos (v.4; cf. Gn 38.11-30) e a preservação da linha­gem de Perez significavam a atuação especial da providência divina, através das ações humanas que podem ser boas, más ou indiferentes. E notável que o livro de Crônicas relate fielmente a atividade de Deus em vários casamentos mistos (v.3; cf. também 2.12,17,34-35; 4.18).

De acordo com IReis 4.31, os últimos quatro filhos de Zerá (Etã... Darda/ Dara, v.6) foram sábios famosos (“esraíta,” 1 Rs 4.31, provavelmente é uma alterna­tiva para “filho de Zerá”). Carmi (v.l) é o filho de Zínri (v.6; cf. Js 7.1,18), e uma declaração nesse sentido às vezes é acrescentada nas versões (e.g. NEB). “Os filhos de Carmi” (v.7, TM; cf. RSV, JB) é imprevisto, pois somente um filho é nomeado. Esse é um exemplo de um problema comum nas genealogias, e tanto as traduções antigas quanto as modernas variam (outro exemplo é “filhos de Etã”, v.8). A fórmula “filhos de...” provavelmente era apenas convencional, indepen­dente do número de filhos listados. Nesse caso, o filho é um filho famoso, a saber, “Acã” (cf. Js 7), chamado aqui de Acar (= “tribulação”). Esse jogo de palavras é um desenvolvimento deliberado de Josué 7.24-26, e coloca Acã na mesma tradição de Acabe, também um “perturbador de Israel” (v.7, NRSV, etc.; cf. 1 Rs 18.17).

Acã também foi culpado de “infidelidade”, um termo-chave em Crônicas (heb. m ã‘al) traduzido aqui como pecou (NVI “violar”, JB, cf. NEB) ou “trans­grediu” (RSV). Essa palavra possui o sentido de privar Deus do que lhe é devido, e é a explicação favorita de Crônicas para a tragédia do exílio. Esse exemplo no início das genealogias tribais é análogo à descrição de Saul no início da seção narrativa (10.13), e exemplos comparáveis ocorrem no fim tanto das genealogias (9.1) quanto da narrativa (2Cr 36.14). Israel é claramente criva­do de “infidelidade”, desde sua entrada na Terra Prometida até sua destruição

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pelos babilônios.6 A única esperança real de recuperação deste mau começo para as genealogias de Israel está com Davi, que é o nome principal da seção seguinte.

b. Os descendentes de Rão (2.9-17). Toda a seção de 2.10— 3.24 está dividida entre os três filhos de Hezrom, Rão (2.10-17; 3.1 -24), Calebe (chama­do “Quelubai” apenas no v.9, e.g. RSV, JB, 2.18-24,42-55), e Jerameel (2.25-33, 34-41), tendo o versículo 9 como cabeçalho. Ainda que não seja o mais velho, Rão é colocado primeiro, pois, em contraste com o capítulo 1, o filho mais importante agora tem prioridade.

A importância de Rão vem de seu descendente Davi, que forma o auge para esta seção (v. 15). Os versículos 10-12 baseiam-se diretamente em Rute 4.19-22, com o acréscimo da declaração sobre o status de Naassom (v. 10; cf. Nm 3.2). Não está claro porque Davi é considerado aqui o sétimo filho, mas o oitavo em 1 Samuel16.10-13; 17.12. As irmãs de Davi (v. 16-17) somente aqui são descritas como tais, embora Zeruia e seus três filhos sejam bem conhecidos em outras partes. A pre­sença de um ismaelita na família (v. 17) é um outro exemplo de casamento misto (cf. v.3), pressupondo que essa seja uma leitura superior a 2Samuel 17.25.

c. Os descendentes de Calebe (2.18-24). Calebe é um problema por dois motivos. Sua genealogia aparece em diversas partes (2.18-24,42-55; 4.1-8) e o nome poderia se referir a uma ou duas pessoas. Na prática, de outro modo o desconhecido Calebe filho de Hezrom é provavelmente diferente de Calebe, um quenizita e filho de Jefoné, que é freqüentemente citado como tendo “se­guido o S e n h o r de todo seu coração” (e.g. Nm 14.24; 32.12; Js 14.6,13-14, NIV). O último parece ser listado em separado (4.15-16), embora haja alguma sobreposição em uma seção (2.42-50a). A menção de Bezalel (2.20) o arquiteto da Tenda (ou tabernáculo), também parece apoiar a existência de dois Calebes. Hle era o bisneto pelo menos de Calebe filho de Hezrom mas contemporâneo de Calebe filho de Jefoné, no período do deserto. Jerameel filho de Hezrom, como seu irmão Calebe (2.9, 25, 33, 42), é quanto ao mais desconhecido, fora lima breve referência geográfica (1 Sm 27.10; o “o lado sul de Calebe” em ISm 30.14 está provavelmente associado ao filho de Jefoné, visto que não fica distante da área de Hebrom).

A estrutura da árvore genealógica de Calebe é provida por suas esposas e concubinas. Houve pelo menos quatro delas, suas esposas Azuba (v. 18-19) e Efrata (2.19,24,50; 4.4) que provavelmente era viúva de seu pai (ver comentário do v.24), e suas concubinas Efá (v.46) e Maacá (v.48). Além disso, a mãe dos filhos de Calebe nos versículos 42-45 não é nomeada. Jeriote (v. 18) é mais provável que lenha sido sua filha (NVI, NEB, GNB) do que outra esposa (NIV, RSV).7

6 Veja ainda Johnstone, ‘G uilt’, p. 116-138.1 O sufixo singular em “os filhos desta” (v. 18) sugere que somente uma esposa está envolvida.

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18-20. A primeira parte da genealogia diz respeito ao arquiteto da Tenda, Bezalel (cf. Êx 31.2; 35.30). Embora ele tenha vivido em um período bastante diferente do de Davi (v. 15), as duas genealogias estão justapostas para subli­nhar a antiga associação entre a monarquia davídica e a Tenda, na preparação para a construção do templo por Davi e Salomão.

21-23. A seção seguinte, sobre a relação entre Judá e alguns gileaditas que viviam no norte da Transjordânia, é inesperada. Ela pode aludir a um casamento em tempos patriarcais tardios, ao casamento de Davi com uma princesa araméia (cf. lC r 3.2 = 2Sm 3.3), ou ao estabelecimento de alguns de Judá em Gileade após o exílio. Maquir, pai de Gileade (NEB, “fundador de”) é a primeira ocorrência de uma fórmula freqüente, “nome pessoal, ‘pai de’ + nome local”. A frase combina dados genealógicos e geográficos, e pode refle­tir um interesse em lugares bem conhecidos em tempos pós-exílicos. Havote- Jair (NVI, RSV, NEB) é preferido a “aldeias de Jair” (GNB; “acampamentos”, JB). Era uma área distinta, que compreendia entre trinta (Jz 10.4) e sessenta cidades ou aldeias (Js 13.30; 1Rs4.13;c/. v.23).

24. Aqui as incertezas textuais obscureceram o status de Azur (cf. 4.5), mas ele provavelmente é filho de Calebe e Efrata (RSV, NEB etc., com a LXX, Vulg.) e não de Hezrom e Abia (NIV, como TM).Deve-se preferir a expressão “seu pai” à palavra Abia, pois esta última ao contrário da primeira, é desconhecida.*

d. Os descendentes de Jerameel (2.25-41). Esta seção na realidade com­preende duas listas (v. 25-33, 34-41), como indicado pelo sumário no final do versículo 33 e o estilo diferente nos versículos 36-41 em particular. Nenhum destes nomes é mencionado no restante do Antigo Testamento, embora eles sejam duas vezes mencionados de passagem como um grupo (ISm 27.10; 30.29). Aías (v.25) provavelmente é a primeira esposa de Jerameel (v.26) e não seu quinto filho (como o a VA, NVI). Alai deve ser a filha de Sesã, se as declarações sobre sua família devem ser harmonizadas (v. 31,34).

e. Outros descendentes de Calebe (2.42-55). Esta seção é continuação de 2.18-24. Ela contém pelo menos duas listas (v. 42-50a, 50b-55), separadas pela conclusão e cabeçalho do versículo 50. Muitos nomes são únicos, mas aqueles que podem ser identificados contêm uma mistura de detalhes pessoais e geográ­ficos. Vários nos versículos 42a-50, por exemplo, estão na área de Hebrom (e.g. Zife, Maressa, v.42; Bete-Zur, v.45), embora aqueles nos versículos 50b-55 pare­çam estar espalhados por todo o território de Judá. Bete-Zur ficava na fronteira sul de Judá depois do exílio, e já que há mais alguns nomes sulinos, esta lista em particular provavelmente é pré-exílica. Hebrom (v. 42-43) cAcsa, filha de Calebe,

*A expressão “seu pai” aparece no texto da versão revisada do inglês (rsv):“Após a morte de Hezrom, Calebe foi até Efrata, mulher de seu pai, e ela deu à luz um filho, Azur, pai de Tecoa” (conf. tradução literal). (Nota do editor)

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estão associados a Calebe, o filho de Jefoné, sugerindo que as tradições dos dois Calebes se entrelaçaram nos versículos 42-50a. Maressa (v.42) pode ser o neto de Messa (GNB, JB) ou seu irmão (NEB, cf. Rudolph), ou possivelmente o linico filho de Calebe (RSV, cf. LXX). Haroé (v.52, = “o vidente”) às vezes é igualado a Reaías (4.2). As famílias dos escribas (v.55) é uma tradução possível mas não segura. Eles podem ser comparados às associações de 4.14, 21,23, mas outros entendem que se trata de uma expressão gentílica, ou “sofritas” (NEB, BJ) ou sifritas, i.e. de Kiriate-Sefer (Rudolph).

f . A fam ília real de Davi (3.1-24) A linhagem davídica é a peça central da genealogia de Judá. Ela continua 2.10-17 e contém três estágios distintos: os filhos ilo próprio Davi (v. 1-9), os reis de Israel (v. 10-16), e as gerações pós-exílicas (v. 17- 24). A última seção é a única parte de Crônicas a continuar por várias gerações após o exílio, e presumivelmente chega ao, ou bem perto do, tempo do próprio cronista, embora problemas textuais no versículo 21 infelizmente tomem impossí­vel se ter certeza das datas reais. O interesse centra-se mais sobre a linhagem da família como um todo do que sobre qualquer indivíduo. Embora o cronista acredi- lasse claramente que a promessa de Deus a Davi (especialmente ICr 17.10b-14) continuava efetiva em sua própria época, ele não identificou nenhum indivíduo que pudesse restaurar o reino a Israel. As genealogias do próprio Jesus traçam a linhagem de Davi através de diversos filhos de Zorobabel, nenhum dos quais é listado nos versículos 19-20 (cf. Mt 1.13; Lc 3.27).

1-8. A lista dos filhos de Davi tem poucas variantes se comparada com 2Samuel 3.2-5; 5.14-16. Daniel (v. 1) aparece para “Quileabe”, e Elifelele (v.6) e Nogá (v.7) são adicionais, embora o total de nove (v.7) sugira que sua inclusão não foi acidental. Bate-Sua (v.6; NVI nr.) provavelmente é uma pronuncia alter­nativa para Bate-Seba, talvez influenciada por 2.3, embora Salomão seja descri- lo de maneira inesperada como seu quarto filho (cf. 2Sm 12.24-25).

10-16. A lista de reis é uma grande mistura, e em comparação com as mudanças dinásticas no reino do norte, é um milagre que a linhagem tenha sido preservada. Todos os reis davídicos estão aqui, e somente Atalia, filha de Acabe ((f. 2Rs 11), está faltando. O nome dos livros de Reis de Azarias é usado (v. 12; cf. 2Rs 15.1-7), embora ele apareça em 2Crônicas 26 como Uzias (também 2Rs 15.13,30; Is 1.1; 6.1; etc.). Dos filhos de Josias (v. 15), Joanã não é mencionado em Reis e pode ter morrido jovem, e Salum, o nome de Jeoacás (2Rs 23.31-34 = 2Cr 36.2-4; cf. Jr 22.11), é descrito aqui como o mais jovem de quatro irmãos, ainda que ele reinasse antes de Jeoaquim (2Rs 23.35— 24.7 = 2Cr 36.5-8) e Zedequias (2Rs 24.17— 25.7 = 2Cr 36.11-14). A informação aqui não pode ser conciliada com o que é dito sobre a idade deles em 2Reis 23.31,36; 24.18, e é mais fácil pressupor algum erro de escriba com relação aos números.

O nome de Joaquim (NVI, GNB; “Jeconias”, ARA, TM e outras versões; lambém v. 16), o penúltimo rei de Judá, cuja soltura da prisão suscitou esperan­

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ças de uma restauração da monarquia davídica (cf. 2Rs 25.27-30), introduz o estágio final da dinastia.

17-24. A descrição de Jeconias como o cativo (v. 17), envolve uma mu­dança bem pequena no TM. Ele é mencionado com cinco de seus filhos (cf. v. 17- 18) nos textos babilônicos do exílio como recebendo rações regulares de comi­da. Uma inscrição também menciona o nome Selomite (v. 19). Ou ela foi um oficial do alto escalão em Judá ou a esposa de alguém assim, e é bem possível que seja a mesma pessoa na lista de Crônicas.8

Dos diversos problemas textuais desta passagem, dois são dignos de men­ção especial. O pai de Zorobabel é chamado Pedaías (v. 19) mas Sealtiel (v. 17) em outras passagens (Ed 3.2; Ag 1.1; Mt 1.12 etc.). E possível que Pedaías tenha sido seu pai verdadeiro, talvez com paternidade atribuída a Sealtiel por meio de um casamento de levirato, ou talvez ele realmente fosse filho de Sealtiel mas Pedaías em seguida tenha se tomado o chefe da família após a morte daquele. O ponto essencial, no entanto, diz respeito ao número de gerações que estão no versículo 21. Há duas possibilidades principais, ou os seis nomes que vão de Pelatias a Secanias são mais ou menos contemporâneos, ou cinco gerações sucessivas são represen­tadas por Jesaías a Secanias. Em favor da primeira estão as referências (v.22) aos dois filhos de Secanias, Semaías (Ne 3.29) e Hatus (Ed 8.2) aproximadamente 65 a 75 anos após Zorobabel, que, portanto, precederia Secanias em duas gerações. Embora os nomes sejam comuns e a cronologia global de Esdras seja discutível, ela é preferível a admitir Secanias como a sétima geração a partir de Zorobabel. Os filhos de Elioenai (v.24) são, fora essa passagem, desconhecidos e seus nomes parecem totalmente esquecíveis para a maioria dos leitores modernos. Mas para Crônicas eles são a encarnação coletiva de uma viva esperança também exemplificada nos nomes dos filhos de Zorobabel (v.20) - Hasuba (= “lembrado, considerado”), Oel (= “tenda [de Deus]”), Berequias (= “Javé abençoa”), Hasadias (= “Javé é amor”), e Jusabe-Hesede (= “Que o amor seja restaurado”).

g. Outros clãs de Judá (4.1-23). Diversas genealogias curtas são aqui listadas, nenhuma das quais tem qualquer paralelo no restante do Antigo Testa­mento. Algumas claramente suplementam a informação sobre as famílias de Perez (v. 1-8) e Selá (v. 21-23), enquanto outras provavelmente descrevem alguns dos clãs menores. Seis seções podem ser identificadas, a saber, os clãs de (a) Hur (v. 1-4; cf. 2.19-20,50b-55) e Asur (v. 5-8; cf. 2.24), que eram filhos de Calebe e Efrate e descendentes de Perez (v. 1, c f. 2.4-5); (b) Jabez. (v. 9-10); (c) Quelube (v. 11 -12);(d) Otniel e Calebe, os quenizitas (v. 13-16); (e) outros grupos menos conheci­dos (v. 17.20); e (f) Selá, filho de Judá (v. 21-23; cf. 2.3). Ao terminar com o primeiro dos filhos de Judá que gerou filhos, um ar de completude é dado à lista.

8 N. Avigad, Bullae and Seals from a Post-Exilic Judean Archive, Qedem 4 (Jerusalem: Hebrew University Press, 1976), No. 14; cf. H. G. M. Williamson, ‘The Governors o f Judah under the Persians’, TB 39, 1988, p. 59-82, especialm ente p. 69-77.

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Mais destaque é dado a uma série de notas breves. Por exemplo, a fórmula, “pai de + nome de lugar” ocorre diversas vezes (v. 3,4,5,11,12,14,17,18,19,21), mostrando interesse em várias localidades (cf. comentários sobre 2.21). Outras notas dão informação importante e rara sobre associações de ofícios pré-exílicas, como a dos obreiros em linho (v.21) e oleiros (v.23; cf. também v. 14 e 2.55), e detalhes de um outro casamento misto (v. 17-18, cf. 2.3, 17, 34-35). A nota mais fascinante diz respeito ao desconhecido Jabez e sua oração eficaz (v. 9-10; não há conexão óbvia com o nome de lugar em 2.55). Dois de seus quatro pedidos são sobre suas circunstâncias físicas (por fronteiras aumentadas e libertação da afli­ção - seu nome soa como o hebraico para “aflição”) e dois sobre seu relaciona­mento com Deus (a bênção e a mão protetora de Deus). O ponto importante não é que ele simplesmente orou, mas que Deus lhe concedeu o que lhe tinha pedido. A inclusão em Crônicas de outras orações respondidas de natureza similar (e.g. pelo crescimento das terras, cf. ICr 5. 20-22; 2Cr 20.6-12; pela cura física, cf. 2Cr32.34) é um lembrete de que Deus ainda ouve e responde orações específicas.

1. Aqui se espera antes “Calebe” do que Carmi (c f 2.9,19).3. Um erro do escriba parece marcar o início deste versículo (lit. “Estes são

i >s pais de Etã”). Visto que Etã é um lugar (v.32; próximo a Belém, cf. v.4 e Tecoa, cf. v.5), a solução mais provável é colocar antes de “pai” ou “filhos de Hur" (GNB, ( 'urtis e Madsen, Michaeli; cf. v.4) ou “filhos de Harefe” (Noth, Myers etc.), o linico filho de Hur cujos descendentes não estão listados em 2.50b-55. A leitura comum nas versões (Estes eram os filhos de Etã) é menos satisfatória.

13-15. Otniel era o irmão mais jovem de Calebe (Js 15.17; Jz 1.13), e os quenizitas aos quais eles pertenciam originalmente eram um dos diversos clãs menores que pouco a pouco se incorporaram a Judá. A última frase do versículo 15 pode ser lida ou como O filho de Elá: Quenaz (NVI, NEB, cf.( iNB) ou como um sumário, “Estes são os filhos de Quenaz” (Curtis e Madsen, Williamson; c f v. 4,6,11).

22. os quais dominavam sobre Moabe (NVI, RSV) frase que pode ser iraduzida como: “que foram a Moabe tomar esposas” (BJ, cf. Tg.), ou melhor, "que trabalharam para Moabe”, continuando o tema ocupacional dos versículos

I -23,9 “Lehem” (RSV) provavelmente é um lugar, talvez Belém (assim a NEB; cf. NVI, Jcisubi-Leém), que corresponde aos lugares de moradia dos trabalhadores nos versículos 21,23.

iii. A tribo de Simeão (4.24-43)4.24- c f Números26.12-134.28-33- c / Josué 19.2-18

" Cf. M. D ijkstra, ‘A note on I Chr. IV 22-23’, VT 25, 1975, p. 671-674; W illianson, P (il; veja também NEB.

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As seções 4.24— 5.26 e partes do capítulo 7 são o único tratamento deta­lhado em Crônicas das tribos do antigo reino do norte de Israel. Elas oferecem uma vinheta da história de Israel da conquista (4.38-43; 5.8-10,16) ao exílio (5.25- 26). A influência do cronista é visível no projeto dessas passagens e na ocorrên­cia de seus temas favoritos. A seção 5.20-22 em particular revela a contribuição especial do cronista, enfatizando o valor da confiança e da oração, e que a batalha era de Deus. Ele também é responsável pelo parágrafo importante (5.1 -2) que explica por que Rúben não encabeça as listas tribais.

A Terra Prometida recebe mais ênfase aqui do que em qualquer outra parte nos capítulos 1— 9. Proeminência é dada aos modos pelos quais as tribos indivi­duais aumentaram sua herança (4.28-31,39-43; e 5.9-10,16,22,23; cf. também 4.10), como a extensão do tradicional limite de Dã no norte de Israel (lCr21.2; 2Cr30.5) ao Monte Hermom (5.23) não longe de Damasco. E salientado também três vezes, no entanto (5.6,22,26), que essas tribos foram para o exílio porque elas cometeram transgressões contra Deus (5.25). A natureza de sua relação com Deus foi o fator decisivo que ligava as várias experiências de Israel na terra (5.20-22,25-26).

Como de costume, uma variedade de fontes é empregada. Os começos tanto da lista simeonita quanto da rubenita fazem uso das duas outras principais genealogias tribais do Antigo Testamento (Gn 46; Nm 26; cf. também Êx 6.14ss.). Também é bem provável que se tenha feito uso tanto das listas do recenseamen­to militar (5.18,24) quanto dos registros tribais locais que tratavam das terras de pastagem, conflito de fronteiras etc. (e.g. 4.34-43; 5.7-10,16).10 Outras fontes (e.g. 5.4-6,11-15) permanecem sem identificação.

A tribo de Simeão, cujo território se estende até o limite sul de Judá, é colocada aqui por causa de sua íntima associação com seu maior vizinho. A lista de lugares nos versículos 28-33 (baseada em Js 19.2-8; cf. Js 15.28-32) foi consi­derada de Judá desde tempos bastante remotos, e na época de Davi a conquista foi completada (cf. v.33).11 Contudo, alguns clãs mantiveram uma identidade separada até pelo menos o fim do século VIII (nos dias de Ezequias, v.41). Crônicas pode ter preservado essa lembrança da independência de Simeão ou por causa de seu exemplo de expansão geográfica ou porque os judeus pós- exílicos ainda habitassem na região (cf. Ne 11.26-29).

25-27. A linhagem de Saul é a única que continuou por várias gerações. É possível que tenha sido o maior clã da tribo ou que talvez sua ancestralidade cananita fosse de interesse especial (cf. G n46.10;Êx 6.15).

10 M. D. Johnson, The P urpose o f the B ib lica l G enealogies (Cam bridge: C am bridge U niversity Press, 1969), p. 62-68.

11 Vários nomes de lugares mostram variação quando comparados com Josué 19. Os mais interessantes são Saaraim (v. 31; Saruém, Js 19.6; cf. Silim, Js 15.32), Etã e Toquém (v. 32), qualquer das duas pode ser equivalente Eter (cf. Js 19.7; 15.42), e Baal (v. 33, RSV, NEB) ou Baalate (NVI, GNB, BJ), uma forma encurtada de Baalate-Ber (Js 19.8).

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34-43. A lista dos líderes do clã (v. 34-38) remete à dupla expansão para o oeste (v. 39-41) e para o sudeste (v. 42-43). Em direção ao oeste, o destino deles era ou a região de Gedor (v.39, NVI, BJ, RSV, NEB), possivelmente o mesmo que ( ieder (Js 12.13), ou “Gerar” (GNB, cf. LXX), a famosa cidade a meio caminho entre Gaza e Berseba. A descrição da terra utiliza uma linguagem pós-exílica familiar (cf. Ne 9.25,35), mas é também reminiscente da conquista (cf, e.g. Êx 3.8), como na declaração de que eles as destruíram totalmente (v.41, NVI; cf. BJ, "votaram-nas a um anátema”). Tudo que estivesse associado ao culto idólatra, inclusive a população derrotada, tinha de ser destruído, e os israelitas não toma­vam nada para si (cf. Dt7.2; 20.17). Os camitas (v. 40-41),12 presumivelmente são um dos povos filisteus ou cananeus de 1.11-16, embora um termo de ampla abrangência como esse seja uma surpresa. Os meunitas (v.41), associados no Antigo Testamento aos filisteus (2Cr 26.7) e ao monte Seir (2Cr 20.1,10,22), podem ser localizados no sul do Neguebe.13 O “monte Seir” (v.43, RSV) também poderia estar na mesma região, embora sua associação tradicional a Edom o colocaria em alguma parte ao sul e/ou ao leste do mar Morto. Os amalequitas (v.43) eram um urupo nômade na região do Neguebe e do Sinai, que foram derrotados tanto por Saul (lSml5.7-8) quanto por Davi (ISm 30.1-18; 2Sm 8.12 = lC r 18.11).

iv. As tribos da transjordânia (5.1-26)5.3 - cf. Números 26.5-6; Êxodo 6.145.26b- cf. 2Reis 17.6b; 18.11b

a. A tribo de R úben (5.1-10). As tribos transjordanianas estão listadas da seguinte maneira: Rúben (v. 1-10), Gade (v. 11-17), e a meia tribo de Manassés (v. 23-24).

1-2. Uma nota especial explica porque Rúben não encabeçou a lista de nibos, embora ele fosse o primogênito (v.l; cf. Gn 29.31-32). Os costumes de herança do Antigo Oriente Próximo eram estritamente observados, e o direito de nascimento só era perdido por sérias ofensas contra os pais. O crime de Rúben certamente foi sério, visto que ir ao leito com a concubina de seu pai (cf. Gn (5.22; 49.3-4) era, com efeito, reivindicar a propriedade de seu pai (cf. 2Sm 16.20- ’2; IRs 2.13-25).14 No entanto, detalhes pessoais são menos importantes do que as conseqüências para as tribos. Crônicas interpretou Gênesis 48.5 à luz de uma lei que concede dupla porção a um primogênito (Dt 21.15-17), ao pressupor queo status de Efraim e Manassés como filhos plenos de Jacó era equivalente à

12 Lendo “povo [lit. tendas] de Cam” (cf. NIV, NEB) era lugar do TM “suas tendas” (e.g. KSV) no v. 41.

° C f W illiamson, p. 293-294.14 Para um estudo mais detalhado e outros exemplos, veja M. J. Selman, ‘Com parative

■ iisloms and the patriarchal age’, in A. R. M illard and D. J. W isem an (eds.), Essays on the 1’iilriarchal N arratives (Leicester: IVP, 1981), p. 113-114, 126.

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dupla porção de seu pai (os filhos de José, v.l). Estritamente falando, isso vai além de Gênesis 48, que menciona a adoção e a transferência da bênção de primogenitura (c f v.2 , LXX), contudo, é perfeitamente razoável em vista da prática disseminada da dupla porção do primogênito. Dessa forma, Crônicas sublinha que as tribos do norte não tinham perdido seus antigos privilégios (cf. 2Cr 28.5-15; 30.1-12), que dificilmente é um sinal de tendência anti-samaritana! Judá, portanto, alcançou uma posição de destaque, como a tribo poderosa da qual descendeu um líder (NVI, NEB, GNB) ou “príncipe” (BJ, RSV), i.e., Davi (cf. Gn 49.8-10). Essa parece ser a razão de Judá ser colocada à frente na genealogia.15O interesse especial de Crônicas no rebaixamento dos filhos primogênitos (cf. também ICr 2.3; 26.10) pode procurar enfatizar que o status diante de Deus era mais uma questão de privilégio do que de direito. O mesmo princípio também era aplicável a Israel enquanto primogênito de Deus (cf. Êx 4.22; Jr 31.9).

3-10. Ahistória dos rubenitas divide-se em pelo menos três períodos (v. 3-6, 7-9,10). Beera (v.6) parece representar o final da existência da tribo quando eles foram exilados por Tiglate-Pileser III (Tilgate-Pilneser, aqui e em 2Cr 28.20), provavelmente em 733 a.C.16 Toda a região da Transjordânia israelita tornou-se a província assíria de GaPazu, i.e., Gileade (= “a terra além do Jordão”, Is 9.1, RSV; ver também 2Rs 15.29).17 Os versículos 7-10 descrevem a expansão rubenita em tempos remotos. Aroer, Nebo e Baal-Meom (v.8) foram retomadas de Acabe pelo rei Mesha de Moabe na segunda metade do século IX a.C. (cf. Nm 32.3,38; Js 13.16-17). Os hagarenos (v. 10 cf. v. 19-21), que foram derrotados no tempo de Saul no século XI a.C., estavam associados tanto aos árabes (cf. Hagar) quanto aos moabitas (SI 83.6).

b. A tribo de Gade (5.11-22). Para os gaditas (v. 11-17) e a meia tribo de Manassés (v. 23-24; cf. 4.24; 5.3), Crônicas prescindiu do material introdutório usual de Gênesis 46 e Números 26 e continuou com as mesmas fontes que para Simeão e Rúben.

11-17.O território dos gaditas (v. 11,16) ficava em Basã, uma área famosa por sua fertilidade e cuja fronteira oriental se estendia até Salca (v. 11; cf. Dt 3.10; Js 13.11). Sarom (v. 16) não é a conhecida planície costeira, mas um lugar menci­onado na Pedra Moabita (linha 13). Os dados cronológicos (17) surpreendente­mente incluem Jotão, rei de Judá assim como Jeroboão II de Israel. Isso poderia

15 A tentativa de REB e NEB, seguindo Rudolph, de atribuir o direito de primogenitura a Judá é seriamente invalidada. Embora isso seja parcialmente baseado na LXX, envolve uma adição extrem am ente duvidosa no v. 2 (“dele, não”) e uma (disfarçada) contradição no fim do v. 1. Além disso, em nenhum lugar o Antigo Testamento vê Judá como o possuidor do direito de primogenitura, especialm ente sendo ele o quarto filho de Israel.

16 C f H. Donner, in J. H. H ayes e J. M. M iller (eds.), Israelite and Judean H istory (Londres: SCM Press, 1977), p. 425-432. Esse evento é geralmente associado com a campanha da Assíria na Filístia em 734 a.C, antes que sua campanha contra Damasco em 733-732 a.C.

17 Cf. ANET, p. 283.

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ser explicado pela compilação de relatos separados para cada reino, ou por um evento israelita sincronizado com um rei davídico, ou poderia ser derivado de “uma crônica sincronizada escrita em duas colunas” (Mettinger).18

18-21. Estes versículos são um sumário que trata da expansão e conquista pelas duas tribos e meia. Embora nenhuma data seja dada para o número de soldados capazes de sair a combate (v. 18), os números podem se referir ao confli- lo com os hagarenos (v.19-21; cf. v.10). Os oponentes das tribos eram grupos árabes (v. 19; cf. Gn 25.15; Jetur = Ituréia, Lc 3.1). No entanto, o objetivo do parágra­fo é explicar por que as tribos tiveram êxito, sublinhando as razões espirituais lanto quanto as militares. Essas são sumarizadas em uma frase típica de Crônicas, <i batalha era de Deus (v.22, NVI; cf. 2Cr 20.15; 25.8; 32.8). As três idéias de apoio ik> versículo 20 se encontram por todo o livro de Crônicas: a ajuda [de Deus] (cf.I Cr 12.19; 15-26; 2Cr 25.8; 32.8), oração respondida na batalha (cf. 14.11-15; 20.5- 30; 32.20-21) e confiança em Deus (cf. 2Cr 32.10). As causas do exílio, no entanto, eram uma questão totalmente diferente (cf. v.6,25-26).

c. A meia tribo de Manasses (5.23-26). Como a seção anterior, este pará­grafo divide-se em dois, uma parte relacionada à tribo individual (v.23-24, cf.v. 11-17), e outra parte às duas tribos e meia coletivamente (v.25-26, cf. v. 18-22).

23-24. Breves detalhes geográficos e genealógicas são dados para a parte oriental de Manassés. Eles habitavam entre a fronteira com Gade (Basã, cf. v. 11) e0 monte Hermom ou Senir (cf Dt 3.9), embora a LXX (e a NEB) estenda a fronteira norte até o Líbano. Baal-Hermom (somente aqui) pode ser o lugar de Cesaréia de Felipe (segundo Rudolph). Como no caso das outras tribos transjordanianas, a ênfase recai sobre sua extensão e grandes números (v.23, cf. 4.38; 5.9, 10, 16).

25-26. O parágrafo final dá as razões para o exílio das tribos do norte em geral e das tribos transjordanianas em particular. Ele segue uma prática típica de ( 'rônicas de citar material bíblico mais antigo, nesse caso usando 2Reis 17.7-23 como um pano de fundo geral e selecionando informação específica de 2Reis 15.19,29; 17.6; 18.11. Mas ainda mais importante, ele segue quase que exatamen- le a estrutura da explanação do exílio de Judá em 2Crônicas 36.14-20, ocasional­mente empregando até a mesma fraseologia. Os mesmos quatro elementos es­senciais são encontrados em ambas as passagens.

(a) Israel e Judá foram infiéis a Deus (cf. 2Cr 36.14; veja comentário sobre1 Cr 2.7 e c f 9.1); (b) eles foram especialmente condenados por sua idolatria (cf 2Cr 36.14); (c) Deus enviou um exército estrangeiro para punir seu povo (cf. .ICr 36.17); e (d) eles foram para o exílio (cf. 2Cr 36.18-20).19

A experiência do exílio foi fundamentalmente a mesma para ambos os reinos na origem, execução e conseqüência. Deus suscitou o espírito (ARA, RSV) é uma

18 T. N. D. M ettinger, Solomonic State O jficials (Lund: Gleerup, 1971), p .39.19 Isso toma improvável que os v. 23-26 sejam um acréscimo posterior (contra Williamson).

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expressão pós-exílica típica para uma nova iniciativa divina nos assuntos huma­nos (cf. 2Cr21.16;Ed 1.1; Ag 1.14). Pul é um outro nome para Tiglate-Pileser III, encontrado tanto em 2Reis 15.19 como na Crônica Babilônica (“Pulu”). Hara, que não aparece em Reis e em nenhuma outra parte do Antigo Testamento, pode ser um erro em lugar de “as cidades/montanhas (LXX) dos Medos” em 2Reis 17.6; 18.11 (Curtis e Madsen), ou uma corruptela de “e o rio de” (Rudolph). Até ao dia de hoje neste caso é um acréscimo a Reis, e presumivelmente se refere ao próprio tempo do cronista, mas em outros lugares (e.g. 4.41,43) ele foi tirado de suas fontes e tem a ver com uma variedade de datas mais antigas.

v. A tribo de Levi (6.1-81)6.1-4-cf. Êxodo6.16-256.16-19 - cf. Números 3.17-20; 6.16-196.54-81 -c /Josué 21.4-40Levi está no centro das genealogias tribais. A importância da tribo é indicada

por sua posição e pela quantidade de espaço a ela devotado - com Judá (2.1— 4.23) e Benjamin (7.6-12; 8.1 -40), ela domina as genealogias. O capítulo divide-se em dois: (a) genealogias dos sacerdotes aronitas e outros levitas (v. 1-53); (b) uma lista de povoados levitas (v.54-81).

Ambas as seções tratam dos sacerdotes separadamente dos demais levi­tas. Duas genealogias sacerdotais (v.1-15,49-53) agrupam duas listas de levitas (v. 16-30, 31 -48), que são então seguidas por duas listas de povoados (v. 54-60 ev. 61-81). Raramente em Crônicas, os sacerdotes parecem ter mais prioridade que os levitas. Somente a linhagem sacerdotal se estende até o exílio (v.1-15), e naturalmente só eles desfrutavam do privilégio de entrar no lugar santíssimo (v.49) para fazer a expiação (v.49, RSV; NVI tem “propiciação”). Nos versículos 54-81, o material foi redisposto de maneira que os sacerdotes são tratados pri­meiro (v.54-60 = Js 21.10-19).

Dois paralelos notáveis ocorrem nas linhagens de Arão e Davi (cf. 2 .10-17;3.1-16). Somente essas duas famílias, de todas as listas tribais, são traçadas dos patriarcas até o exílio (2.10-17; 3.1-24; 6.1-15), indicando que elas formam a base da futura sobrevivência de Israel. Além disso, as duas linhagens seguem imedi­atamente os exemplos da “infidelidade” israelita que resultou no desastre naci­onal (2.7; 5.25; cf. 6.15; 9.1). Judá e Levi, portanto, parecem ser os meios pelos quais até os pecados que quebraram a aliança podiam ser expiados (6.49; c f 2Cr36.22-23). O capítulo 6 sublinha o ponto com repetidos lembretes do templo de Salomão (v. 10,32,53), que era um sinal visível do desejo de Deus de perdoar pecados (2Cr 7.14-16).

a. Os sumo sacerdotes aronitas (6.1-15; TM, 5.27-41). Embora os sumo sacerdotes ancestrais de Jeozadaque (v.14-15) remontem ao próprio Levi (v.l), esta não é uma lista completa dos sumo sacerdotes de Israel. Eli e seus descen­

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dentes não estão incluídos (cf. ISm 2.27-36; IRs 2.27), nem são vários sumo sacer­dotes posteriores {e.g. Joiada, 2Rs 11— 12; um terceiro Azarias, cf. v. 9-10 e 2Cr

20; Urias, 2Rs 16.1 lss. e um quarto Azarias, 2Cr 31.10). Embora lacunas fossem normalmente deixadas em antigas genealogias, muitas vezes tem sido sugerido que essa lista é uma composição artificial, centrada no Azarias que serviu de sacerdote na casa que Salomão tinha edificado (v.10; essa nota provavelmente ileve se referir ao Azarias no v.9, já que Zadoque era sumo sacerdote no início do reinado de Salomão, IRs 1.38;2.35;c/ v. 8,53). No entanto, esse ponto de vista não convence, visto que, mesmo fazendo do Azarias do versículo 9 o ponto crucial, as (l< r/c gerações de Arão a Azarias não combinam com as dez de Azarias a Jeozadaque. ( )s eruditos tentam suprir mais um nome, e.g. Joiada (Ackroyd) ou Josué (Michaeli), mima tentativa de criar um padrão mais regular, mas não há unanimidade.

As seis gerações de Levi a Finéias (v. 1-4) são extraídas de Êxodo 6.16-25 (cf. também Gn 46.11; Nm 3.17-19; 26.57-61; sobre Miriã, cf. Nm 26.59). Elas dil erem na forma do restante da lista porque nomes de irmãos (e uma irmã!) são dados, ao passo que o que segue (v.5-14) é uma única linha vertical da família de Zadoque (v.8; cf. Ez 40.46; 44.15; 43.19). Muitas vezes alega-se que a descendên­cia de Zadoque de Arão é artificial, mas de fato, fora os nomes de seu pai Aitube (2Sm 8.17 = lCr 18.16), seu filho Aimaás (2Sm 15.36; 18.19,27) e seu neto Azarias (cf. 1 Rs 4.2), nós não sabemos nada sobre sua árvore genealógica fora a informa- çào dada em Crônicas (cf. v.53; 24.3). A repetição de nomes (e.g. 8,12) não é evidência contra a autenticidade, e não é surpreendente em uma família com um loile sentimento de história e tradição. O verdadeiro problema é uma falta de verificação externa, desse modo, é arbitrário concluir que Crônicas é um livro confuso. Embora a lista seja incompleta, outra evidência sugere que a ordem aqui é precisa. A genealogia de Esdras, por exemplo, segue a ordem de Arão a Meraiote(v.3-6) e Azarias a Seraías (v. 11-14) exatamente (cf. também lC r9 .10-ll; Ne 11.10-11). Vários nomes na lista são conhecidos de outras partes do Antigo léstamento, a saber, Azarias (v.9; cf. IRs 4.2), Amarias (v. 11; cf. 2Cr 19.11), llilquias (v. 13, cf. 2Rs 22.4ss.), Seraías (v. 14; cf. 2Rs 25.18; Ne 11.11), e .leozadaque (v.14-15; cf. Ag 1.1 etc.).

b. A genealogia dos levitas (6.16-30; TM, 6.1-15). Embora esta lista co­mece quase que exatamente do mesmo modo que os versículos 1-15 (“Gérsom”,v. 16,17 etc. [REB, NEB, NRSV, RS V], é a grafia mais comum de Crônicas para o mais familiar Gérson, v. 1, Êx 6.16; Nm 3.17), ela leva a um tema diferente, a saber, as três principais divisões levíticas dos filhos de Gérson (v. 20-21), Coate (v. 22- 28), e Merari (v. 29-30). O início (v. 16-19) é determinado pela fonte de Crônicas (Nm 3.17-20), e em nenhum sentido é a duplicação da lista anterior. Sete gerações sao dadas tanto para os gersonitas quanto para os meraritas, e as três linhagens parecem terminar na época de Davi, como indicado pelos filhos de Samuel (v.28; cf. 2Sm 8.2) e Asaías (v.30; cf. 15.6).

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No entanto, os coatitas apresentam mais de um problema. Aminadabe, nomeado como filho de Coate (v.22), jamais é mencionado em outras passagens (cf. v. 2,18; Êx6.18;Nm3.19; ICr 23.12). Visto que isso toma improvável que ele fosse o quinto filho, quatro alternativas permanecem: (i) ele era padrasto de Arão (cf. Ex 6.23), (ii) ele foi neto ou descendente, (iii) esse é um outro nome para Isar (cf. v. 18,38), ou (iv) um outro nome para Anrão (c f v.18). Abase principal para o último ponto de vista é uma hipótese de que cada linhagem é representa­da pelos filhos primogênitos, mas isso não está provado. De fato, a comparação com a família de Hemã sugere que ele era equivalente a Isar (cf. v.38).

A linhagem coatita também é anormalmente longa e complexa. O problema parece ser resolvido pela suposição de linhas horizontais que ocorrem nos versículos 22 e 23 (Assir a Ebiasafe, cf. Êx 6.24), versículo 25 (Aimote = “irmão de morte” !, deve ser Maate, cf. v.35), e o versículo 28 (muitas versões corretamente acrescentam Joel, cf. 2Sm 8.2), e pela prática de retomar uma linha vertical repe­tindo um nome. Por exemplo, o TM tem cinco Elcanas (quatro nas versões), embora provavelmente haja somente dois ou três (aqueles nos v. 25-26 seriam a mesma pessoa).20 A lista principal, portanto, provavelmente se assemelharia ao diagrama a seguir.

Aminadabe (= Isar?)

Coré

Assir i Ebiasafe| i---------- ----------1

rj,a ^ te Amasai Aimote (= Maate)

Uriel

Uzias

Saul

É interessante que isso também tenha produzido sete gerações, como ocorreu com gersonitas e meraritas.

A genealogia de Samuel foi acrescentada a essa árvore básica (v. 26-28; começando com Elcana, (foi) seu filho), levantando o problema adicional de queo pai de Samuel também é um efraimita (1 Sm 1.1). Há duas soluções possíveis. Ou a família foi enxertada porque Hemã (v.33) foi considerado levita, ou “efraimita” se refere mais à localidade na qual Elcana vivia do que a sua descendência. Em favor

20 A. Lefevre, ‘Note d ’exégese sur les généalogíes des Qohatites', Recherches de Sciences ReUgieuses 37, 1950, p. 287-292; cf. M. D. Johnson, The Purpose o f the Biblical Genealogies (Cambridge: Cambridge U niversity Press, 1969), p. 71-73.

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desta última está a complacência com que os levitas eram tratados no período dos jmV.es, e o desejo da mãe de Samuel de apresentá-lo ao Senhor (cf. ISm 1.22) é menos surpreendente se Samuel tinha ancestrais levitas. A linhagem de Samuel foi incluída por causa de seu interesse intrínseco, e particularmente como resultado de seu relacionamento com Hemã, o músico (v. 33-38).

c. A genealogia dos músicos levitas (6.31-48; TM, 6.16-33). Este pará­grafo resume as funções dos levitas (cf. ICr 23— 26). Basicamente, eles eram responsáveis pela música (v.31, cf. v.32; “cantando”, JB, ou “no ofício da can- çao”, RSV, é muito limitado) e pelo serviço do tabernáculo (v.48). “Depois que a arca teve repouso” (v.31), os músicos foram divididos entre arca em Jerusalém e a Tenda do Encontro (v.32, NVI) em Gibeão (cf. 16.4-6,41-42). Sua obra é carac­terizada como o “serviço” (NRSV, RSV; deveres NIV) da casa de Deus (v.48; cf.13. 28,32; 25.6; v.32, ministrado). Nenhuma distinção era feita entre as várias Iormas do serviço, pois cada uma tinha seu valor como culto ofertado a Deus.

As genealogias são dos três líderes musicais designados por Davi, a saber, Hemã, um coatita (v.33-38), Asafe, um gersonita (v.39-43), e Etã, um merarita (v.44-47). A disposição é um pouco diferente da que nós conhecemos do Israel pós-exílico, onde os hemanitas não aparecem (Ed 2.41 = Ne 7.44; Ne11.17), e nada nessas listas exige uma data posterior a Davi (veja comentários sobre v. 20-30,50-53, e sobre ICr 23— 26). A genealogia hemanita é basicamen­te a mesma dos versículos 22-28, salvo que todos os nomes estão colocados em uma linha vertical. Em todas as genealogias de Crônicas, “filho” pode significar “descendente”, aqui, no entanto, o sentido deve ser ampliado para "parente” . Houve tentativas de fazer dos asafitas descendentes de “Simei” t c f v. 17; invertendo Jaaie (v.43) e Simei (v.42), pela omissão de Jaate, ou pelo acréscimo de um outro Simei), para fazer derivar cada linhagem de cada segun­do filho da família por analogia com as linhagens que descendiam do primeiro filho nos versículos 20-30 (e.g. Williamson). Mas isso é demasiado preciso e hipotético considerando-se a evidência disponível.

d. As tarefas dos sumo sacerdotes aronitas (6.49-53; TM, 6.34-38). Este parágrafo está em harmonia com a genealogia dos sumo sacerdotes (v.1-15). Ao terminar esta versão abreviada (v.50-53) com Aimaás, um contemporâneo de Salomão, a atenção volta-se para o templo (cf. IC r 21— 29; 2Cr 2— 7) como o meio dado por Deus para a realização das tarefas sacerdotais descritas no versículo 49. Dois aspectos da função sacrificial dos sacerdotes são menciona­dos, a saber, serem responsáveis pelas ofertas (NVI, “sacrifícios”) do lugar santíssimo (RSV, GNB; “coisas santíssimas”), e por fazer “expiação” (RSV, cf. NVI, “propiciação”). Embora todos os sacerdotes estivessem envolvidos nes­sas atividades, Crônicas parece estar cogitando especialmente do ministério do sumo sacerdote no Dia da Expiação (Lv 16.11-17).

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e. As cidades dos levitas (6.54-81; TM, 6.39-66). Uma versão reagrupada e levemente resumida de Josué 21 indica que, como representantes de todo Israel, os levitas deveriam se estabelecer por toda a Terra Prometida. Se esta lista representa a realidade histórica, é mais provável que ela tenha se originado no período davídico-salomônico quando muitas cidades cananitas foram pela pri­meira vez incorporadas a Israel, mas é mais provável que ela pinte um quadro idealista que talvez jamais se completou.21 A mudança principal em relação a Josué 21 é que os filhos de Arão foram apresentados (v. 54-60; cf. Js 21.10-19), reenfatizando a importância central da linhagem sacerdotal.

A estrutura é a seguinte:v. 54-60: aronitas dos clãs coatitas-,v. 61-63: sumário dos clãs levitas individuais (cf. v. 66-81);v. 64-65: sumário geral (v.65 se refere aos aronitas, cf. Js 21.4,9);v. 66-70: restante dos clãs coatitas (cf. v.61);v. 71-76: gersonitas (cf. v.62);v. 77-81: meraritas (cf. v.63).Há algumas variações menores em relação a Josué 21, e Crônicas ocasio­

nalmente parece estar usando um texto base diferente (e.g. v. 77-78; cf. Js 21.34- 36). Algumas vezes, a leitura de Crônicas é superior, como no versículo 7 (Bileam [TM] ou “Ibleam” [VSS] em lugar de Gate-Rimom, Js 21.25, cf. v.24), e talvez no versículo 59 (Ashan em lugar de Aim, Js 21.16). Inversamente, Jutá (v.59; cf. Js21.16), Gibeão (v.60; cf. Js 21.17), Elteque (v.69; cf. Js 21.23) e Gibetom (v.69; cf. Js 21.23) provavelmente foram omitidas do TM por acidente, enquanto o versículo 61 deve ser lido como “clãs das tribos de Efraim, Dã e metade de Manassés” em vez da confusão de muitas versões modernas (e do TM; cf. Js 21.5). Como parte de sua técnica de sumário, o cronista também não identificou Golã (v.71), Quedes (v.76), Bezer (v.78) e Ramote (v.80) como cidades de refúgio (cf. v.57,67; Js 21.13 etc.; Nm 35.9-34; Js 20.1-9).

vi. As tribos da margem ocidental do Jordão (7.1-40)7.1 -c f. Gênesis46.13;Números26.23-24 7.13 - cf. Gênesis 46.24-25a; Números 26.48-497.30-31 a - cf. Gênesis 46.17; Números 26.44-46Essas seis ou sete tribos são tratadas de maneira breve em contraste ao

tratamento dado a Levi (cap. 6). Todas com exceção de Benjamim pertenciam ao antigo reino do norte. Como no capítulo 5, são focalizadas a história e geografia daquelas partes da Terra Prometida que na época do cronista não eram mais israelitas. Talvez por influência de profecias como a de Ezequiel

21 Para uma discussão dessa questão e uma defesa da tese de Albright de que a lista é um registro histórico do tempo de Davi, cf. C. Hauer, ‘David and the Levites’, JSO T 23, 1982, p. 33-54.

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M. 15-28, Crônicas reteve um sentimento de união de todas as tribos de Israel. Mais tarde no livro, a ação conjunta também aparece em apoio ao reinado deI )avi (lC r 12) e nos preparativos para o templo de Salomão (lC r 27). Parece que ;is esperanças do cronista em relação à unidade futura dependiam da aceitação por parte de Israel dos propósitos de Deus para a linhagem de Davi e a rentralidade do culto no templo (c f 2Cr 30).

Os registros disponíveis em Jerusalém para aquelas distantes tribos no nor- Ic do antigo reino de Israel provavelmente eram bastante esquemáticos. Em al­guns casos (Issacar, Naftali, Aser), o relato de Crônicas está claramente baseado cm materiais bíblicos mais antigos de Gênesis 46 e Números 26, mas para outras Iribos (Benjamim, Dã, Manassés, Efraim) até esse fundamento não foi usado, e só é possível fazer uma conjectura quanto às fontes exatas. Informação geográfica do tipo freqüente nos capítulos 2— 6 só é proporcionada para as tribos de José (v. 28-29), e um certo uso claramente foi feito do material do recenseamento militar.

a. A tribo de Issacar (7.1-5). As quatro divisões básicas (v.l) seguem de perto Gênesis 46.13 e Números de 26.23-24, mas depois disso somente os des­cendentes de Tola são dados. Alguns desses nomes reaparecem em Juizes 10.1, mas este versículo apenas testifica a contínua popularidade dos nomes dos ancestrais da tribo. Os versículos 2-5 parecem ser tomados de um recenseamen- lo militar no reinado de Davi (v.2; cf. 4.31), ou da malfadada iniciativa de 2Samuel 24 = lCrônicas 21 (cf. lC r 27.23-24) ou de uma contagem dos soldados que se uniram a Davi em Hebrom (cf. lC r 12.23-37). O líder de Issacar sob Davi, Omri Cilho de Micael (lC r 27.18), também poderia estar relacionado ao M icael do versículo 3. Esta referência a Davi sugere que as listas tribais procuravam apontá-lo como a pessoa que realmente uniu Israel. Obviamente a lista é incompleta, visto que o total no versículo 5 é mais que a soma daqueles dos versículos 2 e 4.O número cinco (v.3) deve incluir Izraías assim como seus quatro filhos. Sua íamília parece ter sido pelo menos uma das maiores em Israel (cf. os números em 5.18; 7.2,7,9,11,40) - de onde a nota, eles tinham muitas mulheres efilhos (v.4).

b. A tribo de Benjam im (7.6-12a). Estes nomes benjamitas provavel­mente são tirados da mesma lista de recenseamento militar dos versículos 1 -5 (cf. os números repetidos dos homens valentes), com apenas um contato m íni­mo com Gênesis 46.21; Números 26.38-40. Se é assim, eles provavelmente são de origem davídica, e são de um caráter diverso dos dados geográficos sobre Benjamim e a genealogia de Saul do capítulo 8. Se o recenseamento foi basea­do na assembléia de Davi em Hebrom, a maior parte dos benjamitas ainda era então leal à casa de Saul (cf. lC r 12.29), explicando, dessa maneira, o pequeno número de clãs benjamitas aqui em comparação com os textos mais antigos. A genealogia é regular na estrutura, listando os descendentes de Bela (v.7), liequer (v. 8-9), e Jediael (v. 10-11, desconhecido alhures) na ordem do versículo

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6. Os sufitas e hupitas (v. 12, NIV) ou “Supim e Hupim” (NVI, cf. GNB), desne­cessariamente omitidos pela REB, NEB, aparecem em formas um pouco dife­rentes em Gênesis 46.21; Números 26.39, e também podem ser os mesmos Sefufá e Hurão de lCrônicas 8.5.

c. A tribo de D ã (?) (7.12b). A maioria dos comentaristas admite a existên­cia de uma declaração bastante breve sobre Dã neste ponto (REB, NEB, GNB). Em favor disso nota-se que Dã segue Benjamim tanto em Gênesis 46 quanto em Números 26, que os descendentes de Bila (v. 13) implica em uma outra tribo além de Naftali, e que “Husim” (Husitas, NIV) é o único filho de Dã em Gênesis 46.23 (cf. Suão, Nm 26.42). Correções no texto para apoiar isso, seguindo Klostermann (1898), não são nem essenciais nem convincentes, a saber, que mudam os des­cendentes de Ir (NIV, cf. RSV) para “os filhos de Dã” (NEB, cf. GNB), e descen­dentes de Aher (NIV, cf. RSV) para “seu filho, [único]” (Myers, Rudolph, cf. GNB). A omissão de Dã (e em 6.61,69) é mais provavelmente resultado de um acidente na transmissão do que um rechaço deliberado contra essa tribo do norte (cf. especialmente sua aparição em 2.2; também 12.35; 27.22).22

d. A tribo de Naftali (7.13). Os quatro clãs principais de Naftali aparecem exatamente como em Gênesis 46.24; Números 46.48-49; com a exceção de Salum (NVI, nr) em lugar de Silém. Seu vizinho Zebulom é excluído totalmente, embora com base na ordem dos textos mais antigos, ele pode ser esperado após Issacar. Bila era uma das concubinas de Jacó (cf. Gn 46.25).

e. A meia tribo de Manasses (7.14-19). A genealogia de Manassés está em certa desordem, e só pode ser reconstruída com a ajuda de Números 26.29-33 e Js 17.1-2 (veja também 2.21-23; 5.23-26). Mesmo assim, a relação entre Maquir, pai de Gileade (v.14-17) e os outros clãs continua incerta. O ancestral deAsriel (v. 14) aparentemente era um dos descendentes de Gileade (Nm 26.31), contudo,o interesse real aqui está em sua mãe (ou esposa?) estrangeira. Esses casamen­tos mistos (cf: 2.3,35; 3.2) foram considerados ilegais por Esdras e Neemias. Maaca parece ser a esposa (v. 16) e irmã (v. 15) de Maquir, mas “irmã” provavel­mente tem um sentido mais de parente do que de algo mais específico (o mesmo pode valer também para Hamolequete, v. 18). Os Hupitas e Supitas ( v. 15, c f v. 12) provavelmente eram parentes de Maaca (NVI) antes que filhos de Maquir (RSV, GNB, JB), visto que estas tribos não são atribuídas a Manassés em nenhuma outra passagem. Zelofeade (v. 15), um descendente de Hefer (Nm 26.33; 27.1-11; Js 17.3-4), e Semida (v. 19) eram outros clãs dentro da tribo. Tais foram os filhos de Gileade (v. 17b) parece mais uma frase conclusiva. Ela poderia referir-se aos

22 Em favor da tese de que v. 12b se refere aos benjamitas, cf. H. G. M. Williamson, ‘A note on 1 Chronicles VII 12’, VT 23, 1973, p. 375-379.

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versículos 16-17 ou à tribo como um todo até este ponto. Em qualquer caso, os versículos de 18-19 parecem ser um complemento.

f . A tribo de Efraim (7.20-29). 20-27. Esta é uma genealogia em duas partes (20-2 la, 25-27), e uma nota histórica (21b-24). Aprimeira parte da genealogia tem uma estrutura exclusiva de Crônicas, na qual os irmãos (Sutela, Berede, Taate, c f Nm 26.35) são dispostos em uma relação vertical (cf. as genealogias coatitas em6.22-28,33-38). Se isso se aplica alhures nesta genealogia, neste momento é impos­sível dizer. A segunda parte fornece a genealogia de Josué (v.27). Embora mencio­nado somente aqui em Crônicas, seu nome é consistente com a ênfase das genealogias na conquista e ocupação da Terra Prometida (e.g. 4.38-43; 5.8-10,18- 22; 6.54-81)ena posterior conclusão da tarefa por Davi(e.,g. 13.5; 17.9-10; 18-20).23

A nota histórica provavelmente também se refere ao período da conquista ou a algum incidente posterior na colonização de Canaã. Uma data assim é preferível a uma nos tempos patriarcais por duas razões: desceram (v.21) é ina­dequado para uma viagem do Egito para Canaã, e a construção das duas Bete-I lorom (v. 24) é uma atividade natural para um clã já residente na área. Gate (v.21) pode ser antes Gittaim do que a famosa cidade da Palestina (cf. 2Sm 4.3), visto que a última ficava mais perto de Bete-Horom, mas uma incursão efraimita em qualquer das duas localidade é bastante factível. Ézer e Eleade (v.21) são de relacionamento incerto com as genealogias, enquanto Efraim (v.22) em nossa interpretação deve ser um descendente posterior do filho de José. O nome de Berias (v.23) tem em hebraico um som parecido com o da palavra para “desastre” (NEB), “tribulação” (GNB) ou “desgraça” (NVI).

28-29. Os detalhes geográficos dizem respeito a Efraim e Manassés, como 'ndicado por os filhos de José. Embora o material seja vagamente baseado em partes de Josué 16— 17, a inclusão de antigas cidades cananitas como Gezer e Megido implica sua submissão à soberania israelita sob Davi.

g. A tribo de A ser (7.30-40). Esses nomes estão baseados em uma lista de recenseamento militar (cf. v.40), combinados com os nomes do clã básico (v.30) de Gênesis 46.17 e Números 26.44-46, e, como no caso de Issacar, somente um clã (Berias) está completo. A genealogia tem vários padrões simétricos, e é estruturada em tomo de dois descendentes que por sua vez tiveram quatro descendentes cada, a saber, Heber (v.32) e seu descendente Helém (v.35). Já que Helém prova­velmente é o mesmo Hotão (v.32), e Somer (v.32) é “Semer” (v.34), descendentes de cada um dos filhos de Heber ocorrem nos versículos 33-35. Os primeiros dois (iveram cada um três filhos, supondo-se que A í (v.34, NVI) é realmente “seu irmão” (GNB, RSV). Outros descendentes de Helém ocorrem nos versículos

23 Para m ais estudos sobre essa genealogia, cf. N. N a’aman, ‘Sources and redaction in lhe C h ro n ic le r’s genealogies o f A sher and E phraim ’, JS O T 49, 1991, p. 99-111, especial­m en te p. 105-111.

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36-39, possivelmente em um padrão regular baseado nos nomes do versículo 35. Zofá claramente reaparece no versículo 36, e o mesmo pode se aplicar a Imna/Inra (v.36), Shelesh/Silsa (v.37), e Amal/Ula (v.39). Itrã (v.37) também parece ser o mesmo que Jéter (v.38). Alguns dos nomes parecem estar relacionados com as partes do sul do monte Efraim, na região onde os asnos de Saul se perderam (cf. ISm 9.4-5). Isto pode explicar a inclusão de Aser depois de Efraim (a ordem é diferente em 1 Cr 2.1 -2), mas sua importância para uma tribo que estava, por outro lado localizada na Galiléia ocidental permanece incerta.24

vii. A tribo de Benjamim (8.1-40)8.28-38 - cf. 1 Crônicas 9.34-44Benjamim já foi tratado em 7.6-12a, então por que a aparente repetição? De

fato, as duas listas diferem em natureza e propósito, e há pouca sobreposição. O recenseamento militar que está por trás de 7.1-40, por exemplo, não é evidente aqui. Uma sugestão do motivo de se dar mais espaço a Benjamim é que ela foi, embora por pouco tempo, uma tribo real,25 mas é mais provável que um interesse na geografia tribal seja a chave para a inclusão deste capítulo. Ele diz respeito principalmente aos povoados benjamitas, em especial Jerusalém (v.28,32), mas também Geba (v.6), Ono e Lode (v. 12), Aijalom (v. 13), Gibeão (v.29), e até Moabe (v.8). A posição de Benjamim no fim das listas tribais é paralela ao relato da primeira tribo, Judá, que também enfatiza a geografia tribal (cf. 2.42-55; 4.1 -23). De fato, “Judá e Benjamim” são freqüentemente mencionadas juntas em Crôni­cas, e Benjamim muito raramente aparece sozinha, seja em Crônicas (cf. e.g. 2Crll .ls s .; 14.8; 15.2ss.; 31.1) seja em Esdras-Neemias (cf. e.g. Ed 1.5; 4.1; Ne 11.4- 9). Juntas elas formaram primeiro o reino do sul de Judá e depois a comunidade pós-exílica. A ocorrência de Benjamin aqui, portanto, é um sinal de sua coopera­ção com Judá na preservação da identidade e tradições de Israel. Em particular, a antigüidade da reivindicação de Benjamin sobre seu território tribal deve ter sido uma fonte real de encorajamento para os leitores de Crônicas, que viviam na mesma região (cf. 9.2 e. seguintes). A terra tinha importância por ser parte de uma promessa que Deus não tinha abandonado.

Mas a que período essa lista se refere? Muitos dos povoados benjamitas mencionados aqui ocorrem em Esdras e em Neemias (Ed 2.26ss. = Ne 7.30ss.; Ne11.7-9= 1 Cr 9.7-9; Ne 11.31-36), sugerindo uma possível origem pós-exílica. No entanto, visto que se diz que os lugares listados em Esdras 2.26ss. foram recolonizados, lCrônicas 8 pode igualmente referir-se ao período pré-exílico, seja durante a monarquia unida, seja talvez durante expansão no reinado de Josias. Parece haver pouco o que escolher entre essas várias alternativas.

24 Veja ainda D. Edelman, ‘The A sherite genealogy in 1 C hronicles 7 .3-40’, B iblical Research 33, 1988, p. 13-23; N. N a’am an, art. cit., p. 100-105, 109-111.

25 W ilcock, p. 44-45.

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O capítulo claramente se divide em duas partes:(a) chefes das fam ílias (v.6,10,13,28) listados segundo seus lugares de

Jixação(v. 1-28); e(b) uma genealogia da família de Saul (v. 29-40).

a. Fixação das fam ílias benjamitas (8.1-28). Dois ramos podem ser per­cebidos, as famílias de Eúde (v. 1-7) e a de Elpaal (v.8-27). Os nomes listados como os descendentes de Benjamin (v. 1-2) e de seu primogênito Bela (v.3-5) parecem levar aos descendentes de Eúde (v.6), especialmente se Gera, o pai de Eúde (v.3, NVI, BJ) é lido no lugar de Aliude (NIV, RSV). Isso parece bastante provável na visão de Juizes 3.15, e a proeminência de Eúde aqui é mais facilmen- le compreendida se ele é identificado com o famoso juiz do mesmo nome (Jz 3.12-30). Se isto é aceito, é também possível que os nomes seguintes nos versículos4-5, Abisua, Naamã, Aoá, Gera, sejam ou filhos de Eúde (cf. os primeiros três nomes do v.7) ou outros filhos de Gera. O segundo Gera (v.5; havia realmente dois irmãos com o mesmo nome?) pertence ou a uma geração posterior à do primeiro ou talvez seja uma segunda referência ao mesmo indivíduo. Essa re­construção não é arbitrária, e sim baseada em passagens como 6.22-25, 33-38; 7.20, onde irmãos são dados como filhos e um nome pode ser repetido. Sefufá (= Sufã, N m 26.39, e Supim, IC r7.12) e Hurão (= Hufã, Nm 26.39, e Hupim, IC r7.12) no versículo 5 podem ser considerados ou como descendentes de Bela ou como (endo um vago relacionamento com Benjamim (cf. Gn 46.21; Nm 26.39). A árvore genealógica resultante, centralizada em Eúde, pode parecer algo semelhante ao seguinte diagrama.

B enjam imi i i r - ̂ i i i

Bela Asbel Aará Noá Rafa Sefufá(?) Hurão(?)I _i------------- ----------- 1

Adar GeraI

Eúde

I----------------- 1 I------------ 1A bisua Naamã Aoé/Aías Gera(?)

Embora essa genealogia não possa ser a exatamente harmonizada com Gênesis 46.21, Números 26.38-40, e lCrônicas 7.6-12a, essa reconstrução de fato combina com a posição de Adar (v.3; cf. Arde, Gn 46.21; Nm 26.40) e Naamã (v.4,7) em Números 26.40 como descendentes tardios de Bela, além de diminuir as dificuldades sobre a posição de Sefufá e Hurão.

A lista também se concentra na localização dos descendentes de Eúde em Geba (v.6). Esta era a famosa cidade benjamita (e.g. lR s 15.22; 2Rs 23.8), mas, visto que seus habitantes preferiram voltar da Babilônia para sua vizinha do norte Micmás (Ne 11.31; cf. lS m l4 .5 ;Is 10.29), o período de residência mencio­

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nado aqui provavelmente se refere aos tempos pré-exílicos, se não aos dias dos juizes. As aparentes deportações nos versículos 6-7 provavelmente se referem aos movimentos tribais (uma terceira migração para Moabe é implicada pelo v.8), visto que Manaate (v.6) ficava em Edom (1 Cr 1.40) ou em Judá (1 Cr 2.52,54).

Não está claro como os versículos 8-27 relacionam-se ao parágrafo prece­dente. Como a genealogia de Saul (v. 28-40), eles provavelmente são uma lista independente, embora haja um possível elo através das ligações moabitas de Eúde (cf. v.8 e Jz 3.28-30). Os nomes são os dos chefes de famílias (v. 10,28), que descendiam de um até então desconhecido Saaraim (v.8) através de suas esposas Hodes (v. 9- 10a) e Husim (v. 11, cf. v.8; “Mahasham”, NEB), e centrada em um de seus filhos, Elpaal (v. 11,12,18). O padrão básico é bastante regular: depois de traçar a linhagem de Elpaal (v. 10-12), os parentes de seus filhos nomeados nos versículos 13-14 são listados nos versículos 15-27, a saber, Berias (v. 13, 15-16), Sema/Simei (v. 13,19-21), Sasaque (v. 14,22-25), e Jeremote/Jeroão (v. 14,26-27).26 Embora isso deixe um grupo de filhos de Elpaal sem descendentes (v. 12) e outro em uma posição imprevista (v. 17-18), essas exceções podem ser explicadas pelas informações geográficas embutidas nas listas.

Essas informações são uma clara evidência da expansão dos benjamitas (especialmente v. 13). Vários dos lugares mencionados ficavam nas fronteiras de Benjamim, e a passagem nos leva a fazer uma comparação com a ênfase no avanço tribal em e.g. 4.24— 5.22. Ono e Lode (v. 12) ficavam na planície costeira perto de Jope, enquanto Aijalom estava estrategicamente localizada na fronteira de Judá com os filisteus e o reino do norte. Embora Ono e Lode sejam mencionadas no Antigo Testamento apenas em passagens pós-exílicas (Ed 2.33 = Ne 7.37; Ne 6.2;11.35), elas certamente existiam desde a metade do segundo milênio. Esse tipo de expansão pode derivar dos reinados de Davi, Roboão (cf. 2Cr 11.10; 28.18), Ezequias (cf. lC r 4.41) ou Josias. A mudança para Moabe (v.8) parece ser devido a circuns­tâncias especiais de divórcio (cf. v.8, NVI, GNB), embora possa refletir as conquis­tas de Davi naquela área (lC r 18.2). Amaior parte dessas famílias, no entanto, vivia em Jerusalém (v.28). O versículo 28 certamente é uma conclusão a essa seção e não uma introdução à seguinte, ainda que se repita nos versículos 29-38 em 9.34- 44. Seu final, “eles habitaram em (nome do lugar)” é invertido em um contraste deliberado no início do versículo 29, “Em (nome do lugar) eles/(ele?) habitaram”, e os parentes de Saul estão associados com seus próprios lugares (v. 29,32).

b. A genealogia da fam ília de Saul (8.29-40). A seção final está centrada em Saul, o mais conhecido de todos os benjamitas do Antigo Testamento. A genealogia, a maior parte da qual é repetida em 9.35-44, segue o mesmo padrão das duas que a precedem, com a figura principal ao centro dividindo o restante

26 “A iô” (v. NVI, RSV, NEB, GNB) deve m uito provavelmente ser lido ou como “seu irmão” (BJ, com pequenas mudanças vocálicas) ou “seus irmãos” (com a LXX(L)).

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c'in duas partes: o período até Saul e seus quatro filhos (v. 29-32), e doze gera­ções desde o filho de Saul, Jônatas (v. 33-40).

A maioria das versões modernas corretamente traz Jeiel no versículo 29 (cf 9.35). O pai de Gibeão (v.29) é uma frase reminiscente da genealogia de Judá (ver comentário de 2.21-23). Visto que os indivíduos normalmente davam seus nomes aos lugares antes que o contrário, e já que os gibeonitas eram original­mente cananitas incorporados a Israel (Js 9), parece que a linhagem de Saul incluía algum sangue cananeu. Em analogia com os versículos 3-5 (os filhos de Bela), os nomes nos versículos 30-32a podem ser os parentes de Jeiel antes que especificamente seus filhos. De qualquer maneira, Ner (v.30, NVI, GNB, BJ) provavelmente seria incluído (com 9.36 e a LXX(A)) entre eles, ainda que seja impossível conciliar todos os detalhes dos versículos 30, 33 com 1 Samuel 9.1; 14.49-51. Muitos eruditos emendam o texto de 1 Samuel à luz dessa lista, fazendo de Ner o avô de Saul (em ISm 9.1) e Abner seu tio (ISm 14.50), mas uma altema- (i va igualmente possível é que Ner fosse o nome tanto de seu tio (v.30; 9.36; ISm 14.50) quanto de seu avô (v.33; 9.39). As diferenças não podem ser explicadas por se considerar essa lista uma criação pós-exílica, pois a inclusão de nomes "Baal” (v. 30, 33, 34) mostra que ela provavelmente não se originou depois do século IX a.C. Esbaal (v.33) é conhecido em outro lugar como Isvi (ISm 14.49) e Isbosete (2Sm 2.8—4.12), enquanto Meribe-Baal (v.34) é Mefibosete (2Sm 4.4; 9.6ss.). Os nomes deM ica (v.34) em diante são desconhecidos fora a lista para­lela do capítulo 9, nem é certo se eles vão ao exílio como nas linhagens de Davi (3.10-16) e dos sumo sacerdotes (6.1-15), especialmente porque o número de gerações aqui é menor. Bocru (v.38) pode ser lido como “seu primogênito”, e há mais algumas pequenas diferenças com 9.35-44.

viii. Conclusão das listas de tribos (9.1)Este versículo é uma conclusão às listas tribais, paralelo a 2.1-2, e não per­

tence ao restante do capítulo 9. Todo o Israel (cf. 2.1) inclui todas tribos, não apenas aquelas que formaram a comunidade do próprio cronista (aquelas listadas em 9.2-34). De fato, por todas essas listas o cronista mostrou um descontentamen­to saudável com sua situação contemporânea, apontando para as promessas de Deus a respeito da terra (daí a ênfase sobre Jacó e a continuidade de seus filhos até o exílio). No entanto, a menção do exílio mostra que a situação da época não era nenhum acidente, mas o resultado da infidelidade (ver comentários sobre 2.7;5.25) para com Deus. A queda do reino de Saul (10.13) e dos reinos do norte (c f5.25) e do sul (2Cr 36.14) foram todas traçadas à mesma causa subjacente. A natureza inclusivista desse versículo sugere que “todo Israel” é o sujeito de fo i levado para o exílio, o que seria bastante consistente com a descrição que Crôni­cas faz dos reinos do norte e do sul.27 Como resultado, “Livro/Rolo dos Reis de

27 Cf. W illiam son, IBC, especialm ente p. 102-109.

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1 CRÔNICAS 9.2-34

Israel e Judá” (cf. B J e 2Cr 27.7; 35.27; 36.8) é preferível a Livro dos Reis de Israel {cf. 2Cr 20.34), apesar da pontuação massorética.28 Essa fonte refere-se ou à lista de recenseamento da qual partes das genealogias derivavam, ou a uma fonte oficial muito mais longa contendo as genealogias e a história de Israel.

C. Repovoando Jerusalém (9.2-34)Primeiro Crônicas 9 é formado de duas listas: os versículos 2-34, aqueles que

recolonizaram Jerusalém; os versículos 35-44, a genealogia de Saul. A matéria principal é a lista dos residentes de Jerusalém, visto que a última seção realmente introduz o relato da dinastia de Saul (cap. 10). A ocupação de Jerusalém é uma parte essencial da restauração do Israel pós-exílico, e é o resultado natural da ênfase geográfica de Crônicas em 2.1— 9.1, especialmente as seções sobre Judá e Benjamin. A lista quase certamente deve ser lida como uma unidade, ainda que seu conteúdo seja desigual e mostre diferenças substanciais em relação a Neemias 11 (veja a seguir). Ainda mais importante, fora 3.17-24, essa é a única parte de Crôni­cas que provém aproximadamente da época do próprio autor.

Os versículos 2-17 têm vários pontos de contato com Neemias 11.3-19, mas a natureza exata da relação não é imediatamente óbvia. Um bom número de comentaristas (e.g. Curtis e Madsen, Ackroyd) crêem que tanto Crônicas quanto Neemias se utilizaram um original comum para seus diferentes propósitos, mas também é possível que a fonte de um para outro seja Crônicas ou Neemias. Para ilustrar a dificuldade, Myers notou que há cerca de 81 nomes pessoais na lista de Neemias e 71 na versão de Crônicas, mas somente uns 35 em cada lista se correspondem. De fato, a solução mais provável é que Crônicas seja quem toma emprestado, como se pode ver por quatro considerações. Primeiramente, os números em Crônicas são consistentemente mais altos, embora as diferen­ças não sejam muito grandes. Compare-se, por exemplo, os 956 benjamitas (v.9) contra os 928 em Neemias 11.8, e os sete levitas nomeados (v.14-16) contra seis emNeemias 11.15-18. Em segundo lugar, Neemias 11.1-2 descreve o início da política de Neemias de recolonizar Jerusalém, e os números mais altos em Crônicas fariam sentido se refletissem uma continuação daquela po­lítica. Em terceiro lugar, a referência a servos do templo no versículo 2 (heb. netlmm ) é única em Crônicas, e não é seguida nas listas subseqüente, mas ocorre freqüentemente em Esdras-Neemias (e.g. Ed7.7; 8.20; Ne 10.28; 11.3; 21). Por fim, o versículo 2 (= Ne 11.3) já é parte do quadro editorial em Neemias11 antes que da própria lista (assim Rudolph, Williamson, etc).

E possível definir a relação entre as duas listas de maneira um pouco mais precisa. O fato de que os números em lCrônicas 9 representam apenas um leve aumento sobre aqueles em Neemias 11, enquanto muitos indivíduos permane­

28 Essa tese é independentem ente adotada em W. Johnstone, ‘G uilt’, p. 138, n. 25. C f tam bém Braun, p. 130.

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cem os mesmos, sugere que uma nova geração substituiu em parte os primeiros cabeças de famílias (cf. v. 9,13,34), e que lCrônicas 9 talvez seja meia geração posterior a Neemias 11.2-17.

Essa conclusão, no entanto, determina apenas a natureza da relação entre as duas passagens, e por si só não estabelece a data de lCrônicas 9.2-34. Para essa questão há duas alternativas principais. Ou lCrônicas 9.2-34 deriva de cerca de meia geração após o repovoamento de Jerusalém (Ne 11.1 -2), que pro­vavelmente se deu sob Neemias, ou então deve se situar depois da compilação linal das listas em Neemias 11— 12. No último caso, pelo menos três gerações após Neemias e um músico seu contemporâneo, chamado Matanias, devem ser admitidos (Ne 11.7; ICr 9.15), por causa da menção dos bisnetos tanto de Matanias (Ne 11.22) quanto de Eliasibe, sumo sacerdote sob Neemias (Ne 12.11,22). É tentador adotar a primeira possibilidade pois isso permitiria a con­clusão de que o compilador de lCrônicas 9.2-34 estava realmente descrevendo mudanças em seu próprio tempo. Talvez alguns dos novos nomes, especialmen­te entre os porteiros onde as variações são muito mais sérias, fossem até de pessoas conhecidas por ele pessoalmente. Essa perspectiva também seria apoi­ada pela observação de que o compilador exerce aqui uma liberdade bem maior em relação aos materiais bíblicos mais antigos do que fica evidente em outras partes das genealogias. Infelizmente não é possível ter certeza, e também não podemos saber se o compilador foi o próprio cronista ou um escriba mais antigo, cujo trabalho o cronista tenha assumido.

Seja qual for a tese preferida, o ponto mais importante é que os versículos2-34 são um sinal seguro de que a restauração de Israel e Jerusalém foi um processo contínuo. Aqui no ponto de encontro das genealogias (IC r 1— 9) e das narrativas (IC r 10 — 2Cr 36), os israelitas pós-exílicos são apresentados como presos aos propósitos de Deus ainda em desenvolvimento para com Isra­el. Eles são herdeiros da gerações que descendem de Adão (cap. 1) e das doze tribos (caps. 2— 8) — seguramente não há nenhum engano em que Efraim e Manassés (v.3) sejam acrescentados a Neemias 11.4, ainda que não haja informa­ção atualizada sobre seus povoados. Seu retomo à Terra Prometida (v.2), e particularmente a Jerusalém (v. 3-34), é um sinal claro e visível de que Israel sobreviveu ao exílio (cf. v.l). O juízo divino sobre a “infidelidade” de Israel (v.l;

5.25; 2Cr 36.14) não tinha afinal de contas dado um fim à história de Israel. Ao contrário, genealogias que antes pareciam mortas estão vivas de novo {cf. Ez37.1-14), e o cronista e sua comunidade são testemunhas vivas de uma esperan­ça com raízes na própria criação da humanidade.

Tudo isso significa que Crônicas levou a história de Israel a um estágio além daquele de 1 e 2Reis. Embora 2Reis termine com uma nota de esperança genuína (2Rs 25.27-30), ela é contida e Israel ainda está no exílio. Mas agora o inverno acabou e estas listas são um sinal definitivo de que a primavera já está começando.() Israel de 1 Crônicas 9 era um cumprimento visível da esperança profética (cf. 2Cr

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36.22-23). Embora esses nomes sejam agora amplamente desconhecidos, um sen­timento real de comoção emerge de uma comunidade que vê a história, e a história divina nela, se desdobrando diante de seus próprios olhos. Não que tudo já estivesse completo. O cronista deve ter sido dolorosamente consciente disso, mas sua ênfase no pessoal e nas atividades do templo (v. 10-34) naturalmente aponta para sua grande preocupação com o templo (lC r 21 — 2Cr 7) e sua espe­rança de que a oração inspirada pelo templo traria uma cura e restauração comple­tas para a terra de Israel (cf. 2Cr 7.14). Portanto, o autor de Crônicas via sua geração como muito diferente de espectadores desamparados da realização dos propósi­tos de Deus. Eles tinham a oportunidade de ser participantes, de exercer fé naque­les propósitos ao continuar repovoando Jerusalém (v. 3-9) e dando prioridade aos detalhes do culto do templo (v. 10-34).

i. Repovoando as cidades (9.2)9.2 - cf. Neemias 11.3aO significado exato deste versículo, que fica de fora do restante da lista,

depende do significado do hebraico hãrishõním. Comentaristas mais antigos (e.g. Zõckler, Curtis e Madsen) pensavam que se referisse aos habitantes pré- exílicos com base no contexto dos capítulos 1-8, portanto tinha o sentido de “anteriores”. Outros traduziam-no como “primeiros”, com referência àqueles que voltaram em 538 a.C. em resposta direta ao edito de Ciro (Noth, Myers),29 ou mesmo como “chefe”, como a palavra comparável em Neemias 11.3. Mais prova­velmente, no entanto, trata-se de uma declaração geral de que aqueles que volta­ram do exílio (v. 1) estabeleceram-se primeiro em suas... cidades (cf. B J, NVI) antes de fazer qualquer movimento significativo para habitar em Jerusalém (v. 3-34; TM faz um nítido contraste com o início do v.3, “Mas em Jerusalém habitaram...”).

“Sua terra ancestral” (NEB; suas propriedades, NVI) é um termo raramente encontrado em Crônicas (somente lC r 7.28; 2Cr 11.14; 31.1). Sua ocorrência aqui evoca seu uso freqüente no tempo de Moisés (e.g. Lv 25.10ss.; Nm 27.4) e Josué (e.g. Js 21.12; 22.4), confirmando os elos com o Israel antigo.30 “Israel” (RSV) aqui representa o “israelita leigo” (GNB, cf. NEB), como é comum em Esdras- Neemias (e.g. Ed 2.70; 10.5,25). Os servos do templo são um grupo mencionado freqüentemente em Esdras-Neemias, mas que não aparece em outras partes em Crônicas ou mesmo no restante do Antigo Testamento. Ou eles são os porteiros (v. 17-26), visto que os servos do templo são omitidos na lista seguinte e os porteiros são omitidos no versículo 2, ou mais provavelmente, já que eles são em

29 Rudolph tam bém m uda “que vieram m orar” (heb. h a y y ô sk b im ) para “aqueles que retornaram ” (heb. hashshãbim), como aparentem ente tam bém faz M yers, mas isso não tem base nos textos antigos.

30 O m esm o term o (heb. ’axu zzâ ) tam bém aparece freqüentem ente em Ezequiel (e.g. 44.28; 45 .5ss.).

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outras partes diferenciados dos porteiros, eles são um outro grupo de assisten­tes do templo cuja presença é retomada com base em Neemias 11.3.

O restante desta seção (v. 3-34) diz respeito ao repovoamento de Jerusa­lém. Esta lista parece ser contemporânea do próprio cronista, ou do tempo ime­diatamente posterior à implementação da política de Neemias de que pelo menos 10% da população deveria viver em Jerusalém (Ne 11.1-2; veja também acima), lila está dividida por Crônicas da seguinte maneira:

ii. Leigos em Jerusalém (9.3-9)9.3-9 - cf. Neemias 11.4-8Representantes de quatro tribos são mencionados (v.3) em contraposição

a dois em Neemias 11.4-9. Embora pareça não haver mais nenhuma informação sobre Efraim e Manassés, elas certamente são incluídas como representantes das doze tribos dos capítulos 2— 8 {cf 5.23-26; 7.14-29) para indicar a crescente expansão e unidade de Israel (exemplos similares envolvendo essas duas tribos ocorrem em 2Cr 30.11,18; 34.9). Os descendentes de Judá (v. 4-6) são classifica­dos de acordo com três filhos do próprio Judá que geraram filhos, Perez (v.4; cf. 2.4-5; 4.1), Selá (v.5 NVI = ossilonitas, ARA, RSV, BJ; cf. 2.3; 4.21), eZera (v.6; cf. 2.4, 6-8). Os nomes são os dos cabeças de famílias {cf. v.9,34). Jeuel não é mencionado em Neemias 11, Utai pode ser o mesmo que Ataías (Ne 11.4), e Asaías provavelmente é o mesmo Maaséias (Ne 11.5).

Embora as duas versões das genealogias judaítas mostrem alguma varia­ção, a divergência é muito mais marcante no caso dos benjamitas (v. 7-9). Neemias11.7-9 parece listar um cabeça/líder de família e quatro outros oficiais, ao passo que Crônicas tem quatro (ou cinco?) líderes. Somente Saiu é claramente comum, embora Hodavias, filho de Hassenuá (v.7) possa ser o mesmo que Judá filho deI lassenuá (Ne 11.9 - a diferença em hebraico é mínima). Tanto para Judá quanto para Benjamim, um pequeno aumento dos números desde a época de Neemias parece provável (956 benjamitas contra 928).

iii. Sacerdotes em Jerusalém (9.10-13)9.10-13-c/N eem ias 11.10-14Os nomes de seis cabeças de famílias (v. 13) são dados, a saber, Jedaías,

Jeoiaribe, Jaquim (v. 10), Azarias (v. 11), Adaías (v. 12), e Masai (v. 12; = Amasai, Ne 11.13). Os primeiros três são antigas famílias tradicionais {cf. ICr 24.7,17; Ne 12.19,21), e os dois últimos pertencem às famílias de Pasur e Imer que, junto com Jedaías, fizeram parte do primeiro grupo a retomar da Babilônia (Ed 2.36-39 = Ne7.39-42). Azarias pertence aos zadoquitas, a família de sumo sacerdotes, e muito da mesma árvore genealógica é dado em 1 Crônicas 6.11-14; Esdras 7.1-2 (Azarias provavelmente não é o mesmo que Seraías de Ne 11.11, visto que 1 Cr 6.14 e Ed7.1 os tratam separadamente). Príncipe da casa de Deus (v. 11) é quase com certeza um termo para o sumo sacerdote {cf. 2Cr 31.10,13).

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O número de sacerdotes cresceu substancialmente em comparação com Neemias 11.12-14 (1.760 contra 1.192), mas é consideravelmente menor que os 4.289 que retomaram inicialmente. Como no caso do restante dos judeus, parece ter havido alguma reticência entre os sacerdotes de enfrentar o desafio de Neemias de repovoar Jerusalém (a família de Harim, Ed 2.39 = Ne 7.42, por exemplo, não parece ter participado). A queixa de Malaquias de que nem todos os sacerdotes levavam a sério suas obrigações parece também ser refletida aqui (cf. Ml 1.6— 2.9).O aumento numérico significativo na lista de Crônicas pode ser refletido na dupla recomendação desses sacerdotes como homens capazes (NVI, RSV; “homens de conteúdo”, NEB) que foram comissionados para o “serviço” (RSV, NEB) ou minis­tério (cf. NVI) do templo (v. 13; - note que “serviço” também é uma caracterização- chave da tarefa dos sacerdotes em 1 Cr 24.3,19).

iv. Levitas em Jerusalém (9.14-16)9.14-15- c / Neemias 11.15,17Sete nomes são dados contra seis em Neemias 11.15-18, e com alguma

variação. Provavelmente, eles estão divididos em quatro líderes, que recebem genealogias, a saber, Semaías (v. 14), Matanias (v. 15b), Obadias e Berequias (v. 16) e três assistentes que estão sem ancestrais nomeados (v. 15a). Essa separação é apoiada pela designação de Baquebuquias (= Baquebacar) como “segundo” (Ne11.17). Como é indicado em Ne 11, esses são os músicos, um fator apenas insinu­ado aqui pela derivação de Matanias de Asafe e Obadias de Jedutum. Seus ances­trais foram chefes do coral nos dias de Davi (cf. 6.39; 15.17; 25.2-3), e os líderes nessa lista conduziam o louvor de Israel nos tempos de Neemias (Ne 12.8).

16. Berequias que não é mencionado em Ne 11, provavelmente também é um músico. Os netofatitas, que viviam próximo a Belém, incluíam muitos cantores (Ne 12.28-29), e a referência a Elcana pode ligar Berequias aos hemanitas, cujos descendentes não estão de outro modo incluídos entre os músicos pós-exílicos (cf. lCr6.33-38). Somente os asafitas parecem ter retornado inicialmente do exílio (Ed 2.41 = Ne 7.44), de maneira que a presença de outros grupos aqui é um testemunho de um desejo crescente de ver os músicos completamente restabelecidos em seus grupos tradicionais.

v. Porteiros em Jerusalém (9.17-32)9.17,22-c f. Neemias 11.19Este parágrafo marca um acréscimo substancial à breve nota sobre os

porteiros em Neemias 11.19. O cronista também se desviou um pouco de seu tema de listar a população de Jerusalém, e a questão surge quanto ao porquê de os porteiros receberem tanta atenção quanto todos os outros grupos da lista. Uma possibilidade razoável é que os porteiros exemplificavam de maneira parti­cularmente clara o desejo do cronista de ver os levitas desempenharem um papel mais proeminente. Embora eles possam ter sido um grupo bem pequeno, muitos

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parecem ter respondido ao chamado de viver em Jerusalém e nas cidades do seu entorno (v. 22,25). Eles também eram um testemunho vivo ao tema de Crônicas do “auxílio” mútuo prestado entre os israelitas (v.25; cf. comentários de ICr12. lss.; 23.24-32), e eles demonstravam uma boa vontade real em assumir deve-i es extras (v.26-32). Essa última situação deve ter surgido por causa da escassez í^eral de levitas no Israel pós-exílico (cf. Ed 8.15-20; Ne 13.10-11).

A seção trata de três aspectos do “serviço/ofício” ou ministério dos por- leiros (v. 19,28), sua autoridade (v. 17-23), sua liderança (v.24-27), e seu trabalho adicional (v.28-32). Como ocorre muitas vezes em Crônicas, a questão da autori­dade é resolvida por um apelo à tradição, tanto genealógica quanto espiritual. As quatro famílias em foco aqui (v. 17; somente duas ocorrem em Ne 11.19) Iraçam sua linhagem através de seu “líder” (v. 17, GNB) Salum até Corá (v. 19,3 1), o líder original de um dos grupos coatitas (cf. v.32) de levitas (cf. 6.22,37).31 () papel de liderança de Salum é indicado por sua posição junto ao portão leste, que no período pós-exílico era conhecido como a Porta do Rei (v. 18; cf. ICr 26.14). Essa era uma posição governamental importante, tanto quanto aquela que envolvia guardar as portas do próprio santuário (v. 19).32

Sua instituição formal como porteiros foi obra de Davi (v.22; cf. 1 Cr 26), quando Zacarias, filho de Meselemias tinha estado no cargo (v.21; ICr 26.2,14). Mas igualmente importante era sua herança espiritual, representada aqui pelo sacerdote Finéias (v.20), que dramaticamente defendera a santidade do santu­ário (Nm 25.6ss.), e por Samuel (v.22), que evidentemente fora um porteiro em sua juventude (ISm 3.15). Esse apelo ao passado também é apoiado pela lin­guagem reminiscente do período mosaico. Tanto “acampamento” (v. 18, NVI; lambém v. 19) quanto Tenda (= tabernáculo v. 19,23) ocorrem duas vezes, e nitrada da tenda da congregação (v.21) vem direto da história de Finéias (Nm 25.6).33 O fato de que o S e n h o r era com ele (= Finéias, v.20, RSV, NVI) indica que o Senhor também estava com aqueles porteiros da época do cronis- la que seguiam a mesma tradição viva do serviço divino. Eles tinham entrado em postos de confiança (v.22, cf. NVI; também v.26,31), que traduz uma palavra que também significa “fidelidade, honestidade” (cf. BJ, NEB, Braun).

A questão principal nos versículos 24-32 é se algum ou todos esses versículos referem-se apenas aos porteiros ou aos levitas como um todo. Muitos comentaris­tas preferem o último ponto de vista, dividindo a seção depois do versículo 23

-1’ Salum provavelm ente é o m esm o M esulão de N e 12.25, m as não há m otivo para considerá-lo a m esma pessoa contem porânea de Davi cham ada M eselem ias / Selemias (IC r '>.21; 26.1, 14), com o alguns com entaristas têm feito.

32 Cf. }. W. Wright, ‘Guarding the gates: 1 Chronicles 26.1-19 and the roles of gatekeepers in C hronicles’, JS O T 48, 1990, p. 69-81, especialm ente p. 74-76.

33 A menção ao Zacarias contemporâneo de Davi (v. 21; cf. IC r 26.2, 14) poderia de fato significar que a pretendida “tenda” era ou o santuário em G ibeom (IC r 16.39) ou aquele no qual Davi inicialm ente alojou a arca ( IC r 16.1).

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(Braun), do versículo 26a (Williamson), ou do versículo 27 (RSV, NVI). Abase para isso é a frase (lit.) “Eles eram levitas” (v.26b, cf. v.31), e a extensão dos deveres nos versículos 26-32. Mas na realidade, os porteiros parecem estar na mente do com­pilador o tempo todo. Das quatro funções adicionais mencionadas, a de “tesourei­ro” (v.26) era tradicionalmente preenchida pelos porteiros (lC r 26.15,17,20ss.), e a de vigia noturno (v.26-27) não é inadequada. Certamente, as responsabilidades de cuidar do equipamento do templo (v.28-29a) e preparar o sacrifício (v.29b-32) são inesperadas, mas esses ofícios também são atribuídos aos porteiros e seus paren­tes. Matitias (v.31) é o filho primogênito de Salum, o chefe dos porteiros (v. 17,19), e os coatitas, seus irmãos (v.32, NVI) incluíam a família de Salum, os coreítas. O envolvimento dos porteiros em outras atividades, especialmente as financeiras, também ocorre em 2Crônicas 31.14-17; 34.8-13.34

Os quatro porteiros principais (v.24-27) presumivelmente são aqueles nomeados no versículo 17. As portas do templo eram fechadas a cada noite, embora a chave (v.27) não seja mencionado em nenhuma outra parte no Antigo Testamento. A manhã (v.27) era o momento da oração {cf. lC r 23.30) e sacrifício (e.g. Êx 29.38-41; Nm28.1-8; 2Cr2.4; Ed 3.3). Os versículos 28-29areferem-se inteiramente aos “vasos” do templo (NEB) ou “equipamento” - não há uma palavra separada para “m obília” (contra algumas versões modernas). Os versículos 30-32 tratam de certas responsabilidades especiais no preparo dos sacrifícios. A confecção das especiarias (v.30) permaneceu uma prerrogativa sacerdotal (cf. Êx 30.22-33), mas o filho de Salum assava os “pães chatos (?)”(v.31, NRSV) ou pão da oferta, e os parentes mais próximos dos porteiros cuidavam do pão da proposição (v.32; cf. 23.29; 28.16; 2Cr2.4).

vi. Músicos em Jerusalém (9.33)Não está claro a quem este versículo se refere. Ou trata-se do mesmo

grupo dos versículos 14-16, mas que ocorre em uma fonte diferente (v. 17b-33), ou estes são porteiros com talentos musicais. O fato de que alguns dos músi­cos nos versículos 14-16 atuavam como porteiros na época de Neemias talvez apóie a segunda interpretação, como também faz a nota sobre a isenção de outros deveres.

vii. Conclusão (9.34)Este versículo é quase idêntico a 8.28, acrescentando apenas levitas. Ele

forma uma inclusão com o versículo 3 ao retomar o tema da residência em Jeru­salém na primeira parte da lista, embora os levitas não apareçam antes do versículo14. Seu caráter composto sugere que ele foi adaptado do capítulo 8.

34 C f J. W. Wright, art. cit. JSO T 48, 1990, p. 76-79.

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D. A genealogia da fam ília de Saul (9.35-44)A lista é quase idêntica a 8.29-40, salvo que 8.39-40 não são repetidos.

Sobre os detalhes da lista, veja comentários sobre o capítulo 8. O motivo da repetição da lista parece estar em sua função diferenciada. Enquanto no capí­tulo 8 a ênfase estava no lugar da residência das três principais famílias benjamitas, aqui a genealogia de Saul antecipa o relato de seu reinado no capítulo 10. A prática do cronista de prefaciar passagens narrativas com listas adequadas estabelece um contraste fascinante aqui com a queda da dinastia de Saul (10.6). Visto que a genealogia continua por doze gerações depois de Saul, o fato de que sua dinastia ruiu e seu reinado foi transferido a Davi não removeu o lugar de sua família na história israelita. Eles também viveram em Jerusalém (v.38), e embora nós não saibamos se isso continuou após o exílio, mesmo para eles havia sinais de esperança.

II. O REINO DE DAVI E SALOMÃO( IC r 10.1 - 2 C r 9.31)

A. Transferindo o reino para Davi (10.1— 12.40)O retrato de Saul feito pelo cronista é bastante característico. Além de ser o

ponto onde muitos leitores modernos começam ler os livros de Crônicas, o apare­cimento de Saul no início da seção narrativa mostra a importância da transição de Saul a Davi na versão que o cronista dá da história de Israel. Este é um ponto de partida bastante diferente do da chamada História Deuteronômica (Dt - Js - 2Rs), que começa com os acontecimentos relativos à entrada de Israel na Terra Prome- lida. Para o cronista, nem a entrada na Terra Prometida nem mesmo o retomo à terra eram predominantes em sua mente. A geração de Neemias parece ter sido a última para quem essa era uma questão central. Crucial para o cronista era como Israel podia continuar a viver naquela terra, e qual deveria ser seu status à luz de um domínio imperial aparentemente sem fim. Embora as genealogias começassem responder à primeira pergunta, a narrativa agora dá uma resposta mais completa.

Essa resposta é sobre o reinado de Deus em Israel, como se houvesse uma dúvida subjacente se Deus ainda era o responsável pela sorte da nação (cf. Is 40.27-31). A forma da pergunta parece ser exatamente o inverso da que1 oi levantada pelo povo antes de Saul se tornar rei. Naquela época, a grande questão era se deviam ou não ter um rei (ISm 8), mas agora a questão é como preservar alguma noção de realeza em Israel. Na realidade, entretanto, ambos são reflexos de uma pergunta fundamental - o que significava para Deus ser rei sobre Israel? O primeiro estágio da resposta é encontrado nos capítulos 10-12, que mostram como um reino foi estabelecido em Israel, afirmando a impor­tância da concepção do reino para os israelitas pós-exílicos, ainda que não houvesse perspectiva de qualquer restauração imediata da linhagem davídica.

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A brevidade do relato de Saul em Crônicas é há muito tempo um enigma. Praticamente todo o primeiro relato do remado de Saul (ISm 8 — 2Sm 1) é omitido, sendo incluídas aqui apenas sua derrota final e sua morte. Aparente­mente presume-se que os leitores sejam conhecedores dos outros eventos do seu reinado. Da mesma forma, o relato de Davi começa muito abruptamente com a instauração de Davi como rei sobre todo Israel (11.1 -3). As narrativas detalha­das da ascensão de Davi ao poder em 1 Samuel 16 — 2Samuel 4 são deixadas de lado, ainda que 2Samuel relate eventos importantes como a unção secreta de Davi por Samuel, seu perturbado e extenso conflito com Saul, e seus sete anos e meio de reinado sobre Judá (uma breve menção a este último ponto é encontra­da em lC r 3.4; 29.27). Novamente, no entanto, presume-se o conhecimento do leitor de muitos dos acontecimentos na primeira parte da vida de Davi, como é demonstrado por várias alusões em 11.10— 12.37.

Ao omitir deliberadamente tanto desse material de 1 e 2Samuel, Crônicas é capaz de se concentrar em dois aspectos do reino nos capítulos 10— 12. No capítulo 10, a realeza em Israel é transferida da casa de Saul para a de Davi (v.13-14), com outras referências à importância dessa mudança em 11.1-2 e 12.23. A segunda característica, encontrada nos capítulos 11— 12, traça a ex­pansão gradual do reino de Davi para incluir “todo Israel” (11.1-3; 12.38-40), repetidas vezes enfatizando como o apoio dos antigos súditos de Saul foi transferido para o novo rei. Dessa maneira, os capítulos 10— 12 servem como uma introdução à Monarquia Unida sob Davi e Salomão, mas também como um questionamento aos contemporâneos do cronista a respeito da verdadeira natureza da realeza e da autoridade em Israel. O cronista não dá conselho direto sobre as implicações práticas desse material para seu próprio tempo, e certamente não conclama a nenhuma rebelião contra os imperadores persas (ou gregos). Ele simplesmente se contenta em indicar que o reino de Israel, transferido de Saul para Davi, também era parte do reino do próprio Deus.35

i. O fim da casa de Saul (10.1-4)“Por isso o S e n h o r . . . entregou o reino a Davi, o filho de Jessé” (10.14, RSV)10.1-12-c/ lSamuel31.1-13A chave para a apresentação de Saul por Crônicas tem sido vista em geral

de dois modos. Ela é entendida como um mero prelúdio ao relato de Davi (von Rad, Galling), ou mais recentemente como um paradigma das condições que por fim levaram ao exílio (Mosis, Ackroyd, Williamson).

O próprio capítulo 10, no entanto, contém dois indicadores próprios de seu significado. Primeiramente, a estrutura enfatiza a importância incomum da batalha do monte Gilboa. Embora a batalha em si seja resumida em um versículo

35 W illi vai além da evidência de Crônicas ao propor que a principal questão no Israel pós-exílico era a perdida independência política de Israel (CA, p. 10-11).

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(v. 1), o restante do capítulo é devotado aos efeitos da derrota de Saul. Os deta­lhes da morte do rei (v.2-5), a profanação de seu cadáver (v.8-10), e seu sepulta- mento pelos habitantes leais de Jabes-Gileade (v. 11-12) são entremeados com resumos das conseqüências militares, políticas (v.5-6) e teológicas (v.13-14).l odo o relato é caracterizado por frases-chave como o fato de que o exército de Israel fugiu (v. 1,7), e especialmente a morte da casa de Saul (v. 5,6,7,13,14).

O segundo indicador encontra-se nos acréscimos do cronista à sua fonte (ISm 31). Duas mudanças, no versículo 6 e no versículo 14, são de interesse particular. A declaração e toda a sua casa pereceu (v.6) indica uma crise sem precedentes. A família de Saul realmente continuou através de seu neto aleijado Meribaal/Mefibosete, como o próprio cronista reconhece (1 Cr 8.29-39; 9.35-44). Isbaal/Isbosete, filho de Saul, também reinou brevemente no norte de Israel, como o cronista deve ter sabido (2Sm 2.8—4.12). Mas com relação à liderança de Israel, a “casa” de Saul estava acabada. O Deus de Israel, no entanto, não foi derrotado. Em suas mãos, a crise se tomou um momento decisivo, pois “ele transferiu o reino para Davi” (v. 14, NEB, REB). Crises de magnitude similar ocor­reram posteriormente na divisão do reino (cf. 2Cr 10.15, onde a “virada nos acontecimentos” vem da mesma raiz hebraica sbb usada aqui no v. 14) e no exílio, mas as mudanças efetuadas pela morte de Saul tiveram o maior impacto de (odas. Repetidas referências à mudança são feitas em Crônicas(lCr 11.1-2; 12.23; 17.13), mas elas ocorrem principalmente em relação à aliança davídica (1 Cr 17.13). Sem dúvida influenciado e inspirado pela promessa de Deus de uma aliança eterna para Davi em Salmos (e.g- SI 89.3-4; 132.11-12) e nos profetas (Is 9.7; 55.3; Ez 37.24-26), Crônicas sublinha a contínua relevância para o Israel pós-exílico das qualidades eternas da aliança davídica.

O reino e a aliança de Davi naturalmente recebem até maior proeminência no Novo Testamento. Nele eles são transformados por Jesus, “o maior Filho do grande Davi” (J. M ontgomery), que é tanto um ponto de convergência quanto uma continuação da esperança do Antigo Testamento. Por fim, é Jesus antes que Davi, quem torna essa aliança não-transferível (Lc 1.32-33, At 2.29- 36; F1 2.5-11). Primeiro Crônicas 10 portanto não é só um prelúdio nem um padrão, embora inclua elementos de ambos. Ele destaca uma conjuntura quan­do sob a soberania do Senhor foi posto um fundamento permanente, que era crucial não só para o restante de Crônicas, mas para toda a história bíblica.

a. A morte de Saul (10.1-5). A derrota final de Saul no monte Gilboa se deu no lado sudeste da planície de Esdrelom, em uma encruzilhada que ligava as tribos do sul do norte. A estratégia de batalha não está clara, mas há pouca dúvida de que o desespero e medo de Saul (ISm 28.4-5) o levaram a uma posição desvantajosa. Os filisteus podiam usar suas carruagens com benefício máximo na planície, e contar com o apoio das cidades-estado cananitas locais. Há uma ironia trágica na catástrofe de Saul nas mãos de um inimigo para o qual ele tinha

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sido escolhido por Deus e pelo povo para subjugar (ISm 9.16; 10.1 LXX) e sobre quem ele já tinha desfrutado êxito parcial (ISm 13— 14).

O relato do amalequita acerca da morte de Saul, em 2Samuel 1, é ignorado, talvez porque sua autenticidade tenha sido posta em dúvida tanto em tempos antigos como nos modernos. A reticência do escudeiro (v.4) de acabar com a agonia de Saul deveu-se ou ao status de ungido de Saul (cf. ISm 24.10; 26.11) ou para proteger-se da vingança de sangue. Saul foi gravemente ferido (v.3, cf. NVI),36 mas antes preferia morrer por sua própria mão a ser humilhado pelo inimigo. O conselheiro de Davi, Aitofel (2Sm 17.23), Zinri (rei por uma semana - IRs 16.18) e Judas Iscariotes (Mt 27.3-10; At 1.18-19) são os únicos outros israelitas suicidas mencionados na Bíblia.

b. O fim da casa de Saul (10.6-7). A maior alteração em relação a ISamuel 31 está no versículo 6 (ver notas acima). Primeiro Samuel 31.7 sugere que parte do vale do Jordão assim como Jezreel se perderam para os filisteus. O fato de que a capital do reino de vida curta de Isbaal ficava em M aanaim, na Transjordânia, parece confirmar isso (2Sm 2.8-9). Saul tinha perdido mais terra para os filisteus no final do que havia ganhado deles, fazendo troça das espe­ranças originais em relação à monarquia (ISm 8.20).

c. O cadáver de Saul (10.8-10). As muitas variações em relação a ISamuel 31 nestes versículos não podem ser todas facilmente explicadas, embora fato­res textuais possam estar envolvidos (ver Myers, Williamson). Particularmen­te interessantes são as referências específicas à cabeça de Saul e ao templo de Dagom (o nome do deus não aparece em 1 Sm 31.10), que foram plausivelmente explicadas como um contraste deliberado com a queda de Dagom diante da arca (ISm 5.1-4) e a queda de Golias diante de Davi, sublinhando a ironia assim como a extensão do fracasso de Saul (ISm 17.54). Ambos, como Saul, perde­ram suas cabeças.37 Dagom era amplamente cultuado no norte da Mesopotâmia e Síria-Palestina desde o terceiro milênio a.C. É possível que ele fosse uma divindade da vegetação e está associado exclusivamente aos filisteus no An­tigo Testamento. Uma pequena variante textual (“levar as boas novas a seus ídolos”, v.9, RSV, em lugar de “para a casa de seus ídolos” de ISm 31.9) enfatiza a vasta diferença entre Javé e os deuses filisteus. Enquanto estes não sabem da vitória que seu exército alcançou, Javé está em pleno controle tanto dos israelitas quanto dos filisteus (v.13-14).

36 A ARA diz “muito os temeu” (cf. Tg.), mas a NVI (no texto) combina melhor com o contexto. A revocalização sugerida por Rudolph para um a form a nifal (com o na N EB) é desnecessária, já que o TM pode provavelm ente ser lido como um hofal apocopado.

37 Mosis, UTCG, p. 24-26; P. R. Ackroyd, ‘The Chronicler as exegete’, JSO T 2, 1977, p. 6.

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d. O sepultamento de Saul (10.11-12). Uma versão mais simples de ISamuel 3 1.11 -13. A omissão de qualquer referência aqui à queima do cadáver desfigurado de Saul provavelmente visa evitar associá-lo à atividade criminosa (cf. Lv 20.14; 21.9; Js 7.25). Junto com o sepultamento e o jejum de sete dias (cf. 2Sm 1.12; SI 35.4), esse é um elemento importante para modificar a apresentação de outro modo desfavorável de Saul (mais honra foi prestada tanto a Saul quanto a Jônatas na seqüência de 2Sm 21.12-14). A substituição do termo raro “tamargueira” (ISm31.13, NVI; em outras partes somente em ISm 22.6) pela palavra mais comum (genérica?) “carvalho” (v. 12, REB, NEB, NRSV, RSV) é um bom exemplo do hábito de Crônicas de simplificar palavras raras ou obscuras.

e. A transferência do reino de Saul (10.13-14). Uma singular avaliação teológica de Saul. Três razões são dadas para o fracasso de Saul: ele foi infiel a Deus, não levou sua palavra em conta, e deixou de buscá-lo (RSV etc.) adequadamente. A primeira e a terceira frases são típicas de Crônicas, e são muitas vezes associadas ao juízo divino (sobre a infidelidade, cf. e.g. lC r 2.7; 9.1; 2Cr 12.2; 36.14; sobre não buscar a Deus, cf. e.g. 2Cr 12.14; 15.13). A segunda é mais comum em Deuteronômio, e ocorre em outras partes em Crôni­cas somente em 2Crônicas 34.21. Juntas, elas form am uma condenação abrangente da atitude de Saul para com Deus, e são vistas de uma maneira bíblica típica como o motivo real por trás de seus fracassos políticos e milita­res.38 Essas explicações teológicas podem ser interpretadas de duas formas. Alguns consideram que elas exibem um padrão que culminou no juízo do exílio, contrastando o reinado de Saul com o de Davi (especialmente Mosis). Outros, e de maneira mais convincente, dizem que elas se referem a incidentes específicos da vida de Saul, como demonstrado pela menção explícita de con­sultar uma médium de Endor (1 Sm 28). Essa perspectiva também é apoiada por referência a palavras específicas do Senhor rejeitadas por Saul, e que repetida­mente mencionam a transferência do reino de Saul para Davi (ISm 13.13; 15.22- 23,26; 28.16-19).39 Essas frases, portanto, confirmam que o objetivo principal deste capítulo é mostrar como e por que o reino foi transferido de Saul para Davi. O versículo 14a não contradiz ISamuel 28.6, mas antes ilustra a verdade espiritual de que Deus pode ser buscado ou com extrema sinceridade ou de modo nenhum (c f lC r 16.11; SI 27.4; Mt 6.33). O sincretismo de Saul é um microcosmo da infidelidade de Israel no Antigo Testamento. E também uma contradição do “primeiro e maior mandamento” (Mt 22.37-38; Dt 6.5).

38 Para detalhes dessas expressões, cf. W illiam son, p. 94-95; P. R. Ackroyd, art. cit., JSO T 2, 1977, p. 7-9.

39 Cf. também S. Zalewski, ‘The Purpose of the death o f Saul in 1 Chronicles X ’, VT 39, 1989, p. 449-467.

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ii. Todo Israel reconhece Davi como rei (11.1—12.40)“Eles ungiram Davi Rei sobre Israel” (11.3).“Nós somos teus, óDavi!... Pois o teu Deus o auxilia” (12.18, RSV).ll.l-9 -c/2Sam uel5 .1-3 ,6-1011.1 l-41a-c/2Sam uel 23.8-39Os capítulos 11— 12 são uma unidade singular com nítida estrutura lite­

rária. O tema programático do reconhecimento de Davi como rei por todo Israel introduz (11.1 -3) e conclui (12.23-40) toda a unidade.40 De maneira significati­va, a conclusão a todo o relato do reinado de Davi possui uma ênfase idêntica (IC r 29.25-26), e faz paralelo aqui à abertura.41 Os versículos intermediários (11.4— 12.37) desenvolvem o tema básico. Eles revelam o amplo apoio a Davi, mesmo daquelas tribos mais distantes geograficamente de Judá e daquelas que anteriormente deviam fidelidade a Saul.

Essa ênfase na unidade de Israel sob Davi deve ter tido implicações consi­deráveis para o Israel pós-exüico. A maioria dos comentaristas agora aceita que o cronista não era anti-samaritano, mas que ele esperava pelo eventual rompimento da barreira que se desenvolvia entre Judá e Samaria. Embora Crônicas relate várias tentativas de reunificação durante o período da Monarquia Dividida (e.g. 2Cr 30.1 -12), nenhuma outra passagem expressa tão claramente que o compromisso franco dos grupos previamente separados ao líder designado por Deus era um ingredien­te vital para tomar essa unidade possível. Embora a esperança do cronista perma­necesse não realizada em seus próprios dias, ela tomou-se uma possibilidade real em Cristo. Aqueles primeiros judeus e samaritanos que colocaram sua fé em Jesus (Jo 4.4-42; At 8.4-25) começaram um processo de reunificação que ainda está se movendo em direção a seu auge. Ele foi acelerado quando 3.000 “judeus... de todas as nações debaixo do céu” (Atos 2.5) se uniram a gentios de muitas nações no reconhecimento do Filho ressuscitado de Davi como o líder designado por Deus. Permanece privilégio e tarefa da igreja romper as barreiras humanas e traba­lhar para a reunião final de uma “grande multidão... de todas as nações, tribos, povos e línguas” para Jesus como o “Rei dos Reis e Senhor dos Senhores” (Ap 7.9; 19.16). Somente então as esperanças de Crônicas para o reinado davídico serão completa e finalmente transformadas.

a. Davi é ungido rei sobre todo Israel em Hebrom (11.1-3). Duas caracte­rísticas dominam o parágrafo de abertura sobre o reinado de Davi sobre todo Israel - a “palavra do S enho r” (RSV) e o ato sacramental de unção (o Antigo

40 Veja especialm ente W illiamson, p. 96ss.; idem, ‘We are yours, oh D avid’, OTS 21, 1981, p. 164-176. Este com entário faz algum as m odificações na estrutura de W illiam son, particularm ente no capítulo 11.

41 Cf. Rudolph, p. 97. Isso indica que o reinado de Davi, antes que a arca, é o tema central de lC rônicas 10— 29 (contra Mosis, UTCG, p. 44ss.).

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Testamento raramente fala da coroação de um rei). Elas falam dos propósitos de I )eus para Davi: a primeira enfatizando o chamado e a promessa Deus, a última demonstrando que Deus prepara aqueles a quem ele chama. Os dois elementos são reconhecidos por todo Israel (v. 1-2) e confirmados pelos anciãos de cada tribo (v.3). A unidade ideal de Deus, rei e povo é reforçada por uma “aliança” (um acordo, NVI). Essa aliança teria incluído os termos do reinado requeridos porI )avi, um juramento de lealdade feito pelo rei e pelo povo, e uma cerimônia religiosa (sobre alianças similares, embora não idênticas, entre Deus, o rei e o povo, veja 2Cr 23.16 = 2Rs 11.17; 2Cr 34.31-32 = 2Rs 23.3). O interesse do cronista na profecia cumprida reflete-se em seu acréscimo, “de acordo com a palavra do S en h o r por Samuel” (v.3, RSV). Nem isso nem a promessa divina no versículo 2b podem ser remontadas a ocasiões específicas, mas o versículo 2b reflete a fraseologia do oráculo de Natã (1 Cr 17.4-14; esp. v.6-7; = 2Sm 7.5-16), e o versículo 3b provavel­mente pretende ser um sumário dos vários pronunciamentos de Samuel sobre Davi (cf. ISm 13.14; 15.28; 16.1-13). Como em 10.13, o conceito da “palavra do Senhor” se desenvolveu a partir de um único oráculo em uma coleção das mensa­gens de um profeta, se não na fonte inteira utilizada aqui por Crônicas.

Duas metáforas no versículo 2b enfatizam o caráter especial da monarquia de Israel, como algo concebido e sustentado por Javé.

(a) O rei devia ser um pastor para Israel. O ideal de um rei-pastor remonta ao terceiro milênio a.C. no antigo Oriente Próximo, embora na maior parte dos easos ele se mostrou ser pouco mais que uma ilusão. A retenção desse termo (de 2Sm 5.2; c f lC r 17.6 = 2Sm 7.7) pode refletir um interesse particular no líituro pastor ideal de Deus como descrito pelos profetas dos períodos exílico c posterior. Esse personagem seria descendente de Davi, no fim substituindo aqueles pastores/reis que levaram Israel à destruição (Jr 3.15; 23.1-4; Ez 34.1- 24; Zc 11.4-17). A imagem do pastor, que em tempos antigos era normalmente um empregado ou dependente, também confirma que Davi como rei era res­ponsável diante de Javé por seu rebanho (o TM acrescenta um segundo “meu povo” a 2Sm 5.2, cf. RSV, NRSV, para confirmar isso).

(b) Davi deveria ser um governante (heb. nãgid; NVI, NRSV, GNB) ou “príncipe” (RSV, NEB). Este termo era originalmente distinto de “rei”, hebraico welek, mas logo se tornou sinônimo deste último, o título mais comum (cf. e.g. SI 76.12). Nãgíd possui dois sentidos. Ele descreve alguém designado para uma tarefa especial, e muitas vezes tem uma conotação militar (cf. ISm 9.16; 10.1; 13.14; e aram. negidâ\). A natureza militar da realeza israelita aparece no versículo 2a, Você era aquele que liderava Israel em suas campanhas milita­res (cf. NEB, GNB; lit. “você levou e trouxe Israel”, cf. ARA), e é reafirmado no apoio material de 11.4— 12.37. Por todo Israel (v.l, cf. v. 3,4,10) se quer dizer Iodas as tribos que escolheram Davi e não apenas as tribos do norte anterior­

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mente regidas pelo filho de Saul Isbaal (como em 2Sm 5.1; note-se a omissão no versículo 2a de “sobre nós” de 2Sm 5.2). A ênfase do cronista em todo Israel (c f ICr 10.7) lembrava sua própria geração de que o povo teria um papel vital no fortalecimento do governo de Deus em Israel. Hebrom (v. 1,3) foi a capital de Davi durante seu reinado sobre Judá, e não foi substituída enquan­to Jerusalém não foi capturada e desenvolvida (v. 4-9).

b. A capital de Davi (11.4-9). A conquista da fortaleza cananita, Jebus, e sua subseqüente transformação em Jerusalém, a Cidade de Davi e capital de facto das tribos israelitas, são apresentadas aqui como o primeiro grande resultado da unção de Davi. As tentativas anteriores de tomar Jerusalém tive­ram apenas êxito parcial (cf. Js 10.1-28; Jz 1.8; 19.11-12). Jebus era um nome local conhecido apenas no Antigo Testamento - o nome Jerusalém parece remontar ao século XIX a.C. à luz de sua provável menção nos Textos de Execração do Egito. Na era pós-exílica, a ênfase do cronista nas origens davídicas de Jerusalém (ausente de Esdras— Neemias) teria sublinhando a importância da cidade para seus contemporâneos apesar da repetida hostili­dade contra a cidade (cf Ed4.1— 5.17; Ne 4.1-23; 6.1-14). O sucesso de Davi foi atribuído (com 2Sm 5.10) a Javé, que, tendo chamado Davi para reinar, não o abandonou à sua tarefa mas permaneceu com ele (v.9).

Os detalhes da conquista de Jerusalém são muito diferentes de 2Samuel 5.6-10, embora as origens das variações nem sempre sejam claras. O exército pessoal de Davi agora é chamado de todo o Israel (v.4), uma mudança em harmonia com um dos temas favoritos do cronista que aqui é provavelmente baseada no variado pano de fundo tribal dos apoiadores de Davi (12.1-37; ver comentários sobre o v .l). O relato bastante obscuro da conquista da cidade em 2Samuel é amplamente substituído nos versículos 5-6 por uma explicação da promoção de Joabe a comandante em chefe. O interesse de Crônicas em Joabe (sua atividade de construção, v.8, não tem paralelo em 2Sm), embora muitas vezes visto como problemático, explica-se por sua posição como o chefe dos apoiadores de Davi (v. 10). Joabe é descrito como um “chefe” (RSV) assim como os “líderes” (versões modernas “chefes”, v. 10) dos valentes, em­bora ele seja claramente diferenciado dos outros (e.g. a raiz heb. r ’sh, “cabe­ça”, ocorre quatro vezes no v.6). A nota sobre suas realizações militares e de construção (v.6,8) deve, portanto, ser compreendida da mesma maneira que as notas sobre outros soldados de destaque nos versículos 11-25.

8. A palavra para aterro (NVI nr; lit. “M ilo”, NVI, RSV, NEB etc., que significa “encher”) talvez fosse tão obscura para o cronista quanto é para os leitores modernos, visto que somente aqui ele manteve o termo do seu texto- fonte (omitindo-o de lR s 9.15,24; 11.27). Embora uma outra referência (não em Reis) seja incluída em 2Crônicas 32.5, a fraseologia lá parece ser influen­ciada pelo versículo presente. Nos dois versículos o Milo é simplesmente

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uma parte da cidade velha de Davi. O consenso arqueológico moderno o identifica com a construção em terraços feita pelos jebuseus na íngreme encosta oriental da colina sudeste.42

A expressão incomum no versículo 8b, lit. “reviveu, renovou” (restaurou, NVI, GNB; “reconstruiu”, NEB) parece ser uso pós-exílico, visto que ela reapa­rece num contexto similar em Neemias 4.2 e é cognata do termo “reviver” (RSV) em Esdras 9.8-9. Ela reflete a esperança do cronista que à cidade pós-exílica, apesar da desilusão e privação, seria dada uma nova esperança (para uma inter­pretação diferente, veja Williamson, p. 100).

c. Os valentes de Davi (11.10-47). As listas dos valentes de Davi, em 2Samuel 23.8-39, são expandidas (v. 41b-47) e recebem um contexto totalmente iiovo. Elas recebem uma introdução nova e importante (v. 10), que retoma três lemas já frisados nos versículos 1 -3 (reinado de Davi, todo Israel, e a palavra deI )eus), como também acrescenta um quarto, o do forte apoio (cf. 2Cr 16.9; 21.4). Os guerreiros são provenientes de diversos ambientes tribais. Isso explica a inclusão pelo cronista de todo Israel (v. 10), e é mais uma ilustração de seu tema global da unidade de Israel sob Davi. Nem todos esses homens necessariamen­te vieram a Hebrom (cf. v. 1 -3), visto que as listas provavelmente são compostas. Asael, de fato, morreu enquanto Davi ainda era rei somente em Judá (v.26; cf. 2Sm 2.18-23). O material do cronista, assim como muitas narrativas do Antigo Testamento, com freqüência não é disposta cronologicamente, e sua atenção persistente a detalhes em outras partes sugere que ele sabia que personalidades e eventos nesta passagem pertenciam a períodos diferentes da vida de Davi. A consolidação do reino de Davi não foi realizada do dia para a noite.

A expressão “palavra do S e n h o r ” (v. 10, RSV; o S e n h o r havia prometido, N VI) deve ser entendida como uma declaração de resumo (cf. comentários sobre v.2-3). Os mais importantes soldados de Davi (versões modernas “valentes”) são divididos nos Três (v. 18, 20-21, 25) e nos Trinta (v.25), embora a distinção entre os dois grupos não seja muito clara. A inclusão desses nomes é primaria­mente para exaltar Davi que, como ungido de Deus, recebeu serviço leal de homens de grande habilidade e heroísmo. Visto que a maioria dos mencionados nos versículos 11-31 reaparece como comandantes das tropas mensais (lC r27.1-15), é provável que toda a lista contenha os nomes dos líderes reconheci­dos de Israel. Certamente “Trinta” não deve ser entendido em termos numéricos precisos, como as listas demonstram, e ou é um número mais elástico, ou refere- se a um tipo especial de líder militar. A palavra “trinta” de fato pode significar

42 K. M. K enyon, Jerusalem (Londres: Tham es & H udson, 1968), p. 50-51. A frase seguinte, w‘ "adhassãbib é suspeita, já que sãbib nunca ocorre com o um substantivo, e seu significado aqui é incerto. Parece p refe ríve l entendê-lo com o um a ditografia, e aceitar a correção usual, “e até o palácio” , com base em 2Sam uel 5.9.

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algum tipo de oficial, ou um “oficial do terceiro escalão” ou um membro de um esquadrão de três homens que se reportava diretamente ao rei.43 Os números de grupo deviam variar, como tristemente é indicado pela menção de Urias, heteu (v.41; cf. 2Sm 11.17), embora se deva lembrar que os títulos numéricos em unida­des militares muitas vezes não coincidem com a realidade (e.g. o centurião roma­no dificilmente comandava exatamente 100 homens, e a legião romana em geral era bem menor do que o padrão teórico de 600 homens). Dois líderes dos “Trin­ta”, não incluídos no capítulo 11, também são mencionados em 12.4,18. Somente breves notas sobre nomes individuais podem ser dadas aqui; para detalhes mais completos, veja os comentários maiores.

Os versículos 11-47 podem ser divididos em diversos grupos de nomes.(a) Jasobeão44 e Eleazar (v.l 1-14), aos quais quase certamente deve ser

acrescentado “Sama” (cf. 2Sm 23.11-12). Quase todos os comentaristas aceitam que 2Samuel 23.9b-11a foi omitido na metade do versículo 13 por erro de um copista, talvez influenciado pelo não aparecimento de Sama na lista similar dos comandantes do exército em lCrônicas 27 (cf. v.2,4). Esse trio é todo caracteriza­do por seu heroísmo contra os filisteus, através do qual em pelo menos uma ocasião o S e n h o r efetuou grande livramento (v. 14; cf. 2Sm 23.10,12).

(b) Um grupo anônimo (v. 15-19), que foi identificado com os nomes prece­dentes (v. 11-14) ou com os subseqüentes (v.20-25). O sentido de Davi derramar a preciosa água de Belém no chão é triplo. Ele destaca um grande ato de bravura israelita, ele exalta a habilidade de Davi de inspirar extraordinária lealdade, e foi reconhecido como um ato de adoração (v. 18 - não diante do S en h o r , como NIV, mas “ao S e n h o r ” , como NVI, NRSV, RSV, REB, NEB, GNB; cf. ISm 7.6).

(c) O terceiro grupo também pode ser um trio, incluindo Asael (v.26) assim como seu irmão Abisai e Benaia (v.20-25).45 Abisai e Benaia são menci­onados por suas grandes obras (v.22), mas aparentemente não alcançaram o grupo dos Três (v.21,25).46 Os ’â ri’el (lit. “leões de Deus”) do versículo 22 tanto poderiam ser “leões” (Hertzberg) ou “campeões” (REB, NEB; cf. “ho­mens semelhantes a leões”, VA).

41 Cf. N. N a’aman, T h e list o f D avid’s officers (Shalhishím )’, VT 38, 1988, p. 71-79;D. G. Schley, T h e Shãlishíra (s id ): officers or special three-man squads’, VT 40, 1990, p.3 2 1 -3 2 6 .

44 A com paração com a lista em 2Sm 23.8-39 revela um grande número de variantes, especialmente na grafia dos nomes. As diferenças textuais surgiram de várias formas, inclu­indo erros de cópia, a existência de outras possíveis versões da mesma lista, e a não-padroni- zação da grafia dos nomes nos tem pos antigos.V eja um a lista com parativa dos nom es em M yers, 7 Chronicles, p. 80, e Braun, p. 161-162.

45 Veja Rudolph, p. 99s.; Hertzberg, p. 406s.; ambos seguem K. Elliger. A lista dos Trinta em 2Sam uel 23.24-39 contém exatam ente trinta nom es sem Asael.

46 O TM não é claro quanto a que grupo eles realm ente pertenciam , um a confusão am plam ente ilustrada pela tradução da NIV nos v. 20, 21 (“Abisai... foi chefe dos Três... e tornou-se seu com andante, m esmo que nunca tenha sido incluído entre eles”).

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(d) Os valentes (v.26-47). A lista é maior do que a de 2Samuel 23 (esta lista lormina em Urias, heteu, v.41a aqui), o que é um possível motivo para omitir “Os Trinta'' do título (2Sm 23.24) e da soma total (2Sm 23.39). Ela parece arranjada em algum tipo de ordem geográfica. A maior parte dos primeiros dez nomes de i.lanâ a Helede (v.26-30) têm origem em Judá, muitos nos versículos 31-37 são de comunidades do norte, e homens de origem não israelita são listados nos v.38-41a. O acréscimo dos versículos 41 b-47 é expresso em um estilo ligeiramen- k- diferente dos v. 26-41 a, e provavelmente vem de uma fonte separada. Esses nomes extras, vários dos quais têm conexões transjordanianas, são um testemu­nho à fluidez no tamanho do grupo. Eles podem ser substituições posteriores, ou até assistentes para alguns dos listados anteriormente (cf. a referência ao que trazia as armas de Joabe, v.39).

O capítulo 12 continua o tema sobre o apoio de todo Israel ao reino de Davi com material que não tem paralelo no Antigo Testamento. Dois aspectos são enfatizados: a crescente deserção para o lado de Davi durante o período de sua perseguição por Saul (v. 1-22), e o ajuntamento da milícia de todas as tribos emI lebrom (v.23-40). Os capítulos 11— 12 estão dispostos em uma estrutura quiástica global, a saber:

a. Todos os anciãos tribais ungem Davi em Hebrom (11.1-3)b. Apoio tribal em Ziclague (12.1-7)

c. Apoio tribal na fortaleza (12.8-15) c 1. Apoio tribal na fortaleza (12.16-18)

b 1. Apoio tribal em Ziclague (12.19-22) a I. Todas as tribos ungem Davi em Hebrom (12.23-40)47

Todo o esquema também apresenta um claro desenvolvimento cronoló­gico, sublinhando a velocidade do ajuntamento do apoio a Davi desde o pri­meiro período na “fortaleza”, depois em Ziclague e por fim em Hebrom. Bem no centro está uma palavra profética afirmando o apoio do próprio Deus a Davi (12.18). O ímpeto por trás do apoio crescente a Davi é assim apresentado como vindo do próprio Deus.

Duas outras linhas percorrem o capítulo: a ajuda a Davi (v. 1,17,18,19,21,22), r a dedicação de Israel (v. 17,33,38). Ajuda é um dos termos favoritos de ( Yônicas, expressando mais obrigação e cooperação do que simples assistên­cia. As referências neste capítulo em geral descrevem apoio militar, mas de acordo com o versículo 18 a razão realmente importante para essa cooperação está no apoio ativo de Deus. Os vários usos de “ajuda” no capítulo 12 confir­

47 Veja com entário introdutório sobre o capítulo 11.

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mam ainda mais a solidariedade de Deus, rei, e povo na escolha de Davi como rei.48 Essa unidade é uma unidade sincera, como sublinhado duas vezes no versículo 38 (lit. “de todo o coração”..., “um coração...”; NRSV, RSV, “com plena intenção... de um único espírito”). A iniciativa vem de Davi, talvez se desenvol­vendo de uma aliança pré-monárquica com aqueles que não tinham se compro­metido previamente com ele (v. 17, cf. NRSV, RSV “Meu coração se unirá a ti”). A resposta do povo é exemplificada pelo ânimo resoluto dos soldados insensíveis do distante Zebulom (v.33). Em nítido contraste com muitas outras gerações de israelitas, sua fé é aqui caracterizada por sua centralidade em Deus, resultando em obediência prática, em nova esperança (v. 18), e alegre generosidade (v.39- 40). Isso estabelece um padrão para a fé do Novo Testamento, que, quando centrado em Jesus, Filho de Davi e Filho de Deus, alegremente une os crentes dentro dos grandes propósitos de Deus para todos os povos (cf. Ef 2.1— 4.16).

d. Apoio tribal em Ziclague: os benjamitas (12.1-7).*'A estadia de Davi em Ziclague, que os versículos 19-22 também relatam,

pertence ao seu período de 16 meses com os filisteus (ver ISm 27— 2Sm 1). A comitiva de Davi é aumentada por vinte e três soldados experientes e bem arma­dos da tribo do próprio Saul, os filhos de Benjamim (c f também v. 16,29), embora outros da mesma tribo permanecessem leais à casa de Saul mesmo após a morte deste (v.29 e 2Sm 2.15,25). A admissão de Ismaías aos Trinta (ver cap. 11 para comentários) é uma indicação da confiança de Davi em um ex-oponente (v.4). Os topônimos identificáveis são benjamitas: (seguindo a NVI) Gederate (v.4), Harufe (v.5), Coré (v.6), e Gedor (v.7) permanecem incertos, embora localidades em Judá tenham sido propostas.

e. Apoio tribal na fortaleza: os gaditas (12.8-15). Com os versículos 16-18, esta seção refere-se ao período anterior da perseguição a Davi por Saul. A

fortaleza poderia ser ou Adulão (1 Sm 22.1) ou En-Gedi (1 Sm 23.29; 24.1), embora Davi usasse outros lugares semelhantes (ISm 23.14). Davi aqui recebe o apoio de onze oficiais (v.9-14a) de Gade, uma tribo transjordaniana no sul de Gileade, que são caracterizados pela força e bravura (v.8,15). O versículo 14 provavel­

48 A proposta de G insberg de traduzir “aqueles que ajudam ” (heb. ‘zr, v. 1,18) como “guerreiros” ( ‘A Ugaritic parallel to 2 Sam. 1.21’, JBL 57, 1938, p. 209-213, cf. p. 210s., n. 4), em bora muito aceita, provavelm ente é desnecessária. E la é baseada em um hom ófono ugarítico, mas as duas raízes provavelmente são da mesma classe já que seus campos semânticos se sobrepõem (cf. Williamson, p. 106, para referências, e cf. J. Barr, Comparative Philology, Oxford: Clarendon Press, 1968, p. 139, n. 332). Alguns encontram também uma grafia aramaica do mesmo verbo, “ajudar” , no v. 33, 38 ('dr), mas conquanto isso possa ser apropriado no v. 33 (cf. LXX, Vulg.), não se encaixa no v. 38 (contra Rudolph). Possíveis traduções apropriadas a ambos os versículos são “audaciosas” (NEB) ou “congregada” (Bertheau, p. 209).

49 O TM no v.5 começa com “Jeremias” do v.4 nas versões; como resultado, os números dos versículos em hebraico são um mais alto que nas traduções modernas para o restante do capítulo.

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mente é uma referência às suas qualidades de liderança (como NRSV e VSS, especialmente a Vulg., LXX)50 embora ele seja entendido geralmente como uma outra indicação de sua coragem (NVI, REB, NEB, etc.). Em vez de Eles puseram <‘infuga a todos que havitavam nos vales (v. 15, cf. NRSV, RSV), a melhor tradu­ção seria “eles bloquearam todos os vales” (e.g. Rudolph).

f. Apoio tribal na fortaleza: os de benjamim e os de judá (12.16-18). Como os versículos 8-15, esta seção está associada com a fortaleza, mas trata mais dolorosamente com a lealdade incerta de alguns homens de Judá e Benjamim (v. 17) do que com suas origens tribais. A divisão intema atormentou Israel durante toda sua existência como nação. O problema continuou sob Davi, especialmente na rebelião de Absalão, e foi finalmente institucionalizada na divisão da monar­quia, quando o slogan das tribos do norte (2Cr 10.16) era um contraste direto à profecia unificadora de Amasai (cf. Ackroyd, Williamson). Aqui, no entanto, o povo está tão harmonizado com Deus que até um soldado fala profeticamente (v. 18). Amasai pode ser identificado com Amasa, comandante do exército de Absalão (2Sm 17.25) que mais tarde foi reinstalado por Davi (2Sm 19.13), ou menos provavelmente com Abisai (cf. ICr 11.20-21). A profecia confirma os declarados propósitos de Deus para Davi; o espírito (o heb. é indefinido, cf. NRSV, REB, NEB) pode ser entendido como sendo enviado por Deus ou possivelmente pode ser identificado com Deus (i. e. Espírito, RSV, NVI). “Um espírito revestiu Amasai” é uma tradução literal mas surpreendente do hebraico, e a frase ocorre de novo no Antigo Testamento apenas em Juizes 6.34 e 2Crônicas 34.20. No entanto, ela tem um eco forte na promessa de Jesus de que os cristãos primitivos seriam “revesti­dos” com o poder do alto (Lc 24.49). A mensagem de “paz” (ou sucesso, NTV, GNB) e ajuda é colocado na base do capítulo, e coloca em poucas palavras as esperan­ças não somente desses soldados, mas de todas as tribos.51

g. Apoio tribal em Ziclague: os manassitas (12.19-22). Sete líderes manassitas desertaram para Davi, pouco antes da derrota final de Saul. Crôni­cas presume que o leitor saiba que os filisteus rejeitaram a assistência de Davi antes da batalha (v. 19; cf. ISm 29) e da subseqüente vitória de Davi sobre os grupos de ataque amalequitas (v.20-21, NVI; cf. ISm 30, especialmente os versículos 8 e 15 onde a palavra “grupo” - RSV; “bando de invasores”, NVI - reaparece). O tema da ajuda, seguindo o versículo 18, é especialmente proe­

30 O Tg. É mais equívoco aqui do que às vezes se supõe, cf. TC, 1. p. 69.11 O v. 18 é o único trecho poético em Crônicas que não tem um paralelo direto em

•Samuel-Reis ou Salmos. Isso pode ser um a indicação de que esse versículo também foi empres- lado, m as de um a fonte desconhecida (G. E. Schafer, ‘The significance o f seeking G od’,l.ouisville Th.D ., 1972, p. 22).

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minente (v. 19,21,22). Nesse contexto, a retirada de Davi do exército filisteu deve ser compreendida como providência divina. O versículo 22 provavelmente resu­me o todo dos versículos 1-21, embora também forneça uma ligação com os versículos 23-27. De acordo com ISamuel 27.2, o exército pessoal de Davi soma­va 600 homens antes que ele fosse para Ziclague; oito anos depois em Hebrom, ele deve ter aumentado consideravelmente e parecia um grande exército (NVI, NRSV, RSV; cf. GNB, REB, NEB), especialmente quando o exército principal de Saul era bem pequeno. A frase final em hebraico é literalmente “como o acampa­mento/exército de Deus”, talvez sugerindo um apoio divino invisível, como na outra única ocorrência dessa frase (Gn 32.2, TM, v.3).

h. Apoio tribal em Hebrom (12.23-37). Esta passagem lista o número de soldados de cada tribo que se juntaram em Hebrom, complementando as listas dos principais indivíduos em 11.10-47. A referência à transferência do reino de Saul para Davi (v.23) confirma 10.14 (“entregar”, na NVI, é o mesmo verbo heb. “transferir” em 10.14), e entende esses movimentos tribais como uma resposta ao propósito declarado de Deus (“de acordo com a palavra do S e n h o r ” , v.23, NRSV, RSV). A autenticidade da lista é indicada por alguns elementos imprevis­tos: a insuficiência do contingente de Judá (v.24) e a menção de 13 tribos, inclu­indo os levitas (v.26) e as duas tribos de José (v.30, 31,37). Os números curiosa­mente contrastam contribuições substanciais das tribos do norte (v.29-37) com as baixas cifras para Judá (v.24) e Levi (v.26-28). Estas duas últimas tribos são de interesse especial para Crônicas. Talvez a lista exclua aquelas cuja obediência a Davi já havia sido declarada publicamente, como em sua primeira unção como rei sobre Judá (2Sm 2.1-4), visto que até Judá somente aos poucos se comprometeu com Davi (v. 16-18). As tribos do norte em geral teriam sido aliadas da casa de Saul até este ponto, como é sugerido por diversas anotações (v. 29,31,33), de maneira que o objetivo principal da lista pode ser confirmar a extensão do apoio transferido a Davi durante o período de indecisão que se seguiu à morte de Saul. Algumas das notas, particularmente os versículos 27-28,29,31,33, revelam a con­tribuição do próprio cronista.

26-28. Os levitas jamais foram proibidos de se engajar na atividade militar, a despeito de seus deveres religiosos. Joiada é o pai de Benaia (lC r11.22-25; IRs 1.8ss.) com base em lCrônicas 27.5 onde ele aparentemente é chamado de sumo sacerdote (cf. REB, NEB), embora seu relacionamento com o sacerdote de Davi, Abiatar (ISm 20.20-23; lC r 15,11; 27.34; etc.), não seja claro. Zadoque, aqui um jovem, por fim substituiu Abiatar após o envolvimento deste na conspiração de Adonias (IR s 1.7ss.) e tornou-se sumo sacerdote de Salomão (IRs 1.8ss.).

32. A nota sobre Issacar é espantosamente vaga, embora nenhuma evi­dência ligue essa tribo com astrologia (contra Williamson, Rudolph etc.). Nes­

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se contexto, a nota se refere a seu discernimento da vontade de Deus para seus próprios dias.52

i. Celebração de Davi como Rei em Hebrom (12.38-40). Esta é a conclu­são para os capítulos 11— 12, e está estreitamente associada a 11.1-3. Ela ampli­fica a contribuição feita pelo povo (todo Israel, v.38), especialmente os solda­dos (cf. v.23-27) e todo o resto de Israel (v.38). A última frase (heb. Sêrit, “resto”), possivelmente faz referência aos ex-partidários do reino de Saul, pode também conter uma alusão ao remanescente, e assim apontar para o potencial para a unidade na comunidade pós-exílica (cf. também 1 Cr 13.2; 2Cr 30.6). O parágrafo como um todo, no entanto, mostra que o povo de Deus é o verdadeiro herói do capítulo. Esses israelitas exemplificam o princípio de que quando o povo de Deus toma-se comprometido uns com os outros (c f o uso de ajuda em todo o capítulo) em serviço obediente ao rei escolhido por Deus, eles encontram unida­de e alegria (cf. Jo 15.9-11).

O festival sem paralelo de 3 dias (v.39-40) é o auge da aliança (11.3). Alianças de todos os tipos muitas vezes eram celebradas com uma refeição especial (e.g. Gn 31.54; Êx 24.11), incluindo a Ceia do Senhor como a refeição de celebração da nova aliança. Essa festa do reino de Davi é marcada pela fartura e alegria, exemplificando a preocupação prática do povo uns pelos outros no assim como para com seu rei. Ela retrata com vivida simplicidade, como talvez em nenhuma outra parte do Antigo Testamento, o potencial para a unidade real entre Deus, o rei e o povo.

B. Davi traz a arca para Jerusalém (13.1— 16.43).Os capítulos 13— 16 descrevem como a arca da aliança foi trazida a um

local permanente em Jerusalém. Presume-se claramente que os leitores estejam informados da história antiga da arca (ver ISm 4.1— 7.2), quando ela foi total­mente negligenciada na aldeia de Quiriate-Jearim, em Judá (cf. 13.3) durante a maior parte da liderança de Samuel e de todo o reinado de Saul.53 Agora, no entanto, a busca de Davi por Deus (13.3) por meio da arca é um evento crucial

52 Isso é indiretam ente confirm ado por J. P. Weinberg ( ‘D er M ensch im inente W eltbild ilcs C hronisten , seine psyche’, VT 33, 1983, p. 295-316, especialm ente p. 307, 311), que conclui que a visão do cronista da habilidade intelectual hum ana é consistentem ente prática, muitas vezes aplicada a decisões e atividades políticas. Em bora ele considere o “saber” de 12.32 como a única exceção, é na realidade não é nenhuma exceção, é um bom exemplo da .ibordagem prática do cronista ao conhecimento e à sabedoria (TM y ô d é ‘ê binâ, lit. “aqueles que conhecem en tend im ento”)

53 A única exceção possível a essa negligência é ISm 14.18. Em bora a leitura da LXX, “efod” seja geralm ente preferida a “arca” do TM (e.g. R. W. Klein, 1 Samuel, WBC, Waco: Word Books, 1983, p. 132), a questão continua aberta (cf. H. W. Hertzberg, p. 113-114; P. R. Davies, ‘A rk or ephod in 1 Sam. XIV 18?’, JTS 26, 1975, p. 82-87).

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para todo Israel. É dada a ele mais importância do que às realizações de Davi na construção, na vida familiar, e no esforço militar (cap. 14), um ponto sublinha­do pelo reposicionamento de 2Samuel 5.11-25 (agora = lC r 14.1-16) depois do capítulo 13. De fato, a nova disposição faz parte de um padrão mais amplo empregado por Crônicas no relato de reis tais como Abias (2Cr 13), Josafá (2Cr 17—20), e Ezequias (2Cr 29— 32). De acordo com esse padrão, as vitórias militares de um rei e sua soberania sobre outros povos são entendidas como conseqüências que resultam da busca pelo Senhor.54 A busca de Davi não está apenas em nítido contraste com seu predecessor Saul (lC r 10), mas con­duz diretamente à renovação da aliança de Deus (lC r 17) e aos preparativos para o templo (lC r 22— 29).

A arca em si era uma caixa de madeira coberta com ouro e que continha duas pedras nas quais estavam inscritas os Dez Mandamentos. Nos capítulos 13— 16 é conhecida primariamente como a arca de Deus (e.g. 13.5) ou a arca da Aliança (e.g. 15.25ss.), simbolizando a presença ativa de Deus e a aliança mosaica. O cuidado de Davi pela arca, portanto, representa sua obediência à aliança mosaico/sinaítica, e conduz naturalmente à formação da aliança davídica no capítulo 17. Uma terceira característica do simbolismo da arca, que ela represen­ta o trono ou estrado de Javé, aparece em lCrônicas 13.6; 28.2 (c/ SI 99.5; 132.7).

Embora arca provavelmente tenha perecido na destruição de Jerusalém por Nabucodonosor (cf. Jr 3.16), o cronista dá mais ênfase a ela do que o compilador de 2Samuel. Presumivelmente isso é porque ele desejava que sua própria geração desse prioridade a seus símbolos próprios da aliança e pre­sença de Deus, especialmente o templo. A mesma preocupação reflete-se no interesse especial dedicado aos artigos do templo resgatados do exílio (e.g. EdI.7ss.; 5.14s; 7.19). A arca se foi há muito tempo, naturalmente, mas o Novo Testamento entende que a importância da arca continua em Jesus. Em sua própria pessoa, ele instituiu uma aliança melhor e fez a presença de Deus diretamente acessível a todo crente (Hb 9.1-12, especialmente v.4-5; cf. ApII.19 sobre a presença simbólica da arca no céu). O cuidado de Davi pela arca, portanto, é um estímulo aos crentes cristãos a buscar o caminho da obediência a Deus, confiando que sua presença, uma vez conhecida através da arca, agora está disponível através de Jesus e da nova aliança.

i. A arca começa sua jornada (13.1-14)“Tomemos a trazer para nós a arca do nosso Deus” (13.3).13.5-14-c/2Samuel 6.1-11

O capítulo 13 claramente elogia a prioridade que Davi dá à arca, mas tam­bém contém um alerta de que ela era muito mais do que um símbolo da presença divina. O entusiasmo do versículo 3 (tomemos a trazer para nós a arca do

54 Cf. Mosis, UTCG, p. 44-81.

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nosso Deus) dá lugar rapidamente ao desespero de Davi. Como trarei a mim a nrca de Deus? (v. 12). Mesmo Davi não podia tomar por garantida a realidade da presença de Deus. Se os leitores de Crônicas quisessem ter restauradas as antigas glórias de Israel, eles também deveriam contar com um Deus cujas san- lidade dinâmica não poderia ser contida dentro de limitações humanas.

O capítulo é também notável por registrar um dos dois fracassos de Davi no relato do cronista (sobre o outro, veja ICr 21). Davi comete o erro fundamental de deixar de reconhecer a verdadeira natureza de Deus, e como resultado, tanto aqui quanto no capítulo 21, alguns israelitas têm de pagar o preço máximo. Embora seja verdade que o cronista omite diversos detalhes dos primeiros relatos da vida particular de Davi, incluindo o episódio de Bate-Seba (2Sm 11— 12), ele certamen- Ic não reabilita a reputação de Davi, como alguns têm alegado.

a. A decisão de transportar a arca (13.1-4). Esta introdução, identificável pelo vocabulário e temas característicos, foi acrescentada pelo cronista a 2Samuel6. Três temas, nenhum deles encontrado em 2Samuel 6, dominam esses versículos.O primeiro, continuado dos capítulos 11— 12, é “todo Israel” (v.5, RSV etc.), descrito nos versículos 2,4 como toda a assembléia. A luz do compromisso das Iribos com Davi em Hebrom (11.1-3; 12.38-40), trazer de volta a arca não é mais apenas uma iniciativa militar empreendida pelos homens de Davi (cf. 2Sm 6.1), mas uma iniciativa religiosa de todo o povo. A assembléia nesse contexto deve referir-se aos representantes da maioria senão de todas as tribos.55 O tema da unidade é ampliado duas vezes pelas referências a sacerdotes e levitas, que desempenharão um papel-chave no transporte da arca (caps. 15— 16), e a todos os nossos outros irmãos em todas as terras de Israel (cf. 12.38). O último con­trasta a desintegração de Israel após a derrota final de Saul (cf. 10.7), e oferece novo estímulo após a vitória de Davi sobre os filisteus (14.8-17) àqueles que também hesitam em comparecer à unção em Hebrom (11.1-3).

O segundo tema é o da consulta, um interesse especial de Crônicas raramente encontrado em Samuel ou Reis. Reis tais como Salomão (2Cr 1.2), Josafá (2Cr 20.21), e Ezequias (2Cr 30.2; 32.3) são elogiados por isso,56 em completo contraste com o fracasso de Roboão (2Cr 10.6-14) e Amasias (2Cr25.16-17) em seguir bons conselhos. A consulta de Davi aqui permite ao povo israelita tomar uma decisão coletiva sobre a questão central do futuro da arca (v.4). Ao fazer assim, Crônicas apresenta um ideal de liderança para o povo de Deus bem diferente dos padrões autoritários bem conhecidos em tempos anti­

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55 Heb. qãhãl (“assem bléia”), ocorrendo nos v. 2, 4, pela prim eira vez ocorrendo em Crônicas (com uma forma verbal no v. 5) e mais de 30 vezes nos dois livros, é uma palavra usada em sentido representativo em Crônicas (cf. L. Coenen, NIDNTT, I, p. 293).

56 A palavra hebraica w ayyiw ã‘ats (v .l) ocorre em form a idêntica nas passagens sobre Josafá e Ezequias, e se tornou parte do vocabulário técnico da realeza em Crônicas.

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gos e modernos. É notável que em Crônicas, os reis que consultam seu povo também são aqueles que buscam Javé (cf. v.3; 2Cr 1.5, Salomão; 2Cr 20.3-4, Josafá; 2Cr 30.18; 31.21, Ezequias).

“Buscar” a Deus é o terceiro tema neste parágrafo (v.3), e estabelece um padrão para todo o reinado de Davi.57 Ele forma mais um passo fora do absolu- tismo como modelo de Crônicas para o reinado, porque “buscar” Javé requer constante dependência dele.

No versículo 2, o verbo que está por trás de enviemos... (c f NRSV, RSV) é importante nos capítulos 13— 15, mas é de significado incerto aqui (heb. prts, “romper” ; veja comentários sobre os v.9-12). E mais provável que ele tenha o sentido da NIV, NRSV, RSV (“enviemos... para todo lado”), embora possa ser tratado como parte da oração condicional e lido como uma palavra ligeiramente diferente, como na LXX (“e se é a vontade do S en h o r nosso Deus”, GNB, cf. BJ).58

b. O transporte da arca (13.5-8). A passagem de 2Samuel 6.2-11 é mantida com poucas mudanças nos versículos 6-14, e o início do relato em 2Samuel 6.1 também é preservado em forma esquemática no versículo 5. O tema “todo Israel” dos versículos 1-4 é continuado, mas agora nos versículos 5-6 ele é aplicado explicitamente ao transporte da arca. Desse modo, “todos os escolhidos de Israel” (2Sm 6.1) e “todo o povo que tinha consigo” (2Sm 6.2) agora se tomou simples­mente “todo o Israel” (v.5,6, RSV etc.). Essa inclusividade também é sublinhada pela descrição extremamente ampla das fronteiras de Israel. No lugar do usual “de Dãa Berseba'’ (e.g. lSm3.20; 2Sm3.10),59 Israel se estende do rio Sior, provavel­mente o braço mais oriental do Nilo,60 até Lebo de Hamate (Lebo- Hamate, NVI, REB, NEB, NRSV; “a entrada de Hamate”, ARA, RSV), provavelmente a modema Lebweh na bacia do vale de Beqa‘. Esse Israel estendido está baseado na visão de Josué da Terra Prometida, e aqui Davi é aquele que transformou a esperança em realidade(c/ Js 13.2-5).61 Baalá, na fronteira entre Judá eFilístia, onde a arca fora abandonada (= Baalá de Judá; 2Sm 6.2), parece ser entendido como um nome alternativo para Quiriate-Jearim, com base em Josué 15.9 (cf. Js 15.60; 18.14).

57 C. Begg, “ ‘Seeking Y ahw eh’ e o propósito de Crônicas” , Louvain Studies 9, 1982, p. 132-134.

58 Embora L. C. Allen considere a LXX somente um a paráfrase do TM (SVT 25, I, 1974, p. 128), REB e a versão da NEB, “se o Senhor nosso Deus abrir um caminho” é uma tentativa de reter o sentido usual do hebraico na oração condicional.

59 Nas duas únicas referências em Crônicas (a única obra pós-exílica onde a frase ocorre), o autor talvez revele sua orientação sulina por exclusivamente colocar a fronteira sul primei­ro, como aqui (“Berseba até D ã”, lC r 21.2; 2Cr 30.5; c f também 2Cr 19.4).

60 K. A. Kitchen, IBD, p. 430-431; ou o uádi el-A rish (M. Noth etc.).61 Sobre as questões históricas envolvidas, veja J. Bright, H istory o f Israel, rev. ed.

(Londres: SCM Press, 1972), p. 200s.; J. H. Hayes e J. M. M iller (eds.), Israelite and Judean History (Londres: SCM Press, 1977), p. 349-352.

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Duas atitudes contrastantes em relação à arca são reveladas. Por um lado, cia representa a majestosa presença de Javé, como na rara fórmula “que tem seu Irono entre os querubins” (v.6, NVI; c f 1 Sm 4.4; 2Sm 6.2; = ICr 13.6; 2Rs 19.15 = Is 37.16; SI 80.1; 99.1), e a expressão abreviada chamada pelo Nome (cf. 2Sm 6.2, NIV). A primeira frase indica que a arca pode ter sido vista como o trono vazio de Javé, e a última que a arca, como o templo, pertencia a Deus como sua morada Icrrena {cf. Dt 12.11; 1 Rs 8.29; 2Cr 7.16). Tal majestade foi reconhecida e celebra­da com toda força e música de Israel (v.8). Por outro lado, a consciência de majestade divina foi diminuída por estar a arca separada da Tenda (ainda nas proximidades de Gibeão - 1 Cr 16.39ss.; 21.29-30; 2Cr 1.3,13), e por seu transporte cm um carro novo (v.7). O uso de um transporte tão inadequado mostrou Davi descuidadamente continuando uma superstição filistéia (ISm 6.7), e deixando dc “buscar” a Deus (1 Cr 15.12-15, especialmente v. 13). Em outras palavras, Israel entrou em dificuldades porque deixou de reconhecer que o culto do verdadeiroI )eus significava que eles não mais poderiam simplesmente seguir as práticas pagãs contemporâneas.

c. A santidade mortal de Deus (13.9-12). O fato de o ato de Uzá com relação a arca ter sido punido com um a severidade aparentem ente injustificada freqüentemente têm confundido os leitores modernos, mas o incidente toma-se inteligível se lido em seus próprios termos. No Antigo Testamento, a santidade deI )eus possuía força genuína e podia ter incríveis efeitos físicos e espirituais (c f Lv lO.lss; Is 6.1 ss.). Muitas vezes estava associada a objetos cúlticos tais como a arca, de um modo que não é mais familiar à maioria dos leitores e que agora foi suplantado pela obra de Cristo (Hb 9.1-12). Além disso, os contemporâneos de Davi teriam alguma informação sobre tragédias similares que recentemente havi­am atingido tanto os filisteus (1 Sm 5) quanto israelitas de Bete-Semes (1 Sm 6.19.20). Suas experiências podiam ter dado um alerta de que estar em posse da arca não era garantia incondicional da bênção divina. Uzá morreu, portanto, porque nem ele nem os responsáveis pelos arranjos do transporte (incluindo Davi) reconheceram a real natureza da relação entre a arca e seu Deus, o Santo de Israel. Crônicas confirma que essa santidade dinâmica era mais pessoal e divina do que mágica ao simplificar “junto à arca de Deus” (2Sm 6.7) para perante Deus (v. 10).62

Dois resultados se seguiram do desastre da morte de Uzá. Davi passou de um estado de grande alegria ao estado de (cf. NVI) contrariado (v. 11) e teve medo (v. 12), demonstrando em um momento vital sua incapacidade de manter as eleva­das expectativas a ele associadas. O incidente foi principalmente lembrado, no entanto, como a ocasião da “irrupção” de Deus (Perez Uzá = irromper contra Uzá;

62 Sobre as questões textuais nessa seção, veja os comentários maiores. Embora o TM do capítulo 13 seja geralm ente considerado superior a seu equivalente em 2Sermão do Monte (especialm ente nos v. 8,10), não fica claro exatam ente o que aconteceu aos bois quando a arca caiu, ou por que o nome da eira é tão diferente daquele no texto mais antigo (v. 9).

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a palavra heb. para “irromper” é uma palavra-chave, aparecendo três vezes no v .ll , e também em 13.2; 14.11; 15.13). O Deus da arca era um Senhor soberano que não podia ser confinado, quer pela falibilidade humana quer por boas inten­ções. Um incidente semelhante no Novo Testamento fala sobre Ananias e Safira, quando o Espírito Santo irrompe inesperadamente em juízo sobre um crescente movimento espiritual (Atos 5.1-11). Que Deus é um “fogo consumidor” (Dt 4.24;9.3) é uma verdade do Novo Testamento (Hb 12.29) tanto quanto do Antigo.

d. A bênção incondicional de Deus (13.13-14). A irrupção de Deus conti­nua em uma bênção inesperada e irrestrita sobre Obede-Edom. Embora alguns o tenham igualado com o levita de mesmo nome do capítulo 15 (ver 15.18,21,24; também 16.5,38; 26.4ss.), a forma não israelita do nome e epíteto geteu (= habi­tante de Gate) faz dele mais provavelmente um filisteu.63 Aparentemente Davi pensou que já que a arca podia trazer mais problemas para Israel, os filisteus deveriam primeiro se expor ao risco, especialmente porque Deus não tinha hesi­tado antes em demonstrar seu descontentamento com os filisteus por causa da arca (cf. ISm 5). O resultado, no entanto, é tão inesperado quanto a tragédia precedente, e Davi está tão desinformado da natureza da misericórdia de Javé quanto estava de sua santidade. Davi pode já ter conquistado Gate (cf. 18.1), mas é antes Javé do que Davi que traz a bênção a seus habitantes, estendendo sua bondade a toda a casa de Obede-Edom (enfatizada pelo uso triplo do heb. bayit no v. 14 para família/casa/criadagem), mesmo sobre as gerações futuras (26.5). O tema das intenções pacíficas de Javé para com os vizinhos internacio­nais de Davi continua no capítulo 14.

ii. Bênçãos de Deus sobre o reinado de Davi (14.1-17)“Reconheceu Davi que o S en h o r o confirmara rei sobre Israel; porque por

amor de seu povo Israel, o seu reino se tinha exaltado muito” (14.2).14.1-16 — 2Samuel 5.11-25A posição do capítulo 14 é inesperada. Isso é em parte porque ele foi

removido de sua posição em 2Samuel seguindo a unção de Davi e a conquista de Jerusalém (= lC r 11.1 -9), e em parte porque as guerras filistéias (v.8-16) perma­necem separadas de outras ações militares de Davi, que incluem outros confli­tos com os filisteus ( lC r l l . l l - 2 5 e especialmente caps. 18— 20). A interpretação mais provável para a atual disposição é tratar o capítulo 14 como seqüência do capítulo 13, pelas seguintes razões:

63 A lternativam ente, “geteu ” é en tendido com o refe rên c ia à cidade lev ita de G ate- Rimom perto de Siquém (Js 21.25, lC r 6.69), mas só a distância de Quiriate-Jearim tom a essa localização menos provável que a Gate da Filístia (cf. R. K. Harrison, íntroduction to the Old Testament, Londres: Tyndale Press, 1969, p. 1.166).

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(a) O tema da “busca” no capítulo 13 continua a desempenhar um papel proeminente neste relato das guerras filistéias (v. 10,14). E le está relacionado a um padrão mais amplo, pelo qual a vitória militar e o reconhecimento internaci­onal são vistos como benefícios recebidos em decorrência de buscar a Deus (cf. comentário sobre o capítulo 13).

(b) O reinado de Davi sobre todo Israel, continuado dos capítulos 12— 13, agora é confirmado (v.2,8).

(c) O enfoque constante sobre Jerusalém por todo o capítulo 14 não apenas como a cidade conquistada por Davi (11.4-9), mas também como o local Davi recebe diversas bênçãos de Deus, marca Jerusalém como uma cidade preparada para a arca.64

(d) A “irrupção” de Deus em juízo (13.9-12) agora se toma uma “irrupção” na bênção não só para Israel como também para a casa de Obede-Edom (v .ll; Baal-Perazim significa “senhor que irrompe”). A arca pode finalmente prosse­guir para Jerusalém porque a misericórdia e bênção de Deus agora removeram e suplantaram as conseqüência da sua ira (cf. Jo 3.16-17).

Dois outros fatores ajudam a esclarecer o propósito do capítulo 14. No versículo 17, o principal acréscimo do cronista à sua fonte, todo o capítulo dá evidência do reconhecimento internacional do reino de Davi e da soberania de Deus. Em segundo lugar, a comparação com o capítulo 10 mostra que a derrota de Saul pelos filisteus foi agora completamente revertida. Isso fica explícito em vários pontos:

(a) Acasa de Davi é fértil (14.3-7), mas a de Saul acabou (10.6).(b) A atividade invasora dos filisteus (14.9,13) e o despojo dos mortos

(10.8,9), que são ambos expressos pelo mesmo verbo hebraico (pãshat), só po­dem ser enfrentados por Davi.

(c) Davi consulta a Deus (14.10,14), Saul não (10.13-14).(d) Davi conquista e queima os deuses filisteus (14.12), diante dos quais a

cabeça e a armadura de Saul foram apresentadas como troféus de guerra.(e) O reino de Saul foi transferido (10.14), mas o de Davi é confirmado (14.2,17).À luz de todos esses fatores, fica claro a partir do capítulo 14 que pela

primeira vez um reino foi estabelecido em Israel sob a bênção de Deus, tendo como resultado que Jerusalém é estabelecida no centro do reino. Nesse ambiente segu­ro a arca do poder de Deus agora pode ter o seu lugar de repouso (cf. 2Cr 6.41), revertendo assim a derrota catastrófica diante dos filisteus em Afeque, quando a arca foi capturada pela primeira vez (1 Sm 4).

Tudo isso teria lembrado à geração do próprio cronista que, apesar do exílio, Deus ainda desejava derramar bênçãos do seu reino sobre aqueles que buscas­sem sua orientação. O objetivo do capítulo, portanto, é muito mais amplo do que

64 Veja também P. Welten em A. H. J. Gunneweg e O. Kaiser (eds.), Textgemass (Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1979), p. 174s.

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glorificar Davi (Michaeli) ou mesmo sublinhar o papel salvador de Davi (Williamson). Um padrão semelhante emerge no Novo Testamento, embora seja grandemente ampliado e transformado. Como o reino de Deus foi finalmente estabelecido pela ressurreição e ascensão de Cristo, Deus derramou muitos dons como bênçãos (Ef 4.7-13). Uma diferença crucial, entretanto, é que as bênçãos tipicamente terrenas do Antigo Testamento são ultrapassadas, embora de modo nenhum obliteradas (cf. Mt 6.31-32), pela promessa infinitamente mais vasta do Novo Testamento de “toda sorte de bênção espiritual... em Cristo” (Ef 1.3; cf. Mt 6.33).

a. O palácio de Davi (14.1-2). Hirão I de Tiro (Crônicas em geral diz Hurão, embora o nome possivelmente seja uma abreviação de Ahirão) tem muito mais a ver com Salomão do que com Davi (e.g. 2Cr 2.11 -16; 9.21). Em geral pensa- se que ele pertence à segunda metade do reinado de Davi (c. 1000-960 a.C.), e a data do reinado de Hirão muitas vezes é baseada nas datas fornecidas por Albright de 969-936 a.C., contudo, outras propostas variam de 980-947 a.C. (Penuela, Cross) ou até mais cedo (Green), até tão tarde quanto 962-929 a.C. (Lipinski).65 Seu reconhecimento de Davi, se por comércio (GNB), tributo (Ackroyd), ou por outros motivos, demonstrou a bênção renovada de Javé para a “casa” (ver 1, NRSV, RSV, REB, NEB; palácio, GNB, N VI) e reino (v.2) de Davi, em antecipação das bênçãos da aliança de 17.10b e seguintes.

b. Os filhos de Davi (14.3-7). A lista dos treze nomes, repetida em lCrôni­cas 3.5-8, é incluída como uma continuação do tema da casa do versículo 1, em mais uma prefiguração da casa/dinastia do capítulo 17. Presume-se que Deus é a fonte dessa fertilidade, embora não necessariamente aprovando a poligamia de Davi. mais mulheres e mais filhos e filhas (v.3) presume o conhecimento do leitor da primeira lista em Hebrom (2Sm 3.2-5). Se, como é provável, os nomes são dados em ordem de nascimento, Salomão foi realmente o décimo na linhagem. A forma original de Beeliada (v.7), com sua primeira sílaba característica, era pro­vavelmente Baaliada, o texto presente sendo influenciado pela forma alternativa Eliada(2Sm5.16; 1&3.8).66

c. Guerras de Davi com os filisteus (14.8-16). Davi não foi uma grande ameaça aos filisteus enquanto Israel e Judá permaneciam divididos, mas um reino israelita unido (v.8) era outra coisa. Dessa maneira, os filisteus se ajunta- ram no vale de Refaim, provavelmente localizado a sudoeste de Jerusalém perto de Belém (o incidente de 11.15-20 é incorporado aqui). O primeiro ataque certa­mente se deu antes da entrada da arca em Jerusalém, embora seu momento preciso e a importância militar permaneçam incertos. A probabilidade é que ele

65 Cf. A. R. Green ‘D avid’s relations with Hiran’, in C. L. Meyers e M. 0 ’Connor (eds.), The Word o f the Lord Shall Go Forth (W inona Lake: E isenbrauns, 1983), p. 373-397.

66 Barthélemy, CTAT, p. 240s.

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seguiu a cerimônia de unção de Davi bem de perto (v.8), visto que os quartéis deI )avi nessa época ficavam em Adulão (1 Cr 11.15ss. = 2Sm 23.13ss.; cf. a declara­ção de que “Davi desceu à fortaleza” (2Sm 5.17) que não pode referir-se à colina sobre a qual Jerusalém se situa). Parece, portanto, preceder 11.4-6 e o capítulo 13 cronologicamente, embora outros tenham colocado esta batalha no período de (rês meses da estadia da arca com Obede-Edom (cf. 13.14), ou até depois da conquista de Jerusalém.67

Se a segunda batalha (v. 13-16) ocorreu no mesmo lugar e ocasião é muito menos claro. Pelo fato de o nome de um lugar ser omitido no versículo 13, e o nome Gibeão (2Sm 5.25 “Geba”) ser mencionado no versículo 16, muitos comen- laristas (e.g. Hertzberg, Michaeli) concluíram que o segundo conflito foi uma (entativa de reconquistar a cidade das mãos de Davi, e se deu na região de (iibeão, a noroeste de Jerusalém (cf. Is 28.21, onde o monte Perazim e Gibeão estão relacionados em uma aparente referência a essa batalha). Por outro lado, Refaim aparece em 2Samuel 5.22 e é talvez pressuposto aqui no versículo 13 (assim LXX, P), sugerindo uma localização semelhante para a primeira batalha. No entanto, a extensa perseguição em direção a Gezer (v. 16) no limite da planície costeira é uma indicação de que a batalha cobriu uma área muito mais ampla do que qualquer campo de batalha individual.

De maior importância para o cronista, no entanto, é a repetida ênfase de que nessas batalhas Davi buscava a direção de Deus (v. 10-14), e que Deus era o agente principal da vitória (Deus rompeu as fileiras, v .l l ; Deus saiu adiante de li, v.15). O cronista usa a frase consultou a Deus de maneira típica, como ele fez cm relação a Saul (IC r 10.13-14), ilustrando isso como o uma característica de (oda a orientação de vida de Davi (o mesmo verbo shã’al é utilizado a respeito de Davi em ISamuel 23.2,4; 30.8; 2Sm 2.1). A vitória inicial é entendida como uma irrupção divina comparável a um irresistível avanço de água (v. 11), tendo talvez cm mente as pesadas chuvas na região montanhosa (Hertzberg) ou “o rompi­mento de um vaso de barro cheio de água” (Tg.). Depois da primeira batalha, os deuses capturados foram queimados (v. 12), aludindo à fidelidade de Davi na aliança (cf. Dt 7.5,25).68 O tipo exato das árvores de bálsamo (v.14-15, NIV) é incerto. Outras possibilidades incluem a pereira (LXX), a amoreira (NVI, ARA), ou faia (REB, NEB). Curiosamente, o Targum prefigura a prática de tradução moderna, ao preferir o termo genérico “árvores”do que um termo técnico não identificável.

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67 É bem possível que esse primeiro conflito fosse um ataque bem menor de fronteira, cf. N. L. Tidwell, ‘The Philistine incursions into the Valley o f Rephaim ’, in J. A. Emerton (ed.), Studies in the H istorical Books o f the Old Testament, SV T 30, 1979, p. 190-212.

68 2Sm 5.21 tem “e D avi e seus hom ens os levaram ” . Para um a detalhada discussão dessas questões, incluindo a possibilidade de que o cronista usasse um texto diferente, cf. W illiam son, p. 118.

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d. A fa m a de Davi (14.17). Embora os elementos diferentes no capítulo 14 sejam provenientes de diversos períodos do reinado de Davi e não sejam listados cronologicamente, o reconhecimento internacional da fam a (NVI, lit. nome) de Davi e o temor de Javé são vistos como exemplos da bênção de Davi sob as alianças. Um grande nome para a dinastia davídica é uma bênção da aliança prefigurada aqui (cf. lC r 17.8) e também posteriormente desfrutada por Uzias (2Cr 26.8,15). Da mesma forma, a atividade de Javé que inspira o espanto foi reconhecida por outras nações até Asa (2Cr 14.13) e Josafá (2Cr 17.10; 20.29; cf. 19.7). As promessas contidas na aliança mosaica (Dt 2.25; 11.25) já estavam, portanto, sendo cumpridas por meio de Davi e sua dinastia.

iii. A arca completa sua jornada (15.1-29).“Assim, todo o Israel fez subir com júbilo a arca da Aliança do S e n h o r ”

(15.28).15.25-29-c f. 2Samuel6.12b-16A jornada final da arca para Jerusalém é completada nos capítulos 15—

16, embora a divisão do capítulo na realidade marque uma distinção útil entre o último estágio da jornada (cap. 15) e as celebrações em torno da chegada da arca (cap. 16).

O tema principal do capítulo 15 é facilmente discernido a partir da repetição de frase fazer subir (heb. leh a ‘lôt) a arca do S e n h o r (v . 3,12,14,25,28), que encontra eco no fato de que os levitas levam (heb. nasã’) a arca (v. 2,15,26,27). A jornada da casa de Obede-Edom (v.25; cf. 13.13-14) até a arca entrar... na Cidade de Davi (v.29, NRSV, RSV) é descrita em duas fases: versículos 1-15, preparando o povo e o lugar para a arca; versículos 16-29, celebrando a jornada com um culto alegre.

Essa estrutura basicamente simples é consistente com os objetivos e mé­todos do cronista, embora isso possa não ser tão óbvio. Um problema maior para muitos leitores é a forma em que a narrativa (v.1-3, 11-15, 25-29,) que é interrompida por listas repetitivas (v. 4-10,16-24). Por exemplo, bem no momento em que a arca é suspensa sobre os ombros dos levitas (v. 15), surgem listas aparentemente não relacionadas de músicos e porteiros. Como resultado, os comentaristas muitas vezes têm alegado que os versículos 4-10 e 16-24 são adições secundárias e que o próprio cronista contribuiu apenas com as porções narrativas (e.g. Noth, Rudolph, Myers).

O problema pode ser resolvido primeiramente com o reconhecimento de que esse relato, como outros em Crônicas, não está em ordem cronológica. Em segundo lugar, as listas realmente têm uma função importante ao antecipar a seção seguinte da narrativa. E mostrado que os levitas que se santificaram (v. 11 -15) têm uma linhagem válida (v.4-10; esse era um questão do momento no Israel pós-exílico, cf. Ed 2.59-63 = Ne 7.61-65), enquanto a presença e qualifica­ções dos músicos nos versículos 27-28 é explicada por sua seleção nos

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versículos 16-24.69 Em terceiro, a incomum organização sêxtupla dos levitas (v.4-10) e a relação não consecutiva entre o versículo 15 e o versículo 25 são indicações de que o próprio cronista foi amplamente responsável pela presen­te posição das passagens debatidas (Williamson).

O cronista parece ter sido particularmente inspirado pelo relato do segun­do estágio dajornada da arca para Jerusalém em 2Samuel 6.12-19. De fato, quatro lemas bem separados foram desenvolvidos a partir do relato mais antigo. Primei­ramente, a bênção muito evidente de Deus sobre a casa de Obede-Edom, que foi0 motivo original para se retomar a jornada da arca (2Sm 6.12), foi desenvolvida em uma descrição de bênção por todo o reinado de Davi (cap. 14). Em segundo1 ugar, o comentário original sobre a chegada segura da arca (2Sm 6.17=1 Cr 16.1) loi ampliado por mais uma declaração sobre a preparação de Davi de uma tenda especial para a arca (1 Cr 15.1). Em terceiro, o culto alegre de 2Samuel 6.14-16 foi estendido a um parágrafo completo (15.16-29). Todas essas mudanças chamam nlenção para a natureza especial da ocasião como de suprema importância e felicidade para Israel.

No entanto, o desenvolvimento principal de 2Samuel diz respeito ao lugar tios levitas. Uma referência de passagem a “os que levavam a arca” em 2Samuel6.13 tornou-se um relato detalhado dos levitas como carregadores da arca e líderes do culto (v. 2-3, 11-15, 25-29), com as listas levíticas também inclusas. Ainda que não seja possível sempre ter certeza de quais partes do material sobre os levitas derivam de fontes da era davídica e quais partes refletem os interesses provavelmente variados do período pós-exílico, os seguintes pontos podem ser afirmados nessa altura, (a) Muito pouco se sabe sobre a história dos levitas, especialmente no período pré-exílico (Nm 3— 4, 8,18 tratam de um breve período de transição, descrevendo antes ideais a serem atingidos do que um registro dos eventos), (b) Uma tradição pós-exílica consistente persiste, com a qual o versículo 16 está em perfeita harmonia, de que Davi instruiu os levitas acerca da condução da música e do louvor (e.g. Ne 12.24,36,46). (c) Uma mudança funda­mental no papel dos levitas foi exigida pela existência do templo. Uma vez que a arca foi depositada em Jerusalém, somente outras duas vezes os levitas tiveram que carregá-la (2Sm 15.24; lRs 8.1-9 = 2Cr 5.2-10; cf. Nm 4.1-33),70 e é para essa mudança que se chama atenção aqui.

É um ponto de discussão o quanto o cronista estava procurando assegurar que os cantores e porteiros de sua própria época fossem plenamente vistos como levitas, embora isso seja muitas vezes presumido pelos comentaristas. De fato, a

69 É notável que os dois principais grupos de listas e genealogias em Crônicas, a saber, ICr 1—9 e 23— 27, também têm uma função antecipatória, de forma que o uso dos v. 4-10, 16-24 nesse capítulo parece ser parte de um método mais amplo consistentemente usado pelo cronista.

70 Instruções para os levitas em Nm (esp. 4.1-33) enfatizam sua função de carregadores, líssa ênfase é m uito d ife ren te do in teresse do cron ista em sua função no culto, e seria sim plesm ente irrelevante no período pós-exílico.

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principal fonte para a história levítica, Neemias 9— 13, é ambivalente. No período pós-exílico algumas vezes, estes e outros grupos foram tratados separadamente (cf. Ne 7.39-45 = Ed 2.36-42; 10.28,39; 12.28-29,45-47). Mas na ocasião em os músicos pelo menos parecem estar misturados aos levitas (Ne 11.15-17; 12.24,27).71

No entanto, o objetivo principal do capítulo 15 não é descrever a história e organização dos levitas. Os dois temas centrais parecem ser a função de Davi em face dos levitas e a prioridade do culto em Israel. Davi é a pessoa principal­mente responsável pelo função transformada dos levitas (v. 3,11,16). Isto não significa elogiar o reinado de Davi, mas enfatizar sua estatura como um segundo Moisés, adaptando instruções originais de Moisés (e.g. Nm 3.5-9) a novas cir­cunstâncias. Este tema, contudo, é subsidiário ao objetivo primário de dar in­centivo específico sobre as atividades e o pessoal do culto de Israel. Israel negligenciara os levitas nos dias de Neemias (Ne 13.10), o que efetivamente significava que o próprio Deus estava sendo negligenciado. Portanto, é prová­vel que Crônicas estava estimulando tanto todo Israel (v.3,28) quanto os levitas (v.4-15) para assegurar que os preparativos adequados fossem feitas para o culto da nação. Caso adotassem as prioridades de Davi, os leitores de Crônicas poderiam ver a glória (lC r 16.24; cf. Ez 44.4) e a salvação (lC r 16.35) de Deus restauradas novamente a seu povo.

A vinda de Deus em Cristo é o desenvolvimento do Novo Testamento sobre a vinda de Deus a seu povo no simbolismo da arca. Se o arrependimento era a preparação adequada a ser feita para o advento de Deus sob a antiga aliança, o Novo Testamento não insiste em uma exigência menor. “Preparai o caminho do Senhor” (Mc 1.3) era o chamado de João Batista, inaugurando o ministério terreno de Cristo, sendo o mesmo apelo feito em relação à presença do Cristo ressurreto, na igreja primitiva. A carta aos Hebreus incentiva de maneira especial aos crentes a abandonar seus pecados (Hb 12.1) e oferecer a ele um sacrifício de louvor contínuo (Hb 13.15), para se aproximarem de Deus no lugar santíssimo (Hb 10.19-25).

a. Preparando um lugar para a arca (15.1-3). Os levitas (v.2) são apresen­tados de maneira repentina, sem nenhuma explicação de como Davi entendeu que sua ausência tinha sido um fator importante para o desastre do capítulo 13. No entanto, sua participação neste segundo estágio da jornada da arca já está impli­cado pela referência aos “carregadores” da arca em 2Samuel 6.13 (previamente ela havia sido “levada”, 2Sm 6.3). As funções principais dos levitas em Crônicas são combinadas sucintamente no versículo 2: levar a arca e “servir” (REB, NEB,

71 Sobre a possível função pré-exílica não-sacerdotal dos levitas, veja e.g. M. Haran, Temples and Temple Service (Oxford: C larendon Press, 1978), p. 92-99; R. Abba, IBD, p. 876-889; D. A. Hubbard, IBD, p. 1266-1271.

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(iNB); ficar ao serviço, (NVI) do S e n h o r - a transição da ênfase de um para outro é desenvolvida posteriormente no capítulo. A função de servir incluía uma varie­dade de deveres práticos, entre os quais Crônicas enfatiza sua liderança musical ( I Cr 6.32; 16.4; 2Cr 29.11). Ao realizar essas funções, e ao reconhecer que o S en h o r

os escolheu (v.2; 2Cr 29.11), a lei mosaica sobre os levitas, especialmente em sua forma deuteronômica, estava sendo cumprida no reinado de Davi (Dt 10.8; 18.5).

A tenda (v. 1; c f 16.1), também mencionada brevemente em 2Samuel (6.17; 7.2), não deve ser confundida com aquela em Gibeão (16.39; 21.29). Atenção lhe é dada provavelmente para demonstrar a completude dos preparativos de Davi como evidência do arrependimento por sua negligência anterior.

b. Preparando o povo para transportar a arca (15.4-10). As afiliações de lamília e o número total de participantes no transporte da arca são listados sob os líderes dos levitas não sacerdotais (v. 11). As três primeiras representam as divisões levíticas maiores (v.5-7), as três últimas estão agrupadas dentro dos coatitas (v.8-10; cf. Êx 6.18,22; Nm 3.19,30; ICr 6.18). O interesse real está nesses grupos menores, visto que os coatitas deveriam ser os responsáveis pelos cui­dados (Nm 3.31) e transporte (Nm 4.4-6,15; 7.9) da arca. Na seleção do grupo correto de levitas, a fidelidade de Davi à antiga lei é novamente sublinhada.

c. Preparando os líderes (15.11-15). O segundo estágio da preparação dos levitas era “santificar” a si mesmos (v. 12, 14, NRSV, RSV; lit “tomarem-se santos”). Essa era uma atividade importante para ficarem prontos para o serviço de Deus, e foi também empreendida pelos sacerdotes e levitas durante os reina­dos de Salomão (2Cr 5.11), Ezequias (2C r29 .5 ,15,34; 30.15,24; 31.18), e Josias (2Cr 35.6). Em cada caso, o favor de Deus depois veio sobre Israel.72 A santificação exigia separação de toda forma de “impureza” (Lv 16.19; 2Sm 11.4), e no Antigo Testamento podia incluir abstinência temporária de relações sexuais (Êx 19.15) roupa suja (Êx 19.14), e contato com cadáveres (Lv 21.1 -4), ou mais permanente­mente para os sacerdotes, não se casar com uma divorciada, prostituta, oui nesmo uma viú va (Lv 21.13-15).

Essa necessidade de santidade pessoal era uma parte essencial dos arranjos para transportar a arca como nos fora ordenado (v. 13), e, em contraste com a primeira vez (v. 13-15), Davi agora reconhecia a vontade de Deus nessa questão. Embora a explicação de Crônicas não tenha paralelo em Samuel, não há nadai nerentemente improvável em Davi submeter-se à autoridade escriturística de Moisés (v. 15; cf. v.13) no lugar de sua inclinação anterior para com a superstição pagã

72 Um a ordem para o povo ocorre por contraste somente uma vez em Crônicas, e só em um sentido negativo (2Cr 30.17). No restante do Antigo Testamento, a dimensão nacional de santificação era de m aior im portância (e.g. Js 3.5; 7.13; ISm 16.5; cf. Êx 19.10,14; Ez 44.19), o que sugere que para Crônicas os líderes tinham uma responsabilidade no ressurgi­mento da vida nacional.

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(v. 13: cf. 13.7-11). O fato de que a arca era permanentemente equipada com argolas e varas (Êx 25.12-15; 37.3-5) deveria em qualquer caso ter tomado bastante óbvio como ela deveria ser carregada. A importância da palavra de Deus reflete-se em uma variedade de alusões escriturais contrastantes. Deus demonstrou seu des­contentamento antes quando ele irrompeu contra Uzá (v. 13; cf. 13.11), e porque Israel não ter buscado a Deus (v. 13; cf. “não buscaram sua orientação”, REB, NEB; “não cultuaram”, GNB). A última frase também evoca as condições do reina­do de Saul (cf. 13.3; o verbo heb. “buscar”, é o mesmo em ambos os versículos). Agora,73 no entanto, Davi envolvia os sacerdotes e levitas (v. 14) como era exigido em Números 4.4-20, e os levitas levaram a arca sobre seus ombros (v. 15), de acordo com Números 7.9; Deuteronômio 10.8. Aobediência à palavra do S en h o r

(v. 15), portanto, removia a ira de Deus e se tomava a base da bênção renovada.

d. Os preparativos para uma alegre celebração (15.16-24). Uma série de breves listas de designações que dá informação de pano de fundo sobre diver­sos aspectos nos versículos 25-29. Por exemplo, o versículo 16 mostra que o propósito dessas nomeações era “levantar sons de alegria” (RSV), explicando assim o regozijo do versículo 25 (a palavra “alegria” [versões modernas “festa”, “regozijo”] está em uma posição enfática nos v. 16, 25, e é um dos temas princi­pais de Crônicas, cf. e.g. lC r 12.40; 2Cr 7.10; 20.27; 30.21-25). O papel dos levitas como “músicos” (cf. N VJ, REB, NEB; essa tradução de n fs h o f rím, v. 16,19,27, é preferível à mais comum “cantores”, cf. ARA, NRSV, RSV, em vista das ativida­des listadas nos v. 19-22) é destacado em antecipação no versículo 27.

As designações principais são dadas nos versículos 17-18, e divididas nos versículos 19-21 em uma orquestra levítica de três seções que compreendem címbalos, alaúdes e harpas (a identificação dos últimos dois instrumentos não é exata), antecipando o versículo 28.74 Os três líderes incluem Etã (v.17,19; cf.6.44), um sábio que é em geral identificado em outras partes com Jedutum (e.g. lC r 16.41-42; 25.1,6). Não se sabe se esses seriam nomes alternativos para a mesma pessoa ou pessoas diferentes. O papel de Quenanias (v.22,27) é obscu- recido por duas dificuldades de tradução. A tradução “instrutor”75 (cf. VA) é preferível a encarregado (NVI, REB, NEB, GNB), que é a leitura das VSS e alguns

73 Embora “buscar” possa ter a “arca” antes que “D eus” como um objeto direto alterna­tivo (também em 13.3; como NRSV, RSV em ambas as passagens), o uso de “buscar” em todo o Crônicas é contrário a essa interpretação. A expressão hebraica no v. 13Assim, traduzida como “porque vocês não estiveram presentes” em REB, NEB (cf. GNB), é muito abrupta e um verbo tem de ser suprido. A tradução de REB e NEB é a solução mais comum, mas o significado poderia também ser “porque vocês não a levaram” (NRSV, RSV; cf. RV, NVI), ou ainda “porque vocês não se santificaram ”.

74 Sobre os termos m usicais nos v. 20,21, veja os com entários maiores sobre Salmos e Crônicas.

75 Veja KB; também Rudolph, Keil.

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MSS hebraicos, e o contexto sugere antes “música” (REB, NEB, NRSV, RSV) do que “transporte” (Michaeli, cf. Tg.) ou “oráculo” (Vulg.) como a esfera de res­ponsabilidade de Quenanias. O número e identidade dos porteiros ou guardas das portas (v. 18,23,24) também é problemático. Alguns deles parecem ter dobra­do no serviço como músicos (cf. 9.33; 16.37-38). Todos os 13 nomes no versículo 18 podem ser contados como porteiros (restringir o último aos dois últimos nomes, como NRSV, RSV, REB, NEB, GNB, é uma interpretação baseada parcial­mente no v.24), embora a relação dos quatro porteiros nomeados nos versículos23-24 com aqueles do versículo 18 também não seja clara. Obede-Edom(v. 18,21, 24) é mais uma complicação. Ele é provavelmente, mas não necessariamente, o mesmo Obede-Edom o giteu (v.25; cf. 13.13-14; 26.4-8). Se a identificação for aceita, parece que o termo “levita” podia ter um sentido tanto funcional quanto genealógico, pelo menos durante a monarquia. Essa atitude liberal foi menos popular em tempos pós-exílicos. Os atos de sacrifício realizados na jornada (v.26; cf. 16.1-2) e o ressoar das trombetas (v.28; cf. 2Sm 6.15), instrumentos tradicionalmente tocadas pelos sacerdotes, são suficientes para explicar as refe­rências ocasionais nas listas dos sacerdotes (v. 4,11,24).76

e. A alegre celebração do povo (15.25-29). Embora baseado em 2Samuel6.12-16, este parágrafo reinterpreta o texto mais antigo profundamente. A mu­dança principal é que a vinda da arca para seu lugar (descrita aqui repetidamente como a arca da aliança, v. 25, 26, 28, 29) toma-se mais um ato coletivo de todo Israel (v.28; cf. v.3) do que uma expressão da fé pessoal de Davi. Davi, mencio­nado sozinho em 2Samuel 6.12, é agora acompanhado dos anciãos e comandan­tes de Israel (v.25) bem como dos levitas (v.26), e o sacrifício pessoal de Davi é substituído pelos sacrifícios dos representantes do povo. Semelhantemente, a ajuda de Deus (v.26), um tema aplicado a Davi em lCrônicas 12.18, agora é uma experiência coletiva dos levitas. Mesmo a menção do éfode de linho de Davi, que poderia ser entendido ou como a vestimenta sacerdotal semelhante a um avental em tempos pós-exílicos ou a versão pré-exílica mais leve (2Sm 6.14,20,22), é menos importante do que o fato de que Davi e os levitas estavam todos vestidos com linho fino (v.27).

A referência a Mical (v.29), muito mais breve que em 2Samuel 6.16,20-23, deve ser, portanto, entendida também coletivamente. Ela não somente menos­prezou Davi, mas também, só ela em Israel, ficou fora do sentimento de grande alegria e cuidado pela arca. “Exemplo de incredulidade” (Ackroyd), o isola­mento da filha de Saul foi mais uma demonstração da incapacidade da casa de Saul para liderar o povo de Deus.

76 Sobre a sugestão de que os v. 17-24 refletem arranjos contemporâneos para a procissão de um coro levítico conduzido por Quenanias que acom panhou a arca para Jerusalém , cf. Kleining, Song, p. 47-51.

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iv. Bênção, adoração e louvor (16.1-43).“Diga-se entre as nações: Reina o S e n h o r !” (16.31).16.1-3,43-c /2S am uel 6.17-2016.8-22-c f. Salmos 105.1-1516.23-33-ç /: Salmos 96.1-1316.34-36- c f Salmos 106.1,47-48

O objetivo primário dos capítulos 13— 15 é realizado pela chegada da arca a Jerusalém (v.l). Com o símbolo da presença de Deus restaurado ao centro da vida de seu povo, Israel está para receber uma bênção renovada (v.2,43), e uma transformação completa de seu padrão de culto.

O capítulo é disposto quiasticamente, com um salmo que celebra o reinado de Javé sobre as nações como a característica central:

a. 16.1-3, a bênção de Deus para cada israelitab. 16.4-7, levitas designados para o culto em Jerusalémc. 16.8-36, Salmo de louvorb l. 16.37-42, levitas e sacerdotes designados para o culto em Gibeãoa l . 16.43, bênção para a casa de Davi

As seções externas deste quiasma (a, a l) são tomadas de relatos muito mais breves em 2Samuel 6. As duas listas levíticas (b, b l) ao redor do salmo (c) são as únicas partes do capítulo 16 que não derivam de uma fonte prontamente identificável, mas presumivelmente são tomadas de registros oficiais do templo.

a. Bênçãos para todos os israelitas (16.1-3). A chegada da arca resulta em culto sacrificial renovado, e bênçãos e alimentos dados ao povo (na tenda, ver comentário em 15.1). As várias ofertas (v. 1-2) são trazidas pelo povo, antes que somente por Davi como em 2Samuel 6.17, consistente com a ênfase coletiva de15.25-29. Abençoar o povo (v.2; cf. v.43) era uma atividade em geral realizada pelos sacerdotes (cf. Dt 10.8; lCr23.13), mas também algumas vezes por outros líderes, principalmente Moisés (Êx 39.43). Além de Davi, sabe-se que Salomão foi o único outro rei israelita que exerceu esse privilégio ( IRs 8.14,55; cf. 2Cr 6.3). Portanto, Davi aparece em um papel semi-sacerdotal, mediando tanto bênçãos temporais (v.3) quanto espirituais. O segundo item sobre alimentação (conheci­do somente aqui e em 2Sm 6.19) era ou um bolo de comemoração ou uma “porção de carne” (REB, NEB, NRSV, RSV; cf. GNB, VA) - se a segunda opção está correta, era um ato especialmente generoso visto que a carne aparecia raramente no cardápio doméstico no antigo Israel.

b. Levitas designados em Jerusalém (16.4-7). As duas listas de designa­ções levíticas (aqui e v.37-42) se relacionam a disposições mais permanentes

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para o culto exigidas pela presença da arca em Jerusalém (note a palavra conti­nuamente na ARA, RSV nos v. 6, 37, 40; NVI, diariamente). Esses versículos descrevem um estágio de transição antes do templo ser concluído. Por enquan­to, as atividades e o pessoal do culto em Israel deveriam estar divididos entre a arca em Jerusalém (v. 4-7, 37-38) e o altar da tenda em Gibeão (v.39-42). Foi sugerido que essa separação autenticava o culto da sinagoga (Rothstein, Myers (‘lc.), mas todo o teor dos capítulos 13— 16 voltado para a centralização antes que para a dispersão do culto toma essa hipótese improvável. De fato, é mais provável que Crônicas esteja sublinhando o valor do uso da Escritura no sacri­fício de louvor lado a lado com os rituais exigidos (cf. v.8-36).

Os levitas nomeados (v.4) sob Asafe são tomados da lista em 15.17-21; os que estão nessa lista e não nomeados aqui estavam alocados em Gibeão (v.41, os mais escolhidos, que foram nominalmente designados). A tarefa dos levitas era ministrar (v.4; “servir”, NEB, REB; cf. v.37 e 15.2) diante da arca, e liderar com louvor em especial com música (v.4, cf. cap. 25). As três frases “invocar”, “agradecer”, e “louvar” (v.4, NRSV, RSV) devem ser compreendidas como uma referência coletiva às atividades do culto, de acordo com o costume hebreu de expressar abrangência de uma idéia por meio de uma série de sinônimos próxi­mos (cf. Pv 1.2-6 sobre sabedoria, SI 119 sobre lei) e não como atividades litúrgicas separadas (Michaeli, Curtis e Madsen) ou tipos de salmos (Ackroyd). A suges­tão de que o primeiro verbo (heb. hazkir, possivelmente “proclamar”) alude ao toque de trombetas dos sacerdotes (cf. Nm 10.9-10) também é improvável, visto que Davi está expressamente encarregando os levitas de novas tarefas.77 Os sacerdotes são tratados separadamente (v.6), já que a instrução de que eles deveriam tocar as trombetas (cf. 15.24) já era antiga (Nm 10.2,8-10). Seu papel em Jerusalém era primariamente chamar o povo para a adoração, especialmente nas festas (cf. Ed 3.10; SI 98.6), embora eles também pudessem ter acompanhado os sacrifícios mencionados no versículo 1 (cf. também v.39-40). As trombetas certa­mente têm uma função dupla no Novo Testamento ao anunciar a ressurreição final (ICo 15.52), e fazer parte do culto celestial (Ap 11.15; note-se a referência à arca celestial emAp 11.19).

c. O Senhor é rei (16.8-36). O salmo inserido aqui celebra na fé que assim como a arca vem para o centro da vida de Israel, assim Javé também vem (v.33; ou possivelmente “veio”) para seu povo. Uma crença na vinda de Deus a seu povo é reafirmada por todo o Antigo Testamento (e.g. Êx 19.9; 24.11; Is 6.1; 59.20). A vinda de Deus à terra na pessoa de Cristo, portanto, não era totalmente inespe­rada, ainda que tenha sofrido muita oposição. Aqui Deus vem como Rei (v.31) e Juiz (v.33). Ele é louvado por sua demonstrada fidelidade ao seu povo da aliança

77 Cf. Kleining, Song, p. 35-37.

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no passado (v.8-22), que dá ao salmista nova confiança para pedir a Deus para nos livrar das nações (v.35).

A introdução do TM ao salmo enfatiza que foi Davi quem “primeiro desig­nou” (NRSV, RSV) “ordenou” (REB, NEB) os levitas a cantar o louvor a Deus, ao invés de afirmar que esse salmo era realmente cantado na ocasião da chegada da arca, apesar dos dois pontos no final do versículo 7 da REB, NEB (esse salmo, da NIV, não está no heb.). A forma do salmo é quase que certamente compilação do próprio cronista, como é sugerido por seu hábito de adaptar material dos salmos a seus próprios objetivos (e.g. lC r 29.10-18; 2Cr 6.41-42; 20.21) e a presença de muitos dos temas característicos de Crônicas.78 Ele está natural e intimamente baseado em partes de três salmos, a saber, 105,96 e 106, mas um bom número de pequenas variações torna quase certo que o texto bíblico mais antigo foi reinterpretado e aplicado às circunstâncias do tempo do cronista. Portanto, é um erro tentar “corrigir” a texto à luz do que é encontrado no Saltério, como, por exemplo, na RSV.

A estrutura do salmo é baseada em suas três partes constituintes. As partes originais, no entanto, foram fundidas em um todo orgânico para formar um novo hino de louvor, como é evidente por pelo menos dois fatores. Introdu­ções regulares são proporcionadas para cada seção pela repetição de imperati­vos como Rendei graças! (v.8,34) e Cantai! (v.23, cf. v.9), enquanto elos natu­rais são formados entre as três seções por palavras como o nome de Deus (v. 8, 10,29,35), a santidade de Deus (v. 10,29,35), e as nações (v. 20,24, 31, 35).79

i. Promessas da aliança são cumpridas (16.8-22). A seção de abertura (v.8- 13) é uma série de convites para Israel louvar a Deus. Ela contém uma tripla referência a buscar a Deus (v. 10b-11), um tema importante em Crônicas (e. g. 1 Cr10.13-14; 13.3; 2Cr7.14), que se refere auma atitude mais dependente e vigilante no culto do que simplesmente procurar orientação na vida. A declaração temática do Salmo 105, que diz respeito à aliança, ocorre aqui nos versículos 14-18, dando-se atenção especial à promessa de Deus a respeito da terra. Considera-se que essa promessa é finalmente cumprida pela chegada da arca (v. 18), como um sinal da habitação permanente de Deus com Israel na Terra Prometida. Assim, Israel deve lembrar-se que a aliança (v. 15 - GNB, NRSV corretamente sustentam o imperativo do TM, mas NVI, REB, NEB, RSV harmonizam desnecessariamente com o salmo 105.8, “ele se lembra”). Lembrar no Antigo Testamento inclui agir sobre aquilo que é lembrado, e é muito mais do que um exercício puramente intelectual. A mudança de “Abraão” (SI 105.6) para Israel (v.13) é coerente com a preferência de Crônicas

78 Cf. T. C. Butler, ‘A forgotten passage from a forgotten era (1 Chr. XVI. 8-36)’, VT 28, 1978, p. 142-150, especialm ente p. 146ss.

79 Cf. A. E. H ill, ‘Patchow ork poetry or reasoned verse? C onnective s tru tu re in 1 Chronicles X V F, VT 33, p. 97-101.

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por este patriarca antes do que por Abraão e pelo nome Israel antes que por Jacó. A retratação dos patriarcas como poucos em número e vulneráveis a forças es­trangeiras (v. 19-20) deve ter sido especialmente evocativa para o Israel pós- cxílico, mas a presença de Deus e a sua proteção incluem mais uma promessa da aliança que não falha (v.21 -22). Meus ungidos e meus profetas (v.22) são descri­ções elevadas dos patriarcas, baseadas em sua eleição através da aliança e no status de Abraão como profeta (Gn 20.7).

ii. Deus é rei sobre toda a terra (16.23-33). A menção da proteção divina leva naturalmente a uma canção sobre o reinado universal de Deus (v.31). Como a seção precedente, ela começa com os convites à adoração, mas a grandeza do tema exige a mais ampla extensão possível. O louvor é oferecido pelos céus (v.31) e por toda a terra (v.23), incluindo o mar, os campos e as árvores (v.32-33) assim como as famílias das nações (v.28). O reinado de Deus é demonstrado em seus atos de salvação (v.23), da criação (v.26), e do juízo (v.33), e é particular­mente relevante para o Israel contemporâneo em sua supremacia sobre todos os deuses das nações (v.26). Visto que no mundo antigo a sorte das nações era identificada com a sorte de suas principais divindades, essa passagem é um desafio direto ao sentimento de futilidade de Israel sob o domínio imperial. Ela os incentiva à fé e esperança renovadas pela exaltação da grandeza do Deus que agora está presente no centro da vida nacional.80

Muitas diferenças textuais importantes ocorrem nessa seção. A mais subs­tancial é a ordem alterada de diversas frases dos versículos 30-31 (cf. SI 96.10-11), embora isto tenha pouco efeito sobre o significado e possa ser simplesmente uma variante textual. De maior interesse é a substituição de “seu santuário” (SI 96.6) e “em sua corte” (SI 96.8) por na sua habitação (v.27, NVI) e sua presença (v.29, NVI). Essas mudanças freqüentemente são explicadas como tentativas de evitar anacronismos anteriores à construção do templo, mas pode ser que elas simples­mente reflitam a linguagem do contexto. O “lugar” da arca já foi preparado (15.1,3; cf. 16.1), enquanto a frase repetida “perante Deus/o SENHOR/ele” (v. 1,27,33) está intimamente associada com o culto que acontecia “diante da arca” (v. 4,6,37). Na medida em que o cronista conduz seus leitores ao louvor, o lugar onde a arca ficava era menos importante do que aquele cuja presença ela representava.81

80 Foi proposto que a estrutura dos v. 23-26 é refletida em Ap 14.3, 6-7, e que vários elementos do vocabulário (LXX) de todo o salmo são enfatizados em Ap 14.7 (W. Atlink, ‘1 Chronicles 16.8-36 as Literaly Source for Revelation 14.6-7', Andrew s University Seminary Studies 22,1984, p. 187-196). M esm o se tal dependência fo sse confirm ada, entretanto , a passagem do N ovo T estam ento fo i ex tensam en te tran sfo rm ad a ao se r com binada com m aterial proveniente de outras fontes do A ntigo Testam ento.

81 A tradução d a NEB “ele firm ou” (v. 30) com base na LX X (L), é uma divergência desnecessária do T M “está firme” (RSV etc.). A frase, que tam bém ocorre em SI 93.1; 96.10, é tratada incoerentem ente na LXX, tanto quanto à raiz hebraica (algum as vezes tkn para o kün do TM ) como quanto ao m odo do verbo (cf. Barthélem y, CTAT, p. 456).

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iii. Oração por livramento (16.34-36). Essa breve seção final contém um elemento intercessório que afeta a interpretação de todo o salmo. Duas palavras-chave em hebraico no versículo 35 foram acrescentadas ao salmo original, a saber, yishênü (= “de nossa salvação”, BJ, NRSV, RSV; nosso Sal­vador, NVI, REB, NEB, GNB) e hatstsilênü (= “salva-nos”, NRSV, RSV, REB, NEB; “resgata-nos", GNB; livra-nos, NVI). Quando esses são combinados com os imperativos tomados do salmo 106.47, salva-nos (NVI, GNB, BJ; “livra- nos”, RSV, REB, NEB) e congrega-nos, pode-se ver que o versículo 35 se tornou um apelo ampliado por livramento ou salvação (heb. não distingue entre essas duas palavras).

As razões que levaram o cronista a fazer esse pedido repetido estão nos versículos 8-33 e nos eventos dos capítulos 13— 15. Ele primeiramente foi enco­rajado a louvar a Deus por suas maravilhas (v.9, cf. v.8-12), que nesse contexto deve se referir à grande obra de trazer a arca para Jerusalém (caps. 13— 15). Isso não é visto primariamente como realização de Davi, mas como o que ele [i.e. Deus] tem feito (v.8). Uma segunda razão para a oração é a ênfase dos salmos na supremacia de Deus sobre as nações (v. 24,26,28,33), expressa por meio de seus juízos (v. 12, 14; cf. v.33) ou vitórias em favor de Israel. No contexto, isso deve referir-se primariamente à derrota final dos filisteus (14.8-17). Crônicas, portanto, compreende pela fé que os eventos da chegada da arca (caps. 13,15) e as vitórias de Israel (cap. 14) são evidência da salvação de Deus (v.23).

Essas obras maravilhosas da salvação passada de Deus formam a base para fazer o presente de Israel conhecido a Deus. O pedido é por duas coisas. Primeiramente, o cronista pede a Deus para salvar/livrar seu povo novamente e para reuni-los das nações (v.35; cf. Dt 30.3). O que exatamente o cronista tem em mente não fica claro. Algumas vezes é proposto que a franqueza era politicamen­te desaconselhável, mas com mais probabilidade o sentido real da oração é que Israel possa reconquistar sua identidade perdida. Os leitores do cronista esta­vam bem conscientes de sua submissão a um poder imperial pagão, e necessita­vam acima de tudo serem novamente identificados como o povo do Deus que reina sobre as nações (v.31). Se isso envolvia um ajuntamento desde a Babilônia (cf. Ed 1— 2,7— 8) ou das aldeias dispersas de Judá (cf. lC r 9.2-34; Ne 7.4-5; 11.1- 36) não há como saber. O que importa é que Israel deve ter um novo entendimen­to de seu status como o povo da aliança de Deus (cf. v. 14-18).

O segundo pedido é que Israel possa ter um novo entendimento de Deus: e nos gloriemos em teu louvor (v.35). A libertação aconteceria somente pela intervenção de Deus. Novamente, detalhes não são dados, mas o cronis­ta insiste com Deus para que ele se mostre inequivocamente como o supremo Libertador/Salvador, e para agir de tal maneira que o louvor e a glória sejam dados somente a ele.

Todo o salmo, portanto, é muito mais que uma ilustração do culto litúrgico pós-exílico (Michaeli, Myers) ou um estabelecimento da identidade do culto

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de Jerusalém .82 É um apelo exaltado para que Deus restaure a sua própria identidade e a de seu povo, na geração do próprio cronista, realizando novos atos de salvação.

A relevância contemporânea do salmo é sublinhada para os leitores do cro­nista de duas outras maneiras. Uma é o uso do salmo 106.1,47-48 (= v.34-36 aqui) como uma oração para que Deus mantenha sua promessa feita em Jeremias 33.11 de que a terra de Israel será cheia com louvor após o exílio.83 Em segundo lugar, há indicações nos versículos 35-36 de que o salmo do cronista estava realmente sendo usado no culto contemporâneo pós-exílico. No lugar do jussivo (“que todo o povo diga”), e do imperativo (“louve”, NIV) do Salmo 106.48, há um novo imperativo, “digatambém” (v.35; NRSV, RSV; cf. JB, GNB; clamem, NVI; cf. REB, NEB), seguido pela declaração (v.36), todo o povo disse e “louvou” (GNB, NRSV). Parece, portanto, que o povo realmente respondeu e fez da oração do cronista a sua própria oração. Além disso, os levitas parecem ter tomado a frente nessa questão. As palavras dar graças (v.34,35) e “louvou” (v.36, NRSV, RSV) são um eco deliberado do versículo 4 e são uma demonstração prática das funções levíticas descritas ali. Se, como parece provável, o cronista é o verdadeiro compilador do salmo, então é possível que ele também deva ser contado entre os levitas.

Por fim, o salmo proporciona um firme fundamento para os capítulos seguin­tes. Ao afirmar que Deus manteve suas promessas de aliança com Abraão e Jacó (tf. v. 15-22), ele prepara o caminho para a aliança davídica do capítulo 17. Ao ligar essas promessas com a arca, o cronista mostra que este Deus está próximo de seu povo, e não distante dele. Acima de tudo, a associação da arca com a presença de Deus dá a confiança de que a presença de Deus também será encontrada no templo onde arca estará localizada (cf. ICr 21 — 2Cr 7). Israel pode, portanto, ficar confiante nas promessas de Deus e pode trazer oração e alegre louvor ao lugar da presença terrena de Deus. No Novo Testamento, é o Espírito Santo quem produz o sentimento da presença de Deus e abre acesso ao Pai no templo celestial (Ef 2.18). Os cristãos também devem ser encorajados a oferecer louvor e oração por meio de Jesus, seu próprio Sumo sacerdote (c f ICo 12.3; Ef 5.18-20; Hb 4.14-16).

d. Levitas designados em Jerusalém (16.37-38). Um resumo conclusivo sobre as disposições para o culto regular em Jerusalém, confirmando os versículos 4-7. O versículo 38 enfatiza a função de Obede-Edom, cujo melhor entendimento a vê como uma função dupla de músico e porteiro (cf. 15.18,21,24), embora TM seja desajeitado e incerto. Lê-se ali literalmente, “e Obede-Edom e seus irmãos” - possivelmente Jeías (cf. 15.24) ou Hosa caíram depois de Obede-Edom, ou então “seus” poderia se referir aos irmãos de Asafe no versículo 37.

82 T. C. Butler, ‘A forgotten passage from a fo rgo tten era (1 Chr. XVI 8-36)’, VT 28, 1978, p. 149

83 W. Beyerlin, ‘Der Nervus rerum in Psalm 106’, ZAW 86, 1974, p. 56-64. Observe a estreita correspondência entre Jr 33.11 e v.34 aqui (= SI 106.1).

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e. Levitas designados em Gibeão (16.39-42). Uma nota relativa às disposi­ções de Davi para o sacrifício regular em Gibeão (veja também o comentário sobre os v.4-7). A referência a Gibeão é inesperada, porque somente Salomão está asso­ciado ao culto ali nos textos pré-exílicos (IRs 3.5; 9.2; cf. 2Cr 1.3). No entanto, o sacrifício era oferecido a Javé em diversos altares durante a Monarquia Unida e depois, principalmente em Nobe que ficava a poucas milhas de Gibeão e era co­nhecida como “a cidade dos sacerdotes” (IS m 22.19;cf. lSm21.1s; IRs 1.39;2.28). Para uma discussão mais completa, veja Williamson, páginas 130-132. A história da Tenda (ou tabernáculo) também é obscura, visto que o Antigo Testamento coloca-a depois do período mosaico somente em Siló (Js 18.1; SI 78.60; cf. Jr 7.12) e provavelmente também em Nobe (ISm 21). Crônicas, no entanto, enfatiza a continuidade entre a Tenda de Moisés e este tabernáculo (lC r 21.29; 2Cr 1.3), que é realizada aqui através da fidelidade de Davi à lei escrita (cf. v.40).

Diversos problemas de tradução obscurecem os detalhes, notavelmente a falta de um verbo principal depois de deixou no versículo 37 e alguma repetição nos versículos 41-42, mas é claro que a passagem trata da designação dos sacerdotes (v.39-40), músicos (v.41-42a) e porteiros (v.42b; sobre os equivalen­tes levíticos em Jerusalém, veja v. 4-7, 37-38). O sacerdote (v.39) é o termo pré- exílico comum para o “sumo sacerdote” posterior (cf. ISm 14.19,36; 2Rs 11.9ss.). Zadoque, um dos leais partidários de Davi (2Sm 15.24ss.; IRs 1.8ss.; lC r 12.29;29.22), muitas vezes é acompanhado por Abiatar (e.g. 2Sm 15.35-36; lCr 15.11),e esse pode ser o caso aqui.

A essa lista de deveres aparentemente mundanos é adicionado um ingre­diente teológico vital: sua misericórdia dura para sempre (v.41). Essa frase, que ocorre também no salmo (v.34), é um refrão freqüente em Crônicas (e.g. 2Cr 5.13; 7.3; 20.21) mostrando que o tema central do louvor no Antigo Testamento é o amor de Deus. O cronista e não retrata Deus como um ritualista rígido e exigente, mas como alguém cujo amor sem fim sustenta toda a vida nacional. Ele certamen­te teria concordado com o dictum de Paulo, “O amor jamais acaba” (ICo 13.8).

f . Bênção para a casa de Davi (16.43). Uma frase breve de 2Samuel 6 .19b- 20a provavelmente funciona como uma conclusão a toda a narrativa da arca dos capítulos 13— 16. Toda a iniciativa terminou em bênção para cada lar israelita (cf.v.3). O episódio desagradável de Mical, esposa de Davi (2Sm 6.20b-23), simples­mente deixa de ser relevante, visto que a desonra da casa de Saul não precisa de mais provas (10.13-14; 13.3; 15.29). O reino de Deus está agora firmemente nas mãos de Davi, e está pronto para ser confirmado para sempre (cap. 17).

C. A aliança de Deus com Davi (17.1-27)Este capítulo está no centro da apresentação que o cronista faz da história.

As duas “palavras de Deus” sobre as quais toda sua obra é construída são lCrônicas 17.3-15 juntamente com 2Crônicas 7.11 -22. Aqui Davi recebe uma pro­

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messa divina sobre a “casa” de Deus, que na realidade são duas promessas em Lima. A primeira é uma dinastia que Deus construirá para Davi (v. 10b,14), e a segunda é um templo que o filho de Davi deve construir para Deus (v. 12). O significado do oráculo depende dos diversos significados do hebraico bayit, “casa”, que pode ser traduzido por “dinastia”, “templo”, e até “criadagem” (16.43).

A promessa de Deus surge de sua recusa em permitir a Davi construir um lemplo (v.4). Essa rejeição não pode ser devida à falta de importância do tem­plo, visto que a preparação para sua construção é o tema dominante no restan­te do relato do reinado de Davi (caps. 21— 29). Nem é uma preferência pelo filho de Davi como um “homem de paz e repouso” diante de Davi como um “homem de guerra” (22.8-9; 28.3). A questão é antes de prioridades, pois o templo feito pelo homem deve ser subordinado a uma casa construída por Deus a qual o homem nem mesmo tinha imaginado. Ambas as casas também devem ter suas fundações nas promessas de Deus, e não nas intenções eleva­das, embora mais limitadas de Davi. Em outras palavras, o interesse do cronis­ta no templo não é um fim em si mesmo, mas uma expressão de algo muito mais duradouro. O cronista não é simples ritualista, mas um teólogo genuíno da palavra de Deus.

A promessa de Deus aqui, algumas vezes chamada Oráculo Dinástico, forma a pedra angular do que é conhecido como a aliança davídica. As alian­ças, no antigo Oriente Próximo, eram solenes, estabeleciam acordos que ex­pressavam confiança e comprometimento mútuos, e eram usadas em relações tão variadas quanto um casamento (Jr 31.31-32) e um tratado internacional ( lRs 20.34). Qualquer aliança em que Deus esteja envolvido, no entanto, inva­riavelmente é baseada na vontade e ações de Deus. N o caso das alianças feitas com Abraão e Davi, o elemento da promessa divina é tão incrível que são muitas vezes conhecidas como alianças promissórias. Embora o termo “alian­ça” não seja realmente encontrado nem em 2Samuel 7 nem em 1 Crônicas 17, ele ocorre em diversos salmos (e.g 89.3,28) e em passagens proféticas (e.g. Is55.3) com base nesse oráculo. Segundo Samuel 7.11b-16 (= v.l0b-14 aqui) tem de fato gerado um a série de passagens que expõem uma esperança não apenas sobre um reino eterno, que vem de Davi, mas sobre um governo divino univer­sal de paz e justiça (e.g. Is 9.6-7; Jr 23.5-6; Ez 37.24-25; SI 2.6-7; 45.6; 132.11-12). Esse é o ambiente da esperança messiânica do Antigo Testamento, embora em Crônicas a abertura aos futuros desdobramentos m essiânicos esteja mais im ­plícita do que explícita.

Dois aspectos da interpretação da aliança são especialm ente importan­tes aqui: em primeiro lugar, a aliança davídica tem muito m ais proeminência em Crônicas do que em Samuel ou Reis, como é indicado p o r sua expansão em passagens como lCrônicas 22.6-13; 28.2-10; 2Cr 6 .4- 1 1,14-17; 7.17-18; 13.5,8; 21.7; 23.3, a maior parte das quais não tem paralelo nos liv ro s anteriores. Em segundo lugar, por uma série de pequenas mudanças de 2Sam uel 7, indivíduos

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específicos em implicações coletivas são destacadas. No curto prazo, há um foco muito mais nítido em Salomão como o descendente davídico individual que deve ser o construtor do templo (v. 12,14; ele é explicitamente nomeado em 22.9; 28.5). Nos tempos pós-exílicos, essa esperança foi de modo breve reavivada em Zorobabel, um descendente davídico (1 Cr 3.19) que construiu o Segundo Templo (Ed 3.8; 5.2; cf. Ag 1.12— 2.9; Zc 4.6-10). Mas o cronista também está interessado nas dimensões coletivas dessa aliança. Silenciosamente, mas sem hesitação, ele afirma que o Reino de Deus sobre a terra foi estabelecido através dessa aliança (v. 14), e no que diz respeito ao cronista, o reino divino ainda era uma realidade, apesar das privações do exílio e do domínio imperial estrangeiro de seu tempo (cf. lC r 28.5; 29.11,23; 2Cr 9.8). Talvez a característica mais impor­tante deste capítulo não seja, no entanto, a existência, mas a combinação dessas aplicações individuais e coletivas. Para o cronista um entendimento adequado da aliança envolvia reconhecer a presença do reino de Deus assim como a atividade de Deus em e através de um descendente individual de Davi que construiria o templo/casa de Deus. Portanto, apesar da fragilidade de Salomão e do fato de que condições no Israel pós-exílico eram uma zombaria de qualquer esperança real na restauração da monarquia de Davi, a crença do cronista na relevância contínua da promessa davídica, certamente significava que a sombra contemporânea de uma teocracia não tinha exaurido a vitalidade da promessa da aliança de Deus. O livro de Crônicas claramente aponta para a importância espe­cial de Salomão e para o anseio por um outro filho de Davi, que por fim recons­truiria a casa de Deus e estabeleceria o Reino de Deus para sempre (essa frase ocorre oito vezes em lC r 17).

Não é surpresa que os escritores do Novo Testamento tenham visto a aliança davídica em geral, e 2Samuel 7.14= lCrônicas 17.13 em particular, como algo cumprido e transformado por Jesus. Nele, eles viram a fusão do reino de Deus e do reino de Davi, a partir do nascimento de Jesus (Lc 1.32) até o estabelecimento final do reino na ressurreição (At 2.30), ascensão e exaltação de Jesus (Hb 1.5, citando 2Sm 7.14 = lC r 17.13). No entanto, Jesus não era apenas herdeiro de Davi. Davi, como Moisés, era apenas um servo na casa de Deus (Hb 3.1-5; Mt 22.41-46), mas Jesus é o filho fiel responsável por toda a casa (Hb 3.6) e o construtor do novo templo de Deus (Jo 2.20; Ef 2.19-22). Portanto, o pensamento bíblico aponta para a continuidade das duas casas de 2Samuel 7 = lCrônicas 17, não em sua forma original, mas na pessoa ressusci­tada de Jesus Cristo. O Reino de Deus em Cristo hoje ainda se defronta com o problema do cronista de que o povo de Deus tem de submeter-se a governos políticos que não reconhecem Jesus como Senhor. A fé, no entanto, não de­pendente do poder ou favor políticos, ou mesmo de instituições religiosas. Ela se baseia na realidade eterna da promessa de Deus a Davi, agora recebida em e através de Cristo. Deus ainda está construindo sua casa (Mt 16.18; E f 2.19- 22; lP e 2.4-10)!

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i. As boas intenções de Davi (17.1-2)l l A - 2 - c f 2Samuel 7.1-3O desejo de Davi de construir um templo (v. 1,4) é típico de muitos reis

antigos que procuravam uma expressão adequada para sua piedade e ao mesmo lempo um testemunho público de suas realizações.84 Era natural listar o apoio de Natã, principal conselheiro religioso de Davi, mas mesmo a vontade do rei e do profeta combinadas ficaram longe dos planos do próprio Deus (v.4). A resposta inicial de Natã (v.2) é um lembrete fascinante de que mesmo profetas corajosos (cf. 2Sm 12.1-14), como reis piedosos, nem sempre são intérpretes infalíveis da vontade de Deus.

A cláusula “descanso” é notavelmente omitida em comparação com 2Samuel7.1 (cf. uma mudança semelhante no v. 10 em comparação com 2Sm 7.11). Três razões principais foram propostas para isso: (i) salientar a íntima conexão entre a chegada da arca (caps. 13-16) e o templo; (ii) evitar um possível problema cronológico na referência às outras guerras de Davi no versículo 10 e capítulos 18— 20; e (iii) evitar conflitos desnecessários com a avaliação que Crônicas faz de Davi como um homem de guerra e Salomão como o “homem de paz e sosse­go” (22.9) por excelência. Embora todos esses argumentos tenham alguma vali­dade, o último é o mais persuasivo ao refletir a apresentação positiva de Davi feita pelo próprio cronista. O “descanso” de Davi era bastante real (cf. v.8), mas 110 máximo era apenas parcial.

ii. A promessa da aliança davídica (17.3-15).“Eu, o S en h o r, lhe estabelecerei uma dinastia” (17.10, NVI)17.3-15 — ç/i 2Samuel7.4-17

a. Introdução (17.3-4a). Fora essa introdução e a conclusão (v. 15), cada uma identificando as palavras de Natã como uma profecia dada por Deus, o oráculo recai naturalmente em duas seções preparatórias (v. 4b-6, 7-10a) antes de atingir seu auge nos versículos 10b-14.

b. D avi não deve construir um templo (17.4b-6). A declaração de abertu­ra, Não será você quem vai construir uma casa para mim (cf. GNB, REB, NEB), prepara o palco para os primeiros dois parágrafos e forma um efetivo contraste

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84 Veja e.g. S. Lackenbacher, Le roi bâtisseur (Paris: Éditions Recherche sur les civilisations, 1982); A. R. G rayson, Assyrian Royal Inscriptions, 2 (W iesbaden: Harrassowitz, 1976), # # 54-58, 139, 163, 437 etc. Embora fosse comum buscar aprovação divina para esses projetos de construção, e há exemplos onde essa permissão não foi concedida, “os relatos bíblicos são singulares no fa to de serem os únicos que se aventuram a exp licar por que a d iv indade respondeu n eg a tiv am en te ao ped ido de um rei que é de outra fo rm a v isto em um a luz positiva” (V. H urow itz, I Have Built You an Exalted House, JSOTS 115 (Sheffield: Sheffield Academic P ress , 1992), p. 165.

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para a frase inicial do terceiro parágrafo (“O S e n h o r construirá uma casa para você”, v. 10b, NRSV, RSV). A forma mais direta dessa proibição em Crônicas (cf. 2Sm 7.5) mostra a aprovação divina para um templo, mas não para Davi como seu construtor. Três razões ao todo são dadas para isso. A primeira é que por toda a existência de Israel, do êxodo aos juizes,85 nenhum lugar de culto assim foi exigido. O S en h o r era uma divindade itinerante, contente com uma tenda santu­ário86 cuja principal característica era sua presença com seu povo (cf. Êx 33.15- 16). Mesmo a estrutura em Siló, embora tivesse portas e umbrais (ISm 1.9; 3.15) e fosse chamada de templo (ISm 1.9; 3.3), era evidentemente bem menos preten­siosa que a “casa de cedro” que Davi tinha em mente (v. 1,6).

c. Deus manteve suas antigas promessas (17.7-10a). Uma segunda razão para o adiamento do templo foi lembrar a Davi que seu papel como príncipe de Israel (v.7; cf. 11.2) estava limitado pelos propósitos de Deus, e não pelos seus. Uma sucessão de verbos em primeira pessoa no passado (v.7-8a tomei-te...) e no tempo futuro (v. 8b- 10a, eu farei..., NVI) confirma que as realizações passadas de Davi e sua futura prosperidade são parte de uma extensão não sonhada da relação passada de Deus com Israel. Duas promessas em particular são reafirma­das a Davi - o grande nome de Abraão (v.8; cf. Gn 12.2 ;lC r 14.17) e um lugar para os descendentes deAbraãoe Moisés (v.9; cf. Gn 13.14-17; 15.18-21; Êx 3.8;6.8; Dt 11.24-25), chamados aqui meu povo Israel (v. 7,9,10). Em outras palavras, a aliança davídica representa um novo estágio no cumprimento das alianças abraâmica e mosaica.

d. Deus construirá uma casa para Davi (17.10b-14). A terceira e última razão para corrigir o propósito de Davi é que para o presente, Deus está dando mais prioridade a sua promessa de uma dinastia que à construção de um templo físico (v.lOb)87. Essa dinastia tem cinco características principais:

(a) Deus estabelecerá um reino e um trono para a descendência de Davi (v.11,12, 14). Essa é a maior promessa da aliança. A ambigüidade inerente na

85 “Líder” (v. 6, NVI; lit. “ju izes”) é superior a “tribos” (2Sermão do M onte 7.7), com LXX e a maioria dos comentaristas. Para uma defesa das diferentes leituras do TM em cada versículo, veja Barthélemy, CTAT, p. 245-246.

86 O TM no final do v. 5 é um pouco confuso, em bora o sentido global seja claro. A solução mais preferível, que rem onta pelo menos ao com entarista medieval Saadya, é que o significado pleno é mais implicado que escrito, a saber, “eu estava indo de tenda em tenda e de habitação em habitação” (cf. D. K. Reid, ‘The fragments of the commentary on Isaiah by Saadya G aon’, tese de Ph.D. não publicada, University o f Wales, 1990, p. 188; c f também Tg.). Isso é mais fácil que fazer adições ao TM (e.g. Rudolph, Dillard).

87 A mudança no v. 10b, “Eu declaro”, de “Javé declara” em 2Sm 7.11, provavelmente é mais bem explicada como uma continuação mais suave dos verbos na primeira pessoa em v. 7-10 e 11-14 (cf. Mosis, UTCG, p. 82). NEB, “Eu te farei grande” , segue a LXX combinando duas palavras no TM, mas deve ser rejeitada como eco ineficiente do v. 8b (cf. Rudolph).

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palavra hebraica zera ‘ (v. 11), como seus equivalentes em português semente (ARC)/descendente (ARA, NRSV, RSV), significa que ela pode se aplicar à di­nastia como um todo e também aos seus membros individuais (cf. o uso da inesmapalavraemGn3.15; 12.7; 17.7,16).

(b) Um dos descendentes de Davi construirá o templo desejado que será um sinal de que o trono ou reino de Davi foi divinamente estabelecido (v.12). Como a circuncisão no caso da aliança abraâmica (Gn 17), construir o templo é o ato de obediência humana pela qual a promessa da aliança de Deus é aceita e confirmada. Assim o templo não glorificará o nome de Davi, mas o de Deus.

(c) Os herdeiros de Davi desfrutarão do status privilegiado de filhos adotados de Deus, tendo o próprio Javé como seu Pai adotivo (v. 13). Essa promessa que foi dada originalmente a Israel (Êx 4.22; cf. Is 55.3) é agora concen­trada na linhagem davídica (c f SI 2.7; 89.27). No final ela leva a Jesus, em quem essa promessa é final e perfeitamente cumprida. À luz da ressurreição e ascen­são de Jesus, a igreja primitiva sempre considerou essa como a suprema promes­sa do A ntigo Testam ento concernente a Jesus com o o F ilho de Deus, freqüentemente referindo-se a essa passagem e a outras passagens semelhan- les (e.g. At 2.30; 13.22-23, 33-34; Rm 1.3-4; Hb 1.5, 8-9; 5.5). Através de Jesus também, ela tem sido incrivelmente estendida por adoção a cada crente, de inaneira que Jesus é o “primogênito entre muitos irmãos (Rm 8.29; cf. v. 15-17).

(d) A casa de Davi será eterna, firmada em última instância no amor de Deus. O futuro do reino de Davi será completamente diferente da incerteza e desastre que recaiu sobre o reinado de Saul (v. 13). Em princípio, é surpreendente que a cláusula em 2Samuel 7 .14b sobre a pecaminosidade humana e a disciplina divina tenha sido descartada. A razão, no entanto, não é um desconhecimento da extensão do fracasso humano na linhagem davídica ou porque a obediência do rei não fosse mais uma prioridade. Davi e Salomão ainda tinham a obrigação de obedecer as instruções de Deus (lC r 22 . 12- 13; 28.8-9), e o cronista não oculta seus fracassos (veja lCr 13.11-12; 15.13; 21 -1,7-8,17 sobre Davi; 2C r9.29,10.4,10- 11,14 sobre Salomão), assim como não esconde os de seus sucessores no trono. Ao contrário, os repetidos fracassos da linhagem de Davi em atender às condi­ções da aliança servem somente para enfatizar o compromisso incondicional de Deus para com a casa de Davi. Este, de fato, é o foco da atenção do cronista, confirmando que mesmo o pecado humano não pode, em última instância, minar ou desviar os propósitos declarados de Deus.

(e) O mais incrível desenvolvimento da aliança davídica em Crônicas é sua associação explícita com o reino de Deus (v. 14). A evidência para isso à primeira vista parece bastante fraca, pois envolve m udanças de uma única consoante hebraica em duas palavras em 2Samuel 7 .1 6 - minha casa e meu reino em lugar de “tua casa e teu reino”. Embora isto possa ser explicado como uma variante textual na fonte do cronista, tal solução é insatisfatória à luz de outros ajustes nesse versículo e de outras passagens em Crônicas onde a mesma idéia está claramente

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presente (especialmente 1 Cr 28.5; 29.23; 2Cr 13.8; c f ICr 10.14; 29.11; 2Cr 9.8). Embora o Antigo Testamento muitas vezes se refira a Javé como rei (e.g. Êx 15.18; Is 6.5; SI 47.3; 99.2), só raramente, e quase que só em Salmos, Crônicas e Daniel, ele especificamente menciona o reino de Javé (e.g. SI 45.6; 103.19; 145.11-13 \c f Dn 4.3; Ob 21). É somente em Crônicas, no entanto, (e possivelmente SI 45.6), que vêo reino de Deus expresso diretamente no reino davídico. Essa é uma contribuição significativa ao desenvolvimento da idéia do reino de Deus, especialmente à luz da compreensão do evangelho da revelação do rendem na pessoa do filho de Davi chamado Jesus (e.g. Mt 12.28; Lc 12.32; 17.20-21).88

Esses vários elementos estão todos relacionados às implicações de longo prazo da aliança. No versículo 14, entretanto, uma promessa da aliança aplica-se diretamente a um indivíduo, novamente com base em pequenas mudanças de 2Samuel 7.16, “eu o confirmarei... seu trono” (NRSV, RSV) em lugar de “tua casa será confirmada” e “teu trono” (cf. esse me eclificará..., v. 12 e 2Sm 7.13). Por outro lado, a ênfase individual nas versões modernas do versículo 11, um de teus próprios filhos (NVI, REB, NEB, NRSV: cf. GNB; lit. “alguém que virá de seus filhos”), provavelmente não é justificada (ver Williamson p. 135). Embora o elemento messiânico não esteja inteiramente ausente (ver acima), é bastante restrito (contra e.g. Keil, von Rad, Curtis e Madsen). O oráculo vê primeiramente a Salomão como o indivíduo por meio de quem a aliança deve ser estabelecida, e é por isso também que Davi ora (v.23-24).

e. Conclusão (17.15 ). Leia comentário da seção 17.3-4a

iii. A oração de Davi (17.16-27)“Agora, pois, ó S e n h o r , a palavra que disseste... seja estabelecida para

sempre” (17.23)17.16-27 - cf. 2Samuel 7.18-29

A resposta de Davi ilustra dois aspectos centrais do que o cronista pensa da oração. Primeiramente, as promessas incondicionais de Deus não devem ser recebidas casualmente, como se suas vantagens fossem automáticas, mas com fé submissa e ação de graças. Em segundo lugar, para o cronista, a fé é muitas vezes expressa por meio da oração, principalmente nos exemplos de Davi (tam­bém 29. 10-19), Salomão (2Cr 1.8-10; 6.14-42), Josafá (2Cr 20.6-12), e Ezequias (2Cr 30.18-20; 32.20,24). As orações são muitas vezes estratégicas em Crônicas, espe­cialmente as que introduzem e concluem as narrativas da construção do templo dos reinados de Davi e Salomão. Crônicas faz uma conexão entre a oração e a construção do templo mais estreita do que Samuel ou Reis (ICr 29.10-19 não tem paralelo), e parece ter especificamente incentivado, no período pós-exílico, o

88 Cf. M.J. Selman, ‘The Kingdom of God in the Old Testam ent’, TB 40.2, 1989, p. 161-183.

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pensamento sobre o templo como uma “casa de oração” (c f Is 56.7). Como no salmo de oração no capítulo 16 e o próprio Pai Nosso, os pedidos ficam para o fim da oração (v.23-27; cf. Mt 6.11-13). A precedência é dada ao louvor pela generosidade incrível e imerecida de Deus.

a. Louvor pela singularidade de Deus (17.16-22). Três questões retóri­cas, quem eu sou? (v. 16), “o que é minha casa?” (v. 16, NRSV, RSV etc.), e quem há como o teu povo de Israel? (v.21), e uma declaração de fé, ninguém há semelhante a ti, e não há nenhum Deus além de ti (v.20), formam a espinha dorsal da primeira parte desta oração. A oração não é apenas uma resposta religiosa convencional às boas novas, pois a palavra de Deus ocasionou uma mudança notável na perspectiva de Davi. Ele tem uma nova percepção de sua dependência (cf. v .l), e as perguntas semelhantes na oração de 29.14 mostram que isto não era uma fase passageira. Ainda mais importante, uma consciência de Deus emergiu como algo não somente único, mas sem nenhum rival (v.20). As duas declarações no versículo 20 ocorrem em outras partes - não há ninguém semelhante a ti, Ó S e n h o r , nas orações de Asa (2Cr 14.11, versões modernas; v. 10, TM), Josafá (2Cr 20.6) e Jeremias (Jr 10.6-7); não há Deus senão o Senhor tanto na oração (SI 18.32; Is 64.4) quanto na fala divina (Is 45.51,21; Os 13.4). O desenvolvimento em direção ao monoteísmo no Antigo Testamento é completamente ímpar, mas, à luz dessas referências, a aliança davídica deve ser colocada ao lado dos poderosos atos de salvação de Deus no êxodo (Os 13.4) e no retomo do exílio (Is 45.5,21) como a maior evidência para a incomparabilidade de Javé (cf. v.24).

A oração confirma que as promessas da aliança também são uma conti­nuação das promessas eternas de Deus para seu povo na aliança mosaica (v.21- 22; cf. v.7-8). Ao ecoar a fórmula da aliança, estabeleceste a teu povo de Israel para sempre, e tu, ó S e n h o r , te fizeste o seu Deus (v.22), o passado é retomado (Ex 6.7; Lv 26.12), o juízo do exOio perdoado (Os 1.8-9; Jr 31.33), e o futuro em C Visto é antecipado (Rm 9.25-26; Ap 21.3). Dificuldades de tradução ocorrem em diversos pontos nesses versículos, como claramente demonstra uma compara­ção nas versões modernas dos versículos 17, 19 e 21. A situação não é melhora­da por problemas semelhantes nos versículos correspondentes de 2Samuel 7, e nenhum consenso surgiu com respeito a uma solução, embora o sentido global seja só superficialmente afetado. Para uma discussão dessas dificuldades, veja Rudolph, Curtis e Madsen, Michaeli.89

89 A freqüente sugestão de que se leia no v. 19 “teu servo, teu cão” em lugar de “teu servo, r segundo a tua vontade” (e.g. M yers, Rudolph, Braun; cf. O. Margalith, ‘K eleb : homonym nr m etaphor?’ VT 33, 1983, p. 491-495) não tem base. Embora a expressão seja estabelecida i-m cananita e no hebraico não-bíblico bem como no Antigo Testamento (e.g. 2Sm 9.8; 2Rs X.I3), ela não faria sentido se aplicada à fonte em 2Sm 7.21.

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b. Pedido para que Deus confirme suas promessas (17.23-27). Dois pedidos aparecem na última parte da oração. O primeiro é que a “Palavra” de Deus (ARA, NRSV, RSV) promessa (NVI, GNB) seja estabelecida para sempre (v.23). Davi reconhece que o dom da promessa e seu futuro dependem de Deus, embora de agora em diante seu êxito ou fracasso estará ligado à fé e à obediência mostradas pelos descendentes de Davi. A aliança davídica é em geral descrita neste capítulo como a palavra/promessa (v.3,23; cf. v.6), mas é também chamada de esta grandeza (v. 19), “essa boa coisa” (v.26, NRSV, RSV), e a revelação de Deus (v.25; cf. v. 15). O versículo 23 contém um bom exemplo de que a oração nem sempre muda as circunstâncias, mas sim a atitude da pessoa que ora - “faze o que disseste” (GNB) ou como prometeste (NVI) está em direta oposição ao conselho original de Natã ao rei (Faze tudo quanto está no teu coração, v.2).

O segundo pedido é que o nome de Deus (“fama”, GNB, REB, NEB) seja exaltado para sempre (v.24, NRSV, RSV). Davi mostrou compreensível interesse humano nas implicações da palavra divina para si mesmo e sua casa (v. 16-19,23), mas a oração termina, como aproxima começará (29.10-13), com um inte­resse pela honra de Deus. A grandeza do nome de Deus através de ambas as “casas” é no final mais importante para Davi do que a promessa de um grande nome para si mesmo (cf. v.8).

Finalmente, esses pedidos são baseados na confiança de que Deus já começou responder a oração de Davi. A promessa da aliança de Deus é duas vezes vista como evidência da bênção de Deus, e este é o fundamento real da esperança de que a bênção não será perdida no futuro (tu consentiste em abençoar..., tu... a abençoaste, v.21 - a citação da bênção passada é muito mais forte do que em 2Sm 7.29). A última frase do versículo 27, que agora se refere mais a Javé do que à casa de Davi, provavelmente deve ser traduzida como “Porque tu, ó Javé, tens abençoado e tu és bendito para sempre”, contrariando as versões modernas. Em última análise, somente Deus deve ser louvado.

D. O império de Davi (18.1— 20.8).Os capítulos 18—20 contêm um perfil de como se deu a criação de um

império israelita por meio de Davi. Essa realização foi principalmente o resulta­do de expansão externa através das vitórias militares, embora uma breve passa­gem (18.14-17) mostre que a reorganização interna também teve influência. O material é claramente seletivo, com poucos detalhes e pouca análise das causas e progresso dos conflitos individuais. O sumário em 18.11 baseia-se em informa­ção diferente que vem da narrativa principal, mencionando os amalequitas pela primeira vez (mas cf. ISm 30), mas excluindo os arameus que de outro modo dominam o relato (cf. 18.3-8; 19.6-9). Outros grupos sujeitos aDavi são omitidos inteiramente, em especial os jebuseus (11.4-6; cf. 2Sm 5.6-8) e os cananeus a

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quem Davi incorporou a Israel (c f 2Cr 8.7-8). A versão de Crônicas combina relatos das vitórias de Davi espalhados por todo 2Samuel 8-23, como mostra a seguinte comparação:90

2 Sam uel 1 C rônicas( 'ap. 8 Vitórias de Davi sobre as nações = cap. 18Cap. 9 Bondade de Davi para com o neto

de Saul, Mefibosete

Caps. 10.1— 11.1 G uerra am onita = cap. 19.1— 20.1

Caps. 11.2— 12.25 O caso de Bate-Seba

Caps 12.26-31 Fim da guerra am onita = cap. 20.1-3

Caps. 13— 14 Am non e Absalão

Caps 15— 20 Rebeliões de Absalão e Seba

Cap. 21 .1 -14 M orte dos descendentes de Saul

Cap. 21 .15-22 Heroísmo dos homens de Davi = 20.4-8 (contracontra quatro filisteus três filisteus)

Cap. 22 .1— 23.7 Palavras de agradecimento de Davi e suas últimas palavras

Cap. 23 .8 -39 Os valentes de Davi (= cap. 11.10-47)

À primeira vista, este é um relato um tanto artificial dos êxitos militares de Davi, que foi produzido evitando-se as narrativas interessantes e aquelas me­nos favoráveis ao mesmo. Esse ponto de vista, no entanto, é muito impreciso visto que os elementos positivos como o nascimento de Salomão, a magnanimi­dade de Davi para com a família de Saul, e os salmos de Davi também são omitidos. Também uma vitória previamente contada entre as realizações de Davi c agora creditada a um de seus generais (18.12-13; cf. 2Sm 8.13-14). A razão disso c que Crônicas procura centrar-se na relação das guerras de Davi (caps. 18— 20) com a aliança davídica (cap. 17) e os preparativos para o templo (caps. 21— 29). Considerações pessoais como a adulação de Davi ou o mero escárnio naciona­lista para com os vizinhos derrotados ficam de fora, e tampouco a objetividade de 2Samuel é abandonada.

As duas dimensões mais importantes das guerras de Davi emergem de seu presente contexto. Primeiramente, a aliança davídica (cap. 17) já está sendo par­cialmente cumprida:

(a) Os inimigos de Davi são submetidos/derrotados (o mesmo verbo heb. hiknia' é usado em 17.10; 18.1; 20.4; cf. também 18.2,3,5,9,10,12; 19.16, 19; 20 .1 ,4 ,5 ,7 ,8).

(b) O nome/fama de Davi (17.8; cf. 14.17) chega às nações cujos reis devem fazer a paz (19.19; saudar, 18.10, vem da mesma raiz heb.) e congratular-se com cie (18.10);

90 Com base em Michaeli, p. 107.

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(c) pela derrota de diversos vizinhos de Israel, especialmente seus inimigos tradicionais, os filisteus, a terra se calma (17.9; 18.1; 20.4-8; cf. 11.12-19; 14.8-16).

Como resultado, os preparativos para o templo (caps. 21—29) tomam um novo significado:

(a) As guerras de Davi são o penúltimo estágio pelo qual seu trono e reino são estabelecidos (cf. 17.11,12, 14), sendo o processo completado pela constru­ção do templo de Salomão (17.11 -12; 22.6-10);

(b) O “descanso” ou paz que era uma precondição para se construir o templo (22.8-9; veja também comentário sobre 17.1) é afinal reconhecido;

(c) É explicado por que Davi como um “homem de guerra” é pessoalmen­te incapaz de construir o templo (22.8-9; 28.3). Davi não é culpado por isso (contra Rudolph, p. 139). Na verdade, o templo será adiado até que Davi tenha estabelecido a paz mediante as vitórias que foram vistas como obra do próprio Deus (18.6,13);

(d) Uma frase adicional em 18.8, Salomão usou para fazer o tanque de bronze, os pilares e vários artigos de bronze, sublinha a dedicação que Davi fez parao templo dos espólios de guerra (18.11= 2Sm 8.11-12; c f lCr 26.26-28; 2Cr 5.1). Uma comparação entre Davi e Josué provavelmente também é pretendida (Js 6.24; veja também comentários introdutórios).

i. As vitórias de Davi sobre as nações (18.1-17)“O S en h o r dava a Davi vitória em toda parte aonde ele ia” (18.6,13)18.1-17-#2Sam uel 8.1-18

Israel alcançou o status de império pela primeira e única vez mediante as vitórias de Davi (v. 1-13) e a reorganização interna de Israel (v.14-17). A frase repetida, retida de 2Samuel, o S e n h o r concedia a vitória a Davi (heb. wayyôsha', lit. “ele salvou”) em toda parte a que ele ia (v. 6,13) proporciona o tema global. Referências semelhantes à atividade e à vitória salvadora de Deus para Israel são acrescentadas em lCrônicas 16.35; 2Crônicas 20.9,17; 32.22 (cf. lC r 11.14; 16.23; 2Cr 6.41 onde o mesmo pensamento já está presente no material mais antigo). A verdade de que Deus continua a salvar e a livrar seu povo de acordo com sua promessa (cf. 17.8-10) é claramente importante em Crônicas. Os acrésci­mos do cronista em 1 Crônicas 16.35 já sublinharam sua oração para sua própria época para que Deus libertasse seu povo do domínio dos impérios estrangeiros. Portanto, as vitórias de Davi são um aspecto da resposta de Deus àquela ora­ção, como são exemplos semelhantes nos reinados de Josafá (2Cr 20.9,17) e Ezequias (2Cr 32.22). Em cada caso, a vitória de Deus é sustentada pelo “descan­so” que o templo permanentemente simbolizava (2Cr 20.30; 32.22, LXX, Vulg., veja NRSV, RSV, cf. REB, NEB, GNB, B J).

No contexto do Novo Testamento, onde a vitória e a libertação de Deus são desmilitarizadas e desnacionalizadas, espera-se, não obstante, que sejam

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parte da experiência do crente (cf. 2Co 1.10;2Tm4.17-18).No entanto, como no caso de Davi, não se trata de um direito automático, mas um dom gratuito e dependente da promessa e ação soberana de Deus (2Co 2.14), a ser recebido pela fé (1 Jo 5.14) e oração (2Co 10.3-5; Ef 6.10-20).

A extensão e influência de Israel sob Davi não foram ultrapassadas em nenhum outro momento de sua história. O domínio de Davi estendia-se para além das tradicionais fronteiras do norte de Dã (e.g. 2Sm 3.10) ou Lebo Hamate (ICr 13.5) para a própria Hamate (v.9-10)eatéorioEufrates (v.3; cf. 19.16). Isso ligava Davi diretamente às promessas dadas a Abraão (Gn 15.18) e Moisés (Êx 23.31; Dt 1.7; 11.24; cf. Js 1.3-4; ICr 13.5).91 Toda a área, no entanto, não estava sob ocupação israelita. Em muitas regiões, especialmente no norte, Davi teve de se contentar em receber tributos (v. 2,6) ou selar tratados de amizade (v. 10; cf.I Rs 5.1). Contudo, as vitórias no sul (filisteus, Edom, Amaleque), leste (Moabe, Amom), assim como no norte (estados arameus) garantiam que Davi chegasse mais próximo do que qualquer outro líder israelita de completar a tarefa que foi dada inicialmente a Moisés e Josué. Dos sucessores de Davi, somente Salomão exerceu influência na região do Eufrates (lR s 4.21,24), e mesmo assim somente com êxito parcial (lR s 11.23-25). Após o exílio, o interesse no império davídico- salomônico foi mantido pelos profetas, que falavam de um futuro reino que ia "do Rio até os confins da terra” (Zc 9.10, com base no SI 72.8).

O capítulo ] 8 parece ter se originado de listas oficiais, mais provavelmente da corte do que do templo. E possível que os versículos 1-13 sejam um sumário de narrativas originalmente mais longas do tipo agora preservadas em 19.1—20.13. Fora as variantes concernentes a diversos nomes próprios, as mudanças principais em relação a 2Samuel estão nos versículos 2, 8 e 17.

a. Vitórias sobre os filisteus (18.1). A evidência para a conquista de Gate c suas aldeias vizinhas por Davi encontra-se na presença de 600 gititas na comitiva de Davi (2Sm 15.18), ainda que o lugar correspondente em 2Samuel 8.1 seja a desconhecida Metheg-ammah (NIV).

b. Vitórias sobre os moabitas (18.2). O tratamento excessivo que Davi aplicou aos moabitas em 2Samuel 8.2, como aos edomitas (lRs 11.16), é omitido, e não sabemos o motivo dessa omissão. Os governantes nativos de Gate (cf.1 Rs 2.39-40) e Moabe não foram removidos, embora os moabitas, como os arameus (v.6), pagassem tributo.

91 IC r 5.9 relata que os rubenitas ocuparam a terra na área do Eufrates, mas não se sabe cm que período e por quanto tempo isso ocorreu. A menos que tenha havido uma associação com os reinos de Davi e/ou Salomão, isso não teve nenhum a influência no estabelecim ento tio povo ou do reino de Israel.

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c. Vitórias sobre Hadadezer, rei de Zoba (18.3-10). A parte principal do capítulo relata a vitória de Davi sobre Hadadezer (VA, Hadarezer) de Zoba (v.3- 10; cf. 19.16-19). Tendo unido sua nativa Bete-Reobe (2Sm 8.3), no sul do Líbano, a Zoba, um território ao norte de Damasco, o próprio Hadadezer governou um império de pequenos estados sírios que podem ter se estendido para além do Eufrates (cf. 19.16 e inscrições dos reis assírios Salmaneser III e Ashurdam II).92 Ele tinha entrado em conflito duas vezes com Davi anteriormente (19.1-15,16-19), mas este confronto entre os dois reis mais poderosos da Síria-Palestina foi sua derrota final. Não está claro se foi Davi ou Hadadezer quem levantou a esteia da vitória (v.3, cf. NRSV, RSV, REB, NEB; lit. “mão”; controle, GNB, NVI) que provo­cou a batalha decisiva. Davi recebeu como espólio as cidades de Damasco (v.5-6), ‘Tibate” (v.8, REB, NEB, NRSV, RSV; Tebá, NVI; também possivelmente Tubihi), e a desconhecida Cum (v.8) e Berotai (2Sm 8.8). Ele reteve alguns cavalos de carros (v.4), ou como símbolo de status real ou para suplementar o primeiro e pequeno destacamento de cavalaria de um exército israelita,93 mas encontrou maior valor no bronze (cf 2Cr 3.17—4.18).94 A palavra que traduz escudos (v.7, NVI, NRSV, REB) é na verdade uma palavra emprestada do aramaico que significa “aljavas” (NEB).95 Toú (Toí em 2Sm) de Hamate (moderna Hamá - no Orontes, cerca de 190 quilôme­tros ao norte de Damasco) parece ter feito um tratado de paz, embora seu pedido de paz (versões modernas “saudar”) e congratulações sugerem a ação de uma parte inferior (v.9; cf. o tratado de igual para igual entre Davi e Hirão de Tiro,14.1 -2).96 O filho de Toú muito provavelmente chamava-se Hadorão (v. 10) e não “Jorão” (2Sm 8.10), visto que a forma javista do último é improvável em um estado não-israelita (cf. um sucessor do oitavo século a.C. chamado Yaubidi que certa­mente não tinha associações israelitas, ANET, p. 285).

d. As ofertas de Davi (18.11). Um versículo importante que sumariza as vitórias de Davi e que indica que Davi consagrou os espólios de guerra ao

92 Veja A. M alam at, em D. J. W isem an (ed .), P eoples o f the O ld Testam ent Times(Oxford: Clarendon Press, 1973), p. 141-143; idem, em T. Ishida (ed.), Studies in the Periodo f D avid and Solom on (Tokyo: Y am akaw a-Shuppansha, 1982), p. 196. Com base em Js11.6-9, tam bém foi proposto que “ja rre ta r” (v. 4) era um a punição aceita para cavalos capturados de forças m ercenárias (M cCarter, p. 249).

93 Y. Yadin, The A rt o f Warfare in B ib lical Lands (Londres: W iedenfeld & Nicolson, 1963), p. 285; Y. Ikeda, in T. Ish ida (ed.), Studies in the P eriod o f D avid and Solom on (Tokyo: Y am akaw a-Shuppansha, 1982), p. 215-238.

94 Com base em “esses também” (NRSV, RSV) no v. 11 e 2Sm 8.11, Rudolph afirma que a frase final adicional do v. 8 estava na fonte usada por 2Sm 8.

95 Veja R. Borger, ‘D ie W affentrãger des K õnigs D arius’, VT 22, 1972, p. 385-398. Em bora a palavra possa sign ificar tam bém “estojo de arco” , esse uso é encon trado em contextos da M esopotâm ia antes que siro-palestinos.

96 D. J. W iseman ( ‘ “Is it peace?” - covenant and diplom acy’, VT 32, 1982, p. 311-326,cf. p. 319) propôs que a missão de Toi foi somente um ato diplomático preliminar visandoum ajustado status de aliança de vassalo.

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S k n h o r , isto é, ao projeto do templo. Acréscimos ao v.8 (de que Salomão fe z o mar de bronze, as colunas e os utensílios de bronze; cf. 2Sm 8.8) e em 1 Crônicas

26-27 (c f também 2Cr 5.1) dão mais detalhes sobre o que afinal aconteceu a essa pilhagem. Deste modo, o cronista sublinha o envolvimento de Davi no projeto do templo no contexto de declarações existentes sobre o templo como o beneficiário final das atividades militares de Davi (2Sm 8.11-12; lRs 7.51). Embo­ra a maioria das nações das quais essa riqueza foi tomada esteja incluída nos capítulos 18— 20, alguns dados sugerem que essa lista venha de uma narrati­va mais longa e ainda incompleta das guerras de Davi. Amaleque é menciona­do apenas em ISamuel 30, enquanto não há espaço aqui nem para os jebuseus (ICr 11.4-9) nem para os amonitas (IC r 18.3-8; 19.6-19; 20.1-3).

e. Vitórias sobre os edomitas (18.12-13). Um breve relato da guerra edomita de Davi conclui a seção. Edom (v. 11 -12) é uma leitura preferível a “Arã” (2Sm 8.12-13), visto que o cenário no versículo 12 é claramente edomita (cf. 2Rs 14.7), embora a diferença entre as duas palavras hebraicas seja mínima. O papel de Abisai em Edom é atribuído previamente a Davi (2Sm 8.13) e a Joabe o irmão de Abisai (lR s 11.15-16; SI 60 título). No entanto, todos os três teriam tido responsabilidades diferentes na cadeia global de comando, com Joabe, como comandante do exército (v. 15; 19.8-10; 20.1) e Abisai, chefe dos Três (11.20-21; c f 19.11-15; 2Sm 20.6-7), exercendo posições de comando militar. Davi e Joabe lambem estavam envolvidos na campanha edomita (lR s 11.15). Edom tomou-se uma província do império, como Damasco (v.6), e foi mais estritamente controla­da do que Moabe ou Zoba (cf. v. 2,6), embora permaneça incerto se foi mediante guarnições (NVI, NRSV, RSV) ou “governadores” (B J) (v. 13 - a palavra é corre- lamente restaurada no v.6).

f . O gabinete de Davi (18.14-17). O controle de Davi sobre todo Israel (cf.11.3; 12.38; 13.2; 15.28) foi o fundamento de seu império, que era administrado pelo primeiro “gabinete” ou “ poder executivo” na história israelita (v. 14-17). Alista é baseada em 2Samuel 8.15-18 (cf. 2Sm 20.23-26), embora também ocorra uma certa sobreposição com a lista de oficiais seculares em 1 Crônicas 26.25-34. Aadministra- ção do direito e justiça por Davi (NVI; heb. mishpãt ütsíJdãqâ; cf. 2Cr 9.8) reflete a Iradição do antigo Oriente Próximo onde os regentes assumiam a responsabilida­de por seus sistemas jurídicos (cf. a tentativa de Absalão de obter poder usurpan­do a autoridade legal de Davi, 2Sm 15.1-6). Os termos “direito” (heb. mishpãt) e "justiça” (heb. tsedeq, tfdãqâ) também expressam a fidelidade de Davi à lei da aliança israelita. Eles eram os princípios do próprio Deus (SI 89.14; Is 33.5), que se lornaram a marca do governo ideal na esperança profética (Is 11.1-5).

15-17. O “gabinete” possuía três “departamentos”, com dois oficiais mili- lares, dois responsáveis pela administração e quatro sacerdotes. Pensa-se queo padrão de administração apresentado aqui seguiu o modelo egípcio, o arqui­

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vista (NVI, NRSV, RSV; “secretário de estado”, REB, NEB) que atua como “por­ta-voz, arauto (BJ)” ou como responsável pelo protocolo, e o secretário (NVI, NRSV, RSV, BJ; “assistente geral”, REB, NEB) era responsável pela correspon­dência oficial. Outros têm procurado analogias cananitas, mas os desenvolvi­mentos israelitas nativos não devem ser descartados.97 Na seção militar, Joabe, sucessor de Abner (cf 2Sm 3.6-39) e brevemente substituído por Amasa (2Sm19.13— 20.13), era general chefe de Davi, e Benaia estava no comando da guar­da real dos mercenários queretitas (= de Creta) e peletitas (= da Filístia).

A informação sobre os sacerdotes é menos direta, visto que Zadoque e Abiatar são os nomes mais conhecidos dos sacerdotes de Davi (e.g. 2Sm 15.24ss;1 Cr 15.11). A versões modernas corretamente têm Aimeleque (e.g. NVI) em lugar de “Abimeleque” do TM com 2Samuel 8.17, mas a adoção comum da proposta de Wellhausen (como na REB, NEB) de remover o nome do pai de Zadoque e mudaro nome do segundo sacerdote para “Abiatar filho de Aimeleque filho de Aitube” (cf. 1 Sm 22.20) não faz justiça a um problema complexo. Crônicas tem, no mínimo, uma tradição de que um certo Aitube era pai de Zadoque (lC r 6.8,53; cf. 2Sm 8.17), e que era forte o bastante para influenciar os nomes das últimas gerações pré- exílicas(lCr6.12;c/ 9.1 l;E d7.2;N e 11.11). Uma possível analogia para Abiatar e Aimeleque (pai ou filho?) realizarem juntos tarefas sacerdotais é a atividade com­binada de Arão e seus filhos (Lv 8— 10). Um outro problema diz respeito aos filhos de Davi (v. 17). De acordo com 2Samuel 8.18 eles eram “sacerdotes”, mas aqui eles são apenas os principais oficiais de Davi (NVI, NRSV, RSV; “filhos mais velhos”, REB, NEB). Eles provavelmente eram ou sacerdotes pessoais do rei, i.e. um tipo de capelão real, ou oficiais do alto escalão cuja função sacerdotal era separada da dos sacerdotes levíticos (cf. 2Sm 20.26; IRs 4.5).98

ii. As vitórias de Davi sobre os amonitas (19.1—20.3)“Sê forte, pois; pelejemos varonilmente pelo nosso povo e pelas cidades

de nosso Deus” (19.13)\9 .l- \9 -c f. 2Samuel 10.1-1920.1-c f. 2Samuel 11.1; 12.2620.2-3 - cf. 2Samuel 12.30-31Davi estende suas conquistas para incluir os amonitas (cf. 18.11) e os arameus

(cf 18.3-8), e o relato termina com a derrota final dos amonitas em 20.1 -3.0 capítulo

57 Veja ainda J. Begrich, ‘Sõphêr und Mazklr. Ein Beitrag zur inneren G eschichte des davidisch-salomonischen Grossreiches und des Konigsreiches Juda’, ZAW 58, 1940-41, p. 1- 29; G. W. A hlstrõm , R oyal A dm in is tra tio n and N a tio n a l R elig ion in A ncien t P a lestine (Leiden: Brill, 1982), p. 27-31.

98 Sobre a designação do filho de um hom em e um levita com o sacerdotes pessoais conjuntos, cf. Jz 17.5-13. Veja também G. J. Wenham, ‘Were David’s sons priests?’, ZAW 87, 1975, p. 79-82.

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I 9 segue 2Samuel 10 bem de perto, embora o cronista demonstre uma tendência acentuada para a simplificação em 19.7, 9, 15-16 (cf. 2Sm 10.6, 8; 14.16). Esta é lambém a única narrativa extensa que Crônicas tomou da chamada “Narrativa de Sucessão” (2Sm 9— 20 + lRs 1— 2), cujo distintivo estilo histórico e teológico reflete-se aqui em seu implícito ponto de vista da providência de Deus. Mesmo na ilupla vitória de Israel, Deus é mencionado apenas uma vez (v. 13; contraste com18.6,13, e o teologizar do próprio cronista em ICr 10.13-14).

O capítulo 19 parece cobrir o mesmo terreno que 18.3-8, só que com mais detalhes. No entanto, as quatro batalhas descritas em 18.3-8 e 19.1— 20.3 não são idênticas, e provavelmente não estão em exata ordem cronológica. Por exemplo, o confronto implicado na região do Eufrates (18.3-4) e a intervenção de Damasco (18.5-6) não podem ser facilmente harmonizados com os dados geográficos do capítulo 19. Igualmente, não parece provável que Davi tivesse sido capaz de marchar para a Síria, se primeiro não tivesse removido a ameaça amonita para sua retaguarda. A passagem do capítulo 19.1-15, portanto, parece preceder a do capí­tulo 18.3-8. Quanto ao conflito em 19.16-19 e seu aparente clímax em 20.1-3, sua localização também é diferente daquela de 18.3-8 (cf. 19.17), e parece preceder 18.3- 8, visto que os efeitos da última batalha parecem definitivos. A ordem mais prová­vel da guerra amonita é, portanto, 19.1-15; 19.16-19; 20.1-3 e 18.3-8.

O cronista provavelmente incluiu esse material sobre a guerra amonita por duas razões. Como um elemento importante no registro das guerras de Davi em 2Samuel, ele tem óbvia relevância para o tema global de lCrônicas 18— 20. Seu clímax é a coroação de Davi como rei dos amonitas (20.2), a mais elevada honra concedida a Davi fora de Israel. Em segundo lugar, 2Samuel 10 contém dois exem­plos de um dos termos favoritos do cronista, a saber, “força, seja forte” (heb. xzq) cm um versículo (2Sm 10.12 = v. 13 aqui) que tem a chave do significado teológico do capítulo: seja forte e lutemos bravamente (cf. REB, NEB; “tenha coragem, sejamos homens” RSV). Crônicas usa essa raiz em um sentido quase técnico, para referir-se tanto à força política e militar (e.g. 2Cr 1.1; 12.13; 26 .8 ,15 ,16)quantoà obediência comprometida com a lei de Deus (e.g. ICr 28.7; 2Cr 15.8; 31.4). O ele­mento militar está presente aqui, naturalmente, mas o versículo 13 têm outras nuanças. (a) É um claro eco da ordem “Seja forte e tenha coragem”, invariavelmen­te associada à Conquista (Dt 31.7,23; Js 1.6,7,9, todas direcionadas a Josué; cf. Dt 31.6; Js 10.25, ambas no plural; sobre outros elos entre Davi e Josué como con­quistadores da Terra Prometida, veja a introdução aos capítulos 18—20 acima), (b) Como uma ordem, ela é muitas vezes acompanhada de uma promessa da ajuda divina, como aqui (v. 13; cf. Dt 31.7-8; Js 1.9; 10.25; 2Cr 19.11; 32.7-8). (c) Aidéiade apoio mútuo aqui e em 2Crônicas 29.34 pode significar o incentivo do cronista por maior cooperação em sua própria época, (d) A vitória é obtida através da união de forças - socorro (v. 12, duas vezes; NIV “ajuda”; “auxílio”, NRSV, RSV) vem da mesma raiz hebraica que “deu a vitória” e 18.6, 13, com que o versículo 12 certa­mente deve estar associado, ainda que o significado seja sutilmente diferente nas

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duas passagens. Todo o incidente, portanto, apresenta “todo Israel” cooperando sob Davi e estabelecendo o “descanso” exigido para a construção do templo.

Esse sentimento de amizade cooperativa é um aspecto importante do conceito de igreja no Novo Testamento. A igreja só pode desenvolver-se “en­quanto cada um faz a sua parte” (Ef 4.16), e seus dons são usados para o “bem comum” (ICo 12.7; cf. 14.12) e não para interesses partidários. Um primoroso exemplo do valor do cristianismo coletivo ocorre no contexto da guerra espiri­tual em Efésios 6.10-20. Nesse contexto, os imperativos plurais, “Sede fortale­cidos (cf. v.13 aqui)... revesti-vos...”, são direcionados aos cristãos como um corpo, de maneira que as forças do mal possam ser vencidas com sucesso (sobre outras aplicações, veja G1 6.1-3 sobre levar os fardos uns dos outros, e F14.14-19 sobre o apoio financeiro cooperativo).

a. Primeira vitória sob o comando de Joabe (19.1-15)i. Insultos amonitas (19.1-5). A melhor explicação para a amizade entre

Davi e Naás, o rei amonita, provavelmente seja a sua hostilidade comum para com Saul (cf. ISm 11; 14.47). A existência de um tratado amonita-israelitajxide ser implicada pela bondade (v.2, heb. xesed), mas a referência diz respeito à ação recíproca, e não a um estado de relações formais (lR s 5.1 sugere que Israel e Tiro tinham um tratado de relacionamento mais permanente). Os insultos de Hanum algumas vezes fora datados nos primeiros anos de Davi antes que este estives­se plenamente seguro, mas há evidência de que os temores dos “líderes amonitas” (v.3, GNB, BJ) possam ter sido alimentados por mais do que simples desprezo a um emergente. A localização da batalha subseqüente em Medeba (v.7), ao sul da capital amonita Rabá, pode sugerir que Davi já submetera Edom e Moabe, talvez até que o exercito israelita estivesse retomando da vitória ali (cf. 18.2, 12-13). Não há dúvida também de que a embaixada de Davi ao velho inimigo de Amom, Jabes-Gileade, (ISm 11) por sua “bondade” para com a família de Saul (2Sm 2.5- 6) pode ter sido interpretada em alguns meios amonitas como um ato nada amistoso. Qualquer das duas ações poderia levantar suspeitas de que o motivo real de Davi era destruir sua terra (v.3).99 Alguns têm alegado que Crônicas enfatizou a humilhação dos israelitas (v. 5), com a remoção completa de suas barbas e todos os cabelos do corpo até a cintura (Rudolph, Botterweck). Mais provavelmente, no entanto, o simples rapou-lhes (v.4) é um dos muitos exem­plos da preferência do cronista por abreviação (2Sm 10.4, “lhes rapou metade da barba”). De qualquer modo, metade da barba era pior do que nenhuma!

99 Embora a ordem dos três infinitivos no v. 3 (“investigar, destruir e espiar” (NRSV, RSV) ser estritamente ilógica, o TM pode ser aceito desde que se considere o último como resumo de uma intenção expressa nos primeiros dois (a conjunção com “destruir” pode ser enfática, cf. GK # # 114p, 154a1)- Parece não haver necessidade da versão de Michaeli “fazer uma viagem” ou da emenda de Rudolph “investigar” (welaxpõr em lugar de w rlahòpõk).

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ii. Preparativos para a guerra (19.6-9). Os parágrafos restantes do capí- lulo são todos introduzidos por frases como “quando x viu que...” (v. 6,10,16,19), indicando claramente os estágios progressivos da narrativa. Os amonitas en­tenderam que tinham literalmente “se tornado malcheirosos” (v. 6), uma palavra usada para matéria animal ou vegetal em decomposição (e.g. Ê x7 .18 ,8.10; 16.20; Is 50.2) e aplicada metaforicamente onde as relações haviam entrado totalmente cm colapso (e.g. Gn 34.30; lSm27.12,25; 2Sm 16.21). Eles, portanto, formaram uma coalizão temporária com diversos estados arameus, a maioria, senão todos, sujeitos a Hadadezer de Zoba (cf. 18.3-6), e alugaram tropas araméias. O preço, mil talentos de prata (v.6), era substancial, e, embora não apareça no TM de 2Samuel 10.6, é bem apoiado num antigo MS de Samuel (4QSama).100 Crônicas simplificou os nomes dos quatro estados arameus envolvidos (cf. 2Sm 10.8). Somente Maaca (v.6-7), na fronteira nordeste de Israel (Dt3.14; Js 12.5; 13.11) e Zoba (v.6; cf. 18.3-6), reaparecem a partir de Samuel com “Bete-Reobe” e “Tobe” substituídos pelo mais vago A rã Naaraim (v.6, NVI nr, REB, NEB; “Mesopotâmia” ARA, NRSV, RSV). Tanto forças israelitas (v.8) quanto amonitas/araméias (v. 7,9) reuniram-se em Medeba, uma cidade mencionada na Pedra Moabita do século IX. Estando a certa distância a sudoeste de Amom na Estrada do Rei, algumas vezes tem sido considerado um erro em lugar de “águas de Rabá” (Rothstein, Rudolph, Williamson), contudo, Medeba pode ter relação com uma batalha pelo controle da Estrada do Rei101 ou com as campanhas edomita e moabita de Joabe (18.2,12-13). Os reis arameus estavam em campo aberto (v. 9)i ndicando a linha de frente da batalha, enquanto as tropas amonitas na retaguar­da protegiam a cidade, Medeba ou a capital amonita Rabá.

iii. Vitória sob o comando de Joabe (19.10-15). Vendo-se presos entre forças opostas, Joabe dividiu seu exército, com algumas das melhores tropas de Israel sob seu próprio comando para enfrentar os arameus mais fortes (v. 10) enquanto seu irmão Abisai devia conter os amonitas (v. 11). As instruções em duas partes de Joabe são a chave para o resultado da batalha (v. 12-13). Cada divisão israelita foi encorajada a primeiro dar apoio mútuo, pelo nosso povo e pelas cidades de nosso Deus (v. 13).102 A última frase é única no Antigo Testa­mento, talvez sugerindo uma origem davídica para o epíteto semelhante, e mais familiar, de Jerusalém, “cidade de (nosso) Deus” (SI 46.4; 48.1,8; 87.3; cf. “cidade de Javé”, SI 101.8; Is 60.14; também SI 48.9).

100 E. C. Ulrich, The Qumran Text o f Samuel and Josephus (Missoula: Scholars Press: 1978, p. 152-156.)

101 B. Mazar, ‘The kingdom of David and Solomon in its contact with Egypt and Aram N aharaim ’, BA 25, 1962, p. 96-102, especialm ente p. 102.

1112 As alternativas propostas para “cidades”, a saber, “arca” (Curtis e Madsen, seguindo Smend) e “altares” (REB, NEB nota), não têm apoio suficiente.

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Sobre a importância central da ordem, seja forte e lutemos bravamente (v. 13), veja comentário anterior. Em segundo, Joabe motivou suas tropas com uma promessa (o S e n h o r fará o que fo r bom aos seus olhos, cf. NRSV, RSV) ou uma oração (“a vontade do S e n h o r prevalecerá”, GNB, REB, NEB) por auxílio divino - para estímulos semelhantes veja 2Crônicas 19.11; 32.7-8. A resposta à oração foi imediata. Os arameus (v. 14) e amonitas (v. 15) ambos fugiram, aparen­temente sem combate, assim que o exército israelita tomou a ofensiva. O autor pode considerar isso um eco ilustrativo da promessa dada a Josafá, “a batalha não é vossa, mas de Deus” (2Cr20.15; cf. Êx 14.14). Seu irmão Abisai (v. 15, NVI, REB, NEB) está bem distante de seu antecedente - o original pode ter lido “Abisai, o irmão de Joabe”, como a NRSV, RSV.103

b. Segunda vitória sob o comando de Davi (19.16-19). O sucesso de Joabe não foi conclusivo. Uma segunda batalha foi necessária para acabar com a coalizão (v. 19). Mesmo após essa, houve mais um conflito antes que tanto arameus (18.3-8) quanto amonitas (20.1-3) finalmente capitulassem. Os reforços arameus foram enviados desde “além do Eufrates” (v. 16, NRSV, RSV)104 para restaurar o orgulho ferido de Hadadezer, mas o resultado anterior foi confirmado quando os arameus fugiram novamente (v. 18; cf. v. 14-15).105 É possível que essa batalha tenha ocorrido em “Helã” (2Sm 10.16-17), um nome possivelmente dissimulado na frase “veio a eles” (v. 17, NRSV, RSV; avançou contra eles, NVI; heb. - em lugar de ’lhm), embora nenhuma leitura seja inquestionável.106 Sofaque, o general do exército de Hadadezer (v. 16, 18; “Sobaque”, 2Sm 10.16, 18) não é conhecido fora dessa passagem.

A vitória final sobre os arameus é atribuída a Davi (v. 17-19; cf. 20.2-3), aqui liderando todo o Israel (v. 17), combinação favorita de Crônicas (cf. 11.3; 12.38; 15.28; 18.14), mas já presente em Samuel nesse exemplo.

18.0 número de baixas aqui é um problema de difícil solução (cf. também em 18.4; 19.7), e o argumento de Keil sobre corrupção textual em ambos os relatos é ainda a explicação mais provável. Homens de pé (infantaria) é preferível a “condu­tores de carros” de 2Samuel 10.18, com o inverso mais provável no versículo 7 (cf. os números dos soldados de infantaria em 18.4 e 2Sm 8.4), mas os comentaristas estão divididos quanto a se os condutores de carros (“cavaleiros”, BJ) somavam 700 (2Sm 10.18) ou 7.000 (uma discrepância semelhante ocorre em 18.4 e 2Sm 8.4).

C f L. C. A llen, The G reek Chronicles II, SV T 27 (Leiden: B rill, 1974), p. 142; Rudolph, p. 138.

104 Ou “da área do E ufrates” (cf. REB, NEB, “da grande C urva do E ufrates”). Sobre b '‘Eber, m e'E ber , “a área/região de, além ”, veja J. P. U. Lilley, ‘By the river-side’, VT 28, 1978, p. 165-171.

105 Os verbos impessoais, “eles enviaram... fizeram sair...” (v. 16, NRSV) podem melhor ser traduzidos como passivos, como no uso aramaico, cf. 2Sm 10.16, “Hadadezer enviou e fez sair...”

Sobre possíveis localizações, veja IBD, 2, p. 633.

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19. A paz foi obtida nos termos apresentados por Davi (“Israel”, 2Sm 10.19), embora aparentemente sem pagamento de tributo (cf. 18.2,6). Nunca mais quise­ram é mais enfático que Samuel. A vontade dos arameus de ajudar os amonitas foi quebrada como conseqüência direta da “ajuda” dos israelitas (v. 12, “socorro”, duas vezes, NRSV, RSV, GNB; ajuda, NVI - as três ocorrências são da mesma raiz hebraica) de um para o outro. Igualmente importante, no entanto, era que as tropas de Israel estavam querendo lutar as batalhas de Deus (cf. SI 110.3) por causa de sua confiança de que Deus faria o que bem lhe parecer (v. 13).

c. Vitória fina l. (20.1-3). Essa breve passagem é uma versão altamente condensada do relato da guerra amonita em 2Samuel 11— 12, que é dominada pelo escândalo de Bate-Seba. Uma insinuação dessa nova disposição encon- tra-se na estranha transição entre os versículos 1 e 2, mas uma alusão mais evocativa é preservada na frase enigmática, porém Davi ficou em Jerusalém (v.l; cf. 2Sm 11.1). Dois propósitos podem ser discernidos na versão do cro­nista, ambos baseados em elementos já encontrados em Samuel.

Primeiramente, embora o cronista não ignore que Davi seja culpado de um grande pecado (cf. 21.8), ele quer salientar a ênfase conclusiva de Samuel na tragédia Urias/Bate-Seba no arrependimento, perdão e restauração (2Sm 12.13,24-25; cf. SI 51.13-19). Culpa por causa de pecados não desqualificava uma pessoa para desempenhar um papel de liderança no reino de Deus, como tanto os crentes pós-exílicos quanto os do Novo Testamento precisando ser sempre lembrados (cf. Zc 3.1-10; 5.1-11; ICo 6.9).

Em segundo lugar, a contribuição daqueles que compartilharam a lideran­ça com Davi é sublinhada, como no relato das guerras filistéias (20.4-8). Aqui é Joabe antes que Davi quem “conduziu o exército” (v.l, GNB), e, na seção se­guinte os homens de Davi que derrotaram os filisteus. Nessa instância há uma ironia real no fato de que o incidente ocorreu “na ocasião do ano quando os reis costumavam ir para a guerra” (GNB). Há mais do que uma insinuação aqui de que a pluralidade na liderança do povo de Deus é essencial, nem que seja para suprir deficiências de outros (cf. Ef 4 .11 -13; At 3 .1 -3; F11.1).

A coroa (v.2) pertencia ou ao rei amonita (NRSV, RSV) ou, como algumas das VSS (LXX, Vulg.), à principal divindade amonita “Milcom” (GNB, REB, NEB; NVI, “Moloque”). Suas principais características eram as diferentes pedras pre­ciosas e seu peso (c. 30 kg). A sintaxe hebraica sugere que a coroa antes que a(s) jóia(s) (contra GNB, REB, NEB) tenha sido colocada na cabeça de Davi, embora seu peso deva ter feito o ato de coroação bastante breve! Muitos amonitas foram designados para trabalhos forçados (v.3)107 e alguns, como os de outras

107 O TM poderia ser lido “ele serrou” (cf. VA), mas 2Sm 12.31 e o tratamento em gera) m isericordioso de prisioneiros de guerra no Antigo Oriente Próxim o apóiam a interpretação adotada aqui.

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nações subjugadas, foram incorporados às tropas de Davi (cf. 11.26-47, esp. v. 39, 41-47). O domínio de Davi sobre Amom parece ser parte de um sistema complexo de quatro estágios de administração do império fora da terra de Isra­el.108 Zoba estava em franco estado de vassalagem (19.10), mas o controle se tomou cada vez mais forte pelo tributo imposto a Moabe (18.2, cf. v. 6) e guarni­ções ou governadores em Damasco e Edom (18.6,13). Amom era o mais restringi­do de todos, aparentemente rebaixado ao status de província. O papel dos filisteus não está claro. Embora Gate sofresse uma derrota mais pesada do que todas as outras cidades filistéias, lhe foi permitido manter seu regente nativo (lRs 2.39-40). Os filisteus, como um todo, permaneceram sujeitos a Salomão (2Cr 9.26) e não causaram mais problemas a Israel por mais de 100 anos (2Cr 21.16).

iii. Vitórias sobre os filisteus (20.4-8)“Os filisteus foram derrotados” (20.4, GNB)20.4-8 - c f 2Samuel 20.18-22O relato das guerras de Davi é completado por três pequenos relatos

tirados das guerras filistéias. Todos os três incidentes provavelmente estão associados com o ataque de Davi a Gate (18.1), visto que dois dos seus três oponentes vieram daquela cidade (v. 5,6,8). Os guerreiros filisteus também são chamados “refaítas” (RSV) ou descendentes de Rafa (“gigantes”, NRSV), um dos grupos pré-israelitas em Canaã (e.g. Gn 15.20) e famosos por seu tamanho (cf. v.6). Esses povos são conhecidos em outros lugares como “avitas” (ou “avim”), a quem os primeiros filisteus haviam expulsado (Dt 2.23, onde caftoritas, i.e. cretenses, certamente = filisteus), e como “anaquitas” (ou “anaquim”), que presumivelmente também tinham sido devastados pelos filisteus desde que Josué os removeu de todas (exceto três) as cidades filistéias, incluindo Gate (Js 11.22).

Essa seção tem várias ligações com outras passagens. Ela compartilha com 20.1-3, por exemplo, a idéia de que os soldados de Davi, e não o próprio Davi, são os verdadeiros heróis. Essa ênfase na liderança conjunta é tanto mais importante porque os filisteus tinham sido os mais ferozes inimigos de Israel por décadas. Também existe uma ligação com a aliança davídica. O acréscimo de foram subjugados (“derrotados”, GNB) no v. 4 (cf. 2 Sm 21.18) sugere fortemente que derrotar os filisteus é visto como um cumprimento das promessas de Deus em 17.10, onde a mesma palavra hebraica ocorre. Há até uma conexão com a época de Josué. Ao descrever os filisteus como refaítas, ou como descendentes de Rafa (v. 4,6,8), está os identificando como os descendentes daqueles que tinham causado terror aos espiões de Moisés (cf. Nm 13.28-33; Dt 1.26-28; 2.10-23). Somente agora o temor afinal se tomou fé, quando finalmente Davi e seus

108 A posição dentro de Israel também era complicada, com as cidades-Estado cananitas não p lenam ente absorvidas e as tribos do norte p reservando suas p róprias trad ições de independência.

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homens completaram a conquista de Josué, uma realização que foi possível somente porque Deus manteve sua promessa (cf. 17.11-14; 14.17).

Contudo, esse auge das realizações militares de Israel deve ser posto em perspectiva, pois ele sequer começa a escalar os picos das esperanças do Anti­go Testamento para Davi e sua dinastia (cf. e.g. SI 2.8, “eu te darei as nações por herança e as extremidades da terra por tua possessão”). Tais esperanças foram realizadas apenas no filho de Davi, chamado Jesus, que se tomou o vencedor de todos os poderes de oposição e Senhor de cada nação, não através da força militar, mas porque foi crucificado (Ap 6.2; 14.14; 19.11 -16; Hb 2.7,9).

Um problema maior surge no caso da vitória de Elanã sobre Lami, o irmão de Golias (v. 5). De acordo com 2Samuel 21.19, “Elanã, filho de Jaaré-Oregim, o belemita” também triunfou sobre o próprio Golias, aparentemente contradizen­do o relato da famosa vitória de Davi em 1 Samuel 17. Os eruditos muitas vezes têm proposto que o cronista tendenciosamente corrigiu a confusão, inventando Lami a partir da palavra “belemita” em 2Samuel 21. Embora não haja nenhuma solução simples, visto que 1 Samuel claramente preservou dois relatos diferen­tes sobre o fim de Golias, alguns pontos dão apoio à versão do cronista, como os primeiros comentaristas às vezes reconheceram (e.g. Keil). Certamente há corrupção escribal em 2Samuel 21.19, como, por exemplo, no nome “Jaaré- Oregim”, que deve ser Jair, como aqui. A palavra crucial “belemita” também é suspeita, visto que essa forma é aplicada, em outras passagens, somente a Jessé (ISm 16.1,18; 17.58; TM bêt hallaxmi; Elanã de Belém, 2Sm 23.24= ICr 11.26, possivelmente uma pessoa separada usa uma forma diferente), e pode, portanto, ser um a leitura inferior a Lami. É, portanto, bastante factível pensar em um con­fronto entre Elanã e Lami, talvez em associação com a ofensiva de Davi contra Gate como uma vingança pela morte de Golias.

O duelo era uma forma reconhecida de combate em Canaã e na terra origi­nal dos filisteus, no Egeu. Ele tinha a vantagem de fazer com que os conflitos fossem resolvidos sem recurso a uma batalha campal e seu grande número de baixas.109 Por fim, a arma de Golias, uma lança que tinha a haste como eixo de tecelão, também tem paralelos e não é uma criação não histórica como alguns têm alegado. Ela era na verdade um dardo com uma presilha e uma corda ao redor da haste para atingir maior distância e estabilidade, e era conhecida na região do Egeu desde o século XII a.C. O próprio Antigo Testamento registra uma na posse de outro não israelita (IC r 11.23)."°

109 A. M. Snodgrass, Early Greek Armour and Weapons (Edimburgo: Edinburgh University Press, 1964), p. 189; T. Dothan, The Philistines and their M aterial Culture (New Haven e Londres: Yale U niversity Press, 1982), p. 19.

110 Y. Yadin, The A rt o f Warfare in Biblical Lands (Londres: W iedenfeld & Nicolson, 1963), p. 354-355; idem, ‘G oliath ’s javelin and the Q^JHKTIQ’ PEQ , 1955, p. 58-69; T. D othan, op. cit., p. 19-20.

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E. Preparativos de D avi p a ra o tem plo (21.1—29.30).i. O pecado de Davi e a graça de Deus (21.1—22.1).“Aqui se levan tará a casa do Senhor” (22.1).2 1 . 1 - 2 7 2Samuel 24.1-25O grande pecado de Davi (v. 8) vem como um choque considerável depois

dos pontos altos da promessa da aliança (cap. 17) e vitória militar (caps. 18—20). O tema central, no entanto, é na verdade a graça perdoadora de Deus (v. 15-27) e não o pecado de Davi ou o juízo resultante (v. 9-14), e é disso que o templo toma-se uma testemunha permanente (21.28— 22.1).

A fonte básica é 2Samuel 24, embora o cronista tenha feito mudanças mais extensas do que o usual. Detalhes geográficos, cronológicos e adminis­trativos são omitidos (cf. 2Sm 24.2,4-8,11,15 e lC r 21.2,4,9,14), dando espaço para duas novas ênfases. Em primeiro lugar, a versão do cronista acontece contra um pano de fundo abertamente mais espiritual no qual Satanás (v. 1) e o anjo de Javé (v. 12-30) são proeminentes. O período pós-exílico em geral tinha muito mais interesse em seres espirituais invisíveis, um interesse que foi separadamente continuado tanto no judaísmo quanto no Novo Testamento. Assuntos como pecado e expiação são trabalhados em um contexto mais am­plo do que o do conflito meramente moral e o do dualismo fatalista da religião persa contemporânea. Embora o pecado seja um problema humano, ele possui raízes espirituais mais profundas que podem ser tratadas apenas através do propósitos soberanos e da intervenção direta de Deus.

A segunda ênfase de Crônicas, que emerge no material adicional em 21.28— 22.1, liga o lugar da expiação de Davi com o local do novo templo. Essa conexão não é explícita em Samuel, e o interesse de Crônicas não é apenas um interesse geográfico.111 O templo ficava no mesmo lugar onde o pecado de Davi tinha levado Jerusalém à beira da destruição, e onde Deus sozinho havia libertado seu povo. Era acima de tudo um lugar de perdão, onde o pecado e todas as suas conseqüências podiam ser removidas.

A importância do pecado de Davi na verdade foi aumentada, e não redu­zida como muitos escritores têm alegado.112 Material importante é acrescenta­do nos versículos 6-7 e em algumas frases nos versículos 3 e 17. Outras modi­ficações aumentaram a incrível semelhança entre este incidente e aquele do assassinato e adultério de Davi em 2Samuel 11— 12, como mostram as corres­pondências seguintes.

111 Em 2Sm, o capítulo 24 aparentem ente está localizado tão perto quanto possível do relato de Salomão porque ele antecipa a instituição perm anente do altar de holocaustos no tem plo de Salom ão (cf. H ertzberg, p. 410-411, 415-416; M cCarter, p. 516-517).

112 Cf. G. von Rad, Olá Testament Theology, I (Londres; SCM Press, 1962), p. 350; O. Kaiser, Introdution to the Old Testament (Oxford: Blackwell, 1975), p. 177.

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(a) Somente nesses dois incidentes Davi faz a confissão simples, “pequei” (heb. hntâ'[í. 2Sm 12.13; 24.10 = IC r 21.8), que é um ponto crucial em ambas as narrativas.

(b) O pecado de Davi resulta em morte para Israel (2Sm 11.17-26; 12.15-19; 24.15= lC r21.14).

(c) A desaprovação profética é expressa (2Sm 12.1-4; 24.11-14=1 Cr 21.9-13), e Crônicas repete a fórmula da mensagem profética, “Assim diz o Senhor” (21.11; 2Sm 24.13) para dar ênfase.

(d) A punição de Deus é efetivada através da espada (2Sm 12.10; ICr 21.12,16,27).

(e) Davi é perdoado pela palavra da promessa de Deus (2Sm 12.13; 24.16 = lCr21.15).

(f) Deus concede perdão através de suas promessas da aliança. Tanto a casa de Deus (IC r 21.29-30) quanto a casa/dinastia de Davi (2Sm 12.10) foram diretamente ameaçadas pelos pecados de Davi, mas Deus de maneira contunden­te restaura ambas as “casas” - em 2Samuel 12.24-25 através de Salomão, herdeiro de Davi, e em lCrônicas 21.28— 22.1, através da construção do templo.113

Embora partes desse padrão já ocorram em 2Samuel 11— 12 e 2Samuel 24, seu impacto foi aumentado pelo acréscimo de duas características não mencio­nadas em 2Samuel 24, a saber, a espada do Senhor (ponto “d” acima) e a perma­nência da expiação proporcionada através do templo (ponto “f ’ acima). O resul­tado é aumentar o contraste entre a ira de Deus e sua misericórdia. A comparação com 2Samuel 11— 12 também mostra a maior gravidade do pecado de Davi em contraste com a crise Urias/Bate-Seba: (a) a confissão de Davi é mais relutante (v. 8,13,17); (b) o envolvimento satânico é reconhecido (v. 1); (c) é a espada do S enhor e não a espada do homem que cai sobre Israel (v. 15-16,27); (d) muito mais israelitas perecem (v. 14); e, (e) algo muito importante, Davi não pode mais cultuar no santuário de Deus (v. 29-30; contraste com 2Sm 12.20).

As implicações deste incidente para os contemporâneos do cronista não são difíceis de deduzir. Na mente do autor, não era somente Davi que necessita­va de perdão, porque toda a história de Israel ilustrava a constante infidelidade da nação para com Deus (cf ICr 10.13-14; 2Cr 36.14). Mesmo após a desgraça do exílio, o pecado e o fracasso de Israel em agradar a Deus continuaram sem diminuição (e.g. Zc 1.1-6; Ml 1.6— 3.15; Ed 9.1— 10.44; Ne 9.1-37). O objetivo do cronista, no entanto, não é agravar a condenação de Israel, apesar da magnitude do problema. Na verdade, o oposto é a verdade, pois o cronista viu que na graça de Deus a expiação completa estava sempre disponível. O templo existia como

113 Com pare a seguinte declaração, alcançada de forma independente: “Como o adultério de Davi com Bate-Seba é o eixo da apresentação do reinado de Davi em 2Samuel, assim o censo de Davi do povo em lCrônicas 21, o presunçoso ato de contar o povo de Deus, é o pivô da apresentação do reinado de Davi em lC rônicas” (Johnstone, ‘G uilt’, p. 123).

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um lugar, por excelência, onde todos os pecadores podiam receber perdão e trazer suas ofertas novamente no culto (e.g. Ml 3.10; Ne 10.32-39; cf. Lc 18.13).

Essa disposição da parte de Deus de perdoar o pecador é agora permanen­temente afirmada através de Jesus Cristo, em quem todos os sacrifícios do Antigo Testamento foram cumpridos (e.g. Hb 9.14,25-26). O sacrifício de Jesus abriu um caminho para o templo celestial de Deus, que é superior ao de Salomão e Zorobabel (Hb 6.19-20; 9.11-15, 24-28). Como o cronista, o autor de Hebreus também acha significado no lugar da expiação ao traçar paralelos entre os altares terreno e celestial. Convites são feitos tanto para o santuário celestial (“Aproximemo-nos, com sincero coração, em plena certeza de fé...”, Hb 10.19-25) e para o local terreno da morte de Jesus (“Saiamos, pois, a ele fora do arraial, levando o seu vitupério,” Hb 13.11-14). Acruz de Cristo toma tanto os incitamentos de Satanás (e.g. Ap 20.1-10) quanto a espada do anjo do juízo (Ap 6.4,8) totalmente ineficazes.

a. O recenseamento (21.1-6). Duas das questões mais difíceis em Crônicas surgem no v. 1, a saber, o significado da breve aparição de Satanás e do recense­amento. Satanás é mencionado diretamente apenas três vezes no Antigo Testa­mento (vej a Jó 1 — 2; Zc 3.1 -2), e somente aqui como um nome próprio (em outras passagens ele tem o artigo definido, e significa “O Oponente, Adversário, Inimi­go”). Sua origem não é discutida em nenhum lugar, salvo talvez por uma insinua­ção em Isaías 14.12-15, e a identificação com a serpente só foi feita no final do primeiro século d.C. (Ap 12.9; 20.2). O Antigo Testamento interessa-se mais por sua função, que é sempre de se opor a Deus, do que por sua origem ou identidade. Sua atividade é na verdade bastante restrita, e ele sempre é impotente contra a intervenção de Deus. Embora ele apareça com mais freqüência no Novo Testa­mento, ele é igualmente restringido neste também, como é supremamente expresso em sua derrota final na morte de Cristo (Jo 12.31; 16.11; Cl 2.15 ;etc.).

Os verbos “se levantou” (NRSV, RSV; cf. Zc 3.1) e incitou (c f Jó 2.3; cf. Gn 3.1-7) associam a atividade de Satanás com o que é dito dele em outras partes do Antigo Testamento. Em comparação com 2Samuel 24.1, no entanto, uma mudança incrível de sujeito é prontamente notada: “Tornou a ira do S e ­

n h o r a acender-se contra os israelitas, e ele incitou a Davi contra eles.” Al­guns escritores pensam que o cronista achou que sua fonte fosse teologica­mente deficiente (e.g. Myers, Rudolph), mas isto trata apenas de uma possível incompreensão da idéia do incitamento de Deus, não de sua interpretação. E claro em 2Samuel 24.1 que Deus incitou Davi porque ele estava furioso com ele.114 Isso, no entanto, não deve ser entendido de modo fatalista, visto que

114 “tornou” em 2Sm 24.1 se refere a 2Sm 21.1, e é um dos vários elos entre 2Sra 21 e 24. Ambos os capítulos têm uma estrutura semelhante, incluindo a ira e o julgamento de Deus, o arrependimento de Davi em favor de Israel, e a oração respondida (cf. especialm ente 2Sm 21.14 e 24.25). O fato de que nenhuma razão direta é dada em 2Sm 24.1 para a ira de Deus não significa que Deus agiu arbitrariamente ou sem ética (veja A. Schenker, Der Mãchtige im Schmelzofen des M itleids, G õttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1982, p. 19-20, 67-68).

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de acordo com 1 Samuel 26.19 qualquer efeito nocivo deste incitamento pode­ria ser anulado por uma resposta humana positiva. Ironicamente, nesse con- Icxto o próprio Davi aconselha Saul a se arrepender, se ele pensasse que Deus o tivesse incitado."5 Na mesma analogia, este recenseamento deve ser com­preendido como o juízo de Deus sobre Israel, mas os efeitos plenos poderiam ser evitados se tão somente Davi reconhecesse o erro de suas ações.

É nesse quadro teológico básico que satanás é introduzido. Seu papel deve ser nitidamente distinto do de Deus, que permanece totalmente no contro­le, mas que às vezes julga entregando pecadores a Satanás (ICo 5.5; lTm 3.20). Quando Satanás incita, ele está interessado apenas em seus próprios fins. Ele não se importa com a punição dos justos nem procura um possível arrependi­mento, visto que eles são tão estranhos à sua natureza como a tentação ao pecado é à de Deus. Satanás também não deve ser visto simplesmente como o agente do juízo divino, visto que Deus aqui usa seu próprio anjo destruidor (v. 15-16; cf. Êx 12.23). Ao mudar-se o sujeito do verbo incitou de 2Samuel 24.1, é dado, portanto, um significado bem diferente.

Embora o juízo divino, a escolha humana, e a tentação satânica não sejam mutuamente exclusivos, eles, portanto, não podem ser igualados. De fato, Sata­nás não tem mais nenhuma contribuição depois do versículo 1 e rapidamente desaparece de cena, como em Jó 1— 2 e Zacarias 3. Davi, por outro lado, tem uma escolha real sobre o que fazer. Isso inclui uma possibilidade genuína de arrepen­dimento, como é mostrado pelo senso de culpa tanto de Joabe (v. 3,6) quanto seu próprio (v. 8), e por sua resposta ao juízo de Deus nos versículos 9-3 (veja também Jo 3.1-9; Am 4.6-11).116

Em primeiro lugar, nem Crônicas nem Samuel oferecem qualquer razão explí­cita para Deus ter ficado irado com Davi, nem por que o recenseamento de Davi deveria ser visto como um pecado. Os recenseamentos no Antigo Testamento não eram em si mesmos censuráveis por Deus, e foram realizados inúmeras vezes - para propósitos militares (Nm 1.3,45; 26.2), para a taxação do santuário (Êx 30.11- 16; 38.25-28; Nm 3.40-41), para povoar a terra (Nm 26.52-55; Ne 7.4-5), para organi­zar os levitas (Nm 3.14-39; lC r 23.2ss.), e para a construção do templo (2Cr 2.17- 18). Este recenseamento, no entanto, claramente desagradou tanto o homem (v. 3,6) quanto Deus (v. 7). A análise de Schenker oferece cinco possíveis explicações para essa avaliação negativa: (a) as tribos sentiram uma ameaça à sua independên­cia; (b) o ideal carismático da guerra santa de Deus foi secularizado; (c) a bênção de Deus não podia ser reduzida a meras estatísticas; (d) Davi deixou de reconhecer

115 1Sm 26.19 e 2Sm 24.1 contêm os únicos dois usos do verbo “incitar” (heb. hêstt) com uma conotação negativa em um sujeito divino. Quando hêsít é usado positivamente com um sujeito divino (2Cr 18.31; Jó 36.16), ele tem o sentido oposto de resgate ou libertação.

116 Veja também A. Schenker, op. cit., p. 19-21, mas com várias diferenças significativas tia interpretação apresentada aqui.

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o recenseamento como prerrogativa de Javé ao não pagar o resgate expiatório (cf. Êx 30.12); e (e) foi uma expressão do orgulho humano.117

De fato, parece que foi o propósito pelo qual um recenseamento foi feito que dá a pista de seu significado. Embora o contexto da ação de Davi fosse militar, ele parece ter esquecido que o povo não era seu, mas de Deus. Seu motivo, centrado nele mesmo, expressou-se em um ou mais dos seguintes erros: (i) ele não arrecadou o imposto de meio-siclo por pessoa, mencionado na lei mosaica, uma omissão que podia resultar em uma praga (Êx 30.12); (ii) ele deixou de reconhecer que o povo de Deus não podia, em última instância, ser enumera­do por causa da natureza da promessa de Deus (v. 3; 27.23-24); (iii) ao passo que todos os outros recenseamentos do Antigo Testamento anteciparam um propó­sito em particular dado por Deus, este recenseamento parece ter tido um fim em si mesmo. Até Joabe reconheceu que Deus podia multiplicar suas tropas cem vezes (v. 3), e Salomão também aceitou que Israel não podia ser contado, pois eles eram o povo do Senhor (lR s 3.8). Ironicamente, a ação de Davi resultou em uma severa redução nos números de Israel (v. 14).

Pelo fato de a ordem de Davi ter sido “repugnante a Joabe” (v. 6, NRSV, RSV) e ter desagradado a Deus (v. 7), Davi trouxe culpa sobre Israel (v. 3). Nenhuma dessas frases aparece em Samuel, e o uso que Crônicas faz de culpa (heb. 'ashmâ) é particularmente interessante. Essa palavra regularmente refere- se a ações que merecem a ira de Deus (2Cr 24.18; 28.10,13; 33.23; cf. o verbo cognatoem2Cr 19.10).118

Os números do recenseamento (v.5) são um problema, visto que eles não correspondem a 2Samuel 24.9. A solução habitual é assumir que um milhão e cem mil de Crônicas para todo Israel representa uma dedução de 100.000 cada para Levi e Benjamim (cf. v. 6) do total de Samuel de 1.300.000 para Israel e Judá, e que a declaração de Crônicas sobre Judá é uma glosa posterior (e.g. Williamson, Rudolph). Infelizmente, essa proposta é injustificada e incoerente. Não há evidência inde­pendente de qualquer acréscimo textual, e em nenhuma outra passagem Crônicas usa a soma simplista de cem mil para cada tribo. Também é inconsistente presumir que um glosador deduziu apenas 30.000 pela omissão de Benjamim do total de Judá de quatrocentos e setenta mil. Esse número poderia ser um equivalente mais preciso para o número redondo de Samuel de 500.000, mas do contrário toda a questão permanece um assunto insolúvel de transmissão escribal.119 Levi e

1,7 A. Schenker, op.cit., p. 16-18, 64-67.118 Cf. tam bém Ed 9 .6,7,13,15 para um uso sem elhante. O outro grupo principal de

referências, em Lv 4.3; 5.24, 26; 22.16 (cf. tam bém Ed 10.10, 19) tem a conotação daquilo que exige expiação e/ou restituição, e não faz menção da ira de Deus.

119 “todo o Israel” (2Sm 24.9 tem sim plesm ente “Israel”) não inclui inevitavelm ente o sul. Embora essa pareça ser a única referência onde o cronista usa esse termo para o norte no relato da monarquia unida, ele tem vários usos desse tipo em seu relato da monarquia dividida (e.g. 2Cr 10.6; 11.13). Já que “todo o Israe l” é de fato é usado para am bos norte e sul

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Benjamim podem ter sido excluídas (v. 6) por causa do ódio de Joabe, ou do seu sentimento de culpa, ou de ambos (cf. 27.24). Alternativamente, Levi pode não ter sido contada por razões tradicionais (Nm 1.49; 2.33), e Benjamim por que ela con­tinha a arca em Jerusalém ou a Tenda em Gibeão (v.29).

b. Uma segunda escolha (21.7-14). A confissão de Davi (v. 8) é bem mais lorte do que em Samuel, pois o simples reconhecimento, pequei grandemente ( cf. 2Sm 12.13) foi complementado por palavras como “iniqüidade do teu servo” (RSV) e “cometi uma loucura” (NRSV, RSV). A realidade do juízo, no entanto, não é diminuída por sua confissão. Davi é confrontado com uma escolha de casti­gos, todos associados com a quebra da aliança de Deus (c f Lv 26.25-26), e entre os quais parece haver pouco a escolher (v. 11-12).120

Contra a escuridão do juízo, a súplica de Davi faz a misericórdia de Deus brilhar intensamente (v. 13). Essa misericórdia (heb. raxámim) refere-se ao amor imerecido de Deus que surge de sua profunda compaixão. A situação de Davi no versículo 13 é de fato paralela àquela no versículo 1, mas, onde ele previamente linha escolhido aumentar o juízo de Deus, ele agora recorre à possibilidade da esperança oculta no coração de Deus. Porque a descoberta de Davi é na realida­de baseada na natureza de Deus como um Deus misericordioso, ela é, de fato, uma esperança permanente.121 Para o cronista ela era simbolizada pelo templo (22.1; IRs 8. 37 = 2Cr 6.28), e é confirmada no Novo Testamento pela obra de Cristo. A Bíblia sempre afirma que Deus ouvirá a oração: “na ira lembre-se da misericórdia” (Hc 3.2; cf. Jo 3.16-21).

O profeta Gade, mais conhecido como vidente de Davi, foi considerado por Crônicas um dos historiadores de Davi (1 Cr 29.29; 2Cr 29.25). Como Natã, ele traz notícias de salvação (v. 18-19) e de juízo (v. 9-12).

c. Arrependimento de Deus e do homem (21.15-17). Muito mais é dito do anjo aqui do que em Samuel (v. 12,15,16,18,20,27,30; cf. 2Sm24.16-17). Aodescrevê- lo como um “anjo destruidor” (v. 15), Crônicas afirma a tripla referência de 2Samuel24.16-17, mas também parece evocar um eco deliberado da praga do primogênito (Êx 12.23). Estaria Crônicas sugerindo que o destino do qual Israel tinha sido miraculosamente salvo do Egito estava a ponto de esmagá-los depois de tudo, e logo sob Davi? O anjo também é retratado como estando de pé, a mesma

separadamente em 2Cr 10— 36 (Williamson, IBC, p. 102-110), é difícil ver que bases podem ser usadas para negar tal flexibilidade no reinado de Davi, especialmente quando nessa instân­cia o cronista é particularm ente influenciado por sua fonte.

120 “três anos” é corre tam ente lido no v. 12 (contra “sete” do TM em 2Sm 24.13). É também desnecessário em endar “ser consum ido” (heb. nispeh) para harm onizar com “fugir” (heb. nus‘kâ) em 2Sm 24.13, já que o nifal de sapâ é muitas vezes usado em contextos militares.

121 Cf. a descrição de D eus no Book o f Common Prayer: “... cuja natureza é sempre ter m isericórdia” .

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postura de Satanás (v. 1), e um símbolo da prontidão para a ação. Em outros aspectos, no entanto, este anjo é nitidamente contrastado com satanás, porque o anjo é um servo que realiza a vontade de Deus (cf. SI 103.20-21), tanto no juízo quanto na salvação. Curiosamente, parece que o anjo está de pé em dois lugares diferentes, na eira (v. 15) e entre a terra e o céu (v. 16). Isto não envolve nenhuma contradição real, visto que a palavra “junto” (v. 15) é vaga o bastante para permitir uma localização aérea, e em qualquer caso normalmente pensa-se que os anjos têm maior liberdade de movimento do que os meros humanos.

A espada do anjo é sua característica mais notável (v. 12,16,27,30). Embora não mencionada diretamente em Samuel, é bem possível que seja implicada pela menção da mão estendida do anjo (2Sm 24.16-17). Sua presença em um MS hebraico alternativo de Samuel (4QSam“), que é claramente independente de Crônicas, con­firma que não se trata de uma criação do cronista.122 A espada do anjo está suspensa sobre toda a narrativa dos versículos 16-27, assim como sobre Jerusalém. Compa­rada com as espadas de Israel (v. 5) ou de seus inimigos (v. 12), sua eficácia é muito superior, ameaçando Jerusalém com o juízo divino. Essa não foi a primeira vez que a espada do anjo apareceu no Antigo Testamento (cf. Gn 3.24; Nm 22.22-35; Js 5.13-15), mas nunca antes ela se voltara contra a nação israelita.123

Quando Deus diz: Basta! (v. 15) provoca uma suspensão imediata do casti­go. A única razão é a grande misericórdia de Deus (v. 13), porque é dito especifi­camente que o próprio Deus “arrependeu-se do mal” (v. 15, RSV, REB, NEB; arrependeu-se de trazer a catástrofe, NVI; “mudou sua intenção”, GNB). Essa idéia espantosa não se refere a nenhuma mudança moral em Deus, mas a uma mudança particular do plano que surge de sua profunda mágoa ou compaixão. Isso é mencionado especialmente quando Deus retira o juízo, muitas vezes em resposta a uma intercessão (Êx 32.12-14; Am 7.3-6) ou arrependimento humano (Jr 18.8; Jo 3.9-10). Por fim, essafoi admitida como uma característica marcante de sua natureza (J12.13-14; Jo 4.2), de maneira que o que poderia parecer mutabilidade em Deus é na realidade entendido como uma qualidade de sua natureza imutável.

A resposta do próprio Davi (v. 17) é mais arrependimento, que aceita finalmente a plena responsabilidade pessoal pelo recenseamento. Como anteri­ormente (v. 3, 6-8), Crônicas acentua o ponto - as três frases: Não sou eu o que disse que se contasse o povo?, Ah! S e n h o r meu Deus, e Não permita que essa praga permaneça sobre teu povo não estão em Samuel. A leitura, “Eu, o pastor

122 Veja F. M. Cross, The Ancient o f Library o f Qumrân (Londres: Duckworth, 1958), p. 141; E. Ulrich, The Qumran Text o f Samuel and Josephus (Missoula: Scholars Press: 1978), p. 156-158.

123 A presença desse m otivo em outro lugar no Antigo Testamento junto com sua ocor­rência no fragmento de 4QSama, invalida o argumento de P. E. Dion de que ele é principal­m ente em pregado para resolver a questão da diversidade de altares como uma questão de teologia pós-exílica (“The angel w ith the drawn sw ord” [I Chr 21, 6 ]’, ZA W 97, 1985, p. 114-117).

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que errou” (v. 17, NEB; cf. Williansom, Ackroyd) é agora preferida a “cometeu muita impiedade” (NRSV, RSV, c f NVI) com base na LXX de 2Samuel e 4QSama, e pode ser superior, embora não seja apoiada nos MSS de Crônicas. “Omã” (v. 15ss., NRSV, RSV) é a pronúncia pós-exílica comum de Araúna (NVI, GNB), um nome jebusita que 2Samuel 24 foi incapaz de grafar de maneira consistente!

d. Um novo altar (21.18-27). A expiação no Antigo Testamento (e no Novo Testamento) é dom de Deus, expresso através de sua palavra e sanciona­do através do sacrifício. Atenção especial é dada aqui ao sacrifício pela ordem de Deus para construir um altar (v. 18). A ordem foi mediada por um anjo e um profeta (v. 18) porque a relação de Deus com seu povo ainda não estava comple­tamente restaurada. O relato de Crônicas de como o local foi adquirido é mais extenso do que o de Samuel e contém ecos deliberados de duas passagens anteriores - a compra da caverna de Macpela por Abraão (Gn 23) e o encontro de Gideão com o anjo (Jz 6.11-24). Como Abraão, Davi comprou todo o lugar (v. 22,25) e pagou devido valor (v. 22,24; cf. Gn 23.9 - essa frase não é usada no Antigo Testamento fora dessas referências). A aquisição de Abraão foi o primei­ro pedaço da Terra Prometida realmente apropriado pelo povo de Deus, e a aquisição de Davi completa o ato de fé de Abraão. Gideão recebeu uma ordem de construir um altar enquanto malhava o trigo (cf. v.20) e seu sacrifício subseqüen­te foi consumido pelo fogo celestial (cf. v.26).124

De fato, o altar de Davi foi o único em tempos pré-exílicos que Deus expli­citamente mandou construir (veja Ez 43.13-17 para um exemplo posterior). En­quanto o altar de Gideão substituía um altar pagão, o de Davi era completamente novo. Somente este cumpriu as exigências deuteronômicas do “lugar que o S en h o r vosso Deus escolherá” (Dt 12.5,11,14). O local de Davi também tinha associações com um outro lugar de sacrifício escolhido por Deus. Ele era conhe­cido como “Moriá” (2Cr 3.1), o mesmo nome dado ao lugar onde Deus havia proporcionado um sacrifício único a Abraão (Gn 22.2).125

A aprovação de Deus do altar de Davi é afirmada duas vezes com frases não encontradas em Samuel. Primeiramente, o S en h o r lhe respondeu com fogo do céu (v. 26), uma resposta à oração que lembrou surpreendentemente a instituição do culto na Tenda de Moisés (ou tabernáculo - Lv 9.24:2Cr 7.1; cf. Jz6.21; lRs 18.38). Em segundo lugar, a declaração o anjo... pôs sua espada em sua bainha (v. 27) mostra que a expiação era necessária para remover a ameaça do juízo e esse sacrifício era essencial à expiação. As várias ofertas (v. 26), portanto, incluíam uma função propiciatória, assim como significativa adoração e comunhão.

124 Para m ais detalhes, cf. W illiamson, p. 148-149; W illi, CA p. 157-158.125 Não fica claro se a diferença entre “monte Moriá” (2Cr 3.1) e “a terra de Moriá” (Gn.

22.2) é im portan te .

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Uma eira (v. 15ss.) era uma área plana bem ao lado de uma cidade ou aldeia, em geral em terreno elevado para aproveitar o vento. À luz da eira de Omã (v. 20), Crônicas acrescentou e o trigo para a oferta de grãos (v. 23). O preço é o maior problema, pois Samuel fala de somente 50 siclos de prata, para Crônicas 600 siclos de ouro (v. 25). A suposição de Rashi de que a soma representa 50 siclos para cada uma das doze tribos freqüentemente é mencionada, mas não explica nada sobre a diferença nos metais. Pode-se presumir que a soma maior era por todo o lugar e a soma menor apenas para o altar, mas não há nenhuma solução satisfatória.

e. A nova casa de Deus (21.28—22.1). Um breve suplemento teológico (cf. 10.13-14; 14 .17)e explica por que o maior santuário de Israel foi transferido de Gibeão (cf. 16.39-42) para Jerusalém. O culto foi suspenso apenas temporaria­mente em Gibeão (cf. 2Cr 1.3-13) por causa da espada do anjo do S e n h o r (v.30), mas as conseqüências foram irreversíveis. Davi na realidade foi excluído de Gibeão porque ele tinha medo (cf. 13.12) e era incapaz de consultar a Deus. A última frase é sinônima de “buscar” em Crônicas e refere-se geralmente à adora­ção esperançosa. Era uma exigência fundamental da realeza que agrada a Deus, e a incapacidade de Davi de buscar a Deus perturbou o padrão de todo o seu reino (veja comentário em 13.3). Portanto, Davi tirou suas próprias conclusões deste e dos acontecimentos especiais em Jerusalém (vendo Davi viu..., v. 28; então Davi disse... 22.1), especialmente porque o S e n h o r lhe respondera (v. 28). Tendo visto sua oração respondida e seus sacrifícios aceitos, o local já se toma­ra uma “casa de oração” e um “templo para sacrifícios” c f 2Cr 7.12; Is 56.7). A resposta apropriada era construir uma nova casa e um novo altar (22.1).126

ii. Os preparativos iniciais de Davi para o templo (22.2-19)“A casa que será construída para o S e n h o r deve ser extraordinariamente

magnífica, famosa e cheia de glória à vista de todas as nações; portanto, eu prepararei tudo para ela” (22.5, RSV).

A frase construir a casa de Deus, que com pequenas variações ocorre nove vezes (v. 2,5,6,7,8,10,11,19), é o tema dominante do capítulo 22. A partir de agora até o final do relato de Davi em Crônicas, tudo estará diretamente relacionado com o templo. O contexto também muda, passsando apenas de Davi para Davi e Salomão, visto que a construção do templo é, na verdade, um projeto conjunto.

O tópico preciso neste capítulo é a preparação e provisão. O verbo “fazer preparativos, prover” (heb. hêkin) ocorre cinco vezes em relação com os mate­riais necessários e a força de trabalho (v. 3,5,14), mas o capítulo trata também da preparação de Salomão, o construtor do tempo.127 A fala de Davi a Salomão

126 Sobre a sintaxe e a história literária de 21.28— 22.1, cf. W illiamson, p. 151.127 H êkin , no sentido de “estabelecer, confirm ar” , tam bém é usado no v. 10 sobre o

re inado de D avi, m as isso é b aseado em 17.11, 14, e não é re lev an te para as outras ocorrências no cap ítu lo 22.

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(v. 6-16), a parte central do capítulo, trata de três elementos distintos, mas essenciais da preparação:

(a) A preparação de Davi, Salomão, e Israel por Deus por meio de sua promessa de aliança (v. 7-10);

(b) A necessidade de Salomão de autopreparação por meio da obediência a Deus (v. 11-13); e

(c) a provisão de material suficiente e trabalhadores habilidosos (v. 14-16).Como o restante dos capítulos 22— 29, este capítulo não parece ter fonte

óbvia no material bíblico mais antigo. Contudo, a influência de três partes sepa­radas do Antigo Testamento é prontamente identificável. Primeiro, os versículos 7-10 expõem a promessa da aliança davídica de 2Samuel 7 (= ICr 17), em comum com outras passagens no relato de Crônicas da Monarquia Unida (IC r 28.2-7; 2Cr6.15-17; 7.17-18).

Em segundo lugar, a transmissão de Davi para Salomão é moldada conforme os elementos da designação de Josué por Moisés (especialmente Dt 31; Js 1). Embora paralelos também possam ser traçados com a designação de líderes como Saul e Davi, 2 características da comparação se sobressaem. A primeira é que o fracasso de Moisés e de Davi de realizar plenamente suas intenções é contra­balançada pela realização de seus sucessores (v. 6-9; 28.3; Dt 1.37-38; 31.2-3). Conquistar a Terra Prometida e construir o templo era um privilégio muito grande para ser confiado a um só indivíduo e, em ambos os exemplos, a Bíblia sublinha que é Deus quem planeja a tarefa e garante sua realização (cf. também ICo 3.6-7). A segunda é a repetição de certas idéias e frases distintivas. Isso inclui exortações sobre a obediência à lei de Deus (v. 12-13; 28.7-9; Dt 31.5; Js 1.7-8), e vários incentivos notáveis como Seja forte e corajoso (v. 13; 28.20; Dt 31.7,23; Js 1.6ss.), não temas nem te desalentes (v. 13; 28.20; Dt 31.7,23; Js 1.9), e O S e n h o r será contigo(v. ll,16;28.20;Dt31.6,8,23;Js 1.5,9).128 O paralelo entre Josué e Salomão não é um expediente rígido, visto que Davi também foi moldado sobre Josué como alguém que completou a conquista da Terra Prometida (veja comentários sobre1 Cr 13.5 e sobre os capítulos 18 e 20). O propósito aqui parece ser demonstrar que a tarefa de Salomão não era menos crucial do que a de Josué, e requeria as mesmas qualidades de fé e coragem.

Em terceiro lugar, Crônicas é consideravelmente devedor do relato de Salomão de IReis. Cada seção do capítulo 22 tem alguma associação com IReis, e, mesmo que detalhes completos sejam dados abaixo, dois aspectos são dignos de se

128 Veja especialmente H. G. M . W illiamson, “The accession of Solomon in the books of Chronicles” , VT 26, 1976, p. 351-361; D. J. M cCarthy, “A n installation genre?” , JBL 90, 1971, p. 31-41; R. L. Braun, “Solom on the chosen tem ple builder”, JBL 95, 1976, p. 586- 588. Características que ocorrem n a nomeação de outros líderes são a combinação de nome­ações públicas e privadas (Moisés, Êx 3.7-10 e 4.29-31; Saul, ISm 10.1 e 10.17-25; e Davi, ISm 16.1-13 e 2Sm 2.2-4; 5.1-3), e plena aceitação pelo povo (veja Êx 4.30-31; ISm 10.24;11.14-15; 2Sm 5.3).

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enfatizar agora. O quadro básico para o todo de lCrônicas 22—29 parece ter provindo de IReis 2.1-12, visto que este último começa com a morte iminente de Davi, como o versículo 5 aqui, e termina com a fórmula de conclusão para o reinado de Davi, exatamente como em lCrônicas 29.26-30. Além disso, duas características distintivas do relato de Crônicas sobre esses preparativos en­contram-se em diversos lugares de IReis, a saber, a consciência do próprio Davi de sua incapacidade para construir o templo (v. 7-9; 28.2-3; cf. IRs 5.3-4, versões modernas [v. 17-18, TM]; 8.17-19), e seu reconhecimento da inexperiência de Salomão (v. 5; 29.1; cf. IRs 3.7). Essa extensa dependência do capítulo 22 de material bíblico mais antigo apóia a tese de que os preparativos de Davi para o templo em Crônicas são historicamente baseados, e não são apenas uma peça da tradição pós-exílica. De qualquer maneira, o fato de que Salomão começou a obra de construção já no quarto ano de seu reinado (IRs 6.1,37) torna imprová­vel que ele pudesse ter acumulado recursos suficientes sem a prévia assistência de seu pai.

A preocupação do cronista com o templo certamente estimulou seus contemporâneos a considerarem sua própria atitude para com o culto e as ofertas, embora a aplicação precisa deste material não seja mais recuperável. Uma tendência constante de negligenciar ou desprezar o culto no segundo Templo é evidente no Antigo Testamento, e Esdras e Neemias em particular fizeram um esforço extremo para assegurar que o povo, os sacerdotes e levitas levassem suas responsabilidades a sério. Esses dois homens também fizeram provisão substancial para o templo, incluindo metais preciosos (cf. v. 14-16; Ed 8.24-34; Ne 10.32-39; 13.10-14; cf. Ed 2.68-69; Ne 7.70-72), e ambos encora­jaram o povo a preparar-se para o culto pela obediência à lei de Deus através de Moisés (cf. v. 12-13,19; Ne 7.73b— 10.29). Malaquias também manifestou grande preocupação sobre essa questão (e.g. Ml 1.6-14;3.6-12).

No Novo Testamento, o conceito de templo de Deus se transformou através da encarnação de Jesus. Jesus contrastou a demolição do templo de Herodes (Mc 13.1-2; Mt 24.1-2; cf. 2Cr 7.19-22), com a ressurreição do templo de seu corpo (Jo 2.18-22), e Pedro e Paulo ambos viram a igreja como um novo templo ressuscitado (ICo 3.16-17; 2Co 6.16; lPd 2.5). Aigreja, como o templo de Salomão, está sendo cuidadosamente preparada para a presença de Deus (Ef 5.25-32), e os crentes devem continuar a construí-la com obra caracterizada como ouro, prata e pedras preciosas (IC o 3.10-15), purificando constantemen­te a si mesmos das práticas pecaminosas (2Co 6.14—7.1). Deus também está preparando sua igreja, tendo-a purificado através da morte de Cristo (Ef 5.25- 27) e aprontando-a para ser “como a noiva belamente adornada para seu espo­so” (Ap 21.2). Só na nova Jerusalém o plano de Deus, de habitar permanente­mente entre seu povo (2Cr 6.1 -2,18,41; 7.16), primeiramente anunciado a Moisés (Êx 19.5-6; 25.8; 29.44-46), será finalmente completado e um templo separado se tornará supérfluo (Ap 21.1-5,22).

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a. A preparação dos trabalhadores e dos materiais (22.2-5). Davi reuniu uma força de trabalho (v.2,4), juntamente com materiais de pedra, ferro, bronze e cedro (v. 2-4; cf. 14-16). Os trabalhadores aqui eram estrangeiros (v. 2) i.e. habitantes não israelitas de Canaã. A introdução por Davi de um sistema de Irabalho forçado, embora mencionado diretamente apenas aqui, foi insinuado pela presença no “gabinete” de Davi de um oficial responsável pelo trabalho Ibrçado (2Sm 20.24). O mesmo oficial (Adorão, 2Sm 20.24; IRs 12.18; = Adonirão, IRs 4.6; 5.14; = Hadorão, 2Cr 10.18) continuou sob Salomão, que expandiu o sistema. Era costumeiro no antigo Oriente Próximo prisioneiros de guerra e po­vos submetidos proporcionar a força de trabalho básica para projetos de cons­trução maiores. Aqui eles agiram como cortadores de pedras, pedreiros, car­pinteiros, e hábeis trabalhadores em metal (v. 2, 15-16). Alguns dos materiais eram despojos das guerras de Davi (cf. 18.8,11), outros foram providenciados de maneira especial. Menção particular é feita do cedro (v. 4), ao qual Salomão aumentou (IRs 5.6, 8-10, versões modernas [v. 20,22-24, TM]; 2Cr 2.8-10,16) e que era uma das características marcantes do templo (cf. 17.1,6). Provisão seme­lhante também foi feita para o Segundo Tempo (Ed 3.7).

5. Salomão também tinha de ser preparado porque ele era inexperiente, como ele mesmo reconheceu em seu famoso pedido por sabedoria (IRs 3.7). A palavra (heb. rãk) implica alguém que necessita de mais preparo e instrução e que deve buscar sabedoria para viver (cf. v. 11-13; Pv 4.3). Uma deficiência semelhante do desenvolvimento pessoal de Roboão foi uma causa que contri­buiu para a divisão do reino (2Cr 13.7).

O templo devia sua fam a e esplendor a mais do que apenas suas qualida­des arquitetônicas. Davi vislumbrou sua magnificência como uma expressão da aliança davídica (v. 7-10; 28.1-10) e do reino de Deus (29.10-13), enquanto para Salomão ele era o lugar da morada terrena de Deus e onde ele devia responder à oração (2Cr 6.18-42). De todo modo, ele despertou o interesse de todas as na- ções(cf. Is2.1-4 = M q4.1-3;Is56.6-8;Z c 8.20-23; 14.9,16-17).

b. A preparação do construtor do templo (22.6-16). Davi explica em três estágios por que e como o templo deve ser construído;

i. O templo cumpre a promessa de Deus (22.7-10). Ele será um cumprimento da promessa da aliança de Deus de construir para Davi uma casa dinástica (2Sm7.1-17=1 Cr 17.1-15).Os versículos 7-10 são uma exposição da aliança davídica em seu significado para o templo proposto. Davi relembra sua própria esperança frustrada sobre a construção (v.7; cf. 2Sm 7.1-2,5 = lC r 17.1,4), mas recebe uma resposta por meio de uma palavra de Javé que parece ser subseqüente à profecia de N atãe que é aludida em Reis (v. 8-10; c f IRs 5.3-5, versões modernas [v. 17-19, TM]; 8.17-19). Amensagem original de Natã foi ampliada de três maneiras - (a) Davi não podia construir porque ele é um “guerreiro” (28.3) que havia derramado

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muito sangue (v. 8); (b) Salomão (heb. shHõmõh - seu outro nome era Jedidias, 2Sm 12.25) como um homem de paz está qualificado para a construção porque em seu reino Deus lhe dará descanso e Israel terá paz (heb. shalôm) e tranqüilidade (v. 9; cf. v. 18); (c) Salomão é agora identificado com a/o “semente/descendente” anônima(o) de 17.11. A aliança davídica, portanto, será inicialmente cumprida, mas não exclusivamente, através de Salomão - é ele que construirá a casa, ele desfru­tará do status de filho (adotado) de Deus, e cujo trono será estabelecido (v. 10; essas três frases são quase idênticas a seus equivalentes em 17.11-14). Ao lado deste foco direto sobre Salomão, as palavras para sempre são uma insinuação inequívoca de que tanto a aliança quanto o templo possuem uma dimensão escatológica que ultrapassará em muito a Salomão.

A desqualificação de Davi não era por causa de pecado, pois ele havia lutado “diante de mim” (v. 8, NVI, RSV; à minha vista, REB, NEB, NIV, NRSV). Foi Deus quem lhe prometera vitória militar (14.10,14;17.11)eo capacitou a realizá- la (18.6,13; 19.13). Foi sugerido que as guerras de Davi geraram alguma impureza cerimonial, mas o objetivo principal é provavelmente sublinhar o contraste com o reinado de Salomão como um reinado de paz e tranqüilidade. O trocadilho com o nome de Salomão, encontrado somente aqui, é apenas a característica mais óbvia deste. E igualmente significativo que Crônicas veja o reinado de Salomão como tendo cumprido as condições do “descanso”, exigidas na lei deuteronômica como pré-requisito para se construir um templo para o nome de Deus (Dt 12.10-11). Embora outros líderes tivessem feito contribuições substanciais, com o intuito de atingir esse “descanso”, principalmente Josué (sobre descanso tanto como substantivo, heb. menuxa, quanto verbo, heb. nüax, cf. v. 9 e Js 1.13; 21.44; etc., sobre tranqüilidade, heb. sheqet, cf. v.9 e Js 11,23)129 e Davi (2Sm 7.1,11, e comentários sobre 1 Cr 17.1,10), somente no reinado de Salomão Israel desfrutou plenamente de tais condições.130 Como resultado, o templo representava não somente o dom de Deus de paz e perdão (cf. cap. 21) para a Israel, mas era um símbolo permanente de que Deus havia mantido sua promessa a respeito da terra. O versículo 8 não diminuiu o papel de Davi nisso, visto que suas guerras proporcionaram as condições necessárias para a paz de Salomão. Nem Crônicas contradiz IReis 5.3, conforme se propõe às vezes, como se somente restrições de tempo originalmente tivessem impedido Davi de realizar a construção. De fato, IReis 5.3 afirma o propósito de Deus, através de Davi, de “Colocar seus inimigos sob seus pés”, e jamais considera que Davi nem mesmo tenha tentado realizar a tarefa que o Antigo Testamento consistentemente atribui a Salomão.

129 Para mais detalhes, veja R. L. Braun, ‘Solomon the chosen temple builder’, JBL 95, 1976, p. 581-590.

130 Os conflitos de fronteira m encionados em lR s 11.14-28 aparentem ente são descon­tados, talvez porque não ocorreram propriam ente dentro de Israel.

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ii. Instruções especiais para Salomão (22.11-13). Davi agora ordena a Salomão que construa a Casa (v. 11). No processo ele estende a relação entre lemplo e aliança ao salientar a necessidade de se obedecer a palavra de Deus, seja na profecia (v. 11) seja na lei mosaica (v. 12-13). O templo deve simbolizar a obedi- i-ncia de Salomão tanto à aliança mosaica quanto à davídica. A necessidade de que as condições da aliança sejam adequadamente mantidas não anula a promessa incondicional de Deus. Ao contrário, a obediência leva as promessas de Deus a (.'feito. As alianças bíblicas eram de fato regularmente instituídas através da fé obediente de um mediador da aliança - veja Gênesis 6.18,22 (Noé); Gênesis 15.6; 17.9-14,23-27 (Abraão); Êxodo 19.5-6; 24.3-8 (Moisés e Israel); Mateus 26.26-28; llb 5.8-10; 10.12-18 (Jesus e a nova aliança). Nesse caso, Davi e Salomão complementam um ao outro no estabelecimento da aliança - Davi por meio de suas conquistas e seus preparativos, e Salomão em sua obra de construção.

Os versículos 11-13 (com 28.10,20) representam um gênero de instalação ou comissionamento, composto de três componentes, a saber, (a) a garantia de auxílio divino (o S e n h o r será contigo, v. 11); (b) incentivo (que tu tenhas êxito, v. 11,... seja forte e corajoso. Não temas nem te desalentes, v. 13); e (c) instrução para empreender a tarefa (construa a casa, v. 11). A fraseologia particularmente lembra a designação de Josué (Dt 31; Js l) .131

A forma desse gênero realmente é bastante flexível, mas ainda mais impor­tante, ele reconhece que o chamado de Deus para qualquer tarefa invariavel­mente inclui os meios de realizá-la. Esses meios são transmitidos pelos dons da prudência e entendimento (v. 12, NVI, NRSV, RSV), e por uma garantia da pre­sença de Deus. O S e n h o r será contigo (v. 11, também v. 6) não é apenas um desejo convencional, mas uma peça vital da teologia do Antigo Testamento: ela garante o sucesso final de Salomão (v. 11,13) e antecipa a obra capacitadora do Espírito Santo no Novo Testamento. O fato de que as instruções de Davi estão encerradas em uma oração por seu filho demonstra sua própria consciência de que o templo só seria completado pela dependência do auxílio de Deus.

iii. A provisão de Davi para Salomão (22.14-16). Por fim, Davi descreve os preparativos de homens e materiais já iniciados, embora em comparação com os versículos 2-4, essa passagem dê mais ênfase aos metais preciosos e inclua uma variedade mais ampla de trabalhadores hábeis. Novamente a grande quantidade de materiais é consistentemente salientada, e no versículo 16, além de/sem núme­ro é melhor se aplicado aos metais do que aos artesãos, como na B J. A quantidade de ouro e prata (v. 14) é impressionantemente enorme, mesmo para Crônicas, excedendo em muito referências semelhantes a esses metais durante a Monarquia Unida (cf lC r 19.6; 29.4,7; 2Cr 9.9,13). A luz dessas comparações, e da proporção

131 Veja a seção introdutória deste capítulo.

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razoável entre ouro e prata aqui; parece provável haver um erro na transmissão escribal. “Com grande sofrimento” (v. 14, NRSV, RSV, cf. NVI) também pode ser traduzido “por meus esforços” (GNB, cf. Keil, Rudolph), “mesmo sendo pobre” (BJ, cf. Ackroyd), ou “a despeito de todos os meus problemas” (NEB). Há pouco a escolher entre essas alternativas, embora a última pareça menos provável. Em resposta ao imperativo de Davi, “tu podes aumentar” (v. 14, NRSV, RSV, BJ; essa é preferível ao jussivo de REB, NEB NTV, que tu...), Salomão adquiriu mais materi­ais, em particular cedro do Líbano (1 Rs 5.1 ss. = 2Cr 2.1 ss.).

A ordem final de Davi a seu filho é, levante-se e faça o trabalho! (v. 16, RSV). Isso levanta a questão sobre se os eventos de lCrônicas 22, 28— 29 pertencem ao período de Davi e à co-regência de Salomão (cf. 23.1; 1 Rs 1.20,37, 43-48).132 Embora a debilidade física de Davi (lR s 1.1-4) possa parecer descartar a forte liderança descrita nesses capítulos nessa última fase de seu reinado, vários fatores parecem apoiar tal reconstrução. O ponto decisivo é que é impos­sível imaginar o papel central, dado a Salomão em lCrônicas 22, 28— 29, como tendo acontecido antes das circunstâncias confusas que culminaram no golpe fracassado de Adonias. O futuro de Salomão fora negligenciado, antes que sua dramática coroação decisivamente resolvesse o assunto da sucessão. De qual­quer maneira, as atividades de Davi em lCrônicas 22, 28— 29 não são inconsis­tentes com a idade avançada. Ele apenas é descrito como tendo feito pronunci­amentos (ICr 22.6-19; 28.1 -10,19-20; 29.1-5), orado (29.10-20), entregado as plantas do templo (28.11 -18), e iniciado o breve período de levantamento de fundos parao templo (29.1-9).133 Para complementar o relato de Crônicas, o registro mais antigo relata que Davi pôs em prática suas instruções, no último estágio de seu reinado, com o costumeiro vigor (lR s 1.28-35). Além disso, se é correto conside­rar lCrônicas 22— 29 como uma expansão das últimas palavras de Davi em IReis2.1-12, é provável que Crônicas tenha adiado a pressuposição básica de que Salomão foi feito rei. Parece, portanto, que Crônicas fez uma contribuição impor­tante ao relato dos últimos anos de Davi.

c. A preparação dos líderes de Israel (22.17-19). A ocasião na qual Davi dirigiu-se a todos os príncipes de Israel (v. 17) não é especificada, e pode fazer parte ou não da assembléia geral dos capítulos 28—29 (sobre os príncipes/ líderes, cf. 28.1,8). Davi novamente (cf. v. 9) salienta de três modos distintos que a paz (v. 18, GNB, NRSV, RSV, REB, NEB) de que Israel desfruta é uma precondição dada por Deus para a construção de um santuário (v. 19; cf. 28.1). Com duas das

132 Sobre os detalhes e pano de fundo dessa co-regência, veja E. Bali, ‘The coregency of David and Solomon (1 Kings I)’, VT 27, 1977, p. 268-279.

133 lC rô n icas 22.2-4 pode p ertencer a um período m ais an tigo dos p repara tivos do templo, em bora seja im possível se ter certeza, enquanto 22.5 é claram ente um resum o dos discursos de Davi nos capítulos 22, 28— 29.

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frases características de Crônicas, os líderes são desafiados a participar com Salomão, desse modo continuando no reinado de Salomão as qualidades posi­tivas associadas a seu pai. Eles devem ajudar (v. 17) Salomão, um termo que cvoca fortemente a ajuda que Israel prestou a Davi (lC r 12.1,17,18,21,22), e eles devem buscar o S en h o r (v. 19) como Davi o havia buscado (cf. 13.3; 14.10,14). Davi explica como buscar (“aplicai vosso coração e vossa alma”; cf. BJ, REB, NEB) e o que isso significava na prática (edificar o santuário). Como em outras passagens, “buscar” é mais um ato de obediência do que uma busca por orien­tação, e Davi novamente sublinhará sua importância ( lC r 28.8-9). O templo futu­ro servirá a uma dupla função (v. 19): alojar os utensílios sagrados da casa, especialmente a arca, e exaltar o Nome do S e n h o r diante do povo (v. 7,8,10; 28.3; 29.16 cf. 2Cr7.16; 20.8-9; 33.4,7).

iii. Os levitas se preparam para o templo (23.1—26.32).“Esses foram os descendentes de Levi... que serviam no templo do S e ­

n h o r ” (23.24, NVI, NRSV, RSV)Os próximos cinco capítulos contêm principalmente listas de levitas,

complementadas por listas separadas de sacerdotes (24.1-19) e oficiais reais (cap. 27). Embora isso possa fazê-los parecer menos atrativos, eles dão uma contribuição importante a todos os preparativos de Israel para o templo (cf. o lema semelhante de preparação nas listas dos caps. 1— 9 e 15.4-10,16-24).134

Davi antes de tudo divide os levitas em quatro grupos (23. l-6a). Maiores detalhes de sua organização são dados em seguida. Aqueles que deveriam servir no templo são tratados em 23.28-32, e os três grupos restantes nos capítulos 25— 26 na ordem inversa aqui, de acordo com sua decrescente pro­ximidade ao templo. E essa associação com o templo que dá a pista quanto à natureza dessas listas, e isso é confirmado por sua posição global nos capítu­los 21—29. Enquanto o capítulo 22 estava relacionado com a preparação dos construtores do templo, essa seção envolve a preparação daqueles que servi­rão no templo.

Uma dimensão freqüentemente desprezada, mas importante, é o apoio dado pela família real (23.1) e pela administração real (cap. 27). Todo o projeto é um esforço coletivo do pessoal real e religioso unidos por seu compromisso para com a aliança davídica. No final das contas, os preparativos incluirão todo o povo (caps. 28— 29), de maneira que os capítulos 23— 27 são um elo importante cm uma corrente que envolve todos os principais setores da sociedade israelita na construção da casa de Deus.

134 Para opinião semelhante sobre a função de lC r 23— 27, cf. J. W. Wright, ‘The legacy of David in Chronicles: The narrative function o f 1 Chronicles 23— 27’, JBL 110, 1991, p. .’ 29-242.

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Uma variedade de listas foi usada para realizar esse propósito. É ampla­mente assumido que as listas sejam produto da organização pós-exílica do tem­plo, nos próprios dias do cronista ou na época de (um) revisor(es) tardio(s).135 Mas, o material como um todo não se encaixa facilmente nesse contexto. Embora a evidência corroborativa para os arranjos subjacentes às listas não seja exten­sa, alguma correlação é possível, particularmente com a organização de músicos e porteiros no período de Esdras-Neemias. Infelizmente, os detalhes nesse últi­mo não correspondem a lCrônicas 23— 27. Os hemanitas, por exemplo, a mais proeminente das três famílias musicais de Asafe, Jedutum e Hemã em 1 Crônicas 25, não aparecem entre os músicos do período pós-exílico (cf. Ed 2.41; Ne11.17,22). Além disso, enquanto aqui os músicos e porteiros são vistos consis- tentemente como levitas (caps. 23— 27), sob Esdras e Neemias, os porteiros sempre, e os músicos costumeiramente, eram tratados como grupos indepen­dentes (e.g. Ed 10.23-24;Ne7.43-45; 10.28; 11.15-19).

É improvável, portanto, que os capítulos 23—27 descrevam uma situação entre o retomo do exílio e o período de Esdras-Neemias. Sua origem deve ser ou anterior ou posterior. Uma data posterior pode ser defendida com base na evidên­cia independente para o sistema de turnos sacerdotais (ICr 24) do segundo séculoa.C. em diante (veja abaixo os detalhes). Pode presumir-se também (como freqüentemente acontece) que os levitas sofreram um processo de expansão, acrescentando gradualmente as categorias de músicos e porteiros e aumentando as divisões entre os músicos. Mas a evidência pode igualmente ser interpretada na direção oposta, a saber, que houve um movimento crescente em direção à independência entre os vários grupos levíticos. O último ponto de vista encontra algum apoio na geral falta de interesse em relação aos levitas, no período de Esdras-Neemias, embora uma tendência para a desintegração de estruturas levíticas seja evidente também em outros períodos (cf. Jz 17— 19). Deve-se também levar a sério a compreensão de Crônicas de que os arranjos para os levitas e sacerdotes descritos aqui se originaram no fim do período davídico (e.g. 23.1,6; 24.3,6,31; 25.1). Ademais, se as listas em si mesmas não são pós-exílicas, não há razão por que o próprio cronista não deva ser visto como o editor. Essa conclusão seria consistente com dois aspectos do estilo do cronista. Um é seu uso de listas para antecipar uma nova seção de narrativa (ICr 1—9; 15.4-10, 16-24), o outro é sua apresentação das realidades passadas como um ideal presente. Ainda que nem a arca nem a monarquia davídica existissem no período pós-exílico, por exemplo, o cronista usou a ambas para inspirar seus leitores. Pelo mesmo motivo, não pode haver objeção, em princípio, para a evocação que o cronista faz do passado dos levitas como um estímulo à renovação do culto do templo no presente.

135 Para um cauteloso exemplo deste tipo de abordagem, veja H. G. M. W illiamson, ‘The origins o f the tw enty-four priestly courses’, SV T 30, 1979, p. 251-268.

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Essa abordagem não é invalidada por algumas inconsistências nas lis­tas. Por exemplo, algumas passagens (e.g. 26.20-32) são apenas vagamente associadas com o quadro de 23.2-6a, enquanto outras (e.g. cap. 27) não estão integradas com esse esquema de forma alguma. As listas também parecem vir de uma variedade de datas. Os coatitas e meraritas em 23.16-23 são repetidos com acréscimo de uma geração em 24.20-30,136 os músicos no capítulo 25 parecem ser tomados de duas listas separadas (v. 1-6, 7-31), e a lista dos porteiros (26.1 -19) é pelo menos duas gerações posterior à época de Davi. No entanto, nenhuma das listas deve ser muito posterior ao início da monarquia, e a variedade de origens mostra apenas que o cronista não harmonizou as listas em um esquema cronológico unitário.

Por que o cronista concedeu um perfil tão elevado aos levitas? Três obje­tivos pode ser discernidos. O primeiro é sua intenção de retratar Davi como um segundo Moisés. Embora Moisés tenha sido inicialm ente responsável pela or­ganização do culto em Israel, Davi teve de fazer modificações por causa de mudanças fundamentais que resultaram da ocupação por Israel da Terra Prome­tida e da chegada da arca em Jerusalém. Como as antigas instruções de Moisés, as mudanças de Davi foram obrigatórias para as futuras gerações. Emendas subseqüentes pelos sucessores de Davi, Roboão (2Cr 11.13-14), Josafá (2Cr19.8-11), Joás (2Cr 24.4-14), Ezequias (2Cr 29—31), e Josias (2Cr 34.9-13; 35.3-15), íbram muito menos substanciais do que as feitas por Davi.

Em segundo lugar, o cronista mostra a contribuição de cada grupo levítico ao culto do templo. Os sacerdotes em suas divisões (2Cr 8.14; cf. 7.2ss.), os levitas que auxiliavam os sacerdotes (2Cr 8.14), os músicos (2Cr 5.12-13; 7.6) e os porteiros (2Cr 8.14), são todos especificamente mencionados na organização do lemplo por Salomão. Até os tesoureiros (2Cr 8.15) e os vários oficiais reais do capítulo 27 tinham sua parte ( lC r 28.1; 29.6). Toda a seção claramente antecipa a construção e o funcionamento do templo.

O terceiro objetivo do cronista parece estar associado com as reformas de Neemias, onde há um apelo semelhante à autoridade davídica (cf. Ne 12.45-47). A preocupação de Neemias com a negligência em relação aos levitas é quase que certamente compartilhada pelo cronista (Ne 13.10-11; cf 2Cr 24.4-5; Ed 8.15-20), embora seja duvidoso se o cronista, mais do que Neemias, esperava que o sistema ilavídico fosse recriado em detalhes. Ele provavelmente tinha um objetivo mais geral de ver os levitas desempenharem um papel mais central, como parte de um compromisso renovado com o culto de Deus.

Os levitas raramente são mencionados no Novo Testamento, e mesmo quando eles aparecem, a associação com o serviço do templo é incidental (Lc

136 Foi esse fator que levou Williamson a afirmar que o “re v is o r” , que em sua opinião era responsável por várias partes dos capítulos 23— 27, viveu só u rn a geração após o cronista libid., p. 266).

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10.32; Jo 1.19; At 4.36). O cognome de Barnabé, “filho de exortação/encora­jamento” (At 4.36), no entanto, resume bem a descrição de Crônicas do papel deles. Embora alguns levitas esperassem o Messias (Jo 1.19), sua função espe­cífica tomou-se obsoleta com a abertura por Jesus de um “novo e vivo cami­nho” para o templo celestial de Deus (cf. Hb. 10.20) e a destruição do templo de Herodes. Algumas tarefas como as do sacerdócio, no entanto, tomaram-se pri­vilégios a serem desfrutados por cada cristão (cf. lPd 2.5,9), particularmente na área da contribuição ao culto (cf. ICo 14.26).

Talvez sua importância principal para os cristãos seja enfatizar que o povo que serve a Deus é tão importante quanto o esplendor arquitetônico da construção na qual ele adora. No Antigo como no Novo Testamento, Deus não estava contente com sua própria presença em seu templo. O desejo de Deus então e agora é por adoradores verdadeiros (c f Jo 4.23-24; ICo 3.16; 2Co6.16), e para isso a função dos levitas era vital. Sua liderança secundária ou auxiliar, comparável ao papel dos diáconos na igreja primitiva (Atos 6.1-7; F1 1.1; lTm 3.8-13), capacitou e encorajou a outros a servir e adorar a Deus em espírito e em verdade.

O capítulo 23 introduz a organização dos levitas por Davi. A ênfase na preparação para o templo continua desde o capítulo 22, mas a atenção agora se transfere da construção para o pessoal do templo, especialmente os levitas. Os levitas são organizados de antemão por Davi de maneira que quando a obra de construção estiver completa, eles estejam prontos para realizar a dupla função de auxiliar os sacerdotes (v. 28,32) e supervisionar as atividades da casa de Deus (v. 4). Isso pode incluir qualquer coisa desde a posição de administrador da construção até a de líder do culto (versículos 4-5, 28b-32). O termo-chave no capítulo é serviço/ministério (heb. ‘ábõdâ, v. 24,26,28,32), uma palavra que tem forte sabor religioso em Crônicas. Ela resume a tarefa de sacerdotes e levitas (e.g. IC r 6.32; 2Cr 31.16, levitas; ICr 9.13; 2Cr 8.14, sacer­dotes; ICr 28.21; 2Cr 35.10, ambos), e está ligada especialmente com sua ativi­dade na Tenda (IC r 6.48; 9.19) e no templo (1 Cr 28.21; 2Cr 29.35). Os levitas, portanto, encontram seu verdadeiro valor no serviço da casa do Senhor (v. 24,28,32, NRSV, RSV), que incorpora tanto “trabalho” (v. 24, GNB) quanto “adoração” (v. 26,28,32, GNB).

a. Salomão é designado rei (23.1). A declaração geral de que Davi... constituiu a seu filho rei cobre uma multidão de pecados (para um relato deta­lhado das intrigas políticas, veja lRs 1). Este versículo não pretende ser compre­endido cronologicamente, visto que a unção e coroação de Salomão se deram antes dos eventos do capítulo 22 (veja notas sobre 22.14-16). Todavia ele não deve simplesmente ser misturado com lCrônicas 29.22 (“Eles reconheceram Salomão filho de Davi como rei uma segunda vez”).

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Seu objetivo primário parece ser mostrar que a organização dos sacerdo- ics e levitas era uma conseqüência da promessa de aliança de Deus a Davi. O Icmplo e seu pessoal não deviam ser vistos como um estabelecimento religioso independente, mas como um símbolo das duas “casas” do capítulo 17 e,em última análise, do reino de Deus.

b. Recenseamento dos levitas (23.2-6a). Embora à primeira vista, a realiza­ção de um recenseamento pareça contradizer o capítulo 21, é preciso ter em mente que é o objetivo de um recenseamento que lhe dá validade ou não. Visto que este recenseamento capacitou Davi a estabelecer um padrão para o culto no lemplo, ele é coerente com outros recenseamentos divinamente inspirados do Antigo Testamento (veja mais comentários em 21.1-6). Algumas vezes alega-se (t f Rudolph) que a declaração de que Davi “reuniu” (v. 2, NRSV, RSV) os líderes de Israel é simplesmente uma duplicação de 28.1. Esse ponto de vista, no entan-lo, não pode ser apoiado porque não só palavras diferentes para “reunir” são usadas com significados distintos, mas os tipos de líderes envolvidos não são os mesmos. Na verdade, essas duas reuniões são parte de uma política mais ampla de quatro (ou cinco?) ajuntamentos públicos de preparação para o tem­plo. Em acréscimo aos sacerdotes e levitas aqui (v. 2), há menção de assembléias de trabalhadores estrangeiros (22.2), de todos os líderes de Israel (22.17, repeti­do em 28.1), e de “toda a assembléia” (29.1,10). O propósito dessa assembléia (heb, ’ãsaph) ea que os sacerdotes e levitas pudessem receber instruções espe­cíficas do rei na preparação para o templo (cf ICr 15.4; 2Cr 29.4,15).137

Aqueles contados estavam acima dos trinta anos (v.3), embora eles fossem posteriormente empregados aos vinte anos (veja também v. 24,27). Em vista dos números dos levitas registrados nos capítulos seguintes (e.g. 288 músicos, 25.7- 31; 93 porteiros, 26.8-11), o melhor entendimento para a soma de trinta e oito mil seria interpretá-la como trinta e oito grupos ou clãs. Três das quatro seções (v. 4- 5) são tratadas com mais detalhes nos capítulos 25-26, mas na ordem inversa, de acordo com sua proximidade com os sacerdotes (24.1-19) e o templo. Somente a primeira seção, os vinte e quatro mil ou vinte e quatro clãs (v.4), não é especifica­mente mencionada posteriormente, embora suas atividades sejam provavelmente cobertas em 23.28-31. E improvável que a função desta seção maior fosse somente supervisionar as atividades do templo, embora esse seja o significado usual des­se verbo (e.g. ICr 15.21; 2Cr 34.12; Ed 3.8-9). Nesse contexto, “administrar” (GNB) c uma tradução preferível. A leitura “Eu tenho feito” (v. 5, NRSV, RSV; Eu tenho proporcionado, NIV) segue o TM, mas requer o acréscimo de Davi disse (v. 4). IJma mudança muito mais simples é a leitura da LXX (A), Vulg., a saber, “ele fez”

1,7 Cf. J. W. W right, ‘The legacy o f David in Chronicles’, JBL 110, 1991, p. 229-233.

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(NEB, JB, c f GNB). Os termos repartiu (NVI, etc.) e “divisões” (v. 6, NRSV, RSV, etc.), que podem também significar “distribuiu” e “distribuição”, são uma indica­ção de que a designação dos levitas às suas tarefas segue o modelo da distribui­ção de terras às tribos no livro de Josué (cf. e.g. Js 13.7; 14.5).138

c. Os clãs de Levitas (23.6b-23). Os levitas são divididos em três clãs tradicionais, os gersonitas (v. 7-11), os coatitas (v. 12-20), e os meraritas (v. 21- 23) - para listas semelhantes, veja Êx 6.17-25; Nm 3.17-37; 1 Cr 6.16-30). Fora o caso especial dos descendentes de Moisés (v. 14-17), cada família é represen­tada por três gerações. Primeiro vêm os nomes dos três filhos de Levi, segui­dos por seus oito netos, a saber, dois filhos cada de Gérson e Merari, e quatro de Coate. A terceira geração, no entanto, tem pouca semelhança com as outras listas (e.g. os filhos de Izar, v. 18, e Uziel, v. 20, são bem diferentes em Êx 6.21- 22). Os nomes certamente são dos chefes de fam ílias (v. 9,24; “casas dos pais”, RSV), mas não fica claro que geração eles representam. A falta de harmo­nia entre as vinte e duas famílias aqui (nove gersonitas, nove coatitas excluin­do os aronitas, e quatro meraritas) e vinte e quatro grupos de sacerdotes (24.7- 18) e de músicos (25.7-31) sugere que elas são de uma data diferente das listas principais nos capítulos 23— 26, e há algumas indicações de que possam ser anteriores antes que posteriores. A série de notas pessoais sobre a falta de filhos (v. 11, 17, 22) aponta nessa direção, como faz a reaparição de alguns nomes em 26.20-32, ondeSebuel (v. 16; cf. 26.24) e Jerias (v. 19; cf. 26.31-32) em particular precedem Davi em pelo menos algumas gerações. O TM dos versículos 9-10 sofreu durante a transmissão. Os gersonitas normalmente são divididos em duas famílias (Libni [aqui Ladã] e Simei) e não em três como aqui (cf. 26.21-22), e os nomes no versículo 9 são descritos tanto como os filhos de Simei quanto os chefes das fam ílias de Ladã.

Não há necessidade de considerar a nota sobre Arão (v. 13b) como um acréscimo posterior (Williamson etc. ). A prática de anotar listas é freqüente em Crônicas, e é necessária aqui para explicar a ausência de Arão das famílias levíticas, e confirmar a distinção mosaica para entre sacerdotes e levitas (cf. Nm 4.15,19). O versículo 13 contém a lista mais detalhada dos deveres sacer­dotais em Crônicas, a saber, consagrar (NVI), “queimar incenso” (RSV, BJ, GNB), servir a Deus, e dar a bênção (cf. lC r 6.49; 2Cr 15.3; 23.18; 31.2). Curi­osamente uma função de expiação não é diretamente mencionada (cf. lC r 6.49; Lv 1.4; 4.19; 9.7; etc.). É provável que ela esteja incluída nas primeiras duas das quatro atividades, especialmente considerando-se que “queimar incenso” pode ter o sentido mais geral de oferecer sacrifícios (cf. REB, NEB). O sacerdo­te tem um ministério intermediário, direcionado para Deus (na obra de consa­gração, queima de incenso, e ministração) e para o homem (ao pronunciar

138 Cf. Kleinig, Song , p. 40-41.

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bênçãos). Seu ministério também era, como o do rei davídico, divinamente instituído para sempre.

d. Grupos de Levitas (23.24—26.32).i. Levitas no templo (23.24-32). Ostensivamente, essa seção segue-se dos

versículos 2-6a, mas a harmonização das duas passagens é impedida por duas dificuldades principais. A idade dos levitas varia sem explicação (cf. v. 3,24,27), e o canto do louvor de Deus é uma tarefa primeiramente dada a um grupo (v. 5) e em seguida a todos os levitas (v. 30). Em ambos os casos, no entanto, há possíveis explicações. Uma diferença entre a idade mínima dos levitas em um recenseamento e no emprego de fato possui uma analogia anterior no período mosaico (cf. Nm 4.34-38; 8.24). Em ambos os casos, os números são provavelmente melhor inter­pretados como uma redução na idade à luz das exigências concretas, aqui de trinta (v. 3) para vinte (v. 24,27), visto que em parte alguma do Antigo Testamento consi­derou-se que a idade na qual os levitas começavam seu serviço fosse determinada por considerações outras que não as práticas. O serviço do templo certamente Ibmentou o trabalho, ainda que o dever ocasional de transportar arca estivesse para ser abolido. De fato, os levitas e seus deveres tinham sofrido pela longa negligência, tanto antes do tempo de Davi quanto em vários pontos após o exílio (cf. Ed2.40ss = Ne 7.43; Ed 8.15-20; Ne 13.10; Ml 3.3, 9-10). Em cada caso uma campanha de recrutamento teria sido essencial. A referência às últimas palavras de Davi (v. 27) insinua que a inclusão de levitas mais jovens aconteceu bem no final do reinado de Davi, após a assembléia dos versículos l-6a.

Quanto à relação entre as atividades musicais dos levitas nos versículos 2- 6a e versículos 28-31, argumenta-se muitas vezes que as duas passagens são tão incompatíveis que os versículos 25-32 devem ser anteriores (Rudolph) ou poste­riores (Williamson) ao cronista. E possível, no entanto, ser menos drástico. Crôni­cas parece traçar uma distinção entre os levitas em geral, que conduziam a nação no louvor (e.g. 2Cr 8.14-15; 20.19; 30.22; 31.9), e o grupo especial de levitas respon­sáveis pelo acompanhamento musical (assim v. 5; c f cap. 25). De fato, os levitas aqui que deviam agradecer e louvar ao S e n h o r (v . 30) provavelmente represen­tam aqueles que administravam o templo (cf. v. 4), e não todos os levitas. As disposições detalhadas para os três grupos menores são tratadas nos capítulos 25— 26, deixando essa passagem, junto com 24.20-31, como as únicas que se referem às atividades do grupo maior. Por exemplo, a função dos levitas como assistentes dos sacerdotes ocorre tanto em 23.28-31 quanto em 24.20-31. Além disso, as diversas tarefas envolvidas no cuidado com o templo nos versículos 28- 31 não incluem as atividades específicas dos grupos menores, a saber, atuar como porteiros, oficiais e juizes, e tocar instrumentos musicais.

As razões práticas e teológicas que explicam por que Davi reformou as instruções de Moisés sobre os levitas (v. 25-27) estão baseadas nas novas circunstâncias, segundo as quais o templo simbolizava a paz de Israel (v. 25;

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cf. Dt 12.8-11) e o lugar fixo de habitação de Deus em Jerusalém para sempre (v. 25). A associação de “paz” com Davi não contradiz 17.1,10; 22.9, visto que a “tranqüilidade/paz” está associada ao templo, e não a Davi. Em qualquer caso, essas instruções pertencem às últimas palavras de Davi (v. 27) quando seus dias de guerra haviam terminado. O templo também tornaria supérfluos os deveres de transporte dos levitas, embora impusesse novas exigências sobre sua fé na provisão de Deus e na extensão de seu comprometimento como serviço de Deus.139 Uma fé obediente como essa não era mais fácil nos dias do cronista do que nos dias de Salomão, e a realidade da soberania imperial estrangeira deve ter feito muitos questionarem se Deus estava de fato residin­do em Sião. Mas a religião verdadeira não depende da instabilidade dos siste­mas políticos correntes, e Crônicas afirma que a maior prioridade para o povo de Deus é organizar a si mesmo para o culto.

Quanto aos deveres levíticos no templo (v.28-32; cf. 9.28-32), duas caracte­rísticas se destacam: seu papel como assistentes dos sacerdotes aronitas (v. 28,32), e a variedade de seu serviço (cf. ICo 12.4-6). Quatro tipos diferentes de atividades são mencionados: (a) um comitê do prédio (v.28); (b) purificação (“limpeza”, NRSV, RSV, REB, NEB) das coisas sagradas (v.28); (c) preparação do pão e farinha, especialmente o “Pão da Presença” (REB, NEB) ou “pão da propo­sição” (RSV, v. 29; cf. lCr 9.31-32; 28.16; 2Cr2.4; Êx 25.30; 35.13; Lv 24.5-9; e (d) a oferta de louvor duas vezes por dia (c f lC r 9.33; 2Cr 2.4; Ed 3.3; Nm 28.1-8) e nos dias sagrados especiais (v. 30-31; c f 2Cr 2.4; 31.3; Lv 23.1ss; Nm 28— 29). Como assistentes, eles eram mais ativos em salas laterais e pátios, do que no edifício principal, ou preparando alimento e ofertas do que realmente oferecen­do sacrifícios. A ênfase na assistência bate com o importante conceito em Crôni­cas de “ajuda”, que pode se referir ou à ajuda de Deus a Israel (cf. 2Cr 18.31; 25.8), ou ao apoio aos líderes de Israel tanto do governo (lC r 12.1 ss.) quanto os sacerdotais (2Cr 8.14; 30.16-17). Não há nenhuma indicação aqui de que os levitas estejam sendo suprimidos ou removidos, como alguns comentaristas têm muitas vezes suposto - ao contrário, esse era seu dever (v.28), e eles desem­penhavam um papel vital, abaixo somente do rei e dos sacerdotes.

Tudo isso é resumido no versículo 32, com a tripla “responsabilidade” dos levitas (GNB, cf. NVI; “cargo”, ARA, NRSV, RSV; heb. mishmeret) para com a Tenda, o Lugar Santo, e os sacerdotes. A Tenda do Encontro provavel­

119 227 A referência ao transporte do tabernáculo (v. 26) antes que ao da arca (cf. 15.2; 16.14) não pode ser explicada simplesmente como a dependência de um autor diferente de P (N u 3— 4) em contraste com a d ependênc ia m ais com um de D euteronôm io (R udolph, Williamson: cf. von Rad, GCW, p. 107-109). O motivo da mudança deve sem dúvida estar no contexto. Ao passo que os capítulos 21— 29 se ocupam de todo o templo e seu conteúdo, com que o tabernáculo é diretamente comparável, os capítulos 15— 16 se concentram na arca sem qualquer referência a um templo.

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mente é a de Gibeão (IC r 16.39; 2Cr 1.3) e não aquela que temporariamente abrigou a arca (IC r 16.1). “Responsabilidade” é uma palavra importante para o cronista, que a aplica quase inteiramente aos sacerdotes e levitas (também Nm c Hz 40— 48). Ela tem uma conotação dupla, às vezes como um fardo recebido de Deus (cf. 2Cr 13.11; 23.6), e às vezes como uma responsabilidade por ou em lavor de outras pessoas ou lugares (cf. IC r 9.27; 25.8; 2Cr 8.14; 35.2). O ponto principal aqui é que os levitas realmente cumpriam suas responsabilidades (v.32), colocando em prática sua obediência a Deus, ao rei e aos sacerdotes. Nada mais poderia ter sido pedido a eles.

ii. Sacerdotes e assistentes levíticos (24.1-31). A atenção agora vai em direção aos sacerdotes (v. 1-19), mas embora essa seja a referência mais extensa de Crônicas quanto ao sacerdócio, o tratamento do assunto é bastante limitado. Nem o significado nem as funções do sacerdócio são tratados (estas são menci­onadas de passagem em ICr 6.48-49; 23.13; 2Cr 23.18; 31.2). Ao contrário, o capítulo é a inteiramente ocupado com a forma em que os sacerdotes estavam organizados para o “serviço” (v. 3, 19, NRSV, RSV; ministério, ARA). Dois as­pectos desse serviço são enfatizados - que ele deve ser regulamentado por um sistema ordenado de vinte e quatro turnos (v. 1-19), e que ele fornece um padrão a ser seguido pelos assistentes levíticos dos sacerdotes (v. 20-31).

Um assunto mundano como esse torna difícil para o leitor cristão adotar alguma coisa que não seja uma interpretação histórica deste capítulo. O proble­ma é agravado pelo fato de que, de acordo com o Novo Testamento, o sacerdó­cio não é uma função de liderança separada dentro da igreja. Não é que o Novo Testamento anule totalmente o sacerdócio. Pelo contrário, a vinda de Cristo provocou uma mudança decisiva da qual todo crente se beneficia. Por exemplo, lodo crente agora desfruta de acesso direto a Jesus, o supremo Sumo Sacerdote (lif 2.18; Hb 4.14-16; 7.25). Ainda mais radicalmente, todo crente se toma um sacerdote (lP d 2.5,9; Ap 1.6; 5.10), oferecendo sacrifícios a Deus com seus lábios (Hb 13.15) e com seus corpos (Rm 12.1).

Apesar dessas mudanças fundamentais entre o Antigo Testamento e o Novo,I Crônicas 24 tem importância contínua para o pensamento e a prática cristã. Pri­meiramente, este capítulo dá testemunho da necessidade de uma liderança orde­nada e organizada (ICo 14.33,40), ainda que a liderança cristã seja baseada no dom de Deus e não na descendência física (cf. Atos 6.1-7; Ef 4.11-13). Em segundo lugar, ele presume que o sacerdócio pode ser exercido continuamente. Em Israel,I )eus era adorado de noite (cf. SI 134.1)ededia (cf. ICr 23.30-31),dando ao povo garantia permanente de que seus pecados não trariam a ira de Deus sobre si (cf. Lv10.6-7). O culto contínuo também é ministério da igreja, especialmente na área dei ntercessão (cf. 2Tm 1.3) e louvor (cf. Lc 24.53). Esse ministério continua mesmo no céu, onde o povo de Deus cumpre seu papel sacerdotal enquanto “o servem de dia e de noite no seu santuário” (Ap7.15; cf. 4.8; 8.3-4).

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O capítulo levanta dois problemas crítico-literários especiais, a saber, a rela­ção entre os sacerdotes e levitas, e o desenvolvimento histórico do sistema de 24 turnos. O sacerdócio é tratado aqui, de maneira suipreendente, somente como parte de uma seção muito maior sobre os levitas, e mais importância é dada à sua associação com os levitas do que a outros aspectos mais vitais de seu ministério. De fato, essa é uma das passagens que indicam que o interesse primordial do cronista diz respeito aos levitas, resultado de algum modo talvez de sua em crise de identidade após o exílio (cf. Ed 2.36-40; 8.15-20). Aqui os levitas recebem um duplo incentivo: para aceitar a sua função como um acompanhamento necessário ao exercício adequado do sacerdócio e do culto, e para ver na organização do sacerdócio um padrão para a estrutura levítica (cf. v. 5-6,31; 25.7-31).

As origens do sistema de vinte e quatro turnos permanecem encobertas na incerteza. Visto que o Antigo Testamento se refere ao sistema apenas aqui e a referência externa mais antiga pertence ao segundo século a.C., argumenta-se freqüentemente que ele é na realidade muito posterior a Crônicas. O ponto de vista de Schürer e E. Meyer (1896) foi amplamente aceito de que a menção de Jeoiaribe (v.7) no topo da lista das famílias sacerdotais é uma indicação da origem macabéia, já que os macabeus eram descendentes desta linhagem (IMac 2.1). Comentaristas recentes têm sido mais reticentes acerca de uma data tardia, mas as vinte e quatro classes ainda são freqüentemente vistas como o final de uma linha de desenvolvi­mento que começou no retorno do exílio com quatro classes sacerdotais (Ed 2.36-39 = Ne 7.39-42) e gradativamente aumentou para vinte e uma ou vinte e duas classes no fim do quinto século a.C. (Ne 10.1-8; c f Ne 12.1-7,12-21; cf. Rudolph).

No entanto, enquanto é bastante provável que o número de classes sacer­dotais aumentasse durante esse período, não fica claro se e onde lCrônicas 24 se encaixa. Visto que nenhuma das listas em Neemias tem vinte e quatro famílias sacerdotais, é possível que vinte e quatro fosse um número ideal e não real, já no tempo do cronista. Se isto for aceito, não pode haver argumento intrínseco contra localizar a origem do sistema nos tempos pré-exílicos (Myers). O capítulo coloca a disposição nas mãos de Davi (v. 3,31; c f v.6) e menciona os contempo­râneos de Davi como testemunhas (v. 3,6,31). Historicamente, isto não é impos­sível. Partes mais antigas do Antigo Testamento não mencionam nenhum siste­ma diferente, e o próprio número de sacerdotes no primeiro templo teria exigido a existência de algum tipo de escala de serviço (até o santuário em Nobe tinha pelo menos 85 sacerdotes, 1 Sm 22.18; cf. um número semelhante sob Uzias, 2Cr 26.17). Um sistema de “divisões” dos sacerdotes também foi bem estabelecido no período pré-exílico (2Cr 8.14; 31.2; 35.1 -5), e foi restaurado no segundo tem­plo em um espírito de apelo à antiga autoridade (Ed 6.18; 2Cr 8.14).

1-6. Os sacerdotes são divididos em dois grupos de famílias, e os prepara­tivos para a divisão em vinte e quatro turnos são explicados. Os versículos 1-2 formam uma introdução histórica que esclarece a posição dos descendentes de Eleazar e Itamar (sobre a morte trágica de Nadabe e Abiú, veja Lv 10.1-5). No

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TM, o versículo 1 começa mais com uma nota do que com uma oração de fato (lit. “l-i aos/para os aronitas, divisões”), indicando que o capítulo está ligado a dis­posições mais amplas para os levitas. Os versículos 3-6 explicam como a divisão cm turnos foi feita, ainda que os descendentes de Eleazar excedessem em núme­ro os de Itamar na proporção de dois para um(v.4).

A escolha em si foi feita por sortes (v.5). Os procedimentos exatos são obscurecidos por problemas de tradução no versículo 6. As principais alterna- livas são ou que uma sorte foi tirada de Eleazar e Itamar sucessivamente com os últimos oito nomes de Eleazar (assim NVI, NRSV, RSV, REB, NEB)140 ou que duas foram tiradas para Eleazar de cada uma para Itamar.141 Em favor da primei­ra há um padrão semelhante para as 24 classes de músicos, onde os últimos dez nomes foram tomados apenas da família de Hemã (25.4-5, 22-31). O costu­me de se lançar sortes (v.5) foi usado em certos casos como um meio pelo qual aqueles que pertenciam a Deus permitiam a ele expressar sua vontade para suas vidas - c f as descrições provavelmente sinônimas dos sacerdotes como “oficiais sagrados” (REB, NEB; melhor do que “oficiais do santuário”, NRSV, RSV, cf. NVI) e como “oficiais de Deus” {e.g. NRSV, RSV). Ele era particular­mente adequado nesse caso em que as tarefas dos sacerdotes individuais não eram diferenciadas. O sacerdócio não era baseado na capacidade, mas na representação, e até o maior clã de Eleazar não tinha a vantagem - cada família era selecionada de maneira imparcial (NVI; “todos iguais”, NRSV, RSV). O l i s o da sorte naturalmente não contradizia o sistema da designação pelo rei (23.4-6). Ao contrário, ele permitia que tarefas fossem atribuídas às divisões que já tinham sido estabelecidas pelo rei.

A presença de Aimeleque ao lado de Zadoque (v.3) é inesperada, visto que Xadoque costumeiramente era acompanhado por Abiatar(2Sm 15.35; 17.15; IRs 4.4; lC r 15.11). Aimeleque provavelmente era filho deste mesmo Abiatar (c/ 2Sm 8.17; lCrl8.16).142 Talvez a menção de Aimeleque reflita uma crescente separação entre Davi e Abiatar como resultado da rebelião de Adonias (IRs 1.7ss).

7-19. Os sacerdotes são divididos em vinte e quatro turnos. A natureza da lista nos versículos 7-18 é explicada no versículo 19, que conforme essa ordem eles deviam ministrar (NVI). A maneira estabelecida por Arão não foi preservada, mas presumivelmente estava contida em um tipo de manual dos sacerdotes. Os nomes não são de indivíduos, mas das famílias: Ne 12.12-21, por exemplo, dá os nomes dos reais líderes das famílias sacerdotais em c. 460 a.C., listas semelhantes das famílias sacerdotais ocorrem em Esdras e Neemias (Ed 2.36-39,61-63 = Ne 7.39- 42,63-65;Ne 10.1-8; 11.10-14(c/ lCr9.10-13); 12.1-7; 12.12-21), mas nenhuma é

140 A emenda costumeira, como na N EB , é desnecessária, já que o TM também pode ter um sentido distributivo (cf. Keil).

141 Barthélemy, CTAT, p. 463-464, com base no TM; Rudolph, emendando o TM.142 O pai de Abiatar também era conhecido como Aimeleque (ISm 22.20), mas netos em

Israel algumas vezes tinham o mesmo nom e do avô.

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idêntica a lCrônicas 24. De fato, embora doze desses nomes estejam espalhados | por todas as listas de Esdras-Neemias, os doze remanescentes não têm parale­lo na Bíblia. Jedaías (v.7), seis vezes, e Jeoiaribe (v.7), quatro vezes, ocorrem mais freqüentemente em outras passagens. Os macabeus eram descendentes de Jeoiaribe (cf. IMac 2.1), e João Batista de Abias (v. 10; cf. Lc 15). Afam íliade Hacoz (v. 10) teve dificuldade em estabelecer sua genealogia legítima no exílio (Ed 2.61-63 = Ne 7.63-65), mas sua inclusão aqui significa ou sua reintegração ou pelo menos a validade de sua reivindicação. No costume judaico posterior, o número de vinte e quatro turnos era baseado em um calendário lunar de quarenta e oito semanas, com cada turno servindo por uma semana de cada vez, e assim, duas vezes por ano.143

20-31. Um padrão sacerdotal para os levitas. Como no caso da seção anterior, a conclusão (v. 30b-31) explica o propósito dos nomes, a saber, que essa é mais uma lista de famílias levitas. Os nomes são na verdade repetidos a partir de 23.16-23, embora com acréscimo de mais uma geração. Não é necessário considerar a geração extra como a sucessora imediata daquela do capítulo 23, e pode ser que o compilador tenha dado representantes dessas famílias de seus próprios dias. Mais uma dificuldade é que somente os coatitas (v. 20-25) e os meraritas (v. 26-30a) estão incluídos, enquanto os gersonitas são omitidos. Uma explicação possível é que em ambos os capítulos os coatitas sigam os sacerdo­tes, de maneira que o versículo 20 apenas retome a lista do capítulo 23 depois da nota sobre os sacerdotes. Também pode haver mais uma conexão. O restante dos filhos de Levi (v.20) pode ter sido restringido a assistentes sacerdotais, que compartilhavam da responsabilidade pela administração do templo (cf. 23.4) ao lado daqueles mencionados em 23.28-31. Uma analogia para esse tipo de divisão de trabalho é encontrada no fato de que os porteiros também não incluíam gersonitas (26.19), e os tesoureiros não incluíam meraritas (26.20,32).

O ponto central da lista é mostrar que os levitas seguiam o padrão de seus irmãos os filhos de Arão (v.31) ao lançar sortes para seus deveres, a ponto de não dar nenhuma vantagem às famílias maiores (v. 31, cf. v. 5-6; 25.8; 26.13).144 Alguns têm sugerido até que os levitas, no total, tinham 24 turnos (assim

141 Fora as referências ao sistema dos 24 turnos em Josefo (Antiquities Vli: 365-367; Life2), também aparece uma menção em um fragmento originário de Cesaréia (Y. Avi-Yonah, ‘A list of priestly courses from C aesarea, IEJ 12, 1962, p. 137-139), bem como em diversas passagens rabínicas. Em Qumran, talvez em oposição à prática em Jerusalém, 26 turnos foram empregados. Isso era baseado em um calendário solar de 52 semanas (cf. Y. Yadin, ed., The Scroll o f the War o f the Sons o f Light, Oxford: Oxford University Press, 1962, p. 204-206; P. Winter, ‘Twenty-six priestly courses’, VT 6, 1956, p. 215-217). As fontes rabínicas concor­dam que o número de turnos foi alterado mais de uma vez antes de ser fixado definitivamente.

144 A última frase do v.31 não pode ser traduzida com precisão, embora o sentido geral seja claro. A solução mais simples é fazer uma pequena mudança para as vogais de “famílias”, lendo, “as famílias maiores correspondendo às menores” (cf. REB, BJ). NRSV, RSV (cf. GNB) invertem as primeiras duas palavras da frase.

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Rudolph), mas não há outra evidência nos capítulos 23— 27 para esse ponto de vista. Dificuldades textuais surgem no versículo 23 e nos versículos 26-27. As últimas têm implicações mais sérias, visto que uma terceira linhagem, a de Jaazias, parece ser acrescentada aos meraritas ao lado de Mali (v.28-29) e Musi (v.30a).

iii. Músicos (25.1-31). As disposições para os músicos, o primeiro dos grupos especialistas de levitas, são agora apresentadas. A música tinha a mais alta importância no culto israelita, como fica claro em muitas partes do Antigo Testamento, principalmente em Salmos. O papel dos músicos levíticos na con­dução e direção do culto era crucial, pois eram eles que incentivavam o povo a cultuar a Deus com convicção, harmonia e vitalidade. A organização de Davi preparava a condução do culto pelos levitas no templo de Salomão, como é ilustrado pela cerimônia de dedicação do templo, quando a grande orquestra levítica e o coral faziam sua declaração: “Ele é bom; seu amor dura para sempre” (2Cr5.12-14; 7.1-6; c / lCr 15— 16).

Esses músicos estavam divididos em vinte e quatro turnos, segundo a analogia dos sacerdotes. A divisão teve lugar em dois estágios, novamente de acordo com os sacerdotes (cf. cap. 24). Primeiramente eles foram separados em suas três famílias principais (v. 1-6), e depois em seus turnos por meio do lançamento de sortes (v. 7-31).

A unidade do capítulo tem sido questionada, sendo enfatizadas as dife­renças nas duas seções e os versículos 7-31, freqüentemente tratados como uma adição posterior.14’’ A palavra hebraica mispãr, por exemplo, tem significa­dos diferentes no versículo 1 (lista, NVI, NRSV, RSV, GNB) e no versículo 7 (número), e os nomes d - ^ ’■versículos 2-4 estão em uma ordem diferente nos versículos 9-31. Esses aryn-centos, no entanto, não são por si mesmos fortes o bastante para exigir uma conclusão ue origem múltipla. Por outro lado, os versículos 7-31 parecem assumir que cada um dos indivíduos, nos versículos 1-6 tem doze “filhos e irmãos” (v. 9ss.) prontos para o serviço. Provavelmente essa é uma descrição geral de seus descendentes e parentes, e sugere que os citados nos versículos 7-31 são de uma geração ou duas após os versículos 1-6. O envolvimento direto de Davi (v. 1), a menção de seus contemporâneos Asafe (v. 2,6), Jedutum (v. 3,6), e Hemã (v. 4,5,6), assim como as pinceladas pessoais acerca da família de Hemã (v.5), indicam uma origem remota para o capítulo. Por outro lado, é difícil harmonizar a informação de Crônicas sobre as três famílias de músicos com o que é conhecido sobre elas após o exílio. So­mente os asafitas participaram do primeiro retorno (Ed 2.41 = Ne 7.44; cf. Ed 3.10), e mesmo no fim do quinto século, somente os descendentes de Jedutum estavam ao lado delas (Ne 11.17, 22; cf. lEsdras 1.15; 5.27,29). Aausência dos

145 E.g. Rudolph; H. G. M. W illiamson, ‘The origins of the twenty-four priestly courses’, SV T 30, 1979, p. 251-268, especialm ente p. 255-257.

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hemanitas nos acontecimentos pós-exílicos é surpreendente, e contrasta de maneira marcante com este capítulo onde Hemã está em uma posição de certa proeminência (apenas ele é chamado de o vidente do rei, e ele tinha o maior número de filhos, v.5; cf. também ICr 6.31ss.; 15.17ss.). Visto que aqui os nomes de Davi, Asafe, Jedutum e Hemã estão confinados aos versículos 1-6, a conclusão mais provável é que o cronista usou uma lista daqueles que real­mente serviam no templo, sob Salomão ou posteriormente (v. 7-31), para comple­mentar seu relato da divisão feita por Davi (v. 1 -6).

Este capítulo, portanto, provavelmente descreve uma estrutura ideal que não existia nos dias do cronista. Se for assim, ele estava chamando a atenção de seus contemporâneos para a organização do pessoal do culto, do mesmo modo que ele escreveu sobre os objetos cúlticos como a arca (caps. 13— 16). Presumivelmente, seu objetivo era estimular o louvor musical regular, como um ministério importante em si mesmo e como um acompanhamento vital às ofertas dos sacerdotes. O Novo Testamento não provê uma analogia direta quanto ao lugar da música no culto da igreja primitiva, mas o uso de “harpas” nos louvores celestiais (Ap 5.8; 15.2-4) é uma indicação segura de que os cristãos primitivos viviam suas próprias práticas nessa área como uma conti­nuação dos princípios do Antigo Testamento. Sua participação no culto do templo é outra confirmação disso (e.g. Lc 24.53; At 3.1).

1-6. Os músicos são divididos em três grupos de famílias. Davi supervi­sionou a separação dos músicos, provavelmente auxiliado mais pelos “líderes dos levitas” (v.l, GNB) do que pelos comandantes do exército. Estes estariam bastante deslocados aqui, enquanto os líderes dos levitas já tinham sido en­volvidos (23.2), e os líderes dos sacerdotes ajudaram no estabelecimento dos turnos sacerdotais (24.3,6).146

A tarefa dos músicos inesperadamente é descrita como profetizar (v. 1, cf.v. 2-3).147 O contexto indica que essa atividade envolvia tocar instrumentos musicais, e que era realizada sob supervisão do rei (v. 2,6). Essas duas caracte­rísticas são incomuns na profecia israelita. Duas explicações dessa profecia levítica são possíveis. Ou eles traziam mensagens diretas de Deus como faziam os profetas clássicos, do que o levita Jaaziel (2Cr 20.14-17) proporciona uma analogia óbvia (cf. GNB, “proclamar as mensagens de Deus”), ou seu louvor era em si mesmo visto como “profecia” porque proclamava a palavra de Deus com a autoridade de Deus. Outros exemplos deste último caso encontram-se em vários livros proféticos. Em acréscimo às familiares “palavras” de Deus, eles incluem mensagens dirigidas a Deus, hinos e orações do tipo que os levitas teriam usado em seu próprio culto (e.g. Is 12; 42.10-13; Jr 10.6-10).148

146 Heb. f.sã£>ã’também é usado para os levitas em Nm 4.3, 23, 35, 39, 43; 8.24, 25.147 Há um pequeno apoio textual para a leitura “profetas” no v. 1 (cf. BJ), mas isso não

é apoiado pelas palavras sem elhantes nos v. 2, 3.148 Cf. também J. K leining, Song, p. 153-157, 184-185.

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O uso que os levitas fazem da profecia com música é, muitas vezes, visto como uma continuação pós-exílica do ministério dos chamados profetas cúlticos pré-exílicos (seguindo Mowinckel). Alternativamente, esse uso pode ser um desenvolvimento direto, embora não escatológico, da profecia clássica.149 No entanto, toda a evidência restante do Antigo Testamento para a profecia acom­panhada de música em Israel provém de várias partes do período pré-exílico (Êx 15.20; ISm 10.5,10; 2Rs 3.15). Parece mais provável, portanto, que Crônicas proporcione um importante pano de fundo cúltico a um elemento que aparece apenas ocasionalmente na atividade profética.

Das três famílias de músicos (v. 2-6), Asafe tem quatro filhos (v.2), Jedutum seis (v. 3, “Simei” deve ser acrescentado ao TM, como no v. 17), e Hemã quatorze (v. 4-6), dando um total de vinte e quatro. Os filhos estavam sob a supervisão direta de seus pais (v. 3,6), 150 que era por sua vez responsável perante o rei (v. 2,5-6). O termo vidente (v.5) é um sinônimo de “profeta” no Antigo Testamentoe, portanto, deveria ser entendido do mesmo modo como as referências a profe­tizar (v. 1 -3). Tanto Asafe (2Cr 29.3) quanto Jedutum (2Cr 35.15) também recebe­ram esse título. Nenhum outro detalhe é conhecido acerca das promessas de Deus (v.5; cf. NRSV, RSV, GNB, REB, NEB) a Hemã, que aparece fora de Crônicas somente em um título dos Salmos (88.1) e possivelmente lRs 4.31. Sua “exaltação” (v. 5, cf. NRSV, RSV; NVI, “tomá-lo poderoso”) provavelmente é indicada pelo número de seus filhos (cf. SI 127.3-5).151

Os nomes dos últimos nove filhos de Hemã (a partir de Ananias, v.4) são muitas vezes considerados um fragmento de um poema suavemente encoberto. Alguns nomes certamente são incomuns, especialmente aqueles baseados nas formas verbais de prim eira pessoa (e.g. Gidalti, M aloti). Com alguma revocalização e alguma redivisão das consoantes, eles podem ser lidos assim:

T en h a m ise r ic ó rd ia de m im , ó Y ah, te n h a m ise r ic ó rd ia de m im .T u és m eu D eus.E ten h o lo u v ad o e ex a lta d o (a ti, m eu ) A u x ílio (a d o r);Q u an d o e s ta v a e m a d v e rs id ad e , eu d isse ,“ C o n c e d a u m a fa rtu ra d e v isõ e s .” 152

Essa interpretação é uma possibilidade real, embora pareça haver pouca dúvida de que o antigo autor também aceitasse os nomes como reais (cf. v. 23-31).

149 D. L. Petersen, Late Israelite Prophecy, SBLMS 23 (Missoula: Scholars Press: 1977).150 Embora 'ábíhem (v. 6) tenha sido entendido em um sentido distributivo (“pais” ; assim

NVI, K eil), a palavra é singular e, fora as últim as três palavras no TM , o v. 6 se refere somente à fam ília de Hemã.

151 “exaltou” é lit. “levantou seu chifre” . Essa é uma expressão idiomática que significa aum entar a força e o status (e.g. SI 92.10; Lm 2.17), nunca é usada no sentido de tocar instrum ento m usical (contra JB, Dhorme).

152 236 Para traduções variantes, veja e.g. Curtis e Madsen; D. L. Petersen, op. cit., p. 64-66.

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Mas o que significava esse poema? Duas soluções geralmente propostas são que ele é parte de um lamento ou é uma série de “primeiras linhas” (“incipit”) dos salmos favoritos dos hemanitas. Mas as duas últimas linhas parecem dar uma pista mais clara. Elas significam um pedido para que, apesar das circunstâncias difíceis, Deus fale de maneira profética, presumivelmente através dos músicos levitas (“visões” era um termo técnico para profecia).

Música (v.6, NVI, NRSV, RSV; também v. 7) pode teoricamente ser traduzido por “canto” (ARA, REB, NEB), mas o contexto sugere outra coisa. O capítulo trata especificamente de músicos e não de cantores (cf. 23.5 e comentário sobre 15.16- 24; 23.28-31), embora a menção de profetizar mostre que os músicos estavam tão envolvidos no cantar louvores a Deus como seus companheiros levitas.

7-31. Como os sacerdotes, seus superiores, os músicos foram divididos em vinte e quatro turnos. Presumivelmente, cara turno acompanhava um dos turnos sacerdotais regularmente no culto matutino e vespertino. O total é dado como 288 (v.7). Isso parece contradizer os “4.000” de 23.5, embora entender este último como40 grupos (de famílias) torna os números, pelo menos, um pouco mais compatí­veis. Lançar sortes é novamente o método usado (v. 7-8), sem privilégio por idade ou experiência (cf. 24.5,31; 26.13). Os nomes (v. 9-31) de fato seguem um padrão bastante regular, com Jedutum alternando primeiro com Asafe e em seguida com Hemã (v. 9-21), e os últimos dez nomes todos vindo dos hemanitas (v. 22-31). Isso não totalmente artificial, como tem sido alegado. O padrão não é completamente uniforme, e implica um tipo de sistema de “escalação” não diferente daquele usa­do para os sacerdotes (24.5). No versículo 9, Asafe pode não ter sido originalmente incluído (assim REB, NEB), e a frase “ele, seus filhos e irmãos, doze” (cf. REB, NEB, NVI; mas não NRSV, RSV, JB) pode ter sido acrescentada posteriormente à frase sobre José, mas o apoio textual para essas mudanças não é uniforme.153

iv. Porteiros (26.1-19). O capítulo 26 introduz grupos de levitas que aparentemente têm tarefas simples. Eles incluem primariamente os porteiros (v. 1-19) e tesoureiros (v. 20-28), mas também juizes e vários servos civis que trabalhavam fora do templo (v.29-32). Eles representam os dois grupos finais dos quatro mencionados em 23.3-6a. Os “porteiros” de 23.5 incorporam os tesoureiros aqui (v. 1-28), enquanto os vários oficiais nos versículos 30-32 estão associados com os “oficiais e juizes” (v.29; 23.4).

Algo muito importante é afirmado pela inclusão desses grupos, ainda que eles possam parecer representar um desvio do tema principal de Crônicas. Na medida em que o povo de Deus dá atenção adequada ao seu status como uma comunidade adoradora, a distinção entre o sagrado e o secular desaparece. Toda tarefa, quer mundana ou especializada, “religiosa” ou “leiga”, tem valor aos olhos de Deus. Todo levita estava tão envolvido no “serviço do templo do

153 237 Cf. Barthélemy, CTAT, p. 467-468.

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S e n h o r ” como os sacerdotes e seus assistentes imediatos (cf. 23.24,32). Os porteiros deviam “servir na casa do S en h o r lado a lado com seus familiares” (v. 12, REB, NEB), e mesmo os oficiais levíticos na Transjordânia estavam ocupa­dos com “os negócios de Deus... e do rei” (v.32, ARA).

As disposições descritas aqui eram uma preparação para o templo de Salomão, e elas foram especificamente confirmadas por Salomão (2Cr 8.14-15). Embora menos proeminentes do que alguns de seus colegas levíticos, de tem­pos em tempos os porteiros davam uma contribuição vital à vida nacional, prin­cipalmente sob o sumo sacerdote Joiada (2Cr 23.4-6,19), e nos reinados de Ezequias (2Cr 31.14-19) e Josias (2Cr 34.9-13). Os porteiros eram especialmente importantes para o cronista (cf. ICr 9.17-27). Números comparativamente gran­des de porteiros retomaram do exílio (Ed 2.42 = Ne 7.45), e por fim se estabelece­ram em Jerusalém (Ne 11.19; cf. 7.1). O tratamento detalhado em lCrônicas 9.17- 27, que bem pode descrever os desenvolvimentos no tempo do próprio cronista, ou perto disso, sugere que o cronista via neles uma exemplo pelo qual outros podiam ser encorajados. Os tesoureiros em particular provavelmente eram gra­tos pelo apoio do cronista. Com exceção de uma melhora temporária estimulada pelo envolvimento direto de Neemias (Ne 12.44-47), havia um déficit regular nas contribuições para os dízimos (Ne 10.32-39; 13.10-13;M13.6-12).

O cronista parece ter usado várias listas que derivam de diferentes períodos como fontes para este capítulo. A menção de Obede-Edom e seus netos (v. 4-8), por exemplo, é uma insinuação de que os versículos 1-19 se relacionam com a antiga monarquia (cf. 13.13-14; 15.25). Os versículos 1-19, portanto, podem perten­cer a um período semelhante ao dos músicos em 25.7-31, a saber, pelo menos uma geração ou duas depois de Davi. A situação dos versículos 20-32 é bastante diferente, ainda que Davi apareça duas vezes (v. 26,31). Por um lado, alguns dos chefes de famílias levíticas (cf. v. 21,26) são claramente pré-davídicos, enquanto, por outro, há marcas do reinado de Salomão (v. 31-32) senão do final da monarquia (v.27). Para mais detalhes, veja comentário sobre os versículos 20-32 a seguir.

Há diferenças substanciais entre a informação sobre os porteiros e os tesoureiros aqui, e o que se sabe deles no período pós-exílico. No sexto e quinto séculos a.C., os porteiros sempre eram tratados separadamente dos levitas (e.g. Ed 2.42,70 = Ne 7.45,73; Ed 7.24; Ne 10.28; 11.25-26; 12.47). Diferenças ocorrem tanto nos números (93 aqui contra 172 no tempo de Neemias, Ne 11.19, e212 em1 Cr 9.22; cf. também Ed 2.42; Ne 7.45; 11.19) quanto nos nomes dos porteiros (cf. as referências precedentes neste parágrafo). A ausência da família de Obede- Edom após o exílio é particularmente notável à luz de sua supremacia numérica aqui. Por fim, não há um período apropriado, entre a Monarquia Unida e o período hasmoneu, para o tipo de controle amplo sobre a Transjordânia descrito nos versículos 31-32.

Para a igreja do Novo Testamento, a morte de Jesus naturalmente tomou a função dos porteiros do templo obsoleta. A necessidade de tesoureiros, no

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entanto, ainda continuou e eles poderiam ter uma influência significativamente negativa ou positiva no ministério da igreja. Eles tinham o potencial de desvalo­rizar a prioridade do culto (e.g. Mc 11.15-18), e um tesoureiro famoso até traiu o Messias por causa de seu amor ao dinheiro (Mt 26.14-15; At 1.18-19). Alternati­vamente, a liderança financeira na igreja primitiva muitas vezes continuava o padrão de “serviço” do Antigo Testamento (cf. 1 Cr 26.12), como exemplificado no cuidado com os pobres e a consciência da necessidade de outras igrejas (e.g. At 11.29-30; Rm 15.25; 2Co 8.4).

Os porteiros ( “guardas do templo”, GNB) tinham uma tarefa incomum. Essencialmente seu dever era conscientizar o povo dos limites práticos da san­tidade, pois qualquer um que entrasse no santuário ilegitimamente sofreria pena de morte (cf. Nm 3.10). Eles tinham uma responsabilidade especial pelas portas do templo, como uma salvaguarda contra práticas idólatras (cf. Ml 1.10; 2Cr 28.24; 29.3,7), e também para garantir a segurança do templo (cf. ISm 3.15). O trabalho, no entanto, também poderia dar um sentimento especial de privilégio. Como um dos salmistas disse: “prefiro estar à porta da casa do meu Deus, a permanecer nas tendas da iniqüidade” (SI 84.10).

Esta seção é dividida entre os nomes dos chefes de famílias (v. 1-12; cf. chefes, v.12) e a distribuição de cada grupo a vários postos (v. 13-19). Três grupos de famílias são mencionados, os de Meselemias (v. 1-3,9; também co­nhecido como Selemias, v.14), Obede-Edom (v. 4-8), e Hosa (v. 10-11).154 A falta de uma genealogia de Obede-Edom é uma forte indicação de sua identida­de com Obede-Edom o gitita/giteu, que era provavelmente um fílisteu (cf. 13.13- 14; 15.25). E menos certo que ele fosse o mesmo “Obede-Edom filho de Jedutum”, um outro porteiro (16.38), embora ambos sejam associados com Hosa. A nota, Porque Deus o [a Obede-Edom] tinha abençoado (v.5), mostra que a bênção de Deus sobre sua casa (3.14) se estendia ao número de seus filhos (cf. v.8, e para uma expressão semelhante, 25.5).155

A melhor tradução para homens capazes (v. 7, NVI, NRSV, RSV: “homens de habilidade”, REB, NEB; cf. v. 6,8,9,30,31,32) é “homens fortes” (cf. ARA, “valentes”).156 O trabalho podia incluir a remoção de pessoas ou objetos inde­sejáveis (cf. 2Cr 26.16-20), e exigiria alguma força física. A promoção de Sinri

154 239 Os ancestrais de Meselemias (v .l) remontam a Abiasafe (REB, NEB, BJ nota) e não a “Asafe” (NVI, NRSV). Embora a última seja a leitura do TM, ela foi influenciada pela associação de “coreítas” (cf. v. 1) e asafitas nos títulos de salmos. Apoio para a mudança vem de Êx 6.24 (Abiasafe); lC r 6.37 (versões; TM , v. 22); 9.19.

155 240 A variação em núm eros entre 26.8 (62) e 16.38 (68) é exp licada p o r um a diferença de duas gerações. E digno de nota que as somas m ostram um leve declínio, sem qualquer tentativa de forçar a bênção de Deus em um aumento automático para cada geração.

156 240 Sobre a função paramilitar dos porteiros, cf. J. W. Wright, ‘Guarding the gates: 1 Chronicles 26.1-19 and the role o f gatekeepers in Chronicles’, JSO T 48, 1990, p. 69-81.

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(v. 10) tem um paralelo em Crônicas no contrastante rebaixamento de Rúben (5.1-2; cf. também 2.3). Tais mudanças de sorte eram de interesse óbvio nas listas genealógicas, mas as circunstâncias que envolviam a perda de direitos de primogenitura em geral eram rigidamente controladas. Somente rebeldia grave contra um dos pais levava a essas conseqüências drásticas (cf. Gn 35.22; 49.3- 4).157 O número total de porteiros era de 93 (62+18+13), consideravelmente me­nor do que os “4.000” de 23.5, mas como no caso dos músicos, o número maior podia ser reduzido consideravelmente quando explicado como 40 clãs.

Sortes foram lançadas para seus deveres (v. 13), desta vez com base mais nos grupos de famílias do que nas famílias individuais como antes (cf. 24.5,31; 25.8). Os descendentes de Meselemias (= Selemias, v. 14) e Obede-Edom foram ambos divididos em dois, por meio de linhagens separadas a partir de seus primogênitos, Zacarias (v. 14; cf. 9.21) eSemaías (v. 6-7,15). O número total de posições era 24, mas elas não foram distribuídas uniformemente entre as 24 famílias dos versículos 1-12, nem correspondem aos vinte e quatro turnos de sacerdotes e levitas.

Guardar a “porta leste” (14) parece ter sido a posição de maior responsa­bilidade. Este levaria diretamente à entrada do templo, mas ele também reflete o fato de que nos tempos pós-exílicos foi conhecido como a “porta do rei” (c f.

ICr 9.18; Dn 2.49). O papel de Z a c h a r i a s como um c o n s e lh e i r o s á b io pode também indicar uma posição oficial como um conselheiro real (c f. ICr 27.32-33; 2Cr 22.3,4; 25.16).158 A necessidade de um outro guarda na “porta sul” (v. 15) é muitas vezes alegado refletir antes a planta do Segundo Templo do que a do templo de Salomão. No templo de Salomão, argumenta-se, a entrada sul era ligada diretamente ao palácio real, tornando a necessidade de uma guarda desnecessária (Ez 43.8). Mas Ezequiel 43.7-8 está preocupado com a idolatria nos recintos do templo, e a estrutura próxima à porta sul muito provavelmente era um “lugar elevado” ou mesmo um cemitério real como parte do palácio.159 Em qualquer caso, era firme a convicção de Ezequiel de que a necessidade de preservar a santidade do templo não era, de modo nenhum, diminuída por causa da proximidade dos edifícios reais.

Nem a porta Salequete nem o Supim (v. 16) são conhecidos em outras pas­sagens, e este último pode ser resultado de um erro de copista. “Colunata” (v. 18, REB, NEB, NRSV) é o significado mais provável de “Parbar” (BJ, RSV; “pátio”, NIV; “pavilhão”, GNB). A comunidade de Qumran o entendia como uma área de

157 Veja também M. J. Selman em A. R . M illard e D. J. W iseman (eds.), Essays on the Patriarchal Narratives (Leicester: IVP, 1980), p. 126.

158 J. W. Wright, op. cit. , p. 76.159 Veja especialm ente W. Z im m erli, Ezekiel, H erm eneia (Philadelphia: Fortress Press,

1983), vol. 2, p. 416-418; G. C. Heider, The Cult o f Molek, JSOTS 43 (Sheffield: JSOT Press, 1985), p. 392-394.

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pilares isolados a oeste do templo, atrás do Santo dos Santos, e, portanto, talvez comparável à estrutura mencionada aqui, que também ficava a oeste.160

v. Tesoureiros (26.20-28). Esses estavam associados com os porteiros porque as tesourarias ou casas de depósitos (v. 15,17) do templo ficavam perto das portas (cf. 9.26; Ne 12.25). Duas tesourarias separadas são mencionadas: a geral (oí tesouros da Casa de Deus, v.20, cf. v.22) que era supervisionada pelos gersonitas (v.21-22), e uma especial para os tesouros das coisas consagradas (v. 20, cf. v.26) sob o controle de Selomite, um anramita (v.23-28; c f 28,12).

As “coisas consagradas” eram espólios de guerra (v.27), dados por Davi (v.26; cf. lC r 18.11; 2Cr 5.1), e outros líderes (v.28). Os eventos aos quais o versículo 28 se refere não são mencionados apenas aqui, salvo talvez no caso de Saul (cf. ISm 15.21). Uma declaração de que essas ofertas eram para o reparo do templo (v.27; cf. NRSV, RSV, “manutenção”; REB, NEB, “conservação”) é ines­perada, visto que ele ainda não tinha sido construído. Ou isso é uma indicação de uma data posterior para o parágrafo, ou a palavra deve ser compreendida no sentido de “fortalecimento”.

Os nomes de família em todo o texto dos versículos 20-32 estão baseados na lista de coatitas em 23.16-20. Vários detalhes confirmam 23.6b-23, como anti­gos nomes tradicionais de grupos levíticos. Sebuel (v.24, NVI, REB, NEB) ou “Subael” (BJ, GNB, NRSV, RSV) aparece nas duas listas, por exemplo, (cf. 23.16), contudo há um mínimo de seis gerações entre ele e seu descendente Selomite (v. 25,26,28) / “Selomote” (NVI, NEB, REB, NRSV, RSV) que era contemporâneo de Davi (v.24-25). Jerias também aparece nos versículos 31-32 e 23.19, mas visto que a ele é creditado 2.700 parentes no final do reinado de Davi, ele também deve pertencer a uma geração anterior. Há um problema com “Aías” (v.20, NRSV, RSV), cujo nome não aparece mais nos capítulos 23— 27, ainda que ele pareça ser o principal tesoureiro. Seu nome é em geral corretamente lido como “seus irmãos” (cf. NVI etc.) com base na LXX. Também não está claro se Zetã e Joel eram filhos (v.21-22) ou irmãos (23.8) de Jeieli. O dado mais surpreendente é que os coatitas (v.23; cf. 23.12-20) fossem ativos por todo Israel.

vi. Oficiais levitas por todo o Israel (26.29-32). Enquanto os anramitas eram tesoureiros do templo (v. 23-28), os isaritas (v. 29) e os hebronitas (v. 30- 32) tinham “deveres externos” (v.29, NRSV, RSV). Somente sobre os uzielitas (v.23) não são dados detalhes. Os oficiais e juizes (v.29) correspondem ao quar­to grupo de levitas em 23.4 (cf. também 2Cr 19.8-11). Outros oficiais eram ativos

160 Cf. J. Maier, The Temple Scroll, JSOTS 34 (Sheffield: JSOT Press, 1985), p. 35, 90- 91. Também é preferível aceitar a mudança padrão nas versões do TM “levitas” para “cada dia” (NRSV, RSV) na primeira frase do v. 17, com a LXX. Os argumentos de Barthélemy em contrário não são convincentes (CTAT, p. 469-470).

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a oeste do Jordão (v. 30-3la) e na Transjordânia (v. 31b-32). Embora ainda se considerasse que eles estavam fazendo a o b r a d o S e n h o r (v.30, c f. v. 32), eles também eram oficiais reais a serviço do rei (v.30, c f. v.32). Este era um novo desenvolvimento, mas não está claro se isso começou ou não no reinado de Davi e por que o número de oficiais a leste do Jordão com folga excedia o número deles no oeste (v. 30,32). Há uma insinuação aqui de que esses levitas eram parte do exército de oficiais de Salomão (c f. lRs 4.7-19; 9.23), e que suas exigências eram uma das razões da impopularidade de Salomão no norte? Em nenhum outro momento durante a monarquia tantos administradores sob o controle de Jerusa­lém foram ativos na Transjordânia.

iv. Outros líderes preparam-se para o templo (27.1-34).“Pois S e n h o r havia prometido tomar Israel tão numeroso como as estrelas

do céu” (27.23, NVI).Para o leitor moderno, este capítulo parece a menos promissora de todas

as listas e genealogias de Crônicas. Seu conteúdo é secular antes que religio­so, o templo não é mencionado (em contraste com os caps. 23— 26), e mesmo Deus faz uma única aparição breve (v. 23). O quadro de ordem e unidade é muitas vezes considerado ordenado demais, que provavelmente derivado de uma revisão posterior, cujo ponto de vista sobre Davi devia-se mais à admira­ção que à objetividade crítica.

Mas esse tipo de pessimismo é injustificado. Tanto a disposição do capítulo quanto o comentário editorial nos versículos 23-24 sugerem forte­mente que ele é parte dos propósitos do cronista. Embora o templo não seja mencionado diretamente, o capítulo está na realidade tão preocupado com os preparativos do templo quanto o restante dos capítulos 23— 27, exceto que o foco agora foi ampliado dos levitas do templo para “todo o Israel”, um tema predileto de Crônicas. Representantes de todos os grupos mencionados neste capítulo, tais como os oficiais militares (v. 1-15), os oficiais tribais (v. 16-22), e os oficiais responsáveis pela propriedade real (v. 25-31), todos reaparecem em 28.1; 29.6. De fato, todos os líderes de Israel (22.17; 28.1), juntamente com “todo o povo” (28.21; c f. 29.1,10), estavam envolvidos no projeto de constru­ção, e teria sido impossível as ofertas descritas em 29.6-9 serem apresentadas sem o compromisso dos grupos no capítulo 27.

A despeito do sucesso representado por essas listas, a nota explicativa nos versículos 23-24 mostra que Davi certamente não podia receber todo o crédito (para notas semelhantes, veja e.g. 10.13-14; 14.17). O autor real da prosperidade de Israel era o próprio S e n h o r (v.23). O fato de que a soma total da população de Israel não estava disponível (os números em 2 1 .5 são incompletos, cf. 21 .6 e v.24 aqui) é uma clara alusão ao antigo pecado e culpa de Davi (cap. 21). Portanto, no final, os preparativos do templo dão um testemunho mais nítido da confiabilidade e eficá­cia do reino de Deus (cf. 17.14; 29.11 1,23) do que do reino de Davi.

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O capítulo é construído em tomo de quatro listas. Elas se dividem em dois grupos, duas listas relacionadas com a nação (v. 1-24), e duas com o rei (v. 25- 34). O compilador menciona uma fonte (v.24) da qual uma lista (v. 16-22) pode ser derivada, mas todas elas podem ter sido originalmente independentes umas das outras. De outro modo, não há nada intrinsecamente impossível sobre uma origem davídica em cada caso. Isto é verdade mesmo para a primeira lista (v. 1-15), que embora independente dos nomes paralelos em 11.11-31, ainda está arraigada em solo davídico. Certamente é muito mais difícil pensar que a nature­za real dessas listas teve origem no Israel pós-exüico.

Qual, então, é o propósito do cronista ao incluí-las? Parece que os vários aspectos das estruturas políticas de Israel, incluindo as divisões militares (v.1-15), a estrutura das doze tribos (v. 16-22), e uma única autoridade monár­quica por todas as regiões geográficas (v.25-31), confirmam a prontidão de toda a nação para construir o templo. A participação dos oficiais reais é espe­cialmente interessante, visto que é notável que os capítulos 23— 27 comecem (23.1) e terminem (27.25-34) com uma ênfase no comprometimento real. Todo o quadro é às vezes considerado como tendo sido inspirado pela visão de Ezequiel 47—48, onde o templo é rodeado pelas tribos em sua terra novamente organizada (Ackroyd). Contudo, o propósito de Ezequiel era diferente, porque seu novo templo precedia a redistribuição da terra, na ordem inversa às cir­cunstâncias históricas do templo de Salomão. Um paralelo melhor ocorre em Esdras-Neemias onde Israel está unido na vida prática (e.g. Ed 10.9ss.; Ne 3) assim como no culto do templo (e.g. Ed 3.10-13; 6.13-18; Ne 8— 10). Essa extensa unidade nacional, no entanto, não é fácil de ser atingida, e, no ponto de vista do cronista, é mais efetivamente estimulada pelo compromisso da nação com as promessas da aliança de Deus.

A igreja do Novo Testamento, como o reino de Davi, proporciona a opor­tunidade para todos os crentes assim como para os líderes religiosos de tomar parte na construção da igreja (Ef 2.19-22), e, como no Antigo Testamento, não é feita nenhuma distinção entre os domínios do sagrado e do secular. O Senhor é ativo em e soberano sobre toda a vida, e ele deu dons para cada crente para serem usados onde quer que eles sejam adequados (Rm 12.3-8; ICo 14.12).

a. As divisões do exército (27.1-15). O cabeçalho (v.l) é mais facilmente aplicado à primeira lista do que a todo o capítulo, visto que somente as divisões do exército são apresentadas por seus chefes das famílias (cf caps. 23—26). Esses líderes militares estavam diretamente envolvidos nos preparativos do templo (28.1),e, como os levitas, eles serviam ao rei (v. 1; cf. 26.30,32). Provavelmente eles eram responsáveis pelas tropas recrutadas a cada mês e não por um exército permanen­te. Um núcleo mais permanente para o exército era proporcionado pelos Três e pelos Trinta (2Sm 23.8-39 = lCr 11.10-41), juntamente com os queretitas, peletitas egititas (e.g. 2Sm 15.18). Embora os líderes nos versículos 2-15 também pertences­

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sem, como uma possível exceção (cf. v.8), aos Três e aos Trinta (cf. ICr 11.11-31), a menção de uma divisão separada para cada mês sugere que essas unidades provavelmente se alistassem somente em tempos de guerra. Quando o exército estava longe de casa, as disposições sem dúvida eram adaptadas.

Embora não existam mais detalhes sobre a estrutura do exército de Davi, a hipótese comum de que essa disposição é uma criação literária baseada nos supri­mentos mensais de Salomão para a corte (lR s 4.7-19) não deveria ser aceita auto­maticamente. Em primeiro lugar, a corte de Davi tinha seu próprio sistema de suprimentos (v. 25-31), e em segundo lugar, a administração de Salomão e o exér­cito de Davi tinham bases diferentes. Enquanto Salomão recebia seus suprimen­tos de novas áreas geográficas, Davi parece ter selecionado seus principais solda­dos mais por razões individuais do que por fatores geográficos ou tribais. Seis dos doze comandantes eram de Judá (v. 3,7,9,11,13,15), dois eram efraimitas (v. 10,14), um era levita (v. 5-6), um benjamita (v. 12), e dois de origem desconhecida (v. 4,8).

Diversos nomes têm variantes quando comparados com 1 Crônicas 11.11-31, ou na grafia (cf. e.g. v. 15 e 11.30) ou no patronímico (cf. e.g. o nome da família de Jasobeão em 11.11 é substituído pelo nome de seu pai, v.2). Duas vezes, o nome do foi substituído pelo de seu filho - Amizabade sucedeu Benaia (v.6, cf. LXX, Vulg.), e Zebadias seguiu Asael (v.7; cf. 11.26), que foi morto antes que Davi se tomasse rei sobre todo Israel (2Sm 2.18-23). Miclote também pode ser o neto de Dodai (w.4,NVl, GNB;ç£ 11.12, onde o filho de DodaiéEleazar).161 Emboraaforma desta lista pareça ser baseada na primeira parte do reinado de Davi, ela também inclui retificações de seus últimos anos. A presença de um sacerdote responsável por uma das tropas recrutadas (v.5) não é surpreendente visto que sacerdotes e levitas não estavam isentos da atividade militar (cf. 11.22-24; 12.26-28). Se Joiada era realmente “sacerdote-chefe” (BJ, REB, NEB) é incerto, jáque sua relação com Abiatar, sacerdote de Davi (cf. 15.11; 27.34), é desconhecida; outros têm entendi­do que ele era simplesmente chefe de sua divisão do exército (NVI) ou mesmo “oI íder dos ‘Trinta” (GNB, cf. 11.25). Samute (v.8) é o único comandante que não tem paralelo no capítulo 11, mas ele pode ter sido confundido com um dos dois “Samas” (2Sm 23.11-12; veja comentários sobre ICr 11.11-47; I Cr 11.27; cf. 2Sm 23.25). A soma de vinte e quatro mil para cada uma das tropas recrutadas é claramente um número ideal ou redondo. E melhor entendê-lo como 24 unidades, e é comparável aos números para os levitas em 23.3-6.

b. Os chefes das tribos (27.16-24). Esses líderes tribais são chamados de chefes (v.22), mas o seu status exato é desconhecido. Visto que anciãos tribais em geral não recebiam essa designação (c f ICr 11.3; 2Cr 5.4), provavelmente eles são pessoas designados por Davi ou assistentes de Joabe no recensea-

161 RSV, REB, NEB (veja BJ nota) seguiram a LXX om itindo a oração que contém o nom e “M ic lo te” .

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mento (21.1-7; cf. v. 23-24). Contra a segunda tese, no entanto, está o fato de que Levi (v. 17) e Benjamin (v.21) estão incluídos, embora fossem excluídas do recen- seamento (21.6). Em favor da primeira se pode dizer que todas as listas restantes deste capítulo são de oficiais do rei. Se essa conclusão está correta, então os versículos 1-22 são evidência de que a mudança de um sistema tribal tradicional para uma burocracia centralizada teve início nos últimos anos de Davi e não sob Salomão, como em geral se pensa.

As vezes é dito que a passagem tem o padrão do recenseamento de Moisés (Nm 1.1 -19), para mostrar o recenseamento de Davi sob uma luz mais favorável (Curtis e Madsen, Williamson). Elos são encontrados na ordem das tribos e na exclusão dos menores de vinte anos (v.23; cf. Nm 1.3). Mas diferenças notáveis ainda existem na ordem dos nomes das tribos (e.g. Aser e Gade são omitidos, Arão é estranhamente incluído junto com Levi embora não estejam em Nm 1, e Manassés é dividido em dois). Talvez ainda mais significativo seja que enquan­to Moisés empregava líderes escolhidos pelas tribos, Davi usava os seus pró­prios comandantes de exército (c f 21.2).

Um parágrafo breve, mas importante (v. 23-24), explica por que nenhuma estatística é dada para as tribos como são dadas para a milícia, e por que nada foi registrado na história do rei Davi (v.24).162 Embora pareça ter sido prática normal não contar os menores de vinte (v.23; c f 23.24,27; Nm 1.3; - o recense­amento incluía apenas combatentes, 21.5), o fato de que Joabe não acabou o censo foi inesperado (v. 24). O objetivo não é transferir a culpa de Davi para Joabe, mas mostrar que por trás da enorme lacuna nos registros oficiais está a ação soberana de Deus. Estava em jogo a vitalidade da promessa de Deus, primeiramente feita a Abraão, de tornar seu povo inumerável (v.23; cf. Gn 15.5; 22:17; 26.4). Qualquer recenseamento não autorizado poderia limitar a fé de Israel e a liberdade de Deus. Davi pode ter entendido isso antes que a conta­gem estivesse terminada, embora não haja nenhuma evidência de apoio, ou ainda Deus soberanamente interveio para abortar o projeto. O apoio para essa última interpretação vem do versículo 24 e de 21.7, com o resultado de que a ira de Deus “veio sobre Israel” (NRSV, RSV; a tradução da NEB, “isto trouxe prejuízo a Israel”, é um reducionismo inaceitável).

c. Os oficiais do rei (27.25-34). Esses oficiais ocupam-se com a adminis­tração da propriedade real (v. 31b), e não do país todo. Não há sinal das provi­dências muito mais complexas introduzidas por Salomão (IRs 4.7-19), indicando, portanto, uma origem davídica para essa lista. A riqueza de Davi era derivada de uma área ampla, desde a “Sefelá” (v.28, NVI, RSV, RSV, REB, NEB; sopé ociden­tal, GNB; veja nr da NVI) até a planície de Sarom (v.29), talvez até ao vale (os

162 As versões estão corretas em seguir a LXX que diz “no livro” em lugar do TM que traz “no número de” , que é claram ente uma ditografia.

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vales) de Jezreel. Os oficiais se dividiam em quatro grupos: (a) dois tesoureiros (v.25; é usada a mesma palavra de 26.15, 17,20 etc.; cf. tesouros, NVI); (b) um ministro da agricultura (v.26); (c) um ministro para o vinho e óleo (v. 27-28); e (d) um ministro de pecuária (v. 29-31). No versículo 28, trata-se de um outro tipo de sicômoro (REB, NEB, cf. GNB) que não o sicômoro europeu.

32-34. Os conselheiros reais são os conselheiros pessoais de Davi, embo­ra provavelmente não houvesse distinção nítida entre eles e os oficiais de esta­do (lC r 1 8.14-17). Três são desconhecidos, incluindo Jônatas, que é mais prová­vel ter sido tio de Davi (NVI, BJ, NRSV, RSV) do que seu “sobrinho favorito” (REB, NEB). Aitofel e Husai são bem conhecidos de 2Samuel. O título de Husai, o amigo do rei (cf. 2Sm 15.37; 16.16) era de origem egípcia e parece ter-se toma­do padrão durante os reinados de Davi e Salomão (IRs 4.5). O sacerdote Abiatar e Joabe, comandante-em-chefe de Davi, estavam intimamente associados com Davi desde seus primeiros dias como fugitivo (2Sm 22.20; 26.6), permanecendo leais mesmo durante a rebelião de Absalão (2Sm 15.24; 18.2), até que indignaram Davi por apoiarem Adonias ( IRs 1.7).

v. Os preparativos finais de Davi para o templo (28.1—29.25)“Toda essa riqueza que ofertamos... vem das tuas mãos” (29.16, NVI).

29.27,23- c f IR s2.11-12O capítulo 28 retoma os preparativos para a construção do templo que

foram deixados de lado no fim do capítulo 22. Ele compreende três falas de Davi: (a) versículos 1-10, dirige-se primariamente aos líderes e confirma Salomão como a pessoa divinamente escolhida para construir o templo; (b) os versículos11-19, dirigidos a Salomão, explicam os planos divinamente dados para o tem­plo; (c) os versículos 20-21, são uma exortação final a Salomão para começar a obra.

Há alguma sobreposição com o capítulo 22, que também contém discursos de Davi a Salomão (v. 6-16) e aos líderes de Israel (v. 17-19). A maior diferença é que agora a ênfase recai mais sobre os líderes de Israel do que sobre Salomão. Muito do que previamente foi dito a Salomão agora é posto diante dos líderes, mas de uma forma reforçada, como se para enfatizar que a obra de construção deveria ser tanto um empreendimento nacional quanto de Salomão. Mesmo as pessoas comuns tinham uma contribuição vital a fazer (v. 8,21).

Um aspecto distintivo do capítulo é sua ênfase na obediência. A última parte do capítulo demonstra a necessidade da obediência na realização de detalhes específicos das plantas do templo (v. 11-21), mas o tema principal está no versículo 8 que faz da ocupação permanente por Israel da Terra Prome- lida depender de sua obediência à lei de Deus. A questão da Terra Prometida era certamente um assunto vital no quinto século a.C., visto que as orações (anto de Esdras (Ed 9.10-15; cf. 7.26) como de Neemias (Ne 1.7-9; 9.33-37) lambém enfocam a importância crucial de se guardar a lei. De fato, as exigênci­

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as do versículo 8 são um princípio básico para cada geração de israelitas que vive na Terra Prometida.

No entanto, o verdadeiro fio condutor que atravessa o capítulo é que o projeto do templo é iniciativa de Deus. Foi Deus que levou Salomão ao trono (c fv.4), e que lhe deu a oportunidade de construir o templo. As plantas do templo também são o resultado, não dos desígnios de um rei poderoso ou de um arqui­teto competente, mas de revelação divina, transmitida por escrito e por meio do Espírito de Deus (v. 12,19). Naturalmente, Davi e Salomão tiveram um papel im­portante, mas o crédito real pertence à autoridade mais elevada.

Como o templo do Antigo Testamento era um sinal externo e visível da aliança davídica, também a igreja como o “templo do Deus vivo” (2Co 6.16) é o sinal da nova aliança em Cristo. A igreja também é o resultado da escolha de Deus e de um plano revelado pelo Espírito Santo escrito nas Escrituras. Jesus lançou o fundamento da igreja (Ef 2.19-20; ICo 3.10), e a obra de construção continua através de Jesus e do Espírito (Ef 2.21-22), na preparação para o desti­no final da igreja (Ef 5.25-27). O lembrete de Crônicas da real origem e propósito do templo é um chamado para que se ponha de lado prioridades menores e se construa a igreja de Deus com ele. Para a geração de Davi, isso resultou em uma resposta generosa e de grande júbilo (29.1-20).

a. Davi fa la sobre o construtor do templo (28.1-10). Todos os líderes (NVI) de Israel se reúnem em Jerusalém para ouvir o idoso rei sobre os planos para o templo (v. 1). Como essa assembléia se compara com outras no capítulo 22— 29 é uma questão debatida. Ela é quase com certeza distinta daquela “assembléia” geral (29.1,10), mas pode ser a mesma reunião de líderes em22.17-19. Alguns a vêem como uma versão alternativa da cerimônia original de unção de Salomão em Giom (lR s 1), mas isso não tem base nos detalhes do texto. A gama de líderes aqui é muito mais ampla, e os preparativos cuidadosos e extensos dos capítulos 28— 29 têm pouca semelhança com as tentativas improvisadas de instalar um novo rei (veja também a discussão sobre 22.14-16). Dos líderes mencionados no versículo 1, os oficiais tribais, aqueles que serviam o rei, os comandantes militares, e os responsáveis pela propriedade real todos aparecem no capítulo 27, enquanto os principais soldados prova­velmente são aqueles listados em 11.10— 12.40.

A primeira fala é dirigida principalmente aos líderes (v. 2-8) e em seguida brevemente a Salomão (v. 9-10). Aforma incomum de Davi de se dirigir, irmãos meus e povo meu (v.2), identifica o rei com seu povo, com o rei aparecendo como qualquer pessoa sob ordens divinas (cf. v. 7-10; Dt 17.18-20). A parte principal da fala é realmente um desenvolvimento da fala particular de Davi a Salomão em22.7-13. Como 22.7-13, seu fundamento é uma exposição da aliança davídica (IC r 17). Por exemplo, três questões cruciais da fala anterior são repetidas, a saber, a incapacidade de Davi de construir o templo (v. 2-3; cf. 22.7-8), Salomão

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como sucessor legítimo de Davi (v.4-5; cf. 22.9) e, portanto, Salomão como o construtor do templo (v.6; cf. 22.10). Algumas frases também são repetidas lite­ralmente, e.g. era meu propósito de coração edificar uma casa (v.2, cf. 17.2; 22.7); não edificarás casa (v.3; cf. 17.4; 22.8) e, [Salomão] é quem edificará a minha casa (v.6; cf. 17.12; 22.10). Em contraste com as providências apressadas para a unção de Salomão (lR s 1.28-53), Salomão é agora confirmado, pública e deliberadamente, como aquele que não só tem a chave de ambas as casas da promessa de Deus, mas como aquele que é em si mesmo essa chave.

Essas falas, no entanto, certamente não são vã repetição. Em quatro pon­tos principais, Davi vai além do que foi dito antes.

(a) Primeiramente, uma nova dimensão da idéia de “repouso” é exposta (v. 2-3). O templo é descrito, por exemplo, como uma casa de descanso ou repouso e estrado de Deus (v.2, cf. NRSV, RSV; c f SI 132.7,8,14), expressões que são encontradas apenas em Crônicas (cf. 2Cr 6.41-42) e no salmo 132. Além disso, fala-se do lugar de descanso de Deus, em lugar do símbolo mais usual da arca para o descanso de Israel (22.9; 23.25; cf. Dt 12.8-11). O descanso de Israel, portanto, não pode ser considerado sem referência ao descanso de Deus. Como no caso do descanso sabático de Deus na criação (Gn 2.1-3), o descanso de Deus representa o término de sua obra. A idéia do descanso era tão importante para o templo que ainda que o papel de Davi como um “homem de guerra” (v.3, BJ) foi uma parte vital dos preparativos do templo na criação das condições necessárias para a obra, ela o desqualificava para construir o próprio templo. Somente Salomão, o “homem de paz” (22.9, NVI), era suficien­temente capacitado para a tarefa (veja mais no comentário de 22.7-10).

(b) Isso leva ao tema principal de Davi, a eleição de Salomão (v.4). Não há paralelo no Antigo Testamento de uma escolha divina de qualquer rei individual depois de Davi.163 Mas aqui, o verbo “escolher” ocorre cinco vezes (v. 4-10), três vezes sobre o próprio Salomão. Ele foi escolhido para se assentar no trono de Deus (v.5), para ser o filho (adotivo) de Deus (v.6), e para construir o templo (v. 10, cf. v.4). A eleição divina no Antigo Testamento representa seleção para uma tarefa específica, aqui claramente trata-se de construir o templo. Ela tem pouco a ver com as qualidades inatas ou realizações da pessoa. Por exemplo, sempre que a expressão verbal correspondente se agradou de (v.4) tem Deus como sujeito, qualquer objeto pessoal é sempre descrito como desesperado, humilde, temente a, ou servindo a, Deus (e.g. SI 44.3; 147.11; 149.4; Is 42.1). Muitas vezes também, há um elemento de surpresa na escolha de Deus. A men­ção dos muitos filhos de Davi (v.5), entre os quais Salomão sem dúvida não erao mais velho (cf. 2Sm 3.2-5; 5.13-16), é um exemplo disso. Outras ocorrem em circunstâncias desagradáveis que cercam seu nascimento (2Sm 11.1— 12.25) e

163 Veja ainda R. L. Braun, ‘Solomon, the chosen temple builder’, JBL 95, 1976, p. 581- 590, especialm ente p. 588-590.

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sua ascensão (IRs 1). Esse direito divino dos reis, como é desenvolvido aqui, está longe de conceder uma aprovação incondicional a todas as ações rei. Antes ele confirma que apesar da fragilidade de Salomão, Deus ainda estava operando seus próprios objetivos através dele. Além disso, a eleição de Salomão não foi um ato isolado. Deus também havia escolhido seu pai e sua tribo, Judá (Gn 49.10; cf. lC r 2.3— 4.23). Isso foi de grande importância para o Israel pós- exílico, pois a escolha que Deus fez da linhagem de Davi sobreviveu até ao exílio através de Zorobabel e sua família (cf. 1 Cr 3.19; Ag 2.23).

(c) A percepção do propósito abrangente de Deus leva a mais um elemento novo, a referência ao trono do reino do S en h o r (v.5 “... da soberania do S en h o r”, REB, NEB). Essa idéia importante foi insinuada em 17.14 (cf. também 29.11,23; 2Cr 13.8 etc.), mas agora ela explicitamente confirma o elo entre o trono de Deus e o de Davi. O reino de Deus seria representado juntamente por Salomão e o templo. Na verdade, no tempo do próprio cronista, quando Salomão e a monarquia davídica haviam desaparecido tinha muito tempo, o templo prevalecia como o principal símbolo da realidade contínua do reino do Senhor (veja mais em 17.10b-14).

(d) Finalmente, Davi fala bastante da necessidade que os líderes (v.8) assim como Salomão (v.7,9-10) têm da obediência (cf. 22.12-13). A obediência a todos os mandamentos do S e n h o r v o s s o Deus (v.8) era a condição para a ocupação contínua da Terra Prometida por Israel. Para Salomão, a prioridade era edificar casa para o santuário (v. 10). Essas exigências não abalam nem a eleição de Salomão nem a promessa incondicional de Deus (17.13-14). Pelo contrário, elas tornam a promessa efetiva. A eleição no Antigo Testamento é para o serviço, e o caminho para Salomão “confirmar” sua eleição e chamado era conhecer, servir e buscar a Deus (v.9).

E ainda, Salomão não seria deixado para realizar a tarefa sozinho, visto queo próprio Deus “buscará” o coração de Salomão (v.9, versões modernas). A busca de Deus tem dois sentidos diferentes nesse versículo. O significado mais geral é transmitido pela frase o S e n h o r esquadrinha todos os corações, que pode ter um resultado tanto negativo quanto positivo (c f 2Cr 24.22). No entan­to, um segundo sentido claramente positivo está baseado na promessa citada das Escrituras anteriores (e.g. Dt4.29; Jr 29.13-14; Is 55.6), de que Deus (e Davi!) procura pessoas que o busquem, de maneira que ele possa ser encontrado por elas. Embora em outros contextos essa promessa fosse um incentivo ao arre­pendimento, aqui ela representa um convite à ação.164 A busca de Deus tam­bém antecipa não somente a busca do próprio Salomão, mas a promessa de que o templo deveria ser um lugar de esperança para todo aquele que busca a

164 Cf. a interpretação positiva de “desejo” (29.18), que é idêntica em hebraico a “m oti­vo por trás dos pensamentos” aqui. Cf. também o ponto de vista positivo de J. G. McConville da busca por Deus em lC r 28.9, embora ele não distinga os diferentes significados de “bus­car”, e seu uso de SI 132.13; Dt 11.12 seja bastante vago ( ‘1 Chronicles 28.9: Yahweh “seeks out” Solom on’, JTS 37, 1986, p. 105-108).

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Deus (cf. 2Cr 7.14; 31.21). Inversamente, se Salomão não obedecesse, haveria então a possibilidade de que Deus o “lançasse fora para sempre” (v.9, REB, NEB). Com essas promessas e alertas, Davi finalmente comissiona Salomão para ;i obra (v.10 e a versão mais plena no v.20; veia também os comentários sobre 22.11-13).

A resposta de Salomão, tipicamente humana, foi incoerente. Embora ele buscasse a Deus (2Cr 1.5), não era de “coração íntegro” (v.9, RSV, REB, NEB; c f lRs 11.4,6), e sua devoção dividida levou por fim a um reino dividido (cf.v.8). Num sentido, seu destino foi um pouco melhor do que aquele que caiu sobre Saul (veja comentários sobre 10.13-14), mas havia duas diferenças im ­portantes entre Salomão e Saul. Salomão foi obediente em sua primeira tarefa de construir o templo, e seu reino foi sustentado pela misericórdia da aliança de Deus. Crônicas enfoca ambas as características, embora a fidelidade de Deus seja a mais crucial (1 Cr 17.13; 2Cr 6.1-11).

b. Davi conta a Salomão os planos de Deus (28.11-19). Este parágrafo forma o foco do capítulo, apesar da lista bastante longa de detalhes da constru­ção que têm pouco apelo exterior para a maioria dos leitores modernos. Trata-se da planta do templo (heb. tabnit), uma palavra que ocorre quatro vezes (v. 11,12, 18,19). Dois aspectos dessa planta são apresentados. Primeiramente, ela foi dada por uma revelação divina. Isto fica claro no versículo 19, onde se fala de Davi em termos proféticos (a mão do S e n h o r me deu (NVI); cf. e.g. Ez 40.1), recebendo todos os detalhes por escrito.165 Provavelmente esse é também o sentido do versículo 12, onde uma referência ao Espírito de Deus (tudo que o Espírito tinha posto em sua mente; cf. Rudolph, Myers) é preferível a “tudo que ele tinha em mente” (REB, NEB, NRSV, RSV, etc.). O vocabulário e teologia do versículo 12a e versículo 19 são bastante semelhantes, e juntos eles formam um lipo de inclusão. “Espírito” é usado com o mesmo sentido em lCrônicas 12.18 (versões modernas; TM, v. 19), e a expressão incomum, literalmente “o espírito com ele”, também pode apontar nessa direção.

Em segundo lugar, a maneira desta relação forma um padrão semelhante àquele para a Tenda (Êx 25.9,40) e o templo visionário de Ezequiel (especialmente Ez 40.1 -4; 43.10-11). A palavra “planta”, por exemplo, ocorre com uma exceção

165 O uso do discurso direto no v. 19 é inesperado (v. 11-18 estão em discurso indireto), lá que o problem a reaparece em 23.5, a mudança de pessoa poderia muito bem ser original, exigindo o acréscimo em português de “Davi disse” (NVI). Isso é preferível a harmonizar o sufixo, “a ele” (JB; cf. RSV), ou postular um raro sufixo de terceira pessoa singular em y (W. (i. E. Watson, ‘A rchaic elem ents in the language of C hronicles’, Bib. 53, 1972, p. 202). O TM divide o versículo após o hebraico hisk.il, a saber, “Ele me deu entendimento de tudo no (projeto) escrito porque a mão do S e n h o r estava sobre mim, (incluindo) toda a execução do projeto” (cf. RSV). Isso é melhor que relegar hiskil à segunda oração (NVI, GNB) ou emendá- la (lendo o infinitivo hasktl, NEB, BJ).

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(2Rs 16.10) somente aqui e em Êxodo 25.9,40 (é toknit, “medição”, em Ez 43.10 também em mente?). Cada revelação incluía detalhes abrangentes (v. 12,19; Êx 25.9; Ez 40.4) e uma ordem para realizar a obra (v. 10,20; Êx 25.40; Ez 43.11). Instru­ções sobre a mobília ou utensílios do templo (heb. kõlím, v. 13; Êx 25.9), e exigência de um completo relato escrito (v. 19; Ez 43.11) oferecem outros pontos de conta­to. Davi, portanto, cumpre um ministério profético como o de Moisés e Ezequiel.

As instruções detalhadas se dividem em três partes, com relação à arquite­tura do templo (v. 11-12), seu pessoal (v. 13), e seu conteúdo (v. 14-18). A caracte­rística mais impressionante de sua estrutura é a referência (v. 11) ao lugar do propiciatório (NVI), “lugar para o trono da misericórdia” (NRSV, RSV) ou “santu­ário de expiação” (REB, NEB). Esse termo é usado apenas aqui fora do Pentateuco (e.g. Êx 25.17ss.), reforçando o elo conceituai entre a Tenda e o templo. Ele é também um lembrete de que o templo era uma “casa do sacrifício” (2Cr 7.12), e um lugar de perdão e cura (2Cr 7.14). Como tal, ele dava esperança a todo culpado, inclusive o rei (lC r 21; cf. 2Sm 11— 12) e anação (cf. lCr 10.13-14; 2Cr 36.14,16). A inclusão de sacerdotes e levitas (v. 13) é um pouco inesperada, mas à luz dos capítulos 23—26 não está fora de lugar (cf a menção de depósitos (NVI) no v. 11 e26.15,17,20,22). Os israelitas pós-exílicos parecem ter tido um interesse especial nos utensílios do templo (NVI, BJ, GNB), “vasos” (REB, NEB, NRSV, RSV), com­pare os versículos 14-18 com 2Cr 36.18; Ed 1.7-11; 7.19; 8.24-34. Eles representa­vam tanto a continuidade com o culto pré-exílico quanto o fato de que o templo estava completamente operacional. Da maioria desses utensílios se diz especifica­mente que foram completados pelos artesãos de Salomão (2Cr 3.10-13 e 4.6-22).

Dois deles são dignos de um comentário especial. Muitas vezes são men­cionadas em Crônicas as mesas para o “pão da proposição” (ARA) ou pão consagrado (NVI) (v. 16; cf. lCr9.32; 23.29; 2Cr2.4; 4.19; 13.11). O pão significa­va a presença de Deus e sua constante provisão para seu povo. Um carro (v. 18) é desconhecido em outras passagens que tratam da mobília do templo, mas sua relação com os querubins alados sugere a idéia do trono móvel de Deus (c f SI 18.10; Ez 1.15ss.).166 Os leitores do cronista teriam sido grandemente encoraja­dos por essas alusões à majestade de Deus e sua provisão.

c. Davi comissiona Salomão (28.20-21). Um equivalente público do pri­meiro comissionamento que foi particular de Salomão (cf. 22.11-13 e 28.10). As mesmas características básicas ocorrem, a saber, (a) encorajamento (sê forte e corajoso... não temas nem te desanimes)', (b) garantia da ajuda de Deus (porque

A palavra rara k p ô r (v. 17), traduzida por “taças” (BJ) ou “tigela” (NVI, REB, NEB, GNB), foi associado com kprt em uma tabuinha cuneiforme alfabética do século XII a.C. de Taanach. Provavelmente se tratava de um cesto de fibra de palm eira revestido de piche (W. G. E. Watson, art. cit., Bib. 53, 1972, p. 195; D. R. Hillers, ‘An alphabetic cuneiform tablet from Taanach [TT 4 3 3 ]’, BASO R 173, 1964, p. 45-50.)

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0 S e n h o r Deus, o meu Deus, há de ser contigo; não te deixará nem desampara­rá)', e (c) instrução para realizar a tarefa (faze a obra... até que acabes todas as nbras para o serviço da Casa do S e n h o r ). Algumas dessas frases estão intima­mente associadas com a passagem de Moisés a Josué, mostrando que a assis- lência de Deus não havia diminuído desde os dias antigos.

A essa garantia embutida, um outro estímulo foi acrescentado. Os três grupos de líderes religiosos, artesãos hábeis, e os oficiais estão todos prontos para ajudar e todo o povo está agora preparado (v.21). O templo não estava mais correndo qualquer perigo de ser um monumento às realizações do próprio Davi (cf. 17.4-10a). Ele agora representaria a resposta de toda a nação a Deus.

Alcançou-se um clímax momentâneo e alegre para o reinado de Davi em1 Crônicas 29 quando a nação se reúne para contribuir com os fundos do templo (v. 1 -9) e confirma Salomão como rei (v. 21 -25). Em seu ponto alto há uma oração de Davi (v. 10-20) que foi corretamente descrita como “uma das mais belas e impressionantes orações bíblicas”.167

Seu efeito é desviar a atenção de Davi, Salomão e o templo para o Deus que tornou possíveis todas as realizações deles (cf. v. 14). Parte de sua fraseologia alé aparece na oração do Pai Nosso (cf. v. 11). O capítulo termina com um sumário de alguns dos fatos básicos do reinado de Davi (v. 26-30).

Os versículos 21-29 formam um eco da seção de abertura do reinado deI )avi (caps. 10— 12), e as duas passagens juntas formam uma inclusão em larga escala. As duas passagens falam da soberania de Deus sobre a monarquia de Israel, por exemplo, embora, enquanto Davi recebia o reino através de uma mudança de dinastia (10.6, 13-14), o lugar de Salomão no “trono do S en h o r ”

(29.23) significava a permanência da casa de Davi. O tema “todo o Israel” tam­bém é proeminente (cf. 11.1-3; 12.38-40, com 29.21-26 onde a frase ocorre quatro vezes), uma unidade que é fortalecida pelo apoio de antigos inimigos (cf. 12.18; 29.24). Outros paralelos são a menção de apoio profético (11.1-3; 12.18; 29.29) e0 alimento generosamente distribuído e alegremente consumido por todo o povo ( 12.39-40; 29.22). Ao passo que é verdade que este é um relato bem diferente do1 im de Davi daquele encontrado em Reis (lR s 1.1— 2.12), os objetivos de Crôni­cas também são bem diferentes. O propósito do cronista é chamar atenção para o controle soberano de Deus sobre Davi e Israel por todo o reinado de Davi apesar de algumas de suas dificuldades (cf. especialmente 2Sm 11— 12; lCr21).O poder de Deus foi aperfeiçoado na fragilidade de Davi (cf. 2Co 12.8).

A oração tem um papel importante em Crônicas, especialmente em seu relato de Davi. Esta oração é a última em uma série de três grandes orações (cf.16.8-36; 17.16-27), todas compartilhando fraseologia, teologia e estrutura co­

167 R. E. Clements, The Prayers o f the Bible (Londres: SCM Press, 1985), p. 81.

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muns. Cada uma tem uma forte ênfase no louvor, adorando a Deus por sua natureza e fidelidade na aliança, e cada uma termina pedindo a Deus que conti­nue mantendo suas promessas. Junto com as orações de confissão de Davi (21.17) e petição (14.10,13), elas enfatizam que ser um homem de oração é um ingrediente essencial para a realeza. Elas também sublinham que status e suces­so são dons de Deus, e que a oração tem tanto a ver com louvor e adoração quanto com interesses mais pessoais.

No âmago da oração, e latente a toda a teologia do cronista, está a decla­ração, Teu, S e n h o r , é o reino (v. 11). Crônicas faz apenas raramente referência direta ao Reino de Deus (cf. 16.31; 28.5; 2Cr 13.8), contudo o mesmo conceito está claramente presente em outras partes, especialmente nas orações (e.g. 2Cr6.18; 20.6). As idéias expressas nessas passagens são fundamentais para se compreender a interpretação de Crônicas da monarquia e aliança davídicas. Somente o reino e poder de Deus são absolutos. Salomão, assentado no “trono do S en h o r ” ( v. 23), e “os reinos de todas as outras terras” (v. 30), estão igual­mente sujeitos a seu governo soberano. Um outro ponto importante é que o reino de Deus não é restrito a ou confinado por seus representantes humanos. Sua base é o próprio Deus, suas qualidades, atributos, e ações, e sua liberdade e reputação permanecem livres apesar do fracasso e até da ausência de Davi e seus descendentes. Visto que tudo vem de Deus (v. 14), o sucesso e prosperida­de humanos também derivam em última instância dele.

Uma compreensão adequada dessa verdade foi essencial para a sobrevi­vência de Israel após o exílio. Outra literatura do período toca no mesmo ponto, às vezes mencionando os imperadores persas explicitamente (e.g Ed 6.14: “Se­gundo o mandado do Deus de Israel e segundo o decreto de Ciro, de Dario, e de Artaxerxes, rei da Pérsia”; c f Ed 6.22; Is 44.28— 45.1). Nabucodonosor da Babilônia reconheceu também que “O Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens e o dá a quem quer” (Dn 4.17,25, cf. v. 3,34-35).

No Novo Testamento, o tema passa por outro desenvolvimento. Jesus é revelado como a personificação do reino de Deus, unindo suas dimensões huma­na e divina. Agora ele está assentado “acima de todo principado e potestade, e poder e domínio” (Ef. 1.21), e é “cabeça de todas as coisas para a igreja, que é o seu corpo” (Ef 1.22-23, NVI). A igreja, como o Israel de Davi, deve colocar sua confian­ça nesse reino, ainda que os reino deste mundo pareçam ser mais evidentes e mais fortes. Contudo, o reino de Deus também tem suas características terrenas, tal como a doação generosa de seu povo (lC r 29.1-9, 17-18; 2Co 8—9). Porque esse reino é mais duradouro, os cristãos são chamados, como os contemporâneos do cronista, a serem companheiros daqueles que estão na “tribulação, no reino e na perseverança, em Jesus” (Ap 1.9). Eles também podem esperar confiantemente pela intervenção de Deus, quer ela venha nessa vida (2Co 2.14; Rm 6.17) ou na segunda vinda (ICo 15.50-57; Ap 3.21-22). Tanto o cronista quanto os escritores do Novo Testamento testificam que se submeter à realidade do reino de Deus

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proporciona um quadro seguro para toda a vida. Tal consciência, de acordo comI )avi, é obtida mais prontamente através da oração e do louvor (lC r 16.31; 29.11).

d. Davi pede a consagração de Israel (29.1-5). A assembléia final, desta vez compreende todo o povo (v. 1,9,10,20,25; sobre as outras, veja comentários de 23.2), durou dois dias (cf. v.21). Ele tinha um propósito duplo de receber dádivas para o templo (v. 1-9) e confirmar o reinado de Salomão (v. 21-25).

1-2. Davi antes de tudo relembra os primeiros estágios dos preparativos do lemplo (caps. 22,28). Salomão foi escolhido (cf. 22.6-10; 28.2-7), mas é inexperiente (cf. 22.5), no entanto a tarefa, é grande (cf. 22.5). Davi já havia preparado (heb. hákínôti, também 22.14; 28.2), enorme quantidade de materiais caros (cf. 22.3-4,14). Mais detalhes dessas ofertas são dados agora, especialmente os metais pre­ciosos, embora a tradução de alguns itens seja incerta; e.g. ônix pode ser “comalina” (NRSV, REB, NEB), turquesa seria “antimônio” (NRSV, RSV), “pedras coloridas” (NRSV, RSV) normalmente é usado para tecido e somente aqui é aplicado a pedras, e mármore ocasionalmente é traduzido por “alabastro” (BJ). “Eu fiz todo esforço” (v.2, GNB; “até onde fui capaz”, NRSV) provavelmente é um eco deliberado de “por meus esforços” (22.14, GNB; “com muito esforço”, NVI, NRSV, RSV). Apala- vra incomum “palácio” (v. 1,19, RSV, GNB, NEB; estruturapalacial, NIV) é uma palavra pós-exílica (heb. birâ) que normalmente significa “fortaleza, cidadela, ca­pital”, mas está associada com o templo em Neemias 2.8 (cf. também Ne 7.2). Aqui, ou ela pode estar associada com uma entrada fortificada pós-exílica do templo e se refere pars pro toto (a parte pelo todo) a toda a construção, ou pode significar queo templo era a residência real de Deus (cf. v. 11).

3-5. Agora Davi apresenta mais ofertas de suas próprias riquezas (“depósi- lo particular”, REB, NEB). Pelos padrões modernos, as quantidades são extrema­mente elevadas, embora não sejam tão excepcionais quanto em 22.14. Alguém diria, no entanto, que Davi foi o soldado mais bem-sucedido que Israel teve e que a maior parte de sua riqueza vinha de despojo de guerra (veja também sobre v. 7 a seguir).168 Ouro de Ofir era sinônimo de ouro puro, e foi importado em grandes quantidades por Salomão (2Cr 8.18= 1 Rs 9.28; 2Cr 9.10 = IRs 10.11; cf. Jó 22.24; 28.16; SI 45.9; Is 13.12). A generosidade adicional de Davi levou a um apelo para que cada um se consagrasse (“desse uma oferta generosa”, GNB). Somente Crôni­cas no Antigo Testamento usa essa rara expressão hebraica, baseada na ordena­ção dos sacerdotes (e.g. Êx 28.41; Lv 8.33), para autoconsagração a Deus (veja lambém 2Cr 29.31; sobre uma forma bastante diferente de auto-consagração, veja 2Cr 13.9). Ela dá uma idéia fascinante da extensão com que Crônicas via o povo assumindo aspectos da função dos sacerdotes.

168 Para comparação, Salomão recebia uma renda de 666 talentos de ouro, não incluindo laxas de comércio e alguns outros presentes de reis, e a rainha de Sabá trouxe 120 talentos de .mio (2Cr 9.9, 13 = IR s 10.10, 14).

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e. Ofertas para o templo (29.6-9). Os líderes e o povo (cf. v. 17) deraníatenção ao apelo. Os líderes são aqueles listados no capítulo 27 (especialmente os v. 1,16,31), enquanto Jeiel o tesoureiro é mencionado em 23.8; 26.21. Tanto a qualidade (v. 6,9) como a quantidade (v. 7-8) da doação é notável, com ouro e a prata somando cerca de metade da quantidade de ofertas de Davi. A inclusão do darico de ouro (v. 7), uma moeda que foi cunhada sob Dario I (522-486 a.C.) e não antes de 515 a.C., é um uso pós-exílico óbvio, presumivelmente substituin* do um equivalente mais antigo. A quantidade (dez mil daricos = c. 85 kg) é aparen­temente muito menor e mais razoável do que os cinco mil talentos (= c. 150.000 kg ou 150 toneladas métricas!), mas é impossível a essa distância compreender todas as implicações dos números elevados de Crônicas.

Muitas vezes se pensa que o levantamento de fundos para o templo foi inspirado em uma iniciativa semelhante, empreendida para a Tenda (cf. Êx 25.1 • 7; 35.4-9; 20.29; cf. e.g. Braun, pp. 279-280), embora várias diferenças importan­tes mostrem a independência desse relato. Por exemplo, essas dádivas são feitas antes pelos líderes que pelo povo como um todo, a gama de ofertas é mais estreita, e a doação excessiva de Êxodo 36.2-7 não tem paralelo. “Eles ofertaram livremente” (v. 9, NRSV, RSV) é um termo-chave nesse capítulo (heb. hitnaddêb, v. 5,6,9,14,17). Essa disposição também foi característica da doa­ção para a Tenda (e.g. Êx 35.5,21, 22,29) e para o segundo Templo (e.g. Ed 1.6; 2.68; 3.5), mas aqui a falta de qualquer distinção entre oferta de si mesmo e a oferta de coisas materiais é bastante impressionante. Essa generosidade sacrificial surgiu de um “coração íntegro” (v. 9, RSV; cf. 28.9; 29.19 sobre uma frase idêntica), e por que o doar era dirigido ao S e n h o r (cf. 2Co 8.5), e não apenas a um projeto (cf. v. 5,17; 2Cr 17.6). Quando eles viram essa resposta, o povo e o rei se alegraram muito (cf. v. 17,22).'69

f . A oração de Davi (29.10-20). Essa oração magnífica demonstra, sem contradição, que a prioridade de Crônicas é antes a essência do culto do que sua forma. Seu interesse está centrado não em Davi ou no templo, mas no próprio Deus e em seu reino. Visto que a oração se concentra no louvor e na petição, é difícil classificá-la, exceto que, muito semelhante ao salmo 145, ela é um salmo do reino de Deus.170 O reino de Deus não é apenas um objeto de louvor (v. 10-13), mas a fonte da riqueza da qual as contribuições têm sido

1IS<I Para uma opinião sem elhante, cf. J. G. M cConville, ‘Ezra-Nehem iah and fulfilment of prophecy’, VT 36, 1986, p. 223, n. 36, que também afirma que já que todas as referên­cias a hitnaddêb fora de Jz 5.2, 9 ocorrem em Crônicas, Esdras e Neem ias, essas últimaa passagens são um a aplicação da autodoação do líder em Juizes 5, antes que um a mera apresentação de ofertas.

170 Sobre o significado do salm o 145 para o reino de Deus, veja M. J. Selm an, ‘The kingdom of G od in the O ld T estam en t’, TB 40 .2 , 1989, p. 174-175; B. L indars , ‘The structure o f Psalm CXLV’, VT 39, 1989, p. 23-30.

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l eitas para os fundos do templo (v. 14-16). Até o pedido de Davi (v. 17-19), para que as futuras gerações possam manter a mesma atitude para com Deus, apela à soberania de Deus (S e n h o r , Deus de nossos pais Abraão, Isaque, e Israel, v. 18). A linguagem é cheia de citações e alusões do Antigo Testamento, que r efletem o uso da época do cronista e de Davi, contudo é impossível ter certe­za da origem e data precisas de cada frase.

A oração se divide naturalmente em três seções171: os versículos 10-13; 14-16; 17-19.

10-13. Teu, S e n h o r , é o poder (v. 11). A seção hínica de abertura, que é bastante reminiscente de partes do Salmo 145 (cf. SI 145.3-6,11-12), louvaaDeus por quem ele é. Ela tem uma estrutura quiástica simples:

a. Louvor (v. 10b, 13);b. As posses e dons de Deus ( v. 11a, 12b);c. O reino de Deus (v. llb-12a).

O foco central (v. 1 lb-12a) é que Deus é líder e regente supremo em seu reino. As qualidades de Deus são as da realeza, e não é surpresa que a frase Teu... é... o poder e a glória (v. 11) está diretamente associada com o “reino” na oração do Pai Nosso. Essa afirmação é apoiada por duas declarações que des­crevem o que pertence ao S e n h o r (v. 11a, porque teu é tudo quanto há no céu c na terra), e o que o S e n h o r livremente concede (v. 12b, “Nas tuas mãos estão a força e o poder para exaltar e dar força a todos”, NVI). E um grande incentivo para todo leitor que o Deus que possui tudo também dá livremente a cada um. Tudo está então colocado firmemente no contexto do louvor, especialmente pela fidelidade de Deus (v. 10b) e seu nome (v. 13). Embora o tema não seja novo (v. 10), ele tem de ser novamente apreciado em cada geração.

14-16. “Todas as coisas vêm de ti, e daquilo que é teu nós demos a ti” (v.14, NRSV). Não pela primeira vez, uma nova consciência da natureza e propósi- los de Deus gera uma nova consciência da própria pessoa e de suas ações (as perguntas, quem sou eu, e quem é o meu povo?, v. 14, são quase idênticas àquelas de uma oração anterior, cf. 17.16,21). É um sinal de maturidade reconhe­cer que todo bem, inclusive o sucesso material e os atos de bondade humana, é um dom de Deus, como o dom de Jesus mostra supremamente (cf. 2Co 9.15). Até ;i generosidade de Israel foi inspirada pela graça de Deus (v. 14,16). Davi confir­ma este ponto com dois exemplos específicos. Primeiramente (v. 15), ele lembra a seus leitores, citando Salmos, que eles não têm direitos seja à Terra Prometida, onde eles ainda são peregrinos e estrangeiros (SI 39.12; cf. ICr 16.19-20 e 22.2!) seja à própria vida, que continua tão passageira como uma sombra (cf. SI 102.11).

111 Para um a divisão diferente da oração, veja M . A. Throntveit, Kings, p. 93-96.

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Além disso, essas não são apenas questões de status sócio-político ou uma metáfora para o status geral dos crentes, mas o reconhecimento de que a situa­ção física da pessoa assim como até mesmo sua situação espiritual devem tudo à generosidade de Deus.172 Em segundo lugar, mesmo toda essa riqueza (v. 16, NVI) das ofertas do templo não pode ser considerada como uma oferta espontâ­nea, porque ela também vem da tua mão.

17-19. conserva para sempre no coração do teu povo estas disposições e pensamentos (v. 18). Finalmente a oração vira petição, embora seja precedida por mais uma declaração sobre Deus (v. 17), desta vez baseada em Jeremias 12.3. Dois pedidos, pelo povo (v. 18) e por Salomão (v. 19), visam um único objetivo, uma atitude correta de coração (a palavra ocorre cinco vezes nos v. 17-19). Ofertas apresentadas voluntariamente e com alegria (v. 17) vêm de um coração “íntegro” (v. 19, RSV; cf. 28.9; 29.9), mas tais atitudes podem ser preservadas somente por Deus, pois ele também testa os corações (v. 17). De forma muito interessante, “disposições e pensamentos” (v. 18, NRSV, RSV; desejo, NVI) é idêntico em hebraico a “a imaginação dos pensamentos do coração do homem” em Gênesis 6.5 (RSV; cf. Gn 8.21). Embora, sem Deus, os motivos internos do homem sejam “maus continu­amente”, mesmo esses podem se tomar agradáveis a ele através da oração (cf. a frase idêntica em 28.9). Essas atitudes dadas por Deus são essenciais para uma conclusão bem-sucedida da tarefa em mãos (v. 19).

Por fim (v. 20), toda a assembléia responde à ordem de Davi, louvai o S e n h o r , v o s s o Deus. Como em uma ocasião anterior (16.36), eles estavam pron­tos para expressar louvor verbal ao nome de Deus (cf. v. 13, h 28.3), e não permitir que o templo apresentasse um testemunho mudo.

g. Salomão é ungido rei (29.21-25). O segundo dia da assembléia (v. 21) concentra-se na unção de Salomão (v. 22). Segundo o TM, isso aconteceu pela segunda vez (v. 22), aparentemente como uma seqüela mais formal à cerimônia bastante apressada descrita em IReis 1.28-40 (cf. lCr 23.1). Entretanto, “pela segunda vez” é omitido na LXX(A), P, e Vulg., e muitos comentaristas entendem que a frase no TM é uma glosa baseada em um erro de interpretação de lCrônicas 23.1.173 Não obstante, essa tese não explica as substanciais diferenças entre os dois relatos. A grande assembléia pública e os milhares de sacrifícios (v. 21) teriam sido impossíveis no contexto da cerimônia em Giom. O cronista de qualquer forma não desconhecia o relato anterior. Há diversas alusões a ele, incluindo a nomeação de Salomão como príncipe (v. 22; NRSV, REB, NEB; cf. IRs 1.35; veja comentário sobre lC r 11.2), e a brindada “aliança” (v. 24, NRSV, RSV) de todos os filhos de

172 Contra D. J. Estes, ‘M etaphorical sojoum ing in 1 Chronicles 29:15’, CBQ 53, 1991, p. 45-49.

173 E.g. L. C. Allen, The Greek Chronicles, 2, SV T 27 (Leiden: Brill, 1974), p. 145; R. Braun, p. 288.

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Davi. O quadro de lCrônicas 22— 29 também é baseado em IReis 2.1-12, e o versículo 23 segue IReis 2.12 de perto. Finalmente, Salomão não poderia ter se envolvido nos preparativos do templo de Davi a não ser que sua sucessão estivesse garantida (veja notas introdutórias ao cap. 22). A luz de tudo isso, parece mais provável que Salomão foi de fato ungido duas vezes (cf. as três unções de Davi, ISm 16.13; 2Sm 2.4; 5.3). tipicamente, Crônicas substituiu o relato bastante pessoal de IReis enfatizando a função de todo Israel na suces­são (v. 21,23,25,26).

Aunção de Zadoque (v. 22) também é um problema. Visto que ele já era um sacerdote no gabinete de Davi (IC r 18.16), ele está sendo promovido a sumo sacerdote, ou está sendo recebendo nova designação sob a liderança de um novo rei. Não se podia mais confiar em Abiatar depois de seu envolvimento na conspiração de Adonias, e sua queda final (lR s 2.26-27; 25) teria somente con­firmado a posição de Zadoque. Mudanças importantes no versículo 23 a partir de IReis 2.12 (no trono do S e n h o r , rei, em lugar de Davi, seu pai em lugar de “no trono de seu pai Davi”, e eprosperou; e todo o Israel lhe obedecia em lugar de “e seu governo foi firmemente estabelecido”) mostram o interesse de Crôni­cas na teologia dos eventos turbulentos de IReis 1— 2 (cf. lRs 2.46). Esse reco­nhecimento da supremacia e realidade do reinado de Deus (veja comentário introdutório e sobre 17.14; 28.5) leva ao resumo incomum das realizações de um rei, antes da morte de seu predecessor (v. 25).

vi. Fórmula de conclusão para Davi (29.26-30)Crônicas expande a fórmula de conclusão para o reino de Davi encontra­

da em IReis 2.10-12, embora somente IReis 2.11 tenha um equivalente aqui (v. 27; 1 Rs 2.12 é emendado como o v. 23 acima). Os sete anos do governo de Davi sobre Israel em Hebrom (v. 27) seguem IReis 2.11, e não os detalhes mais precisos de um reinado de sete anos e meio sobre Judá, em 2Samuel 5.5;1 Crônicas 3.4. As riquezas e glórias de Davi (v. 28) e a majestade de Salomão (v. 25) devem ser entendidas como bênçãos da aliança originárias da fidelida­de de Deus.

A menção aos escritos proféticos como fonte de mais informação (v. 29) provavelmente se refere aos atuais livros de Samuel e Reis, à luz de 2Crônicas 20.34; 32.32. Intervenções proféticas por esses homens de Deus são encontra­das nos estágios principais no relato do Crônicas sobre Davi, a saber, Samuel na transferência do reino de Saul para Davi (cf. 1 Cr 10.13; 11.3), Natã na promessa de uma casa para Davi (cf. 1 Cr 17.1 -15), e Gade na escolha do local do templo (cf. ICr 21.9-13, 18-19). Já que os contatos de Israel com todos os reinos daquelas terras (v. 30, uma frase exclusiva de Crônicas, cf. 2Cr 12.8; 17; 10; 20.29) foram objeto de palavras proféticas (ICr 17.8;c/i 14.17; 18.6,3,13), os versículos 29-30 sugerem que o cronista está indicando que seu relato sobre Davi é baseado na autoridade da revelação de Deus aos profetas.

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COMENTÁRIO

F. Salom ão se prepara para o tem plo (2Cr 1.1— 2.18)Apesar da divisão entre lCrônicas e 2Crônicas, o relato de Salomão basi­

camente continua a história de Davi. Os reinados dos dois reis na realidade formam uma unidade, como o envolvimento de Salomão nos preparativos do templo de Davi demonstra (lC r 22, 28— 29). O sentimento de parceria continua aqui, particularmente em várias passagens exclusivas de Crônicas onde Davi está relacionado com Salomão (e.g. 2.3,7; 3.1; 6.42; 7.10; 8.14). U m outro sinal desta cooperação é o modo pelo qual a aliança davídica se desenvolve ( lC r 17), com Salomão cumprindo o primeiro estágio das promessas de Deus mediante a ascensão ao trono de Davi e a construção do templo (especialmente 2Cr 6.4-11; cf. também 1.8-9; 5.4-11; 6.14-17; 7.17-18). O tema da aliança, de fato, sustenta toda a apresentação de Salomão feita por Crônicas, que está muito mais interes­sada na importância de Salomão nos propósitos de Deus do que em listar os eventos mais importantes da vida dele. É por esta razão que Crônicas deixou de lado muitos elementos importantes encontrados no relato de Reis, tais como os detalhes pessoais de Salomão. Nas omissões não estão incluídos somente os aspectos negativos como sua poligamia, sua idolatria e seus desastres militares (1 Rs 11.1 -40), mas também sua ascensão (IRs 1— 2), sua famosa e sábia regência ( IRs 3.16-28), sua administração e sabedoria (IRs 4.1-34), e até alguns dos deta­lhes da construção do templo (e.g. 1 Rs 6.4-19; 7.27-37) e do palácio real (7-1-12).

Ao remover esses elementos julgados desnecessários a seu propósito, Crônicas produziu um retrato simplificado mas diferenciado desse rei. Isso fica mais claro quando observamos a estrutura total do reino de Salomão, que mos­tra uma formação quiástica básica:

1.1-17 A sabedoria, a riqueza e a fama de Salomão2.1-18 Salomão se prepara para o templo3.1—5.1 Construção do templo5.2—7.22 Dedicação do templo8.1-16 Salomão conclui o templo e mais uma obra de construção8.17—9.28 A sabedoria, a riqueza e a fama de Salomão

Esse esquema imediatamente revela algumas conexões internas. Clara­mente a construção e a dedicação do templo em si formam o centro do relato

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(caps. 3— 7). No entanto, um elo óbvio entre os capítulos 1— 2 e 8— 9 também é evidente, e um estudo mais detalhado confirma que o tema do templo se estende até mesmo a esses capítulos de abertura e encerramento. Isso é mais facilmente visto na correspondência de Salomão com Hirão (cap. 2) que está diretamente relacionada com os preparativos do templo, mas emerge também da passagem paralela (8.1-16) onde a obra de construção de âmbito nacional é entendida como a extensão e a complementação do projeto do templo. Confir­mação adicional vem de uma série de marcadores editoriais, vários dos quais são completamente, ou em parte, contribuição do próprio cronista (cf. 2 .1; 3.1; 5.1; 7.11; 8.16). Até as partes externas da estrutura apóiam o mesmo tema. A descrição da adoração de Salomão na Tenda do Encontro (cap. 1) claramente antecipa seu culto no templo (cf. e.g. 1.6 com 5.6; 7.5-7), enquanto o templo proporciona a evidência principal da sabedoria dada divinamente a Salomão (1.12; cf. 9.4). De fato, a sabedoria e a riqueza de Salomão (1.1-17; 8.17— 9.28) devem ser compreendidas como um tema paralelo ao do templo, visto que eles são todos sintomas visíveis da eficácia do reino de Deus nos negócios huma­nos (c f lC r 28.5-6; 29.11; 2Cr9.8). Em comparação com Reis, portanto, onde o templo é simplesmente a seção central em uma narrativa variada sobre Salomão (IR s 5.1— 9.9, i.e. quatro capítulos e meio dos onze), o cronista deu-lhe tama­nha proeminência que ele domina completamente seu relato.

Em acréscimo à estrutura quiástica básica, o cronista usou vários outros padrões literários. Os capítulos centrais têm uma disposição consecutiva, tra­tando da construção do edifício (cap. 3), sua mobília e utensílios (cap. 4), a instalação da arca (cap. 5), a oração dedicatória (cap. 6), e a resposta de Deus (cap. 7). O efeito é tornar o capítulo 7 o auge de todo o relato do templo, e na verdade de toda a obra do cronista. A comparação com Reis também revela que Crônicas está mais interessado no significado do templo do que em sua arquite­tura. Um outro esquema literário é o padrão de pedido-e-resposta, do qual há três grandes exemplos. As respostas explícitas aos pedidos de Salomão não são dadas somente por Deus (cf. 1.8-10 e 1.11-12; 6.14-42 e 7.12-21) mas até mesmo por um rei pagão (2.3-10,11-16). Os primeiros dois exemplos mostram claramente que a oração funciona! Um outro padrão é o do cumprimento, que possui tanto características literárias quanto teológicas. Novamente, três exemplos diferen­tes devem bastar. Primeiramente, as promessas de Deus de sabedoria, riqueza e fama são cumpridas na vida do próprio Salomão (8.17—9.31). Em segundo lugar, Salomão testemunha que as promessas da aliança de Deus a Davi foram cumpri­das de maneiras específicas (6.4-11). Por fim, o templo de Salomão muitas vezes aparece como cumprimento dos princípios subjacentes à Tenda ou tabernáculo de Moisés. Por exemplo, Salomão e o arquiteto do templo, Hirão-Abi, seguem na tradição de Bezalel e Aoliabe que foram responsáveis pela construção da Tenda, Salomão como Moisés executa o projeto divinamente revelado, e a glória shekiná que dominou as cerimônias de inauguração da Tenda tem o mesmo efeito na

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dedicação do templo. Todos esses exemplos proporcionam uma ampla evidên­cia da criatividade e flexibilidade do cronista como autor.1

Junto com os temas principais da aliança e do templo, inúmeras outras ênfases são dignas de nota. Longe de exibir uma abordagem ritualística da reli­gião, há uma forte ênfase na soberania e presença de Deus. Ele é o único tanto no céu quanto na terra, e exerce sua liberdade para invadir o templo e interrom­per seus serviços quando bem entende (e.g. 2.5-6; 5.13-14; 6.14, 18; 7.1-3). Ele também é um Deus que revela sua vontade diretamente de um modo que ultra­passa as expectativas do seu povo (1.7-12; 7.12-21). Oculto é mais um interesse principal, onde a oração e o sacrifício formam uma parceria regular. As orações ocorrem em pontos-chave, tais como 1.8-10; 6.14-42, e essas servem como encorajamento a qualquer um, seja israelita ou não (cf. 6.32-33), para buscar a Deus na oração por si mesmos (cf. 1.5; 7.14). O sacrifício freqüentemente acom­panha a oração. Deus aceita o templo como uma “casa de sacrifícios” (cf. 7.12), e o padrão regular do culto sacrificial (2.4; 8.12-15) é tão importante quanto as ofertas dedicatórias especiais (5.6; 7.1, 5, 7). O culto, no entanto, é aceitável apenas se for oferecido em um espírito sincero (6.7-8, 14, 30; 7.10), proporcio­nando mais uma evidência do interesse do cronista tanto pela sinceridade quan­to pela forma do culto. Apesar da preocupação com Salomão, Crônicas não perde de vista o papel de Israel. Em algumas passagens (1.2-3, 5; 9.8), Israel como um todo tem mais proeminência do que em Reis, como os levitas em 5.11 - 13. A contribuição deles também é sublinhada em passagens como 5.2-3, 6; 6.3,12-13,22-39; 7.8-10. A sabedoria, a riqueza e a fama de Salomão (1.1-17; 8.17— 9.31) como sinais da bênção de Deus também são compartilhadas pelo povo como glória refletida.

Finalmente, a era de Davi e Salomão serve como um padrão para a vida futura de Israel. A obediência da aliança, que inclui tanto a versão mosaica quanto a davídica, dá a medida pela qual tudo deve ser comparado (e.g. 6.16-17;7.17-22). Porém, a ênfase real de Crônicas sublinha que o perdão de Deus está constante e inesperadamente disponível a qualquer um que se aproxime dele em arrependimento humilde. O motivo principal para a oração no templo é que sempre há esperança para os pecadores, como Deus afirma em suas notáveis promessas em 7.12-16. Tal é o pano de fundo contra o qual o restante da história de Israel se desdobrará (caps. 10— 36).

i. O esplendor de Salomão (1.1-17)“Deus... lhe disse: Pede-me o que queres que eu te dê” (1.7).1 .2-13a-c /IR eis 3.4-15

1 Para um a in terpretação diferente da natureza qu iástica do Salom ão do C ronista, cf. Dillard, p. 1-7. Deve-se notar, em particular, que o esquema de Dillard não tem espaço para 3.1— 5.1, e não chama atenção para a variedade de padrões literários de Crônicas.

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2CRÔNICAS 1.1— 2.18

1:13b-c f. IReis4.11:14-17-c f. IReis 10.26-29

Este capítulo apresenta uma introdução ao reinado de Salomão bem dife­rente da dos livros de Reis. Em vez do prolongado relato da ascensão de Salomão (IRs 1— 2), que pode ter uma possível alusão no versículo 1, o leitor é levado imediatamente a um relato da sabedoria e riqueza de Salomão. Ele é quase um comentário sobre IReis 10.23. Fora uma breve introdução que sublinha como as bênçãos do reinado de Davi continuaram sob Salomão, a seção principal do capítulo divide-se em duas partes, as quais estão baseadas em passagens dife­rentes de Reis: (a) o dom da sabedoria de Salomão (v. 2-13); (b) a riqueza de Salomão (v. 14-17).

Duas linhas conectam esses assuntos aparentemente independentes. A primeira é que tanto a sabedoria quanto a riqueza são dons de Deus. Isso se toma muito claro pela resposta de Deus à oração de Salomão (v. 11-12) para a qual a oração de Davi (cf. ICr 29.10-16) foi mais do que uma preparação adequada. A segunda é o templo, indicada pelo fato de que esse capítulo é seguido imediata­mente pelos preparativos para sua construção. O templo é o exemplo principal exercício de sabedoria de Salomão e do uso mais significativo de sua riqueza.

Tudo isso surge do quadro de Salomão no culto. Como alguém que oferece sacrifícios e especialmente como um homem de oração, Salomão mostra ser perfei­tamente qualificado para construir um templo que será um “templo para sacrifíci­os” (2Cr7.12; c f 2.6) e uma “casa de oração” (Is 56.7; cf. 2Cr 6.40; 7.14, etc.). De fato, o retrato do Salomão adorador é o foco principal do capítulo, visto que sua sabedoria e riqueza são o resultado de sua oração. Crônicas novamente mostra que a oração é um ingrediente vital tanto do reinado próspero como também do culto aceitável (cf ICr 16.8-36; 17.16-27; 29.10-19; 2Cr6.4-42; 20.6-12).

Em tudo isso, Salomão é um modelo excelente para os cristãos. A tarefa de construir e desenvolver a igreja de Deus não é algo que pode ser empreendido só através de recursos humanos. Na verdade, Deus especificamente deu os dons do seu Espírito Santo para a construção de sua igreja (ICo 12.7; 14.12), e ele mesmo vive entre seu povo para o mesmo propósito (Ef 2.22). O dom da sabedoria é fundamental nesse empreendimento. Ele é tanto uma exigência bási­ca de liderança, como demonstra Salomão (v. 10-11; cf. A descrição que Paulo faz de si mesmo como um “sábio arquiteto”, ICo 3.10, ARC), e está disponível a todos que pedem por ele com fé (Tg 1.5-7).

A riqueza material não é, naturalmente, prometida da mesma maneira como a sabedoria para a igreja do Novo Testamento. Porém, esse capítulo demonstra muito claramente que de vez em quando ela pode fazer parte dos dons de Deus, ainda que o Antigo Testamento assim como o Novo também acrescentem que as riquezas são fundamentalmente “incertas” (cf. lTm 6.17; Lc 12.13-21; SI 49). Embora seja duvidoso que alguma igreja do Novo Testa­

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mento possa ser descrita como rica em termos materiais, elas tinham alguns membros ricos (e.g. Mt 27.57; Rm 16.23). Até mesmo Paulo aprendeu estar às vezes a ter fartura (F14.10-13). Mas elas dariam mais valor em estarem conten­tes, e Paulo também estava confiante de que quaisquer que fossem as neces­sidades da igreja, elas seriam supridas pelas “gloriosas” riquezas de Deus em Cristo Jesus (F14.19).

a. O reino de Salomão é estabelecido (1.1). Cada frase nesse versículo ilustra que as bênçãos de Davi continuaram no reinado de Salomão, como é indi­cado pelo acréscimo áe filho de Davi ao texto original ( IRs 2.46b). Davi também foi “fortalecido” (cf. REB, NEB) no começo do seu reinado (cf. lCr 11.10), Deus estava com ele, o tomou grande (1 Cr 11.9), e o engrandeceu sobremaneira (também lC r 29.25). Esta continuidade não é apenas o resultado de instituir uma dinastia, mas de Deus manter as suas promessas sobre estabelecer a casa de Davi (cf. v. 8-9; 2Cr 6.3, 10; lC r 17.23-27). As orações de Davi para que Deus fosse “contigo” (lC r 22.11,16,18; 28.20) também foram um meio para que essa situação se realizasse. “Fortaleceu seu domínio” (REB, NEB; c f estender o seu reinado, NVI) ocorre várias vezes na introdução ao reinado de um rei (lC r 11.10; 2Cr 12.1; 15.8; 17.1; 21.4; 25.3). Onde são fornecidos detalhes em outras passagens, algum tipo de conflito sempre está envolvido, quase certamente indicando que a frase resume as dificuldades que Salomão teve para assegurar o seu trono (cf. IRs 1—2).

b. A adoração prestada por Salomão (1.2-6). A congregação em Gibeão é descrita de forma bem diferente do registro em IReis 3.4ss. Ao passo que a versão mais antiga fala apenas da relação pessoal de Salomão com Deus, aqui todo Israel (cf. lC r 29.23,24, 25) ou toda a congregação (cf. v. 5) está envolvida com ele. Isso é típico do cronista, que constantemente enfatiza a unidade do povo sob seu líder (cf. lC r 13.1-6; 15.25-29). O evento se tomou um empreendi­mento público, como que para encorajar as pessoas comuns de gerações futu­ras para que elas também recebessem uma resposta de Deus quando o buscas­sem através de seu templo (cf. 2Cr 6.21-40; 7.13-16). A maioria dos oficiais no versículo 2 também ocorre em lCrônicas 28.1, dando ênfase à continuidade com Davi, e, embora a menção dos juizes seja ligeiramente inesperada, eles também tiveram um papel contínuo em Israel (cf. lC r 26.29; 2Cr 19.8-11). “Deu uma or­dem” (v. 2, GNB) é preferível à expressão habitual mas equivocadamente branda falou a (NVI etc.)}

Esse incidente foi deliberadamente moldado com base no relato de Crôni­cas dos planos de Davi para restaurar a arca a Jerusalém (lC r 13.1-6). Em acrés­cimo ao paralelo de todo Israel e toda a congregação (v. 2-3,5; cf. lC r 13.2,4-6), as duas passagens são unidas por referências aos oficiais (v. 2, cf. lC r 13.1), a

2 Sobre esse uso de wayyê’õmer, lC r 14.12.

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menção da arca (v. 4), e especialmente o verbo “buscar” (v. 5, RSV; consultar, NVI; cf. ICr 13.3). Como com o versículo 1, o elemento de continuidade de Davi a Salomão é destacado, com Israel cultuando a Deus por meio da Tenda (v. 3) e do altar de bronze (v. 5) do mesmo modo como Davi adorou diante da arca.

A comparação com o relato paralelo em IReis 3, por contraste, revela várias mudanças significativas. A abordagem claramente apologética de Reis ao lugar altoemGibeão(lRs3.2-3;2Cr 1.3,I3;cf. também ICr 16.39-42;21.29)ésubstituída por um esforço estremo de tratar o santuário gibeonita com o maior respeito possível. Em Crônicas, ele é o local da Tenda do Encontro de Deus (cf. Dillard, “tenda para se encontrar Deus”) e o altar de bronze (v. 5), e é autenticado por Moisés (v. 3) e Bezalel (v. 5), o principal arquiteto da Tenda (cf. Êx 31.2; 35.30; 36.1- 2; 37.1; 1 Cr 2.20).3 No entanto, as mudanças não podem ser tão drásticas quanto parecem. A questão dos “lugares altos” não era mais tão urgente nos dias do cronista quanto tinha sido por volta do início do exílio, quando Reis foi compilado, e o relato muito mais extenso de Crônicas sobre os preparativos para o templo deixa muito claro que os dias de Gibeão estavam contados. A experiência de Davi também tinha indicado que o futuro estava antes com Jerusalém do que com Gibeão (ICr 21.30— 22.1). Além disso, a ênfase aqui na separação da Tenda em Gibeão da arca em sua própria tenda em Jerusalém (v. 4; cf. 1 Cr 16.1) era uma outra marca clara de irregularidade. Finalmente, apesar do interesse óbvio de Crônicas na pureza externa do culto de Israel, tais questões ainda são secundárias para a realidade do encontro real de Salomão com Deus em Gibeão.

Essa experiência é descrita em termos do fato de que Salomão “buscou” (v. 5, RSV; consultou, NVI). Deus, tanto pelo sacrifício (v. 6) quanto pela oração (v. 7-12). Embora não seja inteiramente claro se ele buscou “o S e n h o r ”

(RSV, cf. NVI, GNB) ou “a ele”, i.e. o altar (com LXX, Vulg.; assim REB, NEB, NRSV, cf. JB; em favor do primeiro há o fato de que em nenhuma outra parte na Bíblia um altar é buscado, e Crônicas quase sempre tem Deus como o objeto desse verbo),4 “buscar a Deus” é um padrão pelo qual Crônicas mede a fé dos líderes de Israel (cf. ICr 10.14; 2Cr 22.9; 26.5). Seu significado aqui (ele não é achado em 1 Rs 3) parece ser que pelo menos no início do seu reinado, Salomão adorou e pediu a orientação de Deus em obediência às instruções de seu pai (IC r 22.19; 28.8-9). Apesar de 2Crônicas 7.14, a palavra não é novamente usa­

3 A continuidade com a lei m osaica não deve ser entendida com o se im plicasse que Salomão é um “novo” Bezalel” (Dillard, p. 4). Ao contrário, o elo destaca a necessidade de revelação divina e do dom espiritual da sabedoria no planejamento da casa de Deus. Se segue algum modelo, Salomão segue o de Moisés como o mediador divino, e o sucessor de Bezalel como arquiteto é Hirão-Abi (2Cr 2.13-14).

4 Por outro lado, “buscar o altar” é apoiado pela LXX e Vulg., pela idéia de “buscar a arca” possivelmente encontrada em IC r 13.3; 15.3, e pelo uso de vários objetos diretos diferentes para dãrash tais como lugares (Dt 12.5; Am 5.5), palavras ou m andam entos de Deus (lR s 22.5; IC r 28.8), ou paz (Jr 29.7).

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da sobre ele (embora seja uma palavra-chave para alguns dos seus sucesso­res, e.g. Josafá, 2Cr 17.4; 18.4,6-7; 19.3; 20.3; 22.9), e, de acordo com IReis 11, cie descuidou das questões religiosas no final de sua vida.5

c. A sabedoria de Salomão (1.7-13). Esse buscar de Salomão leva a um diálogo notável entre ele e Deus. Isso aconteceu naquela mesma noite, uma ocasião típica para as revelações de Deus serem comunicadas (cf. lC r 17.3; 2Cr 7.12). Não há nenhuma menção de que isso tenha ocorrido por meio de um “so­nho” (IRs 3.5,15), embora a probabilidade de que essa omissão seja resultado da abreviação de Crônicas do relato mais antigo é a mesma para qualquer outro motivo funesto (ver Dillard, p. 12). A passagem inteira sublinha novamente a importância da oração pelo exercício de liderança, notavelmente, como aqui, na arena política. O relato de Crônicas é uma versão abreviada de 1 Reis 3.5-14, omi­tindo material que pode ser achado em outro lugar em Crônicas para concentrar-se na necessidade absoluta de sabedoria para cumprir os propósitos de Deus.

Deus inicia o diálogo com um convite extraordinário: “Pede-me o que queres que eu te dê” (v. 7). Não há nada semelhante a isso em nenhuma parte do Antigo Testamento, embora haja certos paralelos em alguns dos salmos régios (SI 2.8; 20.4; 21.2, 4), e na provocação de Isaías a Acaz (Is 7.11). Jesus, no entanto, não somente confirmou o convite de Deus (e.g. Mt 7.7-8; Lc 11.9-10), mas o estendeu e esclareceu. Todo cristão é convidado a “pedir tudo o que desejar, e lhe será dado” (Jo I5.7;r/.’ 14.13-14; 15.16; 16.23,26), sempre que a oração for feita median­te a fé no nome de Jesus (Jo 15.23; lJo 5.14-15). O problema para muitos cristãos, então, não é se eles receberão algo quando pedirem, mas se eles vão pedir alguma coisa (cf. Tg 4.2; Is 65.1). Salomão estava pelo menos disposto a acreditar que Deus estava falando sério. Ele tinha consciência de que embora nenhum dos seus antecessores pudesse reivindicar o trono através de sucessão dinástica como ele pôde, em comparação com eles, ele sofria da desvantagem aparentemente fatal de não ter nenhum dom carismático óbvio que o qualificasse para a realeza (cf. ISm 9.1; 10.1-10; 19.24; 16.1-13; 18.5-8). Ele precisava acima de tudo do reconhecimento do povo de que Deus tinha lhe dado os dons necessários.

Primeiro, no entanto, Salomão reconhece que Deus fez uma promessa de aliança a Davi (“Você demonstrou {‘ãsitâ\ amor grande [gãdôl\ e firme”, v. 8, NRSV; cf. lC r 17.19, NVI, “realizaste [ ‘Ssitã] este feito grandioso” [haggedullâ]) que foi cumprida em parte em sua própria ascensão (me fizeste reinar em seu lugar, v. 8; cf. lC r 29.23). Ao mesmo tempo, Deus também cumpriu suas promes­sas aos patriarcas de que ele multiplicaria tanto o seu povo que ele não poderia ser contado (“um povo como o pó da terra”, v. 9, RSV; cf. Gn 13.16; 28.14; compare Davi, lC r21.1-30; 27.23).

5 Cf. Braun, “Solomonic apologetic in Chronicles” , JBL 92, 1973, p. 503-516, especial­m ente p. 505-506.

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Salomão pede a Deus duas coisas, (a) que Deus confirmasse sua promes­sa feita a Davi (v. 9), e (b) que ele recebesse sabedoria e conhecimento (v. 10). O primeiro pedido que é tão importante quanto o segundo, aponta para o passado, para a oração de Davi (cf. heb. y ê ’ãmên, “seja confirmado”, em ICr 17.23, 24 e aqui) e para o futuro, para a conclusão do templo (2Cr 6.17). A promessa de Deus só será cumprida quando a segunda casa de lCrônicas 17, a saber, o templo, for concluída.6 O segundo pedido, por sabedoria e conhecimento, é mais breve que em IReis 3.9 (NRSV, RSV, “uma mente compreensiva... capaz de discernir entre bem e mal”). Porém, as diferenças são mais superficiais do que de conteú­do. A “mente” (lit. “coração”) é a sede do intelecto, vontade e consciência no pensamento hebreu, enquanto o conceito do Antigo Testamento de sabedoria é moral e espiritual assim como intelectual. “Sabedoria” e “entendimento” freqüentemente aparecem juntos no Antigo Testamento (e.g. Pv 2.2; 3.13, 19;4.5), e, embora a palavra para conhecimento seja principalmente pós-exílica, ela é estreitamente associada com sabedoria como exemplificado por Daniel e seus amigos (Dn 1.4,17). A sabedoria israelita também é prática, é por isso que Salomão pede que ele possa conduzir e julgar o seu povo por meio dela (v. 10; cf. Pv8.15-16). A primeira expressão, literalmente, “sair e entrar diante desse povo” (cf. RSV), é normalmente de caráter militar (cf. 1 Cr 11.2) mas pode ser usada a respei­to de liderança em geral (c f Dt 31.2), e a segunda, literalmente, “julgar”, é freqüentemente usada com o sentido de “governar, reger”, nos livros históricos, inclusive Juizes (= “Líderes, Regentes”).

11-12. A resposta de Deus é um dos exemplos mais claros de oração respondida na Bíblia. Ela é típica daquele “que pode fazer incomensuravel- mente mais que tudo que nós pedimos ou imaginamos” (Ef 3.20), e ilustra o princípio de que Deus responde ao desejo do coração (cf. IC r 28.9; 29.19) ao incluir uma gratificação inesperada (cf. IC r 13.13-14; Ml 3.10-12; Mt 6.33). Salomão tinha pedido sabedoria, e não só recebeu o seu pedido, mas também, riquezas, bens e honra (cf. v. 11 e ICr 29.25). A importância de tudo isso é sublinhada pelo uso triplo de “pediste” (v. 11) em contraste com o duplo aparecimento de “dar” (v. 12).

A palavra riquezas não ocorre em IReis 3.13, mas provavelmente é uma expansão pós-exílica da palavra anterior influenciada pelo uso aramaico.7 A riqueza de Salomão o fez sem igual entre os reis de Israel (v. 12b; cf. ICr 29.25), e embora uma fórmula de comparação semelhante àquela usada sobre Salomão também seja aplicada a reis posteriores (2Rs 18.5; 23.25), nenhum chegou perto dele em riqueza. Aqui como em outras passagens o Antigo Testamento afirma que coisas materiais têm valor real à vista de Deus, enquanto não são tratadas como um fim em si mesmas. Porém, deve-se dizer que o uso de Salomão destes

6 Cf. Mosis, UTCG, p. 130-135.1 Cf. E. Vogt, Lexicon Linguae Aramaicae (Rome: Biblicai Institute Press, 1971), p. 112.

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dons não foi marcado por consistência nem sabedoria, e o fardo pesado de sua política econômica levou por fim à divisão do reino de seu filho (cf. 2Cr 10.3-19).

13. Finalmente, Salomão retoma a Jerusalém.8 De acordo com IReis 3.15, ele adorou diante da arca, mas Crônicas parece ter preferido não depreciar o encontro marcante em Gibeão.

d. A riqueza de Salomão (1.14-17). Esse parágrafo tem mais importância do que parece. Embora ele tenha sido tomado quase sem modificações de Reis, foi movido a uma posição completamente diferente (IRs 10.26-29), e é repetido com emendas em 2Crônicas 9.25-28. Seu objetivo principal é mostrar que Deus cumpriu sua palavra sobre a riqueza de Salomão (especialmente v. 15), mas também de­monstrar que esta riqueza estava sendo em parte preparada para o templo (cf. 2.1).

A riqueza de Salomão é medida pela força de seus armamentos (v. 14), e a ampla disponibilidade de metais preciosos e artigos de luxo como o cedro. Sua fonte primária era o comércio, do qual os cavalos e carros eram o principal exemplo. Sobre as cidades de carros de Salomão cf. IReis 9.17-19.9 Ouro foi acrescentado a IReis 10.27, mas com alguma justificativa (c f IRs 10.10,14-15, 23). A árvore, com a qual o cedro é comparada, é o “sicômoro” (GNB; cf. REB, NEB), que é um tipo comum de figueira e de forma alguma semelhante ao sicômoro europeu.10 Para detalhes mais precisos do comércio de importação e exportação, veja o resumo bastante útil em Dillard, p. 13-14. No caso das importações, as alternativas principais são ou que os cavalos vinham do moderno sul da Tur­quia (“Musri e Cilícia”, GNB, v. 16) e os carros do Egito, ou, mais provavelmente, que o Egito fornecia ambos os artigos mas que os cavalos também vieram de Cuve (NVI, cf. NRSV, RSV; = Cilícia Romana). Os carros e cavalos eram re-expor- tados para todos os reis dos heteus e para os reis da Síria , i.e. norte da Síria modema. “Por um preço” (v. 16, RSV) não soma nada ao sentido global, e na realidade significa, “no preço corrente”, i.e. os comerciantes de Salomão nego­ciavam suas compras em um preço ajustado.11

ii. Os preparativos de Salomão (2.1-18)“Salomão mandou dizer a Hirão, rei de Tiro: ...estou para edificar a casa ao

Nome do S e n h o r , meu Deus” (2.3-4).

8 Versões m odernas corretam ente seguem a LXX, Vulg., lendo “a partir do lugar alto” contra o TM “para o lugar alto” .

11 P re fe re -se “m an tinha” (v. 14, N V I) ao verbo eq u iv a len te em IR s 10.26 (lit. “ele guiava, conduzia”).

10 M. Zohary, Plants o f the Bible (Cambridge, Cambridge University Press, 1982), p. 68- (>9; F. N. Hepper, in IDB, p. 1592.

11 heb. m ehir correponde ao antigo babilônico mahirat illaku , “na taxa existente”, cf. A. (ioetze, The lawa o f E shununna, A ASO R 31 (New H aven: A m erican Schools o f Oriental K esearch, 1956), p. 111-112.

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2CRÔNICAS 1.1—2.18

2 3 -4 -c f. IReis5.2-52.8 -c f. IR eis5.62 .1 0 -c / IReis 5.112.12-c f. IR eis5.72 .13-14-c/ IReis7.13-142.16- c f IR eis5.92 .2 ,1 8 -c /IR e is 5.15-16O relato de Crônicas das realizações de Salomão vai direto à construção do

templo. Como resultado vários itens importantes no relato de seu reinado em Reis são omitidos, como sua sabedoria em ação, reformas administrativas e educacionais e algumas atividades de construção (e.g. lRs 3.16—4.34; 7.1-12). Não é que não tivessem importância, mas, para Crônicas, eles eram todos secun­dários em relação ao templo.

O templo deve ser construído para o culto de Deus, embora, o culto no templo envolvesse um paradoxo fundamental. Por um lado, o lugar da residência terrena de Deus era onde ele podia ser encontrado (para o Nome do S en h o r , v. 1, 4), contudo, por outro lado, nem mesmo os céus... o podem conter (v. 6). No verdadeiro culto do templo o povo deve ser capaz de se aproximar de Deus em sua misericórdia como também apreciar sua eterna majestade. Ele deve ser adora­do “para sempre” (v. 4, NRSV, RSV, etc.) por causa do seu amor em cumprir sua promessa a Davi (v. 11, cf. v. 3), e porque ele é maior do que todos os deuses (v. 5; cf. v. 6, 9, 12). Toda referência a Deus nesse capítulo também antecipa a descrição mais detalhada do templo nos capítulos 6— 7, enfatizando que a pre­paração dos materiais e pessoal é inútil sem uma consciência adequada a respei­to de Deus.

Esses estágios finais (cf. 3.1) basearam-se nos preparativos do próprio Davi (cf. esp. 1 Cr 22). Aqui a ênfase cai nas contribuições estrangeiras, por Hirão rei de Tiro (v. 3-16) e pelos “estrangeiros que vivem na terra de Israel” (v. 2,17-18, GNB). Na estrutura do relato de Crônicas acerca de Salomão, mais detalhes são dados na passagem paralela de 8.1— 9.12, onde, além de Hirão e dos estrangeiros, a Rainha de Sabá e a filha do rei do Egito também tomam parte no louvor das nações a Deus. Alguns dos elos nas duas passagens são bastante específicos, como a constru­ção de palácios (2.1; 8.1,11), o trabalho escravo feito pelos “estrangeiros na terra” (2.2, 17-18; 8.7-8), o foco no templo no culto regular (2.4; 8.12-15), cooperação entre os trabalhadores de Hirão e Salomão (2.8,14; 8.18), e louvor da parte de um governante estrangeiro pelos dons de amor e sabedoria de Deus a Salomão (2.11- 12; 9.5-8). Tudo isso indica tanto que Israel tinha alcançado finalmente seu “re­pouso” desejado (cf. ICr 22.9-10; 28.2-3; 2Cr 6.41), como que outras nações não só reconheceram mas de fato contribuíram para as bênçãos de Deus sobre Israel (cf. ICr 14.17; 2Cr9.1-8). As promessas proféticas de Deus de que os gentios trariam suas ofertas a ele em dias futuros (cf. Is 60.13-14; Sf 3.9-10) já haviam começado a ser cumpridas (cf. Êx 3.21-22; 12.35-36; Ag 2.7-9).

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2CRÔNICAS 1.1—2.18

O capítulo tem o padrão de um quiasma simples:

a. Censo dos trabalhadores (v. 2);b. A carta de Salomão para Hirão (v. 3-10);b l . A carta de Hirão para Salomão (v. 11-16);al. Censo de trabalhadores não-israelitas (v. 17-18).

Aqui o foco não está em uma oração ou tema central, mas na relação entre as cartas nas seções centrais. A resposta de Hirão indica seu apoio aos propó­sitos de Deus e promete tudo que Salomão pedira. Como no capítulo 1, os pedidos de Salomão são respondidos novamente nas obras invisíveis de provi­dência. A fonte primária do cronista é IReis 5, mas ele omitiu e acrescentou material com muita liberdade em comparação com o relato mais antigo. O efeito das mudanças é acentuar a relação de pedido-resposta entre as cartas. Ele tam­bém resulta em uma concentração ainda maior sobre o templo, reafirmando o governo soberano de Deus sobre as nações como também sobre o templo.

Tal visão do templo desafia todas as visões mesquinhas sobre seu culto. Muitos dos contemporâneos do cronista indubitavelmente foram tentados a sucumbir ao medo de ameaças externas (e.g. Ed 4.1-24; Et 4.1-3), não só esque­cendo das contribuições de Hirão mas até mesmo daquelas dos imperadores Persas para a reconstrução do templo (Ed 1.1-4; 6.1-14). Mas a autoridade de Deus não podia ser confinada à terra de Israel, como também não pode ser limitada às igrejas e denominações nas quais os cristãos cultuam hoje. Além disso, o reconhecimento de Deus por Hirão é mais um passo para os propósitos mais amplos de Deus para as nações. Ele não só aponta para a função do templo como “uma casa de oração para todas as nações” (Is 56.7; Mc 11.17; cf. 2Cr 6.32- 33), mas além disso para a igreja, onde em Cristo todas as barreiras humanas podem ser derrubadas (Ef 2.11-22). Porém, tal cooperação só pode se tornar realidade quando o culto tornar-se a prioridade mais elevada e a autoridade de Deus entre os poderes da terra e do céu for totalmente levada em conta (v. 6,12).

a. Instruções para a construção (2.1).'2 Tendo recebido dons de sabe­doria e riqueza (cap. 1), Salomão foi capacitado a construir o templo e o palá­cio real. O templo é para o Nome do S e n h o r (também v. 4), uma frase natural­mente associada com Deuteronômio. O nome de Deus representava todo seu ser, que estaria presente e residiria no templo (cf. Dt 12.5,11; 16.2,11; 18.6-7). Seria possível invocar “o nome do S e n h o r ” a qualquer hora (e.g. 1 Rs 8.29,41- 44), na confiança de que as orações seriam ouvidas e respondidas. O cronista faz menção apenas de passagem ao palácio de Salomão (2.12; 7.11; 8.1; 9.11),

12 Os números dos versículos no TM são um abaixo dos versículos nas versões modernas, já que o v. 1 nas versões modernas é 1.18 em hebraico.

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esperando claramente que seus leitores soubessem onde detalhes mais plenos podiam ser encontrados (IR s 7.1-12). Em Crônicas o palácio sempre está unido ao templo, presumivelmente porque juntos eles representavam o estabelecimen­to da dinastia de Davi (cf. lC r 17.10-14; 28.2-7).

b. Censo dos trabalhadores (2.2). Apesar das EVV, o primeiro verbo aqui (“contou”) é idêntico ao do versículo 17, de forma que um recenseamento está realmente sendo descrito. Esses trabalhadores eram força de trabalho escravo dos não-israelitas que moravam em Canaã, que já tinha sido reunidos por Davi (v. 17; 8.7-10; c f lC r 22.2, 15-16). O número de três mil e seiscentos capatazes difere de IReis 5.16 (3.300), mas a LXX de Reis é bastante insegura aqui, e Crônicas pode preservar a melhor leitura (ver também Dillard, p. 22).

c. A carta de Salomão para Hirão (2.3-10). Esta carta centra-se em dois pedidos, marcados pelo repetido manda-me, por um artesão qualificado (v. 7) e mais madeira (v. 8-10). Como encorajamento, Salomão simplesmente pede a Hirão que continue demonstrar a bondade que ele havia demonstrado previa­mente a Davi (v. 3), e o lembra que o projeto é para a glória de Deus e não para a de Salomão (v. 4-6).

A relação entre Salomão e Hirão provavelmente está baseada mais em um tratado de equivalência entre iguais (cf. IRs 5.12), do que em um tratado onde Salomão era a parte superior. Enquanto é verdade que ao omitir a saudação inicial de Hirão (IRs 5.1) e com a designação de Salomão porparte de Hirão como “meu senhor” (v. 15), Salomão poderia parecer estar tomando a iniciativa, certamente ele não fez todas as coisas do seu jeito. Sua abertura é distintamente hesitante, e ele não está em pleno controle dos acordos financeiros (cf. v. 15-16; IRs 5.9-11).13 Sobre a forma do nome de Hirão (“Hurão” em Crônicas), veja lCrônicas 14.1.

Tanto Salomão quanto Hirão se referiam repetidamente a Davi (v. 3, 7,12, 14). Isso não é só um lembrete do tratado anterior de Hirão com aquele (cf. lCr 14.1; 22.4), mas uma sugestão de que os planos de Salomão cumprirão a promes­sa de Deus a Davi.14 Ademais, vários detalhes da lei Mosaica são especifica­mente cumpridos (v. 4-5).

13 A abertura ousada que a N V I atribui à carta é bastante enganadora, que na verdade começa com uma oração com parativa inacabada (“Como procedeste...”, v. 3) seguida de um parêntesis explicativo (v. 4-6). Nenhum pedido é de fato feito no TM antes do v. 7. A melhor forma de refletir a cautela inicial de Salomão é acrescentar uma frase no fim do v. 3 (“assim procede comigo”, ARA) antes que no começo (com GNB, BJ).

14 E desnecessário incluir os acréscimos expansionistas de “seu filho” após “eu” (v. 4), como na LXX, VL (contra e.g. Dillard, Rudolph). O texto mais longo não é apoiado por IRs 5.5 (versões m odernas; TM, v. 19), e é provavelm ente influenciado pela menção de “meu pai” ali e em IR s 5.3 (versões m odernas; TM, 5.17).

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4-6. O lugar onde o Nome de Deus habita, o padrão regular de adoração (baseado em Êx 30.1-10; Lv 24.1 -9; Nm 28— 29), e a lembrete específico da grande­za de Deus (cf. Êx 18.11; Dt 4.7-8) têm, todos, associações diretas com Moisés. No entanto, o padrão de adoração, que era tão importante para Crônicas (cf. ICr 23.28- 31; 2Cr 13.10-11; 31.2-3), era uma obrigação perpétua (“ordenada para sempre”, NRSV). O templo, portanto, também olha adiante, de dois modos. Em primeiro lugar, seria um lugar para queimar sacrifícios, uma função central no templo pré- exüico, mas que foi especialmente enfatizada após o exílio (cf. 2Cr 7.12; Ml 1.6-14; a mesma lista ocorre em 2Cr 31.3). Aqui se tratam das atividades regulares de adoração listadas no versículo 4, os holocaustos diários, as ofertas semanais do Sábado inclusive o pão consagrado (NVI, “pão da proposição”, ARA), as festas mensais da Lua nova e os festivais anuais (festas fixas). Os cristãos também são chamados de modo semelhante a “continuamente oferecer a Deus um sacrifício de louvor” (Hb 13.5). Porém, em segundo lugar, esses sacrifícios devem ser ofereci­dos a um Deus que nem sequer o céu dos céus podem conter (cf 2Cr 6.18). A transcendência de Deus, uma outra ênfase pós-exílica, é tão importante quanto a sua presença, lembrando Israel que até mesmo o templo concluído de forma algu­ma esgotava seus planos para eles.

7. O primeiro pedido de Salomão, por um artesão habilidoso, não aparece na forma mais antiga dessa carta (lR s 5.3-6; mas cf. lRs 7.13-14). Ela realça a necessidade de sabedoria para construir o templo (competente, NVI, duas vezes aqui, é lit. “sábio” em heb.), e fortalece a ligação do templo com a Tenda (ou “tabernáculo”) de Moisés. Os artesãos principais para a Tenda, Bezalel e seu assistente Aoliabe, eram ambos semelhantemente qualificados em uma gama de habilidades (cf. Êx 31.1-6; 35.30— 36.2). Porém, Reis e Crônicas diferem em sua descrição das habilidades necessárias, pois ao passo que em IReis 7.13-47 Hirão- Abi (lá chamado Hirão) é um trabalhador em bronze, aqui ele tem muitas habilida­des (v. 7 e 13-14; cf. 2Cr 3.15— 4.18). Mas mesmo que os versículos 7 e 14 pareçam tratar de Bezalel e Aoliabe intencionalmente, uma gama de talentos era exigida para o templo (cf. 2Cr 3.4-14, especialmente v. 14), e certamente não é impossível para Hirão-Abi ter dado conta do serviço. A influência do cronista também é reconhecível em uma forma aramaica única da palavra parapúrpura (a forma heb. habitual está em 2.13; 3.14), um provável empréstimo persa para carmesim, e a frase comum pós-exílica Judá e Jerusalém.15

8-9. O segundo pedido de Salomão é por madeira. Como no caso dos artesãos (IC r 22.15-16; 28.21), ele é adicional ao que foi provido por Davi (cf22.4, 14; 29.2), embora a habilidade de derrubar e cortar fossem tão importante para Salomão quanto os materiais. Ãlgom (heb.; “junípero”, NVI) é desconheci­do, embora provavelmente seja cognato do acadiano elamukku e do ugarítico

15 Sobre essa frase, cf. e.g. 2Cr 20.18; Ed 1.2; 9.9; Ml 3.4.

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almg e que cresce no norte da Síria. Um texto ugarítico até mesmo a cita em uma lista de árvores exportadas do Líbano, embora de acordo com IRs 10.11-12 (“sândalo”), fosse importada de Ofir.16 Para a maioria dos israelitas, naturalmente, toda a madeira era simplesmente de origem estrangeira, como a prata e o ouro (cf. 2Cr 1.16-17), de forma que no final das contas o templo seria maravilhoso (v. 9; NVI, “imponente”) à vista de todas as nações (lC r 22.5).

10. Os detalhes do pagamento mostram várias diferenças em comparação com IReis 5.11. Na passagem mais antiga, Hirão é convidado a dar seu preço, cevada e vinho não são mencionados, o óleo é de qualidade especial e quantidade diferente, e o pagamento anual é feito. Visto que variantes textuais apoiam a quan­tidade de óleo em Reis, as diferenças entre Reis e Crônicas podem ter uma causa semelhante.17 Alternativamente, Crônicas pode estar descrevendo a posição que Salomão assume na negociação, que Hirão depois mudou muito {cf. IRs 5.6,9).

d. A carta de Hirão para Salomão (2.11-16). A resposta de Hirão é consi­deravelmente mais longa que IReis 5.7-9. Isso é em parte devido à preferência do cronista pelo uso de fontes escritas como esta carta (v. 11; cf. 1 Cr 28.19; 2Cr 21.12; 30.1; 35.4; 36.22), e em parte porque são ampliados os versículos 13-14 de IReis7.13-14. Os versículos 11-12 (EVV; v. 10-11, TM); parecem ter um duplo começo, embora isso seja muito mais claro em hebraico do que nas EVV que suavizam as palavras de abertura de ambos os versículos, literalmente, “E Hirão disse”. En­quanto o problema é algumas vezes resolvido invertendo os versículos 11 e 12 (Ackroyd, Curtis e Madsen), é mais provável que o versículo 11 seja baseado em IReis 5.1 e os versículos 12ss em IReis 5.7ss (Williamson).

A forma da resposta segue de perto a carta de Salomão, a saber: (a) Con­texto teológico e histórico (v. 11-12; cf. v. 3-6); (b) Hirão-Abi como artesão prin­cipal (v. 13-14; cf. v. 7); (c) Materiais e pagamento (v. 15-16; cf. v. 8-10).

11-12. E talvez surpreendente que Hirão reconheça tão clara e entusiastica­mente o projeto do templo como a vontade do Deus de Israel. Poderia parecer excessivo até mesmo para um governante gentio amigável afirmar a ascensão de Salomão como conseqüência do amor de aliança de Javé, Javé como o criador de todas as coisas, e a sabedoria, “inteligência e entendimento” de Salomão (v. 12, NEB) como dons de Javé.18 Mas declarações teológicas desse tipo não são des­conhecidas no Antigo Testamento (cf. Dn 4.34-35; 6.26-27), e não implicam neces­

16 Cf. J. C. Greenfield e Mayrhofer, “The ’a leum m im /’almugeim problem reexamined”, SV T 16, 1967, p. 83-89.

17 N ão é claro se batido é ura erro em lugar de “com o alim ento” (cf. IR s 5.11 “para sustento”) ou se também se baseia em um a variante textual.

18 Sobre “amor” como vocabulário típico de aliança/tratado, cf. W. Moran, “The ancient Near Eastern background of the love o f God in Deuteronomy”, CBQ 25, 1963, p. 77-87. Cf. também Dt 7.9; ISm 7.15.

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sariamente em conversão ao javismo. Em Crônicas elas acontecem em pontos importantes (cf. 2Cr 9.5-8; 36.22-23), com esta passagem tendo um paralelo direto em uma fala da Rainha de Sabá (cf a sabedoria de Salomão em 2.12 e 9.5-7; o amor de Javé ao tomar Salomão rei em 2.11 e 9.8; a bênção de Javé em 2.12 e 9.8). Tanto Hirão quanto a Rainha de Sabá confirmam a autoridade suprema de Javé para construir o templo (v. 12). O templo, então, não se toma uma casa de oração para todas as nações por acaso. As nações até tomam parte em sua construção!

13-14. Hirão responde ao primeiro pedido de Salomão enviando Hurão-Abi (NVI, NRSV, RSV, JB; chamado “Hirão” em Reis), que tinha ainda a vantagem da ascendência israelita. Variações no nome de uma pessoa não são raras no Antigo Testamento (cf. Jeoiaquim/Conias/Jeconias; Josué era antes chamado Oséias), mas os eruditos modernos freqüentemente entendem o sufixo “-abi” como signi­ficando “mestre” (lit. “pai”; cf. Gn45.8; Jz 17.10), e assim preferem “mestre Hurão” (NEB, cf. NTLH). Isso é possível, mas carece de analogias claras. Embora o nome do assistente de Bezalel, Aoliabe, possa explicar a preferência de Crônicas pela forma Hirão-Abi (cf. comentário sobre v. 7 e Êx 31.6; 35.34-35), é duvidoso se o nome de Aoliabe pode ser explicado desse modo. Outra ligação entre Hirão-Abi e Aoliabe é que as mães de ambos vieram de Dã. Embora IReis 7.14 declare que a mãe de Hirão-Abi seja da tribo de Naftali, a ascendência de mais de uma tribo pode não ter sido incomum, ou por causa do contraste de elos geográficos e genealógicos ou como resultado da linhagem de gerações anteriores (cf Samuel como efraimita e levita). Porém, a principal qualificação de Hirão-Abi é que ele é, literalmente, “um homem sábio que conhece entendimento” (v. 13), que trabalhará com “seus ho­mens sábios” (v. 14), i.e. seus artesãos. Na providência de Deus, a apropriada sabedoria ou habilidade foi suprida não só por um arquiteto estrangeiro como também pelo rei escolhido por Deus.

15-16. Finalmente, Hirão prometeu enviar a madeira necessária, embora, como um homem de negócios astuto, só depois que o pagamento tivesse sido recebido. O vocabulário presente do versículo 16 parece refletir a era pós-exílica. A menção de Jope, não especificada em IReis 5.9, é quase certamente influenciada pelo transporte de madeira para o segundo templo que chegou ao mesmo porto (Ed 4.7). As palavras para necessária e jangadas (NVI), que são únicas no Antigo Testamento embora a primeira tenha um cognato aramaico, provavelmente sejam do tempo do próprio autor.

e. Censo dos trabalhadores não-israelitas (2.17-18). Esse parágrafo é a fonte da informação cedida já no versículo 2 (cf. lR s 5.15-16). Aqui, no entan­to, esses trabalhadores são claramente estrangeiros que foram contados de­pois do recenseamento de Davi. Enquanto lCrônicas 22.2 pode estar em men­te, aquele evento não é descrito como um recenseamento, e provavelmente trata-se do incidente infeliz de 1 Crônicas 21. Mais interessante é a tentativa de Crônicas de esclarecer a identidade bastante confusa da mão-de-obra de

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Salomão em IReis 5.13-18. A passagem mais antiga parece incluir grupos tem­porários de 30.000 israelitas sob o comando de Adonirão como também 153.000 escravos permanentes mas não identificados. Aqui, no entanto, somente o último grupo é mencionado e identificado como não-israelita. Com o risco de simplificar demais um problema complexo, eles provavelmente são o mesmo grupo de IReis 9.20-21, (= 2Cr 8.7-8), enquanto as tribos revoltadas que con­frontaram Roboão (IR s 12 = 2Cr 10) muito provavelmente sofreram sob Adonirão (cf 2Cr 10.18).19 Era normal no mundo antigo escravizar povos sujei­tados, mas para os israelitas entrarem em alguma forma de escravidão, especi­almente nas mãos de seu próprio povo, era negar a própria liberdade para a qual eles tinham sido redimidos. Portanto, mesmo que o cronista não ignore o alto preço que os israelitas pagaram pelo sucesso de Salomão, ele concentra- se aqui na submissão dos não-israelitas em Canaã como um sinal da ocupação total da terra por Israel e no fato de que os preparativos para o templo agora estavam concluídos (cf. 3.1).

G. Salomão constrói o templo (3.1— 5.1)Finalmente, chegamos ao ponto onde Salomão começou a construir o

templo (v. 1). É um pouco surpreendente, então, que depois de todos os prepa­rativos (que realmente começaram já em 1 Cr 17.1,4,12), o relato de Crônicas da construção do templo seja na verdade muito mais breve que em Reis. Setenta e sete versículos em IReis 6— 7 (omitindo o relato do palácio real, 7.1-12) foram condensados em quarenta versículos em 2Crônicas 3.1— 5.1. Visto que o cronis­ta então dedicará mais espaço às cerimônias de inauguração (caps. 5—7) que ao trabalho de construção, fica claro que seu interesse é mais no significado do templo do que em seus detalhes arquitetônicos. Em outras palavras, o templo não estará completo quando a última pedra estiver em seu lugar, mas quando Deus estiver residindo nele.

Os capítulos 3—4 têm uma estrutura comum bem como um conteúdo co­mum. Seguindo um esboço do plano básico do templo (v. 3-7), quatorze parágra­fos em 3.8—4.11 começam todos com a frase ele fe z (heb. wayya ‘as; 3.8,10,14- 16ab; 4.1 -2 ,6 -7 ,8a, 8b-9 ,11 a). O propósito é chamar atenção para uma analogia com a construção da Tenda, onde uma versão mais longa do mesmo padrão ocorre (Êx 36.1— 39.32). Salomão, como Moisés, é fiel aos planos revelados por Deus (cf. especialmente lC r 28.11-19 onde a maioria dos detalhes da construção listados aqui também é mencionada). A associação entre o templo de Salomão e a Tenda de Moisés é destacada várias vezes no capítulo 3 (ver também v. 9,14). Visto que nenhum destes elos ocorre em IReis 6— 7, eles são o modo de Crôni­

19 Cf. Jones, I, p. 157-158; R. Dillard, “The C hronicler’s Solom on” , WTJ 43, 1980, p. 289-300, especialm ente p. 294-296.

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cas de sublinhar que o propósito da Tenda, um santuário itinerante, foi cumpri­do no “repouso” significado pelo templo.

O capítulo proporciona um simples giro pelo edifício, começando pelo pórtico (v. 4), em seguida o santuário principal (v. 5-7), e o Santo dos Santos (v. 8-13), com notas separadas sobre o véu (v. 14) e as colunas de entrada (v. 15-17). O centro de atenção é sem dúvida o Lugar Santíssimo (ou Santo dos Santos), onde a arca logo achará sua morada permanente (5.7-10). As repeti­das referências a vários tipos de ouro (v. 4-10) e aos querubins (v. 7, 10-14) também é notável, visto que ambos recebem mais proeminência do que em Reis. O ouro geralmente é uma marca de realeza, de forma que sua presença por todo o edifício provavelmente demonstra que o templo era um lugar digno para o verdadeiro rei de Israel, o S e n h o r . Essa tese também é apoiada pelo fato de que os querubins, freqüentemente mencionados no contexto da majestade celestial de Deus (e.g. Ez 10.1,20-22; SI 99.1), enfeitavam o santuário e o véu como também o Santo dos Santos.

Tal consciência da presença de Deus, porém, deve ter produzido respostas contraditórias em Israel. Por um lado, a proximidade de Deus era uma razão para real alegria (e.g. SI 27.4-6), e a freqüência ao templo terreno de Deus dava acesso à sua presença celestial (cf. 2Sm 22.7; Jo 2.7). Mas a própria arquitetura do edifício também enfatizava a enorme dificuldade de se aproximar de Deus. É preciso lem­brar que os israelitas comuns jamais viram o que é descrito aqui, pois somente os sacerdotes e levitas tinham acesso ao templo, e naturalmente, somente o sumo sacerdote entrava uma vez por ano no Lugar Santíssimo no Dia da Expiação. Para a maioria dos israelitas, então, o templo era um mundo invisível. Deus tinha se aproximado deles, mas o caminho para ele era impedido por muitas restrições.

A imensidão do que Jesus realizou começa a surgir somente quando se tem esse sentimento de majestade inacessível. Porque ele não só passou pelo véu que ocultava Deus dos seres humanos de uma vez por todas (Mt 27.51), mas ainda concede a seu povo “intrepidez para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou pelo véu” (Hb 10.19-20). Ao passo que o santuário de Salomão era só “uma figura e sombra das coisas celestes” (Hb 8.5), Cristo abriu o caminho para o Lugar Santíssimo no próprio céu. No entanto, não se deve subestimar a real satisfa­ção já em Israel de conhecer a Deus através de seu templo: “Em sua presença há plenitude de alegria” (SI 16.11, NRSV; cf. SI 73.16-17; 84.1-4,10). O templo desempenhava um papel vital ajudando Israel a experimentar a realidade de Deus (c/2C r5.13; 7.12-16).

i. Começando a construir o templo (3.1-2)“Começou Salomão a edificar a Casa do S e n h o r ” (3.1).E dado um destaque ao fato de que Salomão começou a edificar (o mesmo

verbo começa ambos os versículos em hebraico; cf. também Ed 3.8; 5.2). O local

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é identificado duplamente, como o lugar onde o S e n h o r apareceu tanto a Abraão quanto a Davi (cf. Gn 22; ICr 21).20 Ele é, em ambos os casos, um lugar onde Deus se revelou e onde um sacrifício especial foi oferecido, temas especialmente associados com o templo. Há uma incerteza sobre o verbo geralmente traduzido por apareceu (cf. EVV; “foi provido”, referindo-se ao lugar, também é possível; assim Michaeli, Rudolph; c f Gn 22.8,14), porque não há nenhum sujeito óbvio. As EVV, no entanto, corretamente seguem a LXX ao acrescentar “o S e n h o r ” , e pode ser argumentado até mesmo que o verbo de fato contém uma forma abrevi­ada de “Javé”.21 Que se trata de um aparecimento de Deus não é algo contradito pelo fato de que em ambas as passagens “o anjo do S e n h o r ” é revelado (Gn 22.11; ICr 21.16ss), visto que o anjo de Deus era considerado freqüentemente no Antigo Testamento como uma forma de Deus (cf. Êx 3.2-6; Jz 13.2-23). Moriá, mencionado em outro lugar só em Gn 22.2, é a terra onde Abraão foi para sacri­ficar Isaque. Aqui é chamada de um monte, por implicação de Gênesis 22.14. As várias alusões a Gênesis 22 aqui fortemente sugerem que se trata do mesmo lugar em ambas as passagens.22

A sincronização de Reis com a data do êxodo é omitida (cf. lRs 6.1), presum ivelm ente em favor dos elos teologicam ente mais sugestivos do versículo 1. Um outro elo com a data em que o segundo templo começou a ser construído também é indicado (cf. Ed 3.8). No segundo dia (NVI) provavel­mente foi acrescentado erroneamente a 1 Rs 6.1 por ditografia.

ii. Os alicerces e o pórtico (3.3-4a)Cf. I Reis 6.2-3O versículo 3 descreve a planta baixa (alicerces, NVI, REB, NEB), e não

somente as medidas (NRSV, baseado no Tg.; cf. Rudolph, Myers), ou a esca­vação em si dos alicerces. Omitindo quase todas as medidas de altura em Reis (cf. v. 3-4, 10 e lRs 6.2, 20, 23), o cronista mostra o seu interesse no projeto básico do templo antes que em sua forma global. Ele media 60x20 côvados (ou 26.67m x 8.89m) pelo côvado do primitivo padrão,23 que no tempo do cronista tinha sido substituído por um que era mais longo em uma largura da palma da mão (Ez 40.5; 43.13). O templo, portanto, não era muito grande, e era menor que muitas igrejas de hoje.

20 “O local que Davi tinha preparado” (v. 1, REB, NEB; cf NVI etc.) envolve um leve reajuste do TM , m as é apoiado pelas VSS. E le é p referível à tradução alternativa, “que [Salomão] tinha estabelecido no local de D avi” .

21 Cf. G. R. Driver, Textus 4, 1964, p. 90; cf. L. C. Allen, The Greek Chronicles, 2, SVT 27 (Leiden: Brill, 1974), p. 83.

22 Veja também H. G. M. Williamson, in W. Horbuiy (ed.), Templum Amicitiae, JSNTS 48 (Sheffield: Sheffield Academic Press, 1991), p. 20-25.

23 A “a medida geralmente aceita” para o côvado é 44.45 cm (D. J. Wiseman, IBD, p. 1635-6).

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2CRÔN1CAS 3.1—5.1

Entrava-se no templo por um pórtico ou “vestíbulo” (v. 4, NRSV, RSV, REB, NEB; pórtico, NVI; “corredor de entrada”, GNB). As medidas dadas são adicionais àquelas para o edifício principal, embora o texto hebraico pareça ser defeituoso em três pontos. Primeiramente, a relação entre o pórti­co e o templo não é clara porque TM foi corrompido. A solução mais simples é incluir “casa”/“templo” com a LXX na primeira frase, ficando assim a leitu­ra: “O pórtico que estava na entrada do templo... tinha vinte côvados de comprimento” (cf. NVI, REB, NEB). Em segundo lugar, a falta de qualquer medida de largura no TM torna impossível se ter certeza da forma do pórtico. Pode bem ter sido q uad rado , “v in te côvados de com p rim en to que correspondem à largura do templo” (c f Rudolph), ou também um retângulo de vinte côvados de comprimento por dez côvados de largura (cf. IRs 6.3), embora alguns tenham entendido que sua largura era de vinte côvados e seu comprimento é desconhecido (cf. GNB). Em terceiro lugar, sua medida de altura deveria ser vinte côvados de altura (NVI, REB, NEB), em oposição a uma tradução literal do TM, “e sua altura 120” .24 O conceito de uma torre (GNB, NRSV, RSV, JB) pode refletir o tipo de projeto que foi usado mais tarde para o templo de Herodes, cujo pórtico tinha 100 côvados de altura (cf. Josefo, Jewish Wars V. 207).25

iii. O templo de ouro (3.4b-13)3.4b-5 - cf. IReis 6.20b-21,293.1-c f. IReis6.223.8-c f. IReis6.20a3 .1 0 -1 2 -# IReis6.23-24,27-28Visto que IReis 6.3 não contém nenhuma sugestão de que o pórtico fosse

adornado com ouro, a última frase do versículo 4, uma combinação habilidosa de partes de IReis 6.20-21, provavelmente apresenta o tema do ouro dos versículos seguintes. Cobriu (v. 4) é uma generalização para revestir por dentro e também por fora.

Além de ouro (v. 5-7), a sala grande (v. 5-7; “nave”, NRSV, RSV; “átrio principal”, NVI) foi decorada com cipreste, palmas e cadeias/correntes (v. 5), pedras preciosas (v. 6; c f lC r 29.2), e querubins esculpidos (v. 7). Acima de tudo, ele deveria ser um lugar de beleza (v. 6, JB) e majestade, adequado para a presença do Rei dos reis. As palmas (= a árvore da vida?) e os querubins podem simbolizar que através do templo está o caminho de volta às condições

24 As m edições do C ron ista nesta seção sem pre são expressas pela fo rm a plural de “côvados” antes do número em questão. Em vista da omissão por parte de Crônicas de todas as outras referências a altura neste contexto, deve-se levar a sério a proposta de se ler aqui "dez côvados de largura” (cf. IRs 6.3 e W illiamson, p. 206)

25 Sobre as mudanças no projeto do templo no antigo Israel, cf. C. Lucas. Meyers, “The elusive tem ple” , BA 45, 1982, p. 33-41.

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2CRÔNICAS 3.1—5.1

ideais do jardim do Éden (cf. Gn 3.22,24; Ez 3 1.2-9).26 Parvaim (v. 6) é desconhe­cido, embora, de acordo com um historiador árabe do século X d.C., era uma mina de ouro a nordeste da Arábia chamada elfarwain. Também é possível que ele seja um dos vários termos nesse contexto para o ouro de alta qualidade (“ouro puro”, v. 4; “ouro bom”, v. 5, 8; ouro ‘sãgür [vermelho?]”, 4.20,22; “ouro fino”, 4.21).

O Lugar Santíssimo ou “Santo dos Santos” (v. 8-13) era uma sala secreta, muito bem escondida da visão humana, onde os pecados de Israel eram per­doados com base na aliança simbolizado pela arca (cf. 2Cr 5.7-10). Ele era na realidade um cubo completo (cf. lRs 6.20), simbolizando a perfeição de seu projeto como também seu propósito. Brilhava com seiscentos talentos de ouro (v. 8) e outros cinqüenta siclos para os pregos (v. 9), além dos querubins de ouro(v. 10-13).Nem os 600 talentos nem os pregos ocorrem em IReis 6, e ambos são incluídos provavelmente por razões simbólicas. O primeiro era o preço do local do templo (ICr 21.25). Provavelmente era considerado a contribuição de Davi para a provisão de expiação por outros, ainda que ele não pudesse expiar seus próprios pecados (cf. IC r 21.25; 28.11). Os pregos recordam os ganchos pelos quais se pendurava o véu da Tenda (Êx 26.32, 37). A pequena quantidade de ouro, pouco mais de meio quilo, foi provavelmente usada para folha de ouro.27 “As câmaras superiores” (v. 9, NRSV, RSV, REB, NEB) não são mencionadas diretamente em outras passagens, embora, como a altura do Lugar Santíssimo era apenas de vinte côvados contra trinta côvados para o edifício, pensa-se freqüentemente que pode ter havido uma sala acima e/ou abaixo. É menos pro­vável que se trate dos quartos laterais {cf. lRs 6.5-6, 8-10).

Os querubins (v. 10-13) recebem atenção especial, embora a informação de IReis 6.23-28 seja muito abreviada aqui. Eles representam seres angelicais que vivem na presença do próprio Deus (cf. Ez 10.2ss), e suas asas que alcançam de uma parede à outra simbolizavam o quão completamente eles protegiam a arca (cf. lCr28.18; 20-5.7-8).

iv. O véu (3.14)Somente aqui o Antigo Testamento faz menção do “véu” do templo (NVI,

RSV, REB, NEB) ou cortina (BJ, GNB, NRSV). ATenda naturalmente possuía um véu (Êx 26.31-35; 36.35-36; cf. esse versículo com Êx 26.31; 36.35), mas IReis 6.31- 32 fala apenas das portas entalhadas como o restante da grande sala. A existên­cia de um véu no templo de Salomão, no entanto, pode ser apoiada pela presença

26 Cf. J. Strange, “The idea o f afterlife in ancient Israel: some remarks on the iconography of Solom on’s temple”, PEQ 117, 1985, p. 35-40; H. Gese in H. Gese e H. P. Hliger (eds.), Wort und Geschíchte, A O AT 18, 1973, p. 82.

27 A tradução da RSV “O peso dos pregos era de um siclo a cinqüenta siclos de ouro” é um a em enda baseada na LXX, m as pressupõe injustificadam ente que os pregos eram de ouro m aciço.

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de um no templo de Herodes (Mt 27.51 = Mc 15.38 = Lc 23.45).28 Dois outros fatores apontam na mesma direção. Primeiramente, o hebraicopãrõket na reali­dade significa “divisória, barreira” (uma palavra diferente é usada para “corti­nas”), e palavras cognatas em idiomas relacionados são aplicadas a vários tipos de obstáculos.29 Em segundo lugar, o cronista claramente acreditava que o templo de Salomão tinha tanto um véu quanto portas (cf. 2Cr 4.22), como também era o caso no templo de Herodes (Josefo, Jewish War 5.5). O cronista estava interessado no véu por causa de sua continuidade com a Tenda, mas para os cristãos o rasgar do véu quando da morte de Jesus (Mt 27.51 etc.) substitui todas as outras associações.

v. As colunas (3.15-17)3.15-17-ç /: IR eis7.15-17,20-21,De acordo com IReis 7.13ss, as duas colunas em frente do templo enca­

beçam a lista de objetos de bronze feitos por Hirão-Abi (= Hirão, IRs 7.13; cf. 2Cr 2.13). Isso é confirmado pela inclusão que o cronista faz das colunas adornadas no seu resumo do trabalho do arquiteto (2Cr. 4.11-13). A lista com­pleta de obras de bronze ocorre em 3.15— 4.18.

A evidência de outros santuários sugere que as colunas provavelmente ficassem isoladas, mas não há nenhuma certeza sobre a sua origem ou função. Os seus nomes (v. 17) Jaquim ( - “ele estabelece”?) e Boaz (= “força está nele”?) sugerem o tema da confirmação. Isso poderia estar unido à idéia de que a aliança de Javé foi confirmada por meio do templo, ou pelos esforços de Salomão em construir o templo. Qualquer dessas explicações é mais provável que ler esses nomes como nomes da ascendência de Davi (cf Nm 26.12; lC r 24.17; Rt 4.13-22) ou como resquícios da religião dos cananeus.30

A altura delas é dada aqui como de trinta e cinco côvados (v. 15), contra apenas dezoito côvados (= 8 m) em IRs 7.15 (também 2Rs 25.17; Jr 52.21). A explicação mais provável é que esse é o número somado para ambas as colunas (o contrário parece ter acontecido com as romãs, cf. v. 16 e IRs 7.20). Menos provável é que os números para altura, circunferência e capitel tenham sido somados erroneamente (18 + 12 + 5). Foi sugerido também que a palavra única normalmente traduzida por capitel (v. 15) pode significar “revestido de ouro”.31 As correntes (v. 16) talvez fossem entrelaçadas (GNB, NIV) ou tivessem um

28 Sobre um possível apoio textual em IR eis 6.21, cf. R udolph, p. 204-205; Jones, I, p .169-170 .

29 Cf. J. Hftijzer, Dictionnaire des inscriptions semitiques de l ’ouest (Leiden; Brill, 1960- 62), p. 235; J. C. L. G ibson, Textbook o f Syrian Sem itic Inscriptions (Oxford: C larendon Press, 1982), p. 124-127; W. von Soden, AHwb, p. 828.

30 Para mais detalhes, veja D. J. W isemann e C. J. Davey, IDB 2, p. 726-727 (inclui um diagram a); Jones, I, p. 181-183.

31 W. G. E. Watson, “Archaic elements in the Language of Chronicles”, Bib. 53, 1972, p. 196.

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2CRÔN1CAS 3.1— 5.1

padrão de “colar” (RSV, REB, NEB), com base em uma emenda geralmente aceita, embora o hebraico na verdade leia, “ele fez correntes no Santo dos Santos”. A presença de correntes nos colunas como também no Santo dos Santos e na grande sala (v. 5) combinava com o uso de ouro e querubins em partes diferentes do edifício, e destacava também a unidade e complemen­taridade do projeto do templo.

vi. Os utensílios do templo (4.1-22)4.2-5-c f. IReis7.23-264.6a-c f. lReis7.38-39a4 .10-22-cf. lReis7.39b-50Não há nenhuma quebra real entre o capítulo 3 e capítulo 4, e o padrão de

parágrafos curtos que começam com “ele fez”, começado em 3.8, continua aqui até o versículo 11a. A única diferença importante é que ao passo que o capítulo 3 focalizou a estrutura do edifício, o capítulo 4 concentra-se em sua mobília e utensílios.

Como antes, uma oportunidade é aproveitada para sublinhar a conexão en­tre a Tenda de Moisés e o templo de Salomão (cf v. 1, 6b-9), embora, inversamente, o templo da época do cronista pareça ter tido pouca influência nesta passagem (cf.e.g. Ed 3.1-13; 6.13-18). Visto que o templo de Salomão é maior e mais bem equipa­do que a Tenda, ele claramente não era uma imitação artificial em uma forma mais duradoura. A atenção do leitor é, portanto, dirigida mais aos princípios que subjazem ao projeto do templo do que aos detalhes de sua mobília. Também é importante que aqueles mesmos princípios sobre os quais a Tenda estava baseada ilustram o santuário celestial aberto para nós em Cristo (Hb 8.1— 10.25).

Três desses princípios são enfatizados por todo este capítulo. Primeiramen­te, a estrutura e utensílios do templo expressam de diversas maneiras o que signi­fica estar na presença de Deus. A necessidade de ser lavado, o simbolismo dos candelabros e do pão, as portas do Santo dos Santos, e até coisas como vasilhas de aspersão e incensários, falam da graça de Deus ao se aproximar da humanidade como também da sua santidade gloriosa. Em segundo lugar, a ênfase nas taças do templo, assim como a associação entre a Tenda e o templo, sublinha a continuida­de representada pelo templo. O retomo das taças do templo ao segundo templo é um dos principais sinais de que o Israel pós-exílico continuava sendo uma comu­nidade adoradora do povo da aliança (cf. Ed 1.7-11; 6.5; 8.24-34).32 A importância contínua desses utensílios é destacada pela referência a vários reis que os repara­ram para o uso no culto (cf 2Cr 13.11; 23.18-19; 29.18-19; 33.16). Em terceiro lugar, o detalhe mostra que Salomão teve cuidado para seguir as instruções escritas de Deus, com quase todo item listado em lCrônicas 28.11-19 sendo repetido

12 Cf. P. R. Ackroyd, “The temple vessels - a continuity theme”, SVT 23, 1972, p. 166-181.

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2CRÔNICAS 3.1—.5.1

aqui. O padrão de obediência de Moisés ao construir a Tenda (cf. Êx 25— 31 e 35— 40) é portanto continuado, e em ambos os casos culmina com a casa de Deus sendo preenchida por sua glória (5.13-14; cf. Êx 40.34-38).

O interior do templo também ajuda os cristãos a entender o que significa adorar a Deus em seu santuário celestial. Embora o caminho não estivesse completamente aberto nos tempos do Antigo Testamento (Hb 9.8), como re­sultado da morte de Jesus o caminho para o céu está agora disponível tanto aos gentios como aos judeus. Seu ponto de entrada terreno é a cruz “fora do acampamento” (Hb 13.11-14). Lá Jesus morreu de uma vez por todas pelos pecados (c f Jo 19.30), fazendo de qualquer outro templo e altar terrenos total­mente supérfluo (cf Hb 8.13). Esse Lugar Santíssimo no céu deve ser um lugar de adoração contínua como também de completa expiação. Aqui todo crente pode entrar como um sacerdote (lP e 2.5, 9), confiante de nunca ser rejeitado para longe da presença de Jesus, o Pão da vida e a Luz do mundo (cf. Jo 6.35, 8.12; 9.5). Os cristãos, portanto, são encorajados a se aproximar de Deus “com sincero coração, em plena certeza de fé” (Hb 10.22).

A estrutura do capítulo é muito simples.

4.1-1 la Os utensílios do Templo (continuação de 3.8)4.1 lb-18 Resumo das obras em bronze de Hirão-Abi4.19-22 Resumo dos objetos de ouro5. 1 Conclusão de todo o trabalho

Embora o cronista tenha derivado a maior parte do seu material de Reis, no final das contas ele provavelmente vem de três relatos diferentes do templo. Essa é a explicação mais provável da falta de consistência entre os resumos e o relato principal, que Crônicas parece não ter feito nenhuma tentativa de harmo­nizar em todos os detalhes. Alguns itens são descritos duas vezes de formas diferentes (cf. v. 13 e 3.16), enquanto outros, como os suportes (v. 14), o altar dourado (v. 19) e as portas (v. 22), são incluídos pela primeira vez nos resumos. Visto que o cronista concentra-se na impressão geral, criada pelo ouro e bronze como símbolos da presença de Deus entre seu povo, ele omite a descrição detalhada dos suportes (IRs 7.27-37), mas acrescenta elementos que falam tanto da presença de Deus quanto de um lugar para seu povo (v. 6b-9).

Essa seção lista oito itens de diferentes utensílios do templo, cada sub­seção começando com “elefez” (v. 1-2, 6-7, 8a, 8b, 9, 11a; heb. wayya‘as). Os mais importantes são os seguintes.

a. O altar de bronze (4.1). Embora esse versículo não apareça em IReis 7 (mas cf. IRs 8.64; 9.25; 2Rs 16.14), o estilo e vocabulário são na realidade mais típicos de Reis que de Crônicas, e ele provavelmente foi omitido do texto mais antigo por acidente (ver Rudolph, Dillard). Esse era o grande altar alcantilado

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2CRÔNICAS 3.1—5.1

(8.89 x 8.89 x 4.445 m) que ficava fora no pátio em frente da entrada do templo (cf 6.12; Êx 40.6; Ez 43.13-17).33 Parece que ele simplesmente substituiu a versão muito menor (c f Êx 27.1) de Gibeão onde Salomão cultuava (1.5-6). Até um objeto importante como um altar parece não ter sido sagrado demais quando algo maior podia tomar seu lugar.

b. O m ar de fundição (4.2-6, 10). Esse objeto de nome estranho era na verdade um grande “tanque” de água (NTLH), colocado no interior do lado sudeste (v. 10) do templo. Seu equivalente mais próximo na Tenda era a bacia (ou lavatório) que ficava entre o altar de bronze e a entrada da Tenda (Êx 30.18- 21). Ambos eram usados pelos sacerdotes para que se lavassem (2Cr. 4.6; c f Êx 30.19-21). Visto que somente o cronista especifica um uso para o mar de fundi­ção, muitas vezes se pensa que ele está conscientemente evitando antigas associações mitológicas. Porém, tal suposição não é claramente apoiada em nenhuma descrição desse objeto, e é mais natural interpretar seu nome com base em seu tamanho e função. Os sacerdotes que não se lavassem, para se purificar, morreriam (Êx 30.20), e um banho espiritual é igualmente essencial para os cristãos (cf. Jo 13.10; 15.3;Hb 10.22). A s /? í í m (v . 6; “lavatórios”, RSV) também eram usadas para lavar, mas para aquelas partes dos animais dados como oferta queimada (GNB; cf. Êx 29.17; Lv 1.9, 13; Ez 40.38) e não para utensílios (cf. NRSV, RSV).

O mar de fundição ficava sobre doze touros (v. 4), e era enfeitado com, literalmente, “algo como touros” (v. 3), que a REB, NEB, RSV traduzem com uma palavra rara para “cabaças” (de IRs 7.24). Ou o cronista não entendeu o texto mais antigo (Willi) ou ele sentia que a decoração se igualava à estrutura de apoio. O simbolismo de flora e fauna no templo pode indicar a soberania de Deus sobre a ordem criada ou pode ser outra alusão à harmonia de todas as coisas criadas na presença de Deus como no Jardim do Éden (cf. 3.5). A capacidade de três mil batos (v. 5) está aparentemente baseada em uma forma cilíndrica, contra os “dois mil batos” de IReis 7.26 que supõe um hemisfério.

c. O dez candeeiros de ouro e as dez mesas (4.7-8). O templo de Salomão também era mais bem equipado do que a Tenda no caso da luz e do pão. Ao passo que a Tenda teve um único castiçal de sete braços e uma mesa para o “pão da proposição (cf. Êx 25.23-40), no templo havia dez de cada, mesmo que as lâmpadas talvez fossem de uma forma diferente. Embora o propósito das mesas não seja declarado aqui, a prática regular de referir-se às mesas para o pão no mesmo contexto dos candeeiros sugere que elas eram mais para o “Pão da Presença” do que para apoiar as lâmpadas (cf. lC r 9.32; 28.16; 2Cr 4.19-20; 13.11; também Êx 25.23-40; 40.4,22-25). Essa conclusão é válida ainda que Crônicas às

33 Sobre o côvado padrão de 44.45 cm, veja 1DB, p. 1635-6.

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vezes fale apenas de uma mesa (2Cr 13.11; 29.18). Embora uma mesa realmente possa ter sido usada em outras ocasiões, a menção de “cada mesa” em lCrôni­cas 28.16 parece decisiva para o período de Davi e Salomão.34

A luz e o pão falam ambos da presença contínua de Deus com seu povo, uma ênfase especial em Crônicas (v. 7-8 não estão em Reis).35 Mesmo em tempos de escuridão e pobreza, Deus continuou sendo a fonte de luz e de alimento para seu povo (cf. Dt 8.3; SI 36.8-9; Jo 6.35; 8.12).

d. Os pátios (4.9). Pode parecer estranho que esses sejam incluídos, mas um pátio faz parte do padrão da Tenda (cf. Êx 27.9-19) e das instruções em lCrônicas 28.12. O versículo antecipa 6.13, confirmando que o templo era para todo Israel, não apenas para os sacerdotes e levites. A divisão em dois pátios já é mencionada brevemente em 1 Reis 6.36; 7.9, 12, embora a palavra rara para o pátio principal (NVI, NRSV, RSV; “recinto”, REB, NEB; cf. também 2Cr 6.13;20.5) só é encontrado em passagens pós-exílicas. O pátio dos sacerdotes, i.e. um pátio interno, é mencionado em e.g. Ezequiel 40.44-47; 44.17-19,27.

e. Utensílios de bronze (4.11b-18). Dois resumos de utensílios do templo são incluídos, um para o trabalho em bronze (ou “cobre”, ARC, v. 1 lb -18) e um para o ouro (v. 19-22). Juntos eles enfatizam a pródiga decoração do templo, inclusive as “grandes quantidades” de bronze (v. 18, NRSV, RSV, c f REB, NEB), mas as diferenças nos metais também são importantes. Elas ilustram o princípio de gradação, por meio do qual o metal mais caro representa um grau maior de santidade. Assim, os objetos de bronze estão todos associados com a entrada do templo, mas o ouro é reservado para o interior.

Na primeira lista, as colunas e seus adornos (v. 12-13) parcialmente repe­lem 3.15-17,0 mar e os artigos menores (v. 15-16) retomam 4.10-11, enquanto os carrinhos (NVI, NRSV, RSV; “suportes”, ARA; “carretas”, NTLH) para as pias (v. 14) são descritos em IReis 7.27-37.36 O bronze foi obra de Hirão-Abi (v. 16; cf. v .ll e 2.13-14), realizada em “fundições de barro” (v. 17, Myers, cf. REB, NEB; moldes de barro, NVI, cf. NRSV, RSV) no vale do Jordão. A localização exata das minas de cobre de Salomão é menos certa, embora o local tradicional em Timna 110 extremo sul não seja completamente excluído.37

34 Cf. M. Heran, Temples and Temple Service (Oxford: Clarendon Press, 1978), p. 189.35 Cf. 3. I. Durham, Exodus, W BC (Waco: W ord Books, 1987), p. 360-365.36 REB, NTLH, NVI corretamente lêem “dez (suportes)” no v. 14 com lR s 7.43 em lugar

do TM “ele fez”, que está fora de lugar aqui.37 Cf. as teses contrastantes de J. J. Binmson, “King Solomon’s mines? A reassessment of

1'inds in the A rabah”, TB 32, 1981, p. 123-149, e F. Singer, “From these h ills...” , B iblical Archaeology R eview 4, 1978, p. 11-25.

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2CRÔNICAS 5.2— 7.22

f . Objetos de ouro (4.19-22). As portas de ouro (v. 22) são mencionadas pela primeira vez (cf. nota sobre 3.14), enquanto é feita referência ao altar de incenso de ouro (v. 19a) e às mesas e candeeiros (v. 19b-20) em lCrônicas 28.18 e 2Crônicas 4.7-8 respectivamente. A frase pães da Presença (v. 19, NVI) ocorre apenas aqui em Crônicas (outras expressões são encontradas em lCr 9.23; 23.29; 2Cr 2.4; 13.11; 29.18). Ela está particularmente associada com a Tenda (Êx 25.30; 35.13; 39.36; cf. ISm 21.7), e é muito importante em uma passagem que antecipa a realidade da presença gloriosa de Deus (5.13-14).

vii. A conclusão do templo (5.1)“Assim se acabou toda a obra que fez o rei Salomão para a Casa do

Senhor” (5.1).5.1 -c f. IR eis7.51As duas listas de resumo conduzem naturalmente a essa declaração final,

que confirma que o templo era um empreendimento conjunto entre Davi e Salomão. Davi várias vezes dedicou material ao templo (cf. 1 Cr 17.8,11; 26.26-27), seguindo a prática de Josué (cf Js 6.24). Ele também tinha feito preparativos para os tesou­ros, tanto em termos do seu pessoal levítico (lC r 26.20-28; cf. 9.26) quanto de sua construção como câmaras superiores e laterais do templo (cf. IRs 6.5ss; 2Cr 3.9; lC r 9.26). Assim, a grande obra foi terminada (contraste com “começou”, 3.1-2), ficou pronta para as muito especiais cerimônias de inauguração (caps. 5— 7).

H . S a lo m ã o ded ica o tem p lo (5.2 — 7.22)i. A arca e a nuvem (5.2-14)“Puseram os sacerdotes a arca da Aliança do Senhor no seu lugar, no

santuário mais interior do templo, no Santo dos Santos” (5.7).5.2-1 la -c f. IReis 8.l-10a5 .1 3 b -c / Salmos 136.1 etc.5.13c-14-c f. IReis8.10b-llCom os preparativos do templo que Davi tinha começado já em lCrônicas

22.2 completados agora (5.1), a história da construção do templo alcança seu clímax. O relato ocupa três capítulos, 5.2—7.22, e tem três fases, (a) a arca e a nuvem da presença de Deus ocupam o templo (5.2-14); (b) Salomão louva a Deus e ora a ele (6.1-42); (c) Deus responde com fogo e uma mensagem de esperança (7.1-22).

O cronista fez breves, porém importantes, acréscimos ao material compará­vel em Reis (e.g. 5.1 lb-13a; 7.12b-15). Essa expansão contrasta com o seu relato da obra de construção (caps. 3— 4) onde o relato mais antigo foi reduzido em quase 50%, confirmando que o interesse real do cronista está no que o templo significa. Esses capítulos, portanto, não são tanto sobre o templo de Deus mas sobre a quem o templo pertence. Não há melhor ilustração disso do que 5.13c-14, onde os sacerdotes são incapazes de realizar as suas tarefas por causa do efeito

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esmagador da presença gloriosa de Deus. Em outras palavras, assim que o templo é aberto para funcionamento, todas as cerimônias e serviços cuidadosa­mente planejados têm de ser suspensos, porque Deus toma o edifício inteiro para si. O templo deve ser para a glória de Deus, não para a dos seres humanos (cf. comentário sobre ICr 17), como parte do seu propósito de perdoar, curar, e restaurar seu povo (7.14).

O capítulo 5 prepara o cenário ao concentrar-se no ato final de mobiliar o templo, i.e., a instalação da arca no Santo dos Santos (v. 4-10). Como a nuvem que mais tarde enche o templo (v. 13c-14), a arca simboliza a presença de Deus, de maneira que o capítulo descreve Deus fixando residência no centro da vida de seu povo. A arca também fala da aliança que Deus fez com Israel no êxodo (v. 7-10) - de fato, “arca da Aliança” é uma frase especialmente predileta de Crônicas.38 Nesse contexto, refere-se particularmente ao compromisso de Deus com Israel, uma ênfase que teria sido muito apreciada pelos leitores originais de Crônicas. Ainda que, em seu tempo, a arca tivesse desaparecido havia muito tempo, e em seu próprio templo houvesse apenas uma sombra da glória de Salomão, isso era um lembrete de que o Deus representado por esses símbolos certamente não os tinha abandonado. De fato, eles podiam estar igualmente conscientes de sua presença se ocupando do louvor e da adoração conduzidos pelo ministério musical dos levitas (v. 11-14).

A percepção da glória divina do Antigo Testamento simplesmente prepara o caminho para sua plena revelação através do Cristo terreno e exaltado (Jo1.14). Ela está particularmente associada a certos momentos especiais da vida de Jesus, incluindo o seu nascimento (Lc 2.9), sua transfiguração (Lc 9.32), sua cruz, (Jo 12.23; 13.31-32; 17.1ss), sua ascensão (At 1.9-11), e a vinda de seu reino (Mt 24.30; 25.31). Porém, a glória de Deus não é limitada ao Filho de Deus, mas também é concedida aos crentes por obra do Espírito (2Co 3.18). O Novo Testa­mento também mantém uma forte ligação entre o culto e a experiência da glória divina, às vezes no contexto do simbolismo do Antigo Testamento tal como a arca (cf. Hb 10.19-22; Ap 11.19). Como na dedicação do templo, essas experiên­cias da glória de Deus podem continuar a ser muito fortes, como a revelação do Cristo ressuscitado concedida a João (Ap 1.12-18).

Embora a maior parte desse capítulo seja muito semelhante a 1 Reis 8.1-11, as ênfases do próprio cronista aparecem de dois modos conhecidos. Primeira­mente, uma série de acréscimos de menor importância e um acréscimo significa­tivo nos versículos 1 lb -13a sublinham o papel de todo Israel, especialmente dos levitas. Em segundo lugar, o fraseado em si é influenciado por várias analogias derivadas de duas passagens anteriores do Antigo Testamento. O capítulo como um todo reflete a história do transporte da arca por Davi para Jerusalém (embora sem suas dificuldades! Cf. IC r 13— 16), enquanto os versículos 13c-14 têm

38 1Cr 15.25, 26, 28, 29; 16.6, 37; 17.1; 22.19; 28.2, 18; 2Cr 5.2, 7.

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fortes semelhanças com a revelação da glória de Deus na cerimônia de dedicação da Tenda (cf. Êx 40.34-35). Esses elos ilustram o modo pelo qual o cronista via os propósitos de Deus atravessando os séculos, nesse caso mostrando como as realizações de Salomão desenvolveram a obra tanto de Moisés quanto de Davi. A comparação entre Salomão e esses antigos líderes revelam pelo menos uma dife­rença significativa. Ao passo que a Tenda era uma estrutura temporária e que Davi podia somente depositar a arca em uma casa temporária, a provisão de Salomão para a residência terrena de Deus tem um sentido claro de algo definitivo.

a. Salomão reúne todo Israel (5.2-3). Quando Salomão reuniu (v. 2-3; congregou e se congregaram são ambas da mesma raiz heb.) os líderes, sua ação caracterizou os “bons” reis em Crônicas, particularmente em relação a assembléias do templo (e.g. Davi, lC r 13.2,4-5; 22.2; 23.2; 28.1; 29.1; Salomão, 2Cr 1.3,5; Josafá, 2Cr 20.5,14,26; Ezequias 2Cr 30.13, 23, 25). Vários fatores apontam para uma mudança de ênfase de Salomão para o tema de lCrônicas 13 que, como com Davi, transportar a arca era mais um ato do povo que do rei. E dada ênfase a todos os homens de Israel (v. 3), os anciãos (v. 2, 4) e chefes de famílias (v. 2) que representavam todas as tribos (c f lC r 2—9), enquanto refe­rências a Salomão em IReis 8.1-2 são omitidas nos versículos 2-3.39

O evento aconteceu na ocasião da festa... no sétimo mês (v. 3; cf. 7.8-10),i.e., Tabemáculos (afirmado explicitamente em Tg. eNTLH).

Visto que o templo foi concluído no oitavo mês, com muita probabilidade no ano anterior (c f IRs 6.38), um período extenso que conduz à cerimônia de inauguração é implicado além de todos os outros preparativos. Por que nenhu­ma referência é feita ao Dia da Expiação, que deve ter ocorrido cinco dias antes (icf. Lv 23.27, 34), não está claro, especialmente dadas as circunstâncias que deram origem ao templo (lC r 21) e a ênfase no perdão nos capítulos 6—7. Prova­velmente, ou ele não foi corretamente observado ao longo do período pré-exílico, ou não foi observado de jeito nenhum. Aqueles que voltaram primeiro do exílio também celebraram a dedicação do altar na festa dos Tabemáculos (Ed 3.4), presumivelmente para destacar sua continuidade com o templo de Salomão.

b. A jornada fin a l da arca (5.4-6). As funções dos levitas (v. 4) e dos sacerdotes (v. 5; cf. v. 7) são diferenciadas em contraste com IReis 8.3-4. Visto que era responsabilidade exclusiva dos levitas transportar a arca (cf. Nm 4.15; lCr 15.14-15), sua ação final ao fazer isso é especificamente mencionada antes de assumirem seus ministérios baseados no templo (v. 12-13). Que os “sacerdotes

59 As frases seguintes tam bém ocorrem em lC r 13— 16: “congregar/reunir” (v. 2-3; cf. lC r 13.2, 4-5; 15.3); “anciãos” (v 2, 4; cf. lC r 15.25) e outros líderes (v. 2; cf. lC r 13.1); “fazer subir a arca da aliança” (v. 2; cf. lC r 15.3, 12, 25, etc.); “a arca da aliança do Senhor” (v. 2; cf. lC r 15.25, 26, 28); “cidade de Davi” (v. 2; cf. lC r 15.29); “todos (os homens de) Israel” (v. 3; cf. lC r 13.5; 15.3, 28; 16.3).

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levitas” (BJ, cf. NVI) os ajudaram no transporte da tenda da congregação e todos seus utensílios sagrados (v. 5) não é nenhuma surpresa se essa for a Tenda de Gibeão (cf 1 Cr 16.39; 2Cr 1.3). Os sacerdotes tinham estado baseados lá, enquanto a arca em Jerusalém tinha sido cuidada só pelos levitas (lC r 16.37-42).40

Vários elementos indicam que essa era a Tenda de Moisés e não a de Davi (sobre a última, c f lC r 16.1). “Tenda do Encontro” (NVI) não é uma expressão usada em Reis e Crônicas para nenhuma outra tenda, a menção às taças ou mobília sagradas salienta a continuidade entre a Tenda e o templo e a presença unida de Asafe, Hemã e Jedutum (v. 12) ao lado dos sacerdotes confirma a fusão do pessoal de Gibeão e Jerusalém. Embora possa parecer surpreendente que o fim de um item de tamanha importância como a Tenda de Moisés só seja menci­onado de passagem, na realidade ele era agora redundante e improvável que estivesse um estado de primeira classe de conserto. A arca, ao contrário, teve um papel contínuo, ainda que fosse apenas um símbolo de algo maior.

O último ato do povo (“a congregação inteira” , REB, NEB), antes que a arca desaparecesse para sempre de sua visão foi oferecer sacrifício (v. 6). En­quanto isso pode ter sido uma oferta de agradecimento pela viagem ter transcor­rido sem contratempos (cf. 1 Cr 13.9-13; 15.26), também era um ato apropriado de devoção a Deus por tudo aquilo que a arca representava. A extravagância da oferta era típica de Salomão (c f 1.4; 7), excedendo em muito o tamanho do sacrifício equivalente de Davi (lC r 15.26).41

c. O lugar de repouso definitivo da arca (5.7-10). Os sacerdotes (v. 7) deram continuidade à tarefa dos levitas e levaram a arca ao Santo dos Santos, visto que somente os primeiros eram ali permitidos. O ritmo desta seção desacelera completamente. A única ação está contida no verbo inicial puseram, o resto é uma descrição do que há em volta da arca. São mencionadas quatro elementos,(a) a arca fica situada no Santo dos Santos (v. 7), também chamado de santuário interno (c f 3.8-14); (b) ela é completamente coberta pelos querubins (v. 7b-8; cf.3.10-13); (c) as pontas de seus varais ficam visíveis do lado externo do véu, embora não fora do templo (v. 9) - essa nota bastante pitoresca era apenas parao benefício dos sacerdotes e levitas, visto que somente eles poderiam entrar no (emplo; e (d) ela continha as duas tábuas da aliança, i.e., os dez mandamentos,

40 N ão é necessário restaurar “ sacerdotes e lev itas” no v. 5, com as vss e IR s 8.24, com o na m aioria das versões m odernas, “sacerdotes lev itas” é um a frase deliberada em C rônicas (cf. 2Cr 2 3 .1 8 ; 30 .27 ) b asead a em D t 17.9; 18.1, e tc. Se esse versícu lo for entendido com o identificação das m esm as tarefas de cada grupo antes que um com entário abrangente sobre todos que estavam envolvidos, a necessidade de em enda é evitada.

41 Paralelos com lC r 13— 16 nesse parágrafo incluem: “levar (heb. nSsS') a arca” (v. 4; <:f. lC r 15.15, 26, 27); “lev itas” e “sacerdotes” (v. 4-5, 7; cf. lC r 15.2ss.); sacrifício na jornada (v. 6; cf. lC r 15.26).

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simbolizando o compromisso permanente de Deus para com Israel (v. 10).42 Essa é uma menção rara em Crônicas da aliança do Sinai, mas, não obstante, é claro que o êxodo do Egito é o fundamento das promessas de Deus sobre o templo e a realeza davídica (cf. lC r 17.5, 21). Essa mesma graça divina unia não só as gerações de Salomão e do cronista às promessas passadas de Deus, mas do mesmo modo une o leitor de hoje a Cristo através da nova aliança.43

d. A glória de Deus e o louvor de Israel (5.11-14). Com apenas uma pequena quebra no que se refere à sintaxe, o cronista inseriu um longo parênte­ses em uma oração simples em IReis 8.10, “Quando os sacerdotes se retiraram do Lugar Santo [v. 1 la aqui], a nuvem encheu o templo do S en h o r [v. 13c aqui].”0 acréscimo dá mais dois motivos para que a nuvem de glória enchesse o tem­plo. Os sacerdotes em massa e aparentemente com algum entusiasmo (sem res­peitarem os seus turnos), se santificaram (v. 11b; cf. lC r 15.12, 14; 2Cr 23.6; 26.18; 29.5ss). Então uma orquestra e um coral unidos de levitas de Gibeão (Hemã e Jedutum) e Jerusalém (Asafe), juntos com 120 sacerdotes que tocavam trombetas, se uniram em uma canção extraída dos Salmos para louvar a Deus por sua bondade e amor (e.g. SI 107.1; 118.1; 136.1; cf. 2Cr 7.3; Ed 3.1). Por sua unidade, compromisso e louvor, os sacerdotes e levitas estavam indicando seu desejo de adorar a Deus, e o cronista claramente pretende que isso seja visto como um exemplo a ser seguido. Quando o povo de Deus se separa para ele para prestar um culto e louvor sinceros, Deus certamente responderá com algum sinal de sua presença.

Sobre as divisões/turnos dos sacerdotes (v. 11), veja comentário sobre1 Crônicas 24. Enquanto que tocar trombetas (v. 13) era a única atividade musical da qual os sacerdotes se ocupavam (cf lC r 15.24, 28), o serviço musical dos levitas era sua função mais importante uma vez que a arca foi instalada (cf lCr6.31-32; 23.30-31; 25.1-31). Desse modo, eles verbalizavam o louvor de Israel bem na presença de Deus. A posição deles “a leste do altar” (v. 12, NVI), i.e., entre o grande altar de bronze no pátio e a porta do templo, demonstrava sua unidade com o povo e sua proximidade de Deus. Linho fino parece ter sido sua vestimenta especial, visto que é mencionado em relação com os levitas apenas aqui e em lCrônicas 15.27. Sua unidade é destacada por uma dupla expressão, em uníssono e a um tempo (v. 13a).

A citação dos Salmos (v. 13b) resume em uma frase o que todo o projeto do templo significava, que durante os anos, desde a primeira promessa de Deus a

42 Para uma explicação de como estendendo-se da arca poderia ter surgido em lugar de “do Lugar Santo” (NRSV, etc., com IR eis 8.8), veja L. C. Ailen, The Greek Chronicles, 2, SVT21 (Leiden: Brill, 1974), p. 145.

43 Compare com lC r 13— 16: um “lugar” para a arca (v. 7; cf. lC r 15.1, 3); “varais” (v. 8-9; cf. lC r 15.15); “M oisés” (v 10; c f lC r 15.15).

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Davi (ICr 17. 12), o amor fiel de Deus (heb. hesed) tinha assegurado o sucesso do projeto. Sustentando o templo estava a pessoa de Deus. Ele é bom.44 É por isso que ele responde ao culto de Israel com o que os judeus posteriores chama­ram de a glória shekiná (v. 13c-14). Tanto no caso da nuvem quanto da glória que enche o templo, as associações com Moisés são muito próximas (especial­mente Êx 40.34-35). As nuvens são um símbolo bíblico particularmente rico da presença de Deus (e.g. Êx 13.31-32; Dn 7.13; At 1.9), enfatizando o seu mistério e majestade. O templo nunca poderia pertencer à humanidade, nem mesmo aos sacerdotes que, embora se santificassem, agora se achavam completamente incapacitados de levar a cabo quaisquer das suas tarefas prescritas.45

ii. O louvor e a oração de Salomão (6.1-42)“ouve do lugar da tua habitação, dos céus; ouve e perdoa” (6.21).6 .1 -1 2 -# IR eis8.12-226.14-39-c f. IReis 8.23-50a6 .41-12-c/ Salmos 132.8-10,1Agora que Deus se apropriou de sua residência, Salomão responde com

louvor e oração. Suas palavras se dividem em três partes, (a) oração de resposta à nuvem da glória de Deus (v. 1-2); (b) testemunho sobre a fidelidade de Deus para com a casa de Davi (v. 3-11); (c) oração dedicatória para o templo (v. 12-42).

As duas primeiras seções apontam para o passado, louvando a Deus por cumprir duas promessas - habitar com seu povo (v. 1-2; cf. e.g.. Êx 25.8; 29.44- 46), e estabelecer Salomão no trono de Davi (v. 3-11; cf. lC r 17.10-14; 22.6-13;28.2-10). A terceira aponta para o futuro, para as orações a serem oferecidas no e em direção ao templo, cujos exemplos são encontrados em 2Crônicas 10— 36 (icf. e.g. v. 24-25 com 2Cr 20.1 -30 ou v. 36-39 com 2Cr 33.10-13). O tema do templo como uma casa de ação de graças e de intercessão claramente ocupa um lugar central dentro de Crônicas.

Este capítulo forma um elo vital entre os dois maiores pronunciamentos de Deus em Crônicas. Seu fundamento é a promessa da aliança de Deus de cons­truir uma casa para Davi (lC r 17.10-14), e seu desenvolvimento acontece na

44 É bom (REB, NEB) sem dúvida está errado. Essa frase bem conhecida nunca tem esse sentido impessoal em outras passagens, e de qualquer form a a citação realmente começa com ■‘o S e n h o r ” {cf S I 107.1; 118.1; 136.1).

45 O s elos nesse parágrafo com lC r 13— 16 são particularm ente extensos, porque ele contém as principais contribuições de Crônicas ao capítulo: “se consagraram ” (v. 11; c f lC r 15.12, 14-); “m úsicos” (v. 12-13; cf. lC r 15.16, 19, 27); “Asafe, Hemã, Jedutum ” (v. 12; c f ICr 15.17, 19; 16.37, 41, 42); “linho fino” (v. 12; cf. C r 15.27); “címbalos, harpas, liras” (v. 12; cf. IC r 15.16, 19-21, 28; 16.5); sacerdotes tocando “ trom betas (v. 12; cf. IC r 15.24; 16.6); “dar louvor e graças” (v. 13; cf. IC r 16.4, 7, 36); “elevar a voz” (v. 13; cf. ICr 15.16); citação dos salmos (v. 13; cf. IC r 16.836); “Ele é bom, seu amor dura para sem pre” (v. 13; c f IC r 16.34).

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promessa de Deus sobre o templo (2Cr 7.12-22). Ele mostra, portanto, como a oração desempenha um papel fundamental na manifestação da vontade de Deus para a humanidade.

O capítulo acompanha de forma notável a fonte principal do cronista (IRs 8.12-50). Algumas mudanças, no entanto, são dignas de nota, incluindo dois pontos onde Crônicas parece ter preservado um texto superior a Reis (v. 5b-6a, 13; para detalhes, veja Rudolph, Dillard). Do que parecem ser contribui­ções especiais de Crônicas, duas ênfases podem ser discernidas. Primeiramen­te, há sinais de uma aplicação mais contemporânea. Por exemplo, são omitidos alguns aspectos do texto de Reis relativos a incidentes históricos específicos, como detalhes do êxodo (cf. v. 11 com IRs 8.21; também IRs 8.50b-53) e a palavra “hoje” em IReis 8.28 (cf. v. 19 aqui), enquanto o acréscimo de a eles no versículo 25 (cf. 1 Rs 8.34) aplica o dom da terra a toda geração de pessoas que oram. Semelhantemente, o uso de segundo a minha lei (v. 16, NVI) em lugar de “diante de mim” (IRs 8.25) provavelmente reflete o interesse da comunidade pós-exílica nos princípios orientadores estabelecidos por Esdras e Neemias (Ed 7— 10; Ne 7— 13). Em segundo lugar, uma ênfase reduzida no êxodo é substituída por um novo foco na aliança com Davi. Isso é aparente não só na importância de versículos 5-11, 14-17, mas acima de tudo em vista do uso de uma paráfrase de partes do salmo 132 como um novo final em lugar de IReis 8.50b-53. Embora a aliança mosaica e o êxodo permaneçam claramente como fundamento das promessas davídicas (cf. v. 5,11, 32), a proeminência da alian­ça davídica é inconfundível.

A razão mais provável para essas mudanças é que elas afirmam a importân­cia central do templo para o Israel pós-exílico. Crônicas apresenta dois aspectos disso. Primeiramente, o templo era um símbolo do governo soberano de Deus prometido à família de Davi. Ao preservar o pedido de Salomão para Deus cumprir sua promessa a Davi (v. 16-17), o cronista estava dando um claro sinal de que mesmo em seus dias, o reino de Davi ainda tinha um futuro. Em segundo lugar, o templo era um lembrete à dispersa comunidade pós-exílica, quer estivessem próxi­mos ou não de Jerusalém (cf. v. 36), que ele era morada terrena de Deus e constituía um convite permanente para a oração confiante. A junção desses elementos leva a um convite permanente para orar por uma vinda visível do reino de Deus. “Venha o teu Reino” teria sido um lema altamente apropriado para o templo.

Naturalmente, no tempo de Jesus, o templo terreno tinha quase durado mais que sua utilidade, e Jesus dá razões diferentes para encorajar seu povo a orar. Mas apesar das diferenças, o ensino de Jesus sobre a oração, especialmen­te em João 14— 17, tem várias ênfases notavelmente semelhantes a este capítu­lo. Por exemplo, há uma estreita conexão entre orar em nome de Jesus (e.g. Jo14.13-14; 16.23-24) e orar para o templo que leva o nome de Deus (e.g. v. 5-7, e quatorze vezes ao todo neste capítulo). O nome de Deus sempre foi a assinatura com a qual o povo de Deus apresentou seus pedidos a ele. Outro elo existe entre

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a presença do Espírito Santo com cada cristão (e.g. Jo 14.16-18; Rm 8.26-27) e a presença contínua de Deus com Israel no templo. A presença de Deus, por quais­quer meios, é um estímulo e encorajamento real à oração. Embora agora nós nos aproximemos de Deus em sua habitação no céu (v. 18; cf. Ef 4.10; Hb 10.19-22), nossa oração ainda precisa de sua ajuda aqui na terra da mesma maneira vital como nos tempos do Antigo Testamento. Na verdade, sem a presença do Espírito e a autoridade do nome de Jesus, nós não podemos orar de jeito nenhum.

a. Salomão responde à glória de Deus (6.1-2). Essa breve declaração, que é parte testemunho e parte oração, evoca uma impressão de espanto de que o mesmo Deus cuja glória enche o templo (5.13-14) também habita em “densa escu­ridão” (v. 1, NRSV, RSV, REB, NEB). Essa última frase está associada com a nuvem da presença misteriosa de Deus no monte Sinai (Êx 20.21; Dt 5.22) e com sua aparição no Dia do Senhor (J1 2.2; Sf 1.15). Salomão está pasmo de que essa divindade intangível e soberana cujo mistério é simbolizado agora pela escuridão do Santo dos Santos, que não possui janelas, agora promete morar nesse templo (v. 2). O tema da residência dual de Deus corre pelo capítulo, sem jamais ser logicamente resolvido. É o bastante saber que Deus vive tanto na terra como no céu. Ainda que o templo seja “exaltado” (NRSV, RSV, KB; cf. REB, NEB), ele não pode conter Deus fisicamente assim como Deus não pode ser limitado pela filoso­fia humana. E mesmo assim qualquer um pode chegar a ele em oração (v. 18-40).

b. O testemunho de Salomão àpromessa de Deus (6.3-11). Salomão agora se dirige a toda a congregação (v. 3, 12-13). Essa frase é extraída de IReis, mas essa se encaixa no tema de Crônicas de que o templo é para o povo, não somente para o rei (c f 2Cr 5.2-3; também lC r 13.2ss; 15.3). Mesmo quando Salomão abençoou o povo em sua função sacerdotal (v. 3; cf. lC r 16.2), ele agiu como o representante do povo e não como alguém completamente separado para tare­fas religiosas. Ele orou como um pecador, como alguém do povo (c f v. 36). Supunha-se que esse era o templo do povo (cf. Lc 18.9-14), embora às vezes ele tenha se tomado pouco mais que um santuário do rei (cf. 2Rs 18.10-18; 21.4-7).

Salomão dá graças pelo modo como Deus tomou a recente sucessão de eventos possível. Ele menciona três coisas, (a) que ele sucedeu Davi como rei (v.10), (b) que ele foi capacitado para construir o templo (v. 10), e (c) que a arca foi colocada em sua própria casa (v. 11). Tudo isso veio em cumprimento do que Deus tinha dito a Davi (v. 4, 10) e da aliança feita no êxodo (v. 5, 11).

A importante noção de cumprimento é expressa mediante uma série de antropomorfismos. Deus cumpriu com suas mãos (v. 4, cf. v. 15, NVI) o que ele prometeu com sua boca (v. 4, 10; cf. v. 15, NVI). Essas frases são típicas dos capítulos 6—7, onde diversos termos físicos são atribuídos a Deus. Como suas mãos e boca, diz-se também que seus olhos (v. 20,40; cf. 7.15-16), seus ouvidos (v. 40; cf. 7.15), e até mesmo seu coração (7.16) estão presentes no templo.

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Embora só Jesus seja Deus encarnado, o templo era um sinal claro de que Deus em todo seu ser estava comprometido a viver entre seu povo. A menção das mãos de Deus (lit. “cumpriu com suas mãos”) na realidade significa que as ações de Deus confirmaram suas palavras - é como se as mãos invisíveis de Deus fossem ativas em todas as mãos humanas que contribuíram para a obra de construção (cf. ICr 29.16).46

Deus cumpre (v. 4, 10-11) o que parece ser duas profecias (v. 5-6, 8-9) dadas a Davi. Na realidade, essas “profecias” são um amálgama de três versões anteriores da aliança davídica (sobre a tendência de Crônicas a condensar vári­as mensagens divinas em uma única mensagem, c f ICr 10.13; 11.3). Desde o dia em que eu tirei meu povo da terra do Egito (v. 5) está baseado em 1 Crônicas17.5, e o restante dos versículos 5-6 segue de perto 1 Crônicas 28.4-6.0 versículo 7 está baseado em lCrônicas 22.7; 28.3, a frase todavia tu não edificarás a casa (v. 9) tem estreitos paralelos em lCrônicas 17.4; 22.8; 28.3, e “seu filho que nascerá para você construirá a casa para meu nome” (v. 9, NRSV) deve ser comparado com lCrônicas 17.11-12; 22.9-10; 28.6. Até mesmo o trono de Israel (v. 10; cf. ICr 28.5) e a arca (v. 11 ; c f ICr 22.19; 28.3) têm ecos em todas as três passagens, de forma que essa fala inteira é apresentada com a convicção de que as palavras de Deus foram cumpridas em todos os detalhes.

Quatro ênfases se destacam na fala. Primeiramente, o foco na escolha de Deus nos versículos 5-6 é enfático e incomum (ele tem paralelo em Crônicas somente em ICr 28.4-6). Aqui a escolha original de Deus de Davi e Jerusalém está em mente, antes que a de Salomão como em lCrônicas 28. Esse elo especí­fico de rei escolhido e de cidade escolhida é raro no Antigo Testamento, sendo encontrado principalmente em Salmos (e.g. SI 2.6-7; 78.67-72). A segunda ênfase é o muito surpreendente elogio do desejo sincero de Davi de construir o templo, em contraste com sua prévia desqualificação por causa de suas guerras (v. 8; cf. ICr 22.8-9; 28.3). Na realidade, essa é uma declaração mais complementar do que contraditória. Ela confirma que a desqualificação de Davi não era devida ao pecado, mas porque o conceito do repouso de Deus deve ser considerado o estágio único e final na construção do templo (cf. v. 41). Os motivos de Davi na verdade fixaram um padrão para outros seguirem, pois uma correta atitude de coração é essencial para qualquer adoração (v. 14,30; cf. IC r 29.17-19; Mc 7.6). Em terceiro lugar, o templo estava especialmente associado com o Nome de Deus (v. 5-10). Essa idéia tipicamente deuteronômica ajusta-se bem ao sentimen­to global do capítulo da presença de Deus na terra e no céu, embora aqui ela se estenda à idéia da escolha de Deus (veja também sobre v. 18-21). Finalmente, há lembretes mais freqüentes do que o habitual em Crônicas de que a aliança do Sinai subjaz a tudo que Deus está fazendo. Além de menções específicas nos versículos 5 e 11, referências à “densa escuridão” (v. 1, NRSV, RSV; nuvem

46 Para um a expressão idêntica, c f Jr 44.25.

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escura, NVI; cf. Êx 20.21; Dt 5.22), à “aliança de amor” (v. 41; cf. Dt 7.9), ou à “mão poderosa e braço estendido de Deus” (v. 32; cf. Dt 5.15) indicam que todos que adoram no templo são devedores ao amor poderoso de Deus e ao poder manifestado no êxodo. Extraordinariamente, a aliança (v. 11) é identificada com as tábuas dos dez mandamentos.

c. A oração dedicatória de Salomão (6.12-42). Salomão virou-se para o altar (v. 12), ajoelhou-se (v. 13), e estendeu as mãos (v. 12-13). Essas várias postu­ras para a oração e adoração são atestadas ao longo de toda Bíblia (de pé, Ne 9.2; Ap 7.9; de joelhos, SI 95.6; Ef 3.14; erguendo as mãos, SI 28.2; lTm 2.8). O altar como o lugar de sacrifício tem um papel importante, mesmo que muitas vezes negligenciado, na cerimônia de dedicação (v. 12, 23; 7.7, 9, 12; c f 4.1). A oração verbal não é necessariamente superior ao sacrifício, apesar dos comentários de alguns (e.g. Williamson, Ackroyd, McConville). O culto bíblico inclui a apresenta­ção de ofertas físicas como também oração e louvor (e.g. F14.18; Hb 13.15-16).

A natureza exata da estrutura na qual Salomão estava de pé (v. 13) é desco­nhecida, mas muito provavelmente era uma plataforma ou estrado temporário feito especialmente para a ocasião (cf. Ne 8.4). O fato de que suas dimensões são idênticas às do altar de bronze da Tenda (c f Êx 27.1; 38.1) é provavelmente uma coincidência.47 Também, a sugestão (Wellhausen, Mosis) de que ela é incluída como um meio de diminuir a função sacerdotal de Salomão à luz do erro de Uzias (2Cr 26.16-20) parece desnecessária. O altar onde Uzias transgrediu era o altar interno, ao passo que aqui se trata do altar de ofertas queimadas onde os leigos podem oferecer sacrifícios (e.g. Lv 4.22-24, 27-29). Além disso, a palavra para pátio (v. 13) é um termo raro aplicado em 2Crônicas 4.9 ao pátio exterior, e, com os levitas posicionados entre o altar e o templo (5.12), não há como a ação de Salomão pudesse ser considerada paralela à de Uzias.

A oração em si tem quatro seções principais: (i) pedido pelo cumprimento contínuo da aliança davídica (v. 14-17); (ii) princípios básicos de intercessão (v.18-21); (iii) situações nas quais a oração poderia ser feita (v. 22-40); (iv) pedido pela presença e poder contínuos de Deus (v. 41-42).

i. Pedido pelo cumprimento contínuo da aliança davídica (6.14-17). Como com tantas orações na Bíblia, Salomão começa com um louvor (v. 14-15) antes de fazer qualquer pedido (v. 16-17). O louvor concentra-se em dois aspec­tos da natureza de Deus, que ele é único (não há Deus como tu, nos céus e na terra), e que ele é fiel a sua aliança de amor com seu povo obediente (v. 14b-15). A m enção da aliança davídica parece inspirar repetido louvor sobre a incomparabilidade de Deus (lC r 17.20; cf. lC r 16.25-26; 2Cr 2.5). Esse louvor

47 Contra M osis, UTCG, p. 145-146.

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surge de corações comprometidos com Deus (de todo o coração, NVI, v. 14), uma ênfase repetida neste capítulo (v. 7-8, 30; cf. ICr 29.17-19). Agora (v. 16) introduz o pedido de Salomão, de que as promessas de Deus à linhagem de Davi continuem “a ser confirmadas” (v. 17, REB, NEB, NRSV, RSV; se cumpra, NTLH). Davi tinha feito um pedido idêntico (IC r 17.23-24), e ambas as orações indicam que Deus freqüentemente busca pessoas para trabalhar com ele em oração em lugar de cumprir seus propósitos automaticamente (cf. “Sua vontade seja feita na terra como no céu”).

ii. Princípios básicos de intercessão (6.18-21). Para entender o que é a oração significa entender quem Deus é e onde está. Salomão, portanto, precede seus pedidos principais com o reconhecimento de que nem mesmo superlativos celestiais podem limitar a Deus (mesmo os mais altos céus não podem conter-te, v. 18, NVI). Isso, no entanto, não significa que Deus esteja longe ou que a oração seja um exercício de controle remoto. Salomão reafirma que Deus também habita sobre terra com os homens (v. 18; cf. v. 1 -2). A função do templo é localizar Deus, não limitá-lo, colocar os seres humanos em contato direto com aquele cujo lugar de habitação está no céu (v. 21; cf. v. 30, 33, 39).

Um padrão básico para a oração de intercessão segue nos versículos 19-21. Cinco elementos essenciais de intercessão são mencionados, e várias frases são repetidas ao longo do capítulo.

(a) As palavras para oração são caracterizadas por sinceridade e urgência (“súplica”, v. 19, 21, 24, 35, 37, que na realidade é um pedido de misericórdia, como a NVI no v. 19; clamor, v. 19; brado, v. 33, RSV).

(b) Pede-se a Deus que ele mantenha seu olhos abertos (v. 20,40) e espe­cialmente que ouça (v. 19-21,23,25,27,30,33,35,39-40). Esse parece ser o tema central. Se Deus ouve, Salomão está satisfeito porque os pedidos de oração serão atendidos apropriadamente (cf. 2Q xl. 12-16).

(c) As orações feitas nesta ou voltadas para esta casaãugar (v. 18, 20-22, 24, 26, 29, 32-33, 34, 38, 40; veja NVI) chegam diante de Deus (v. 19) em sua habitação celestial (v. 21,30, 33, 39). Isso porque o Nome de Deus está nesse templo (v. 20,34,38; cf. v. 5-10,24,26,32-33). Orar nesse ou voltado para esse templo é orar ao ou em nome do Deus a quem ele pertence, que é o equivalente do Antigo Testamento de orar no nome de Jesus (cf. e.g. Jo 14.13; At 2.21). O nome aqui é um símbolo da presença e autoridade de Deus, e é um tipo de selo sobre as promessas de aliança simbolizadas pelo templo.

(d) As orações podem ser oferecidas por indivíduos (v. 19, 22), por seu povo Israel (v. 21, 24, 25, 26, 29, 34, 39) ou mesmo por estrangeiros (v. 32-33). Deus é acessível a qualquer um que reconheça Javé como meu Deus (v. 19,40), como Deus de Israel (v. 14), ou como tendo um grande nome (v. 32).

(e) O perdão de pecados é o propósito da maioria dessas orações (v. 21,25, 27,30,39). Isso não significa diminuir a importância de outros tipos de orações,

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tais como por orientação, meditação ou adoração, mas significa chamar atenção para a necessidade básica da humanidade diante de Deus. Podem ser feitas três observações sobre esse ponto. Primeiramente, a promessa de perdão remete à real necessidade de estabelecer o templo, tanto no caso de Davi (lC r 21) quanto de todo Israel (e.g. lC r 5.25; 9.1; 2Cr 36.14). Em segundo lugar, toda oração de intercessão é necessariamente feita por pecadores. Todo pedido deve, portanto, ser feito com base em uma oferta pelo pecado, que para os cristãos é o sacrifício de Jesus, o Cordeiro de Deus. Em terceiro lugar, o fato de o perdão estar dispo­nível em e através do templo mostra que a expiação está disponível através da oração e do sacrifício juntos. A oferta pelo pecado apresentada por Cristo na cruz confirma o fato do perdão, mas só fica acessível quando oramos.

iii. Situações nas quais a oração poderia ser oferecida (6.22-40). O templo deveria ser um convite e inspiração permanentes para que todos vies­sem e orassem, e ninguém deveria ser excluído, nem mesmo os desprezados cobradores de impostos (Lc 18.9-14). Na derrota nacional, em aflição, como um estrangeiro, até mesmo quando sob castigo merecido de Deus, o templo na terra e no céu (Hb 9.23-24; Ap 21.22) era a rota garantida por Deus para o perdão e a restauração.

Sete cenários diferentes, cada um descrevendo uma situação onde muitos poderiam considerar a oração inútil, ilustram a extensão do convite. Alguns estão relacionados com as maldições da aliança (Dt 28.15-68; cf. Lv 26.14-45), indicando que mesmo o castigo divino merecido pode ser revertido pelo arre­pendimento e oração: (veja detalhes a seguir e cf. G1 3.10-14). Cada parágrafo segue o mesmo padrão: (a) uma situação de necessidade, normalmente envol­vendo pecado; (b) oração e confissão baseadas no templo; (c) pedido para que Deus ouça; (d) restauração e perdão.

As situações são as seguintes:(a) O fazer juramentos (v. 22-23). Uma acusação não provada só pode ser

resolvida fazendo-se um juramento diante do Senhor (cf. Êx 22.7-12; Nm 5.11-28). Onde nenhum ser humano pode decidir com justiça, Salomão pede para que Deus seja o Juiz efetivo e íntegro (cf Gn 18.25; Hb 12.23).

(b) Derrota nacional (v. 24-25; c f Dt 28.25; Lv 26.17). Até mesmo o pecado coletivo pode ser perdoado através do arrependimento, quando o povo confes­sar o teu nome (também v. 26). O exílio é aparentemente assumido (v. 25), embora a oração no templo seja esperada, parece ser mais limitada do que a considerada nos versículos 36-39.

(c) Seca (v. 26-27; cf. Dt 28.23-24; Lv 26.19). A chuva era considerada um dos dons especiais de Deus (Dt 28.12; Jr 5.24), e sua ausência prolongada era vista freqüentemente como um sinal da ira de Deus (cf. 2Cr 7.13). A restaura­ção envolvia obediência ao ensino de Deus (v. 27) como também a confissão (v. 26). A palavra para “ensina” (tôrê de yrh) pode pretender lembrar a palavra

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para a lei (tôrâ; c f v. 16), visto que a lei foi dada para que o povo de Deus vivesse por ela (Dt 8.3; Rm 10.5).

(d) Desastres e doenças (v. 28.31; c f Dt 28.21-22). São mencionados vários tipos diferentes de aflição, inclusive epidemias, doenças de plantas, invasões de insetos, inimigos, ou doença individual. Embora o pedido por perdão (v. 30) novamente veja o pecado como a causa subjacente, essas dificuldades têm que ser vistas à luz de Deuteronômio 28.21-22, a que essa seção corresponde bem de perto. O real problema é a desobediência à aliança que surge da maldade do coração humano (v. 30; cf. v. 7-8, 14; ICr 29.17-19; Mc 7.14-23) para a qual a solução é andar, i.e., viver, nos caminhos de Deus (v. 31).

(e) Os estrangeiros (v. 32-33). Esse é o parágrafo mais fascinante na ora­ção, e é adotado com mudanças mínimas de IReis. Ele vê os imigrantes, residen­tes estrangeiros, ou peregrinos que adoram no templo por causa do que eles ouviram falar do êxodo (cf. Js 2.8-13), uma situação sem paralelo em Crônicas. A idéia, no entanto, de que outras nações temerão, i.e. adorarão, Javé (v. 33) é típica de Crônicas, de forma que o parágrafo certamente não está fora de lugar (cf. IC r 14.17; 2Cr 20.29). O que especialmente é notável é que os estrangeiros pudessem conhecer e temer a Deus “como seu povo Israel” (v. 33, REB). Rara­mente essa esperança de igualdade foi expressa no culto no Antigo Testamento (e.g. Gn 12.3; Is 19.24—25; Zc 8.20-22), e mesmo os discípulos mais íntimos de Jesus acharam seu cumprimento difícil de realizar (At 10.1-11.18).

(f) Guerra (v. 34-35). Essa é a única seção onde Israel é pintado mais na ofensiva do que na defensiva, embora o conflito seja qualificado pela frase pelo caminho por que os enviares (v. 34; cf. e.g. 2Cr 13.4-13; 14.11). A oração não é por perdão, mas para que Deus defenda sua causa (v. 35, NVI; cf. v. 39; SI 20).

(g) Exílio (v. 36-39). Essa seção final reúne muitos temas na oração para descrever o pior cenário possível para qualquer israelita, que ele fosse removido da Terra Prometida e da presença de Deus no templo. Os mesmos princípios, no entanto, ainda se aplicam embora uma intensidade mais profunda seja notada. A confissão pelo pecado (v. 37) é triplicada, o arrependimento deve ser de todo seu coração e de toda a sua alma (v. 37), e a oração é dirigida para a terra e cidade bem como para o templo (v. 39). A sensação de que o pecado invade tudo domina, e é sintetizada em uma das declarações bíblicas mais claras sobre a universalidade do pecado (pois não há homem que não peque, v. 36). Essa é a maior indicação da necessidade para um lugar de expiação e perdão que poderia ser dada.

Salomão conclui pedindo a Deus que mantenha seus olhos e ouvidos aber­tos a todas essas orações (v. 40). O segredo da oração está novamente relaciona­do à presença de Deus (cf. v. 20), e o pedido será respondido em breve (7.15).

iv. Pedido pela contínua presença e poder de Deus (6.41-42). As mudan­ças mais extensas em relação à oração original acontecem bem no fim (a mesma coisa aconteceu em ICr 16.8-36), sugerindo que os versículos 41-42 eram espe­

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cialmente importantes para o cronista. Uma característica especial é que en­quanto o restante do capítulo corresponde de perto à sua fonte em IReis 8, esses versículos são uma adaptação livre de uma passagem bastante diferente (SI 132). Uma outra variação é que essa oração final está baseada na aliança de Deus com Davi ao passo que IReis 8.50b-53 está baseada na aliança do Sinai.

Salomão finalmente pede que Deus “se levante e venha para seu lugar de descanso” (v. 41, veja NVI). Considerando que esses versículos são quase certa­mente a adaptação pelo próprio cronista do salmo original, essa é uma oração que pede a Deus para fazer para a sua própria geração o que ele tinha feito por Salomão e por aqueles que adoraram no primeiro templo. Ele quer que o Deus que apareceu em nuvem e glória (5.13-14; 7.1 -3) continue a revelar-se em “força” (BJ) ou poder (NVI, NTLH, NRSV, RSV). Visto que a arca significava o repouso permanente de Deus em Israel (“seu lugar de descanso”, cf. lC r 28.2), ela era um símbolo apropri­ado daquele poder, e embora a arca já não existisse nos dias do cronista, ela lembrava um Deus que tinha prometido jamais abandonar seu povo.

O pedido pela presença de Deus conduz a quatro pedidos adicionais: (a) que os sacerdotes se revistam de salvação (v. 41), i.e., que eles estejam completa­mente comprometidos com seu ministério dado por Deus de trazer salvação a Israel (cf. Is 61.10); (b) que os santos se alegrem em sua bondade (v. 41). Os “santos” no Antigo Testamento são sempre o povo de Deus (SI 85.9; 148.14), que aqui estão cheios de alegria (cf. SI 16.11); (c) que os ungidos de Deus (alguns MSS heb.; o ungido, EVV)48 não sejam rejeitados (v. 42; o plural provavelmente se refere aos reis davídicos como um grupo paralelo aos sacerdotes [v. 41], embora pudesse incluir os reis e sacerdotes juntos); (d) que Deus se lembre das miseri­córdias de/por Davi (v. 42). É difícil saber qual é a tradução exata, mas o genitivo objetivo (NVI, BJ, NTLH, NRSV, RSV) é preferível pelas seguintes razões: é apoi­ado pelo contexto geral da oração, especialmente os versículos 11, 14-17; esse parece ser o significado na única outra ocorrência da frase em Isaias 55.3; esse é o sentido do Salmo 132.11-12; e normalmente Crônicas se refere a Davi em termos das promessas de Deus para ele. O significado subjetivo (REB, NEB) não tem apoio em 2Crônicas 32.32; 35.26, visto que esses versículos não têm a frase exata hasc'dê Dãwíd, enquanto o fato de que o versículo 42b está livremente baseado no Salmo 132.1 não significa que ambos os versículos tenham que dizer o mesmo.

48 Embora “ungido” ocorra tanto na LXX quanto em SI 132.10 e seja favorecido por muitos com entaristas, a leitura plural deve ser seriam ente considerada (c f Dillard, M yers). Não só é mais difícil explicar como um singular original poderia ter se corrom pido, mas o plural é coerente com os sacerdotes e os santos como os dois objetos precedentes da oração de Salomão. Em seu favor também está o uso que o Crônicas faz da única outra ocorrência de “ungidos” no Antigo Testamento (lC r 16.22; e paralelo SI 105.5), e seu interesse na dinastia dav íd ica e no governo conjunto de D avi e Salom ão antes que em reis ind iv iduais (cf. a preferência por Davi e Salomão em lugar de uma forma singular mais antiga em lC r 18.8 (cf. 2Sm 8.8) e 2cr 7.10 (cf. IR s 8.66); cf. também e.g. 2Cr 11.17; 30.26).

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iii. A resposta de Deus à oração (7.1-22)“Se o meu povo, que se chama pelo meu nome, se humilhar, e orar..., então,

eu ouvirei dos céus, perdoarei os seus pecados e sararei a sua terra” (7.14).IReis8.54a

7 .4 - 5 - # IReis 8.62-637.7-8-c f. IReis8.64-657.10-1 2 a - # IReis 8.66— 9.3a7 .1 6 -2 2 -# IReis 9.3b-9O capítulo 7 não só é central para a mensagem de Crônicas, mas também é

um dos capítulos mais importantes do Antigo Testamento. Ele oferece esperança a qualquer um que invoque o nome do Senhor, mesmo se eles tiverem incorrido na ira de Deus, porque o desejo de Deus é a reconciliação plena. O tema global é resumido em uma passagem em grande parte exclusiva de Crônicas (v. 12-16), e que contém um dos versículos mais conhecidos de Crônicas (v. 14).

O capítulo tem duas seções paralelas, ambas tratando da oração respondi­da. A autenticidade da promessa de Deus sobre perdão e cura (v. 11-22) é confir­mada e precedida por uma resposta bastante pública e dramática à oração de Salomão (v. 1 -10; cf. 6.14-42). O contexto mais amplo, no entanto, também é impor­tante. Os versículos 12b-22 estão na forma de uma mensagem direta de Deus que deve ser lida junto com a promessa anterior de Deus sobre a dinastia de Davi e o templo (ICr 17.3-15). Juntas, elas formam o fundamento de toda a obrado cronista, com a passagem mais antiga proporcionando uma base segura para o convite de Deus aqui. O relato da Monarquia Dividida que segue (caps. 10—36) então de­monstra através de exemplos concretos como Deus respondeu a oração com base nos princípios dos versículos 12-16 (e.g. 2Cr 20.1-30; 33.10-23).

A importância dessa mensagem teria sido facilmente compreendida no Israel pós-exílico. Ao apresentar o templo como um lugar onde poderiam ser aceitos o sacrifício e a oração corretos, uma abertura estava sendo provida para mudar as tristes circunstâncias presentes de Israel para um futuro mais positivo. Ela oferecia uma oportunidade para mudar o curso da história de Israel. Infeliz­mente, a história dos períodos pós-exílico e intertestamentário mostra que essa oportunidade foi largamente ignorada, apesar dos poucos que continuaram es­perando pela consolação de Israel (Lc 2.25).

Talvez cause surpresa que o Novo Testamento não faça nenhuma referên­cia direta a esse capítulo, embora desenvolva vários de seus temas. O tema da oração respondida, por exemplo, é central para o ensino de Jesus, e os cristãos são assegurados de que Deus ouve e responde as orações oferecidas no nome de Jesus (Jo 14.13-14). Mesmo quando a oração é de arrependimento pelo peca­do, a bondade de Deus (Rm 2.4) conduzirá certamente à renovação da salvação (2Co 7.9-11) e comunhão com Deus (Ap 3.18-22). Os cristãos são convidados também a orar em direção ao templo celeste de Deus, onde o seu trono de graça promete misericórdia e graça em tempos de necessidade (Hb 4.16). A disponibi­

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lidade de uma rota direta para o santuário celestial oferece até mais encorajamento para nos aproximarmos de Deus do que Salomão teve em sua experiência da glória do Senhor (2Cr 7.1-3,15-16).

Aconteceu aqui um número maior de mudanças significativas em relação ao texto fonte de Crônicas do que nos capítulos 5— 6. As mais notáveis são o acréscimo dos versículos lb-3 e 12b-16a, ambas tratando do tema dos propósi­tos de Deus ao responder à oração. Alguma liberdade também foi exercida nos versículos 17-22 (cf. IRs 9.4-9), embora ela principalmente simplifique o original e seja de pouca importância teológica. Os acréscimos principais, no entanto, operam uma forte mudança de ênfase quando comparados com IReis 8.54— 9.9. Em lugar de uma repetida exortação à obediência, Deus convida tanto pessoas obedientes quanto desobedientes a experimentar a cura e a alegria de Deus. A necessidade de Israel nesse contexto é achar seu caminho de volta para ele. E então inadequado caracterizar os versículos 11-22, como a maioria dos comenta­ristas faz, como ilustração do princípio de retribuição imediata. Ainda que algu­mas vezes seja dada à retribuição uma conotação positiva, esse é um uso técni­co que não tem paralelo pelo significado geral da palavra. Além disso, essa restauração não é dada porque seja merecida em qualquer sentido mas por causa do favor imerecido de Deus. Os arrependidos ainda eram pecadores que precisavam ser perdoados, e para isso dependiam totalmente da bondade de Deus. Aqueles que mereciam a retribuição eram na verdade os não arrependidos, mas nem o seu castigo era necessariamente imediato. A retribuição que levou à destruição do templo (v. 20-22) resultou mais da desobediência persistente do que da de curto prazo. Acima de tudo, o templo permanecia “o símbolo duradou­ro da vontade de Deus de perdoar.”49

a. O fogo e a glória de Deus (7.1-3). “Enquanto” (v. 1, REB) Salomão termi­nava sua oração (6.14-42; melhor do que “quando ele tinha terminado” como insinuado pela maioria das versões modernas), Deus respondeu enviando fogo do céu (v. 1, 3). O fogo era um sinal tradicional ainda que inesperado da resposta direta de Deus à oração (cf. lCr21.26; IRs 18.38; Lv 9.24), cuja principal analogia do Novo Testamento são as línguas de fogo no dia de Pentecostes em resposta às orações da igreja primitiva (cf At 1.14; 2.1 -4). Aqui, porém, significa a provisão de expiação através do templo. Esse tema é na realidade uma de várias associações com a história do pecado de Davi em 1 Crônicas 21 (lC r 21.26). Outros elos incluem a necessidade de perdão (v. 14; cf. lC r 21.8, 17), a praga como um castigo pelo pecado(v. 13; cf. lC r21 .12 ,14), a provisão de um altar como um meio de expiação (v. 12; cf. lC r 21.18), a necessidade de oração humilde (v. 14; c f lC r 21.16), e a entrega de ofertas sacrificiais (v. 7; cf. lC r 21.26). Em ambos os exemplos, fogo consumia os holocaustos e as ofertas pacíficas (cf. v. 7; lC r 21.26) postas em um

49 De Vries, p. 266.

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altar que Deus ordenou que fosse construído (cf. 21.18, 26).50 O próprio altar era um lembrete tanto do perdão gracioso de Deus ( lC r2 1 .8 ,17; c f 2Cr6.26,38) quanto de qualquer pestilência enviada para castigar o pecado (ICr 21.12,14,22; cf. 2Cr 6.28). A casa de oração e de sacrifício era, portanto, a resposta decisiva de Deus às incitações de Satanás (cf. ICr 21.1).

Enquanto o fogo descia, a glória de Deus parece ter continuado a encher o templo (v. 1-3; c f 5.13-14) e a transbordá-lo. Ela foi vista sobre a Casa e também dentro dela, e era visível a todos os filhos de Israel (v. 3). A descrição da cena inclui algumas alusões bastante óbvias a várias passagens do Pentateuco, como Êxodo 40.34-35 (glória), Levítico 9.23-24 (fogo), e Êxodo 20.18; 24.10 (o povo que assiste).51 Aqui como em outras partes em Crônicas, a geração de Moisés serviu de modelo para o cronista. O parágrafo também reflete outras partes do Antigo Testamento, tais como descrições proféticas da glória do tem­plo (Is 6.1-4; Ez 43.1-5), e o louvor repetido dos Salmos pelo amor eterno de Deus (v. 3, 6; c f SI 106.1; 107. lss, 118.1, 29, 136.1, cf. Jr 33.11). A glória de Deus é regularmente revelada ao longo dos tempos bíblicos, embora seja mais clara­mente visível em Jesus (Jo 1.14-17).

h. O sacrifício e o louvor de Israel (7.4-10). Essa experiência da presença de Deus produziu de imediato uma grande alegria no culto, e o registro de Crônicas da ocasião é ilustrado através por vários temas típicos. Por exemplo, a menção do rei e todo o povo (v. 4-5; cf. 1 Cr 15.28; 2Cr 1.3) mostra o povo todo unido na adoração. Em Segundo lugar, os sacerdotes e levitas assumiram de fato o lado musical do culto (v. 6) como também os sacrifícios (v. 4-5,7), notavel­mente pelo uso das trombetas pelos sacerdotes (v. 6 é um acréscimo ao original. c f IC r 15.24; 2Cr 5.12; 29.26). A intenção era talvez encorajar os leitores de Crônicas a fazer mais uso da música no culto. A “ajuda” dos levitas na apresen­tação do “louvor” também é digna de nota (REB, c f NRSV, RSV; para “ajuda”, cf. IC r 12.17-22; 22.17; 2Cr 14.11). Em terceiro lugar, o envolvimento conjunto de Davi e de Salomão no projeto do templo é indicado por um comentário de fundo sobre instrumentos musicais (v. 6; cf. o acréscimo de “e Salomão” no v. 10 e e.g. 2Cr 1.4; 11.17). A provisão de Davi de instrumentos musicais é mencionada em lCrônicas 23.5 (cf. 2Cr 29.26-27). Finalmente, a cerimônia demonstra mais conti­nuidade entre os princípios do culto na Tenda e no templo. A oferta de grande número de sacrifícios (v. 4; cf. Nm 7.87-88) e fazer da consagração do altar um elemento central da cerimônia (v. 9; cf. Êx 29.44; Nm 7.84, 88) são reflexos do sistema mosaico de culto.

50 O termo sacrifícios (v. 1) significa o mesmo tipo de oferta que o descrito como “oferta de com unhão” (NVI) ou “oferta de paz” (RSV; cf. IC r 21.26; 2Cr 7.7).

51 Veja Japhet, Ideology , p. 72-74; Mosis, UTCG, p. 148-152.

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É impossível avaliar se o número enorme de sacrifícios (v. 5) deve ser tomado literalmente ou não. Aparentemente, 142.000 animais teria significado uma oferta a cada três segundos durante dez horas por dia durante doze dias.52 O que mais pode ser dito seguramente é que os números eram extraordinaria­mente grandes mesmo para o tempo de Salomão, requerendo uma consagra­ção especial do pátio (v. 7) e presumivelmente ofertas simultâneas.

A consagração do altar (v. 9) e do templo (v. 5) relacionam essa ocasião com outras cerimônias religiosas de consagração (e.g. Nm 7.10-11; Ed 6.16-17; Ne 12.27). Porém, o conceito de consagração não dizia respeito somente a uma cerimônia de inauguração. Visto que a idéia subjacente envolvia iniciar algo ou alguém em sua função adequada (cf. Dt 20.5; Pv 22.6, onde “ensinar uma criança” é o verbo “consagrar/dedicar”), a cerimônia estabelecia um padrão diferenciado de culto sacrificial no qual Deus e os seres humanos podiam se relacionar (cf. também v. 12-16).

Os detalhes cronológicos (v. 8-10) são explicados mais claramente que em IReis 8.65-66. A consagração de uma semana de duração precedeu a Festa dos Tabemáculos, normalmente realizada do 15° ao 22° dias do sétimo mês (cf. Lv23.34-36, 39-43). Os esperados rituais do Dia de Expiação no décimo dia só são notáveis pelo silêncio completo de Crônicas sobre eles. O oitavo dia (v. 9) era o de Tabernáculos, e assim as celebrações chegavam ao fim no 22° dia. A “assem­bléia solene” (NRSV, RSV) era realizada nesse dia (cf. Lv 23.36,39; Nm 29.35), permitindo que o povo fosse dispensado no 23° dia (v. 9). A natureza exata de tais assembléias jamais foi esclarecida no Antigo Testamento. Esse parágrafo também é parte do “Esquema Festivo” de Crônicas que é usado para descrever algumas celebrações importantes, a maioria das quais não é mencionada em fontes anteriores. O esquema geralmente incorpora detalhes de data, participan­tes, cerimônias e culto alegre (cf. 2Cr 15.9-15; 30.13-27; 35.1-19).53 A consagra­ção do templo, portanto, se tomou um modelo para ocasiões de celebração em grande escala.

O ponto-chave, porém, era que todo Israel tinha participado, seus cora­ções estavam cheios de alegria e contentamento por toda a bondade de Deus (v. 10). A palavra para congregação no versículo 8 (outra palavra é usada nov. 9) normalmente se refere em Crônicas a um ajuntamento de Israel como povo de Deus (cf. e.g. lC r 13.4; 29.1,10; 2Cr20.14). Sua união é expressa em termos geográficos bem como por uma unidade de espírito - “Lebo Hamate até o uádi do Egito” (v. 8) indica a extensão mais ampla possível da ocupação da Terra Prometida por Israel. Essa frase recorda lCrônicas 13.5, e mostra que o proces­so de estabelecer um lugar central de culto tinha sido um compromisso de todo o povo do princípio ao fim. Sobre Lebo Hamate, veja notas sobre lCrônicas 13.5; a

52 J. Wenhham, “Large numbers in the Old Testament”, TB 18, 1967, p. 19-53, cf. p. 49.53 De Vries, p. 264-265

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relação entre o uádi do Egito e o rio Sior (IC r 13.5) é incerto, entretanto, ambos parecem marcar a fronteira egípcia.

c. As promessas de Deus (7.11-22). Um comentário introdutório (v. 11-12a) conduz a uma fala de Deus (v. 12b-22) que estabelece o padrão para o culto do templo durante a Monarquia Dividida (2Cr 10— 36). Parece que Deus falou com Salomão depois que o palácio real como também o templo foram concluídos (v.11), quer dizer, treze anos depois da consagração do templo (cf. lRs 6.38— 7.1; 9.10). A lacuna de tempo não é importante nem aqui nem em IReis 9.1-9; esses dois textos vêem a passagem em estudo como uma resposta à oração de Salomão (2Cr 6.14-42; cf. também a resposta em 7.1-2). Aquilo que Deus falou à noite a Salomão (v. 12) lembra uma ocasião semelhante no santuário antigo (2Cr 1.17). A combinação das duas passagens demonstra que Deus estimula e responde as orações associadas com o templo.

A mensagem de Deus se divide em quatro partes, com um padrão quiástico por trás das duas primeiras seções (v. 12-16).54 Aparte central do quiasmo realça a oração de arrependimento como a principal provisão de Deus para reverter a sorte de Israel (v. 14a). As partes externas do padrão contrastam as ações de Deus na terra e no céu. Ele restabelece ou castiga sua terra e seu povo abrindo ou fechando sua casa celestial (v. 13-14b) de acordo com as orações feitas no templo terreno (v. 12,15-16).

i. Deus aceita a oração de Salomão e o edifício do templo (7.12b). Isso indica sua aceitação dos princípios na oração de Salomão (6.14-42) como uma base para ouvir as orações de outros. Deus “escolheu esse lugar”, uma frase encontrada somente aqui e em Deuteronômio (12.18; 14.25; etc.), e que é uma rara menção da idéia de que Deus escolheu especificamente o templo (em outro lugar só no v. 16 e em 33.7). Ela deve ser uma casa de oração e uma (lit.) “casa de sacrifício”; esta última frase reflete um uso mais pós-exílico do que pré-exílico (ela é acrescentada a lRs 9.3; cf. Ed 6.3). Essa combinação das funções do templo é impressionante, e é uma das várias indicações em 2Crônicas 5— 7 de que a oração e o sacrifício devem ser entendidos como “dois lados da mesma moeda”.55 O culto necessita de uma forma externa como também de um coração interno, e para que a oração seja aceita ela deve ser acompanhada por um sacri­fício visível pelo pecado. Os cristãos podem orar precisamente porque Jesus ofereceu um sacrifício final e completo por seus pecados (Hb 10.12,19-22).

ii. Deus ouvirá seu povo e curará sua terra (7.13-16). Este parágrafo revela o cerne dos livros de Crônicas, e é de fato o resumo da mensagem essencial

54 B. Kelly, “Retribution and eschatology in C hronicles” , tese de Ph.D. não publicada, U niversidade de Bristol, 1993, cap. 3.

55 Japhet, Ideology, p. 80.

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do Antigo Testamento feito por Crônicas. Ele convida o povo a tirar proveito dos enormes e inesperados benefícios que Deus oferece através da oração. A maior parte desta grande promessa não tem paralelo em IReis 9, embora um exame mais detalhado revela que os versículos 12b-16 foram inseridos em IReis 9.3 com o objetivo de destacar a ênfase do texto mais antigo de maneira muito mais clara. Isso foi feito incorporando palavras e frases-chave de outras partes das Escrituras. Parte do fraseado é estreitamente baseada na oração dedicatória de Salomão, como por exemplo as várias circunstâncias nas quais a oração poderia ser feita (v. 13; cf. 2Cr 26, 28), voltando-se para o modo apropriado de arrependimento (v. 14; cf. 2Cr 6.24, 26, 37) e a promessa de Deus de ouvir e perdoar (v. 14-15; cf. 2Cr 6 .25 ,27 ,30 ,39 ,40). Outras frases, porém, são derivadas de outros lugares do Antigo Testamento, fundamentando o convite de Deus firmemente na lei e nos profetas. A promessa de Deus de restabelecer Israel à sua terra (v. 14), por exemplo, é baseada parcialmente em Levítico 26.41 onde é endereçada àqueles que se humilham, e parcialmente em, por exemplo, Jeremias 30.17; 33.6-7 onde é descrita como a cura que Deus opera. Levítico 26.40-45 e Jeremias 33.1-11 parecem na realidade ter sido parti­cularmente importantes para Crônicas, visto que também são citados em ou­tras passagens que tratam da restauração (cf. Jr 33.11 em lC r 16.34-36, e Lv26.34-35, 43 em 2Cr 36.21). Essas promessas, portanto, são um cumprimento natural dos propósitos de Deus ao longo do Antigo Testamento assim como uma resposta específica à oração de Salomão.

A promessa de Deus tem três partes: (a) um resumo dos desastres menci­onados na oração de Salomão (v. 13); (b) o propósito declarado de Deus de perdoar e curar (v. 14); (c) a garantia por parte de Deus de sua vigilância e proximidade (v. 15 -16).

(a) A descrição das situações nas quais o povo poderia orar (v. 13) reco­nhece que tais tragédias podem ser enviadas por Deus. Mas também é uma clara indicação de que mesmo quando Deus está irado, a única solução é voltar-se para o mesmo Deus em busca de perdão (cf. 1 Cr 21.13).

(b) Embora o convite de Deus seja feito inicialmente ao meu povo (v. 14),6.32-33 deixa claro que qualquer um que reconhece o nome de Deus e sua auto­ridade pode orar com a mesma confiança de ser ouvido. Essa passagem é, por­tanto, coerente com outras onde o convite é estendido explicitamente a “todo que clamar pelo nome do S e n h o r .,.” (J12.32;A t2.21;Rm 10.13;Sf3.9; ICo 1.2). Os usos diferentes do nome de Deus aqui são dignos de nota: “ser chamado pelo nome” indica posse, “invocar o nome” fala da oração no nome de Jesus ou Javé, e “a casa que... traz seu Nome” (6.33; cf. 6.5-8,10,20) refere-se à presença de Deus. Em todo caso, conhecer o nome de Deus é ter esperança.

Nesse ponto então seguem quatro expressões que resumem a abordagem correta a ser adotada na oração. Essas expressões devem ser entendidas como quatro facetas de uma atitude, para que os pecadores busquem ao próprio Deus

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em arrependimento humilde, e não como quatro passos diferentes em uma longa estrada para o perdão. É interessante que desse ponto em diante em Crônicas, essas expressões estão unidas freqüentemente com o arrependimento, um sig­nificado que elas geralmente não tiveram nos capítulos anteriores. O arrependi­mento de agora em diante recebe destaque em Crônicas. E isso não porque Israel estava ficando mais pecador, mas porque o novo templo representava uma nova base para a restauração e o perdão.

Os princípios de restauração e os meios pelos quais ela poderia ser alcançada são ilustrados de agora em diante por meio de alguns indivíduos, com base no versículo 14. se humilhar, por exemplo, é o motivo fundamental nos relatos Roboão (2Cr 12.6-7, 12), Ezequias (30.11; 32.26) e Manassés (2Cr 33.12, 19, 23); oraré aplicado a um apelo ao arrependimento em 2Crônicas 6 .19ss; 30.18; 32.20; 33.13 (icf também lCr4.10; 5.20; 21.26, onde são encontrados verbos diferentes); buscar (a minha face) ocorre em contextos de arrependimento ou de angústia geral (2Cr11.16; 15.4; 20.3-4), embora, em outras passagens pode referir-se a uma atitude geral para com Deus (1 Cr 16.10-11; 2Cr 22.9; 26.5); e se converter, uma das palavras principais do Antigo Testamento para “arrepender-se”, está associada com as frases anteriores em 2Crônicas 15.4; 30.6,9; cf. também 36.13).

O arrependimento humilde é uma fase necessária no objetivo último de Deus de perdoar e sarar. Um outro elemento essencial no processo é a promes­sa de Deus de ouvir a oração. Isso é tão importante que um enfático “Eu” ocorre no TM antes de eu ouvirei, i.e., “Eu realmente ouvirei”. Trata-se claramente de uma resposta direta aos pedidos do próprio Salomão (cf. 6.19-21,25 etc.), mas a promessa também será cumprida explicitamente em 2Crônicas 20.9; 30.20, 27; 33.13; 34.27. Perdoar é o único desses termos que não ocorre mais tarde, embora também não apareça em Crônicas fora de 2Crônicas 6— 7. Porém, a idéia de perdão é expressa de outros modos, tais como a ira de Deus não ser derramada (2Cr 12.7; c f 30.8), ser encontrado por Deus (2Cr 15.2,4,15), Deus atender a um pedido (2Cr 33.13,19), e especialmente Deus expiar ou perdoar (2Cr 30.18). Esta última passagem é particularmente interessante, visto que também contém a única outra referência em Crônicas à cura realizada por Deus (2Cr 30.20). Tanto 2Crônicas 7.14 quanto 30.18, 20 indicam que esse perdão e cura são parte da mesma obra de Deus. Essa conclusão é confirmada por um exame cuidadoso de 2Crônicas 30.18-20 e do modo em que o verbo “curar/sarar” é usado ao longo do Antigo Testamento. Primeiramente, “sarou... o povo” em 2Crônicas 30.20 é a resposta de Deus a uma oração por perdão da parte daqueles que dedicaram seus corações a buscar a Deus. Em segundo lugar, a promessa de sarar sua terra (v. 14) parece ser cumprida em 2Crônicas 30.20 pela frase “curou... o povo” (provavelmente também é uma resposta a6.25,27,31,38). Em terceiro lugar, curar ao longo do Antigo Testamento tem uma mistura de aplicações espirituais e físi­cas. As vezes a cura é especificamente igualada ao perdão (e.g. Os 14.4; Is 53.5;

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57.18-19; SI 41.5); outras vezes se relaciona com a cura física (e.g. Gn 20.17; Nm 13.20; 2Rs 20.5,8). Quando é aplicada à terra, como aqui, pode referir-se a levar de volta os exilados à Terra Prometida (Jr 30.17; 33.6-7) ou restabelecer à terra e a seu povo a paz e a segurança (Jr 33.6; Is 57.19). “Curar sua terra” pode ser descrito justamente como uma frase abrangente para a restauração de todos os propósitos de Deus para o povo de Israel e para a Terra Prometida.

Como essa promessa pode ser aplicada no mundo moderno é uma questão de debate considerável, entretanto as restrições de espaço devem fazer os se­guintes breves comentários serem suficientes. Primeiramente, a proeminência dos aspectos espirituais e morais da cura torna as promessas de cura do Antigo Testamento coerentes com o evangelho do Novo Testamento. Ambos contêm a oferta de Deus para perdoar pecados (cf. At 5.31; Ef 1.7), nos dois casos tornan­do essa promessa disponível universalmente. Em segundo lugar, o fato de que a restauração espiritual seja oferecida a uma nação também a faz disponível, em princípio, para qualquer outra nação. Embora nenhuma outra nação desfrute precisamente da mesma relação com Deus como o antigo Israel, a saúde espiri­tual de cada nação é algo em que Deus tem um interesse direto. O quanto a vida coletiva de uma nação em particular mostra evidência de declínio ou progresso espiritual depende de em grande medida das orações do povo cristão. Em tercei­ro lugar, deve-se levar em conta a natureza inclusiva do evangelho bíblico. Ele tem uma forte ênfase coletiva, em contraste com o individualismo de grande parte da cristandade ocidental, e está tão preocupado com os aspectos físicos da vida quanto com o espiritual. Por exemplo, é iluminador ver o quanto Jesus via o seu ministério de cura física como parte de sua mensagem de perdão dos pecados (c f e.g. Mt 8.1— 9.8, especialmente 9.5-6). Embora os cristãos hoje possam achar difícil entender como exatamente essas várias dimensões dos propósitos de Deus se relacionam umas com as outras, o cronista concorda com outros autores bíblicos em que o próprio Deus as uniu.

(c) A promessa de restauração é apoiada por uma declaração notável so­bre a presença de Deus no templo. Quando Deus novamente responde a um pedido específico de Salomão (cf. v. 15 com 6.20,40), ele afirma que não somente seus olhos e ouvidos, mas também o seu Nome e até mesmo seu coração estão de algum modo indefinido presentes no templo. A idéia de que Deus tem um coração é extremamente rara na Bíblia, e a única outra referência explícita fala de Deus estar com o coração partido por causa do mal da humanidade (Gn 6.6, NVI; cf. também Gn 8.21; ISm 13.14;At 13.22). Visto que o coração simboliza o aspec­to mais íntimo de uma pessoa ou coisa, Deus aqui oferece à humanidade seu ser interno mais profundo, e revela um coração ferido. A glória da nuvem misteriosa (v. 1-3) também se toma a glória do que é com efeito a preparação de Deus para a encarnação de Jesus. É difícil pensar em um modo mais profundo de indicar a proximidade de Deus, ou um maior encorajamento à oração.

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iii. Deus confirma o trono real de Salomão (7.17-18). Deus agora lembra Salomão da importância do templo como um símbolo do compromisso de Deus com a aliança davídica. A oração feita no templo chegou diante do Deus que havia colocado Davi no seu trono, e era com efeito um apelo ao reino do próprio Deus (cf. e.g. ICr 17.14; 28.5; 29.23; 2Cr 9.8). Essa promessa particular era uma resposta direta à oração de Salomão em 6.16-17. Note a semelhança nas frases - a promessa, “Não te faltará sucessor diante de mim, que se assente no trono de Israel” (6.16), é aqui confirmada como Não te faltará sucessor que domine em Israel (7.18). Duas pequenas mudanças no versículo 18 (cf. lRs 9.5) destacam o compromisso de Deus com a dinastia. “Como eu prometi” se tornou segundo a aliança que fiz (para referência específica à aliança davídica, cf. 2Cr 13.5; 21.7), enquanto sucessor que domine em Israel é um eco deliberado da promessa messiânica de Miquéias 5.2. Não é que Salomão deva ser visto como uma figura messiânica, porque o versículo 17 chama atenção à sua humanidade e necessidade de obediência. Ao contrário, era Deus, não o homem, quem garantia o futuro da linhagem de Davi, e somente ele tinha autoridade para responder às orações de Israel.

iv. Deus pode rejeitar esse templo (7.19-22). Se o templo encorajava uma nova esperança de restauração nacional e a continuação da linhagem de Davi, ele deve também simbolizar o compromisso de Israel para com a vontade escrita de Deus. Ele deve ser uma casa de obediência tanto quanto uma casa de oração e de sacrifício, como o povo agora é lembrado (note o plural do v. 19), seguindo o padrão de falas anteriores dirigidas em parte ao rei (ou a seu filho) e em parte ao povo (cf. ICr 22.6-16,17-19 e 28.2-10). Os privilégios associados com o templo não eram concedidos automaticamente. Se Israel decidisse abandonar a Deus (v. 19) ao invés de mostrar arrependimento humilde (v. 14), Deus poderia fazê-los se lembrar da importância secundária do templo removendo-o completamente. Tal julgamento de fato inverteria as promessas anteriores de Deus - ser “lança­do fora de minha vista” (v. 19, NRSV, RSV) é o oposto da garantia de que os olhos de Deus estão atentos às orações de todos (v. 15-16).

E interessante que a situação na qual tal desastre poderia ocorrer não é diferente em tipo daquela descrita no versículo 13 que poderia resultar em res­tauração. A distinção entre a salvação do versículo 14 e o julgamento do versí­culo 20 não é que o povo no primeiro caso fosse melhor, mas que eles se arrepen­deram. Enquanto o julgamento pode ser merecido, a restauração é uma dádiva imerecida. Porém, arrependimento e restauração eram a norma esperada por Deus, enquanto que a destruição de tal edifício “(casa) excelsa” (BJ, NRSV, RSV; impo­nente, NVI) seria tão incomum a ponto de estimular o interesse de espectadores neutros (v. 21-22).56 A frase se apegaram a outros deuses oferece um bom exem-

56 A tradução da REB e NEB “se tomará uma ruína” (v. 21) deve ser rejeitada como uma leitura mais fácil baseada nas vss, mas sem apoio no hebraico.

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pio desse elemento surpresa. O verbo hebraico significa basicamente “segurar- se firmemente a”, e adotar uma atitude dessas em relação a deuses diferentes de Javé era uma negação do próprio padrão de fé previamente considerado (e.g. ICr 19.13; 22.13; 28.7, 10, 20). Abandonar o Senhor desse modo seria rejeitar ludo aquilo que ele tinha feito por eles, em particular no êxodo, com o resultado de que o próprio Deus os rejeitaria de acordo com Deuteronômio 29.24-28 (v. 22). Se Israel abandonasse o fundamento pactuai e histórico de sua fé, o templo e a terra ficariam sem sentido.

I. Salomão termina o templo (8.1-16)A seção final do reinado de Salomão (caps. 8— 9) concentra-se no tema do

louvor por tudo que Deus fez para Salomão (veja especialmente 9.8). Esta unida­de está claramente conectada à seção de abertura sobre Salomão (2Cr 1— 2), sendo que ambas tratam das realizações e da reputação de Salomão. A diferença principal é que enquanto os capítulos anteriores descrevem os preparativos de Salomão em resposta à revelação de Deus em Gibeão, agora aquela obra está concluída. O verdadeiro tema dos capítulos 8— 9, portanto, é antes o que Deus realizou através de Salomão, e não as realizações do próprio Salomão.

Os detalhes do capítulo 8 tratam do povo e das construções em Israel, enquanto o capítulo 9 trata da reputação externa de Salomão. O capítulo 8 se divide em três categorias principais.

v. 1-6 A obra de construção de Salomão v. 7-11 A função dos estrangeiros no reino de Salomãov. 12-15 Cerimônias e pessoal do templov. 16 Resumo da obra de Salomão

Pode parecer surpreendente que partes do capítulo retomem ao tema do templo, visto que sua construção foi concluída no capítulo 7. Porém, duas carac­terísticas sobre esse capítulo indicam que esse arranjo é bastante deliberado. Primeiramente, as declarações sobre o templo (v. 1,12-16) incluem detalhes so­bre as realizações de Salomão em todo o país, indicando aparentemente que estas realizações são bênçãos divinas resultantes da fidelidade de Israel com respeito ao templo. Isso apóia o princípio de que várias bênçãos se seguem quando o culto se toma uma prioridade.

Em segundo lugar, os temas listados aqui ocorrem na mesma ordem que na passagem paralela que trata dos preparativos para o templo (cap. 2). A menção do templo e do palácio real (v. 1 e 2.1) é seguida pela relação de Salomão com o rei Hirão de Tiro (v. 2 e 2.3-16), e pela contribuição feita por estrangeiros (v. 7-10 e 2.17-18). O capítulo 8 mostra portanto que Salomão obedeceu a ordem de construir o templo (2.1) e concluiu a obra (8.1, cf. v. 16) com a ajuda de um rei gentio e conscri- tos gentios. A comparação do capítulo 8 com 1.1-13 também demonstra que esses

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resultados não são no final das contas atribuíveis aos esforços do próprio Salomão. Era o próprio Deus, que tinha começado o trabalho fazendo promessas inespera­das a Salomão (1.7-12), que o havia levado à conclusão (cf. F11.6).

Os princípios da fidelidade de Deus e da prioridade do culto são, natu­ralmente, encontrados fartamente na Bíblia, embora sua aplicação à prosperida­de nacional seja mais importante para o Antigo Testamento do que para o Novo. O ensino de Jesus contém um bom resumo do conceito básico: “Busquem, pois, em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas lhes serão acrescentadas” (Mt 6.33, NVI; cf. Lc 12.31). Os cristãos devem dar prioridade a Cristo e aos valores celestiais (cf. F1 3.10-21), e confiar que tudo que é preciso para essa vida será provido generosamente (F1 4.18-19). O Antigo Testamento aplica o mesmo princípio à vida nacional, pois Deus é a verdadeira fonte de riqueza e prosperidade (c f Dt 8.10-18; Pv 8.15-18). Salomão podia construir a nação de Israel (v. 1-6) porque Deus é o construtor e criador (cf. ICo 3.6-9), e ele exercia autoridade sobre os Gentios porque Deus faz os seus inimigos servirem aos seus próprios propósitos (v. 7-10; cf. Is 14.2; 60.10; F1 2.10).

Quanto o próprio Salomão de fato contribuiu para essa prosperidade é uma questão discutível. Freqüentemente se diz que o cronista não permitiu que a glória de Salomão fosse obscurecida por nenhuma sombra, e que ele alterou ou omitiu qualquer coisa em 1 Reis 9.10-25 que pudesse manchar essa apresentação (e.g. Michaeli, Curtis e Madsen). Porém, outros aceitam que o cronista seguiu sua fonte bem de perto (e.g. Coggins, Dillard). Os detalhes dessa questão serão examinados abaixo, mas dois pontos gerais são dignos de nota. Primeiro, o cronista claramente assume que seus leitores conhecem sua fonte principal, os livros de Reis. Isso fica evidente pelo modo como ele manteve amplamente a ordem e vocabulário de IReis 9, apesar de diferenças importantes em alguns pontos (e.g. v. 1-2, 3-4, 11). Em segundo lugar, algumas coisas, como a sua reconstrução de Hazor e Megido (IRs 9.15) e a sua oferta de sacrifícios pacíficos (IRs 9.25), foram estranhamente omitidos se o objetivo principal do autor era exaltar Salomão. Na realidade, o propósito do cronista parece ser não encobrir as fragilidades de Salomão (especialmente IRs 11.1-40), mas enfatizar que Deus abençoou a ele e a seu povo apesar delas.

i. As outras construções de Salomão (8.1-6)8.1 -c f. IR eis9.108.4a- c f IReis 9 .18b8.5b-c f. IR eis9 .17b8 .6 a -c / IReis 9.18a, 19O império de Salomão é descrito brevemente, em estilo semelhante às

realizações imperiais de Davi (lC r 18.1-13). A ênfase recai sobre sua obra de construção, o verbo “construir” (freqüentemente traduzido por reconstruir) que ocorre seis vezes (v. 1-2,4-6). Todo o país é incluído (v. 6b; cf. 7.8), parti­

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cularmente a fronteira noroeste com Tiro (v. 2), a área nordeste adjacente à Síria (v. 3-4), e a sudeste (v. 5-6a). A observação de que essa atividade aconte­ceu depois que o templo e o palácio estavam terminados (v. 1) repete e deve ser posta em paralelo com 7.11. As promessas de Deus de restaurar a terra (7.12-18) e a obra de construção de Salomão são bênçãos que resultam da conclusão do templo. Essas realizações parecem exemplificar a intenção de Deus de “sarar sua terra” (7. 14).

Embora o significado geral esteja claro, alguns detalhes importantes, no entanto, não estão. Por exemplo, as cidades que “Hurão” (Hirão, NVI; cf. 2Cr 2.3ss; 4.11; etc.) tinha dado a Salomão foram, de acordo com IReis 9.11-14, dadas por Salomão a Hurão! Várias explicações desta aparente contradição são possíveis, embora imaginar que o cronista inverteu o significado de IReis por­que ele pensou que o último seria prejudicial a Salomão não tem apoio e é ingênua. Se a idéia de Salomão ter que abrir mão de parte da Terra Prometida era lão censurável, teria sido mais simples omitir a seção, como ocorreu com outras em IReis 9. O objetivo do cronista em todo caso não é explicar como as cidades se tornaram propriedade de Salomão, e sim que ele as reconstruiu. Mesmo que seja possível haver variação textual (Willi, Williamson), parece mais provável que elas tenham retomado a Salomão, ou porque eram inaceitáveis (lR s 9.12-13) ou porque tinham sido garantia de um empréstimo (lRs 9.14).

Um segundo problema diz respeito a uma referência sem paralelo às con­quistas e obras de construção de Salomão no nordeste (v. 3-4). Há três dificulda­des: que Salomão obtém uma vitória militar contra Hamate-Zoba em uma área onde previamente tinha sido malsucedido (c f lRs 11.23-25), identificar o local e status de Zoba, e qual deve ser a leitura preferida: Tadmor (v. 4) com o texto vocalizado de IReis 9.18, ou “Tamar”, como no texto consonantal de IReis 9.18.

Zoba (c f ICr 18.3-10; 19.16-19) ficava na área que se estendia por 190 quilômetros ao norte de Damasco a Hamate. O termo composto Hamate-Zoba reflete uma mudança do tempo de Davi, quando Hamate e Zoba eram entidades distintas com políticas diferentes em relação a Israel (c f IC r 18.3-10), a um perí­odo quando tinham se unido, provavelmente sob administração de Hamate. Zoba era conhecida como Subate em inscrições assírias do oitavo século e como Sbh em inscrições aramaicas encontradas em Hamate que datam do déci­mo ao oitavo séculos a.C.57 A presença de Salomão nessa região é confirmada pela inclusão em Israel de Lebo Hamate (7.8; cf. ICr 13.5), uma cidade na provín­cia de Subate que os assírios chamavam de Laba’u, e por referências a seu reino se estendendo, como o de Davi, aoEufrates (1Rs4.21, 24; cf. 2Sm8.3; ICr 18.3). () sucesso de Salomão, porém, provavelmente foi menos permanente que o de Davi em vista de suas dificuldades com Damasco (lR s 11.24-25), e ele prova­velmente recebeu um tributo regular em lugar de ter imposto um domínio direto

57 Veja tam bém Jones, I, p. 157-158.

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(cf. lC r 18.6). No entanto, sua construção de cidades-armazéns em Hamate mostra que sua autoridade era real, um fator sublinhado pelo uso de Crônicas de tomou, uma das suas palavras favoritas (v. 3; “conquistou”, NVI; heb. hãzaq, “ser forte”; cf. esp. lC r 19.13).58

Tadmor (ass. Tadmar), fica aproximadamente 200 quilômetros a nordeste de Damasco, e mais tarde se toma a importante cidade de caravanas de Palmira. A influência de Salomão em Tadmor é consistente com a exercida em Hamate, visto que como lugares-chave na principal rota de comércio ambas seriam apropriadas aos conhecidos interesses de Salomão (cf. cap. 9). Uma leitura do texto paralelo, porém, é “Tamar” (IRs 9.18, Ketib), normalmente localizada a sudoeste do extremo sul do mar Morto (cf Ez 47.18-19; 48.28). É interessante, no entanto, que o lugar esteja “no deserto” (IRs 9.18), uma atribuição que a separa de suas cidades sulis­tas associadas e que poderia se aplicar a Tadmor. Uma interpretação do norte é, portanto, possível em Reis, como também é possível considerar que a leitura mais bem atestada é a de Crônicas. Também é possível que Reis e Crônicas se refiram a lugares diferentes, embora essa tese seja menos satisfatória.59

Bete-Horom, a de cima e a d e baixo, junto com Baalate (v. 5-6a), também estavam em rotas de comércio, ligando Jerusalém com a costa. Baalate provavel­mente é aquela mencionada em Josué 19.44, em lugar de Josué 19.8, embora Baala, um nome alternativo para Quiriate Jearim (cf lC r 13.6), também seja uma possibilidade. Tais rotas teriam requerido defesas reforçadas.60

O interesse do cronista na obra de constmção do rei aqui combina com uma ênfase especial nos capítulos 10— 36. Três frases ilustram isso, a saber, tomou (hãzaq ‘al, v. 3; cf. 2Cr27.5), cidades fortificadas ( ‘ãrê mãtstsôr, v. 5 \c f 2Cr 11.5), e muros, portas eferrolhos (v. 5; cf. 2Cr 14.6). Como a obra de constmção de Davi em Jemsalém (lC r 11.8-9), elas são sinais da benção de Deus e do seu compromis­so de construir a casa de Davi (1 Cr 17.10). Deus não estava construindo apenas uma dinastia, mas um reino ou “domínio” (v. 6, NRSV, RSV, REB). Sua extensão é exemplificada pelas cidades-armazéns (v. 4, 6) e as cidades para os carros (v. 6;i.e., Hazor, Megido, Gezer, e Jerusalém), todas situadas ao norte e ao sul.

ii. Estrangeiros no reino de Salomão (8.7-11)8 .7 - l la - c / IReis9.20-24aSão mencionados três grupos. O primeiro é a força de trabalho escravo

tomada dos descendentes dos habitantes pré-israelitas de Canaã (v. 7-8). Era

58 Pode ser que essas cidades armazéns tiveram um papel im portante na importação de cavalos da A natólia por parte de Salomão, além de serem centros de estocagem de grãos (cf. Y. Ikeda, op. cit., p. 234-8).

59 Veja, por exemplo, Z. Kallai, H istorical Geography o f the Bible (Jerusalém: Magnes Press, 1986), p. 73-74; F.C. Fensham , IBD, p. 1513-1514.

60 Veja Z. Kallai, Historical Geography o f the Bible (Jerusalém: Magnes Press, 1986), p. 73, 369; J. M. M iller e J. H. Hayes, History o f Ancient Israle and Judah (Londres: SCM Press, 1986), p. 209-210.

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prática comum impor condições desse tipo a ex-inimigos, e esse era um modo de pôr os cananeus sob a autoridade formal israelita. Uma distinção é feita entre o tratamento que Salomão aplica a esses gentios e aos israelitas (v. 9a), embora IReis 5.13-18, que Crônicas não menciona, foi freqüentemente considerado uma contradição da atitude mais favorável para com os israelitas. Porém, é possível que houvesse duas políticas diferentes. Há uma distinção evidente entre o ter­mo mais simples mas (“recrutamento forçado”; cf. lR s 5.13-14) e a frase mas ‘ôbêd (“escravos do estado”, Mendelsohn, BA 85, 1942, p. 16-17; trabalho

forçado, NVI). A última ocorre em IReis 9.21 e provavelmente deve ser lida no versículo 8 aqui (ela é implicada por escravos no v. 9). Ademais, os israelitas só trabalhavam no templo durante um mês em três, ao passo que os cananeus foram sujeitados a uma disposição permanente para o projeto de construção de âmbito nacional de Salomão (note-se a referência a carros e cavaleiros (v. 9), implicando trabalho nas cidades, em carros).61

Os israelitas, que assumiram o comando nas atividades militares (v. 9) e na obra de construção (v. 10), formam o segundo grupo (v. 9-10). “Seus capitães e tenentes” (v. 9, com REB, NEB) é preferível a chefes de seus capitães (NVI).62 A palavra para “tenentes” (REB; capitães, NVI; heb. shãlish) poderia se referir a um “terceiro homem” no carro, a um oficial do terceiro escalão, ou a um membro de um esquadrão especial de três homens.63 O número de duzentos e cinqüenta supervisores (v. 10) está em contradição com a “550” de IReis 9.23. Embora um simples erro de escriba possa ser a causa, talvez seja melhor unir esses números com os 3.600 supervisores de 2Crônicas 2.18 e 3.300 no versículo paralelo de1 Reis 5.16, visto que tanto Reis quanto Crônicas somam 3.850.64

A terceira referência é à esposa egípcia não identificada de Salomão, afilha de Faraó (v. 11). O fato desse casamento único (lR s 9.16; 11.1) e o palácio construído para ela (lRs 3.1; 7.8; 9.24) são ambos tomados de Reis, mas a menção da santidade da arca como a explicação para sua mudança (v. 11b) não tem ne­nhum paralelo. Geralmente se entende que isso tem a ver com seu sexo, mas, visto que o contexto é sobre estrangeiros, o seu paganismo é a razão mais provável (cf. liz 44.7-9). Se a primeira opção é a correta, também se esperaria acomodação sepa­rada para as esposas israelitas de Salomão, mas novas construções são mencio­nadas só em relação às suas esposas estrangeiras (cf lRs 11.7-8). Na realidade, construir um palácio para ela provavelmente era parte de uma política de santuári­

61 Veja tam bém Jones, I, p. 157-158.62 A palavra Wsãrê deve ser lida como wesãrãw, como em lR s 9.22. A forma em Crônicas

lui influenciada por outro w‘sãrê duas palavras depois, perdendo seu waw final por haplografia.63 Cf. N. N a’aman, “The list of David’s officers (shmshim)” , VT 38, 1988, p. 71-79; D. G.

Schley, “The shalishim: officers oração especial three-man squads” , VT 40, 1990, p. 321-326.64 Veja ainda, J. Wenham, “Large numbers in the Old Testament’, TB 18, 1967, p. 49; D.

< iooding, Relics o f Ancient Exegesis (Cambridge University Press, 1967), p. 53-55. É comum iilirmar que supervisores gentios são m encionados em 2Cr 2.18, já que nenhuma declaração <• feita sobre sua nacionalidade (cf. W illiamson).

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os separados para esposas estrangeiras. Entende-se que o palácio de Davi fazia parte do complexo do templo (cf. Ez 43.7-9), e provavelmente, mesmo que construído por Salomão, foi associado a Davi por causa da arca.

iii. As cerimônias e o pessoal do templo (8.12-15)8.12-c f. IReis9.25aA observância regular do culto do templo, com seus próprios sacrifícios

(v. 12-13) e pessoal (v. 14-15), é a base de qualquer prosperidade nacional contí­nua (cf. v. 2-11). Essa regularidade é indicada pelo padrão de cerimônias diárias, semanais, mensais e anuais. A exigência diária básica para sacrifício (Nm 28.1 -8) eram os holocaustos, junto com o incenso. Os primeiros simbolizavam vidas completamente dedicadas a Deus (cf SI 103. l ) e o dom da expiação (cf. lCr 21.26; Jó 1.5), enquanto o último é freqüentemente associado com a oração (cf. SI 141.2; Ap 5.8; 8.3). Embora “ofertas pacíficas” e “incenso” sejam omitidos do versículo paralelo (IRs 9.25), Crônicas é mais abrangente na cobertura de todo tipo de ocasião em que eram oferecidos sacrifícios. A designação de sacerdotes e levi­tas inclui a maior parte das funções levíticas mencionadas anteriormente, tais como a condução do louvor, assistência aos sacerdotes, e atuação como por­teiros e tesoureiros (cf. e.g. lC r 23.2-5,28-31; 26.1 -28).

Em tudo isso, Salomão é fiel às ordens tanto de Moisés (v. 13) quanto de Davi (v. 14-15). O elo com Moisés é indicado pela inclusão de informação de Deuteronômio 16.1-16 sobre as festas anuais.65 Davi é confirmado como um segundo Moisés (cf. lC r 15.15; 22.13; 2Cr 23.18), enquanto Salomão leva a cabo as instruções que Deus revelou a Davi (c f especialmente lC r 28.11-19; também lC r 23.31; 2Cr 2.3-4). O foco das cerimônias regulares do templo era o altar de holocaustos (v. 12), onde Israel diariamente oferecia louvores e rece­bia perdão (cf. lC r 22.1; 2Cr 7.9).

iv. O templo é concluído (8.16)“Assim se executou toda a obra de Salomão” (8.16).8.16b-c f. IReis9.25bA fase final da narrativa do templo é desdobrada cuidadosamente, como

cada uma das intermediárias (lC r 29.6-9; 2Cr 2.1; 5.1; 7.8-10; cf. também 2Cr 29.35). A obra de Salomão foi resumida no templo, e as bênçãos conseqüentes (8.17-28) representam as gratificações de Deus dadas em resposta à sua oração de inauguração (2Cr 1.7-12). Como no caso de Davi, Deus mostra sua prontidão em derramar bênçãos sobre seu povo (lC r 14— 16).66

65 Cf. J. R. Shaver, Torah and the C hronicler’s H istory Work (Atlanta: Scholars Press, 1989), p. 94-96.

66 As versões modernas sem dúvida estão corretas em ler “desde o dia da fundação” (com a m aioria das vss) antes que “até o d ia...” (como o TM ). A últim a opção parece ter sido influenciada pelo “até” que vem em seguida.

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2CRÔNICAS 8.17— 9.31

J. O esplendor de Salomão (8.17— 9.31)Esta seção conclui o relato das realizações de Salomão (caps. 8— 9) con­

centrando-se nas relações internacionais de Salomão, em contraste com o ambi­ente israelita da seção anterior. Dois exemplos notáveis dos procedimentos de Salomão com governos estrangeiros, um do norte e o outro do sul, introduzem um relato mais geral da reputação de Salomão entre os reis da terra (cf. v. 22, NVI). O material se divide em três seções principais:

8.17—9.12 Salomão e o os governantes de Tiro e Sabá9.13-28 A sabedoria, fama e prosperidade de Salomão9.29-31 Fórmula de conclusão para o reinado de Salomão

O texto segue IReis de perto, com a exceção importante de que omite as críticas extensas a Salomão em 1 Reis 11.1 -40. A razão para essa mudança impor­tante não é porque o cronista via Salomão como um modelo de virtude e sucesso sem igual, pois já foi mostrado repetidas vezes que se esperava dos leitores de Crônicas que estivessem familiarizados com a história básica em Reis (veja tam­bém Coggins). A menção de Aías (v. 29; cf. lRs 11.29-39) e o infeliz legado de Salomão (2Cr 10.1-15) claramente mostram que na visão do cronista sua glória não era imaculada.

Uma pesquisa mais ampla do uso que o cronista faz de Reis mostra que aspectos muito positivos do reinado de Salomão também foram deixados de fora, inclusive detalhes de sua sabedoria e riqueza que teriam sido diretamente pertinentes aqui (cf. lRs 3.16-28; 4.1-34). Como no caso de Davi, o cronista excluiu a maior parte de sua vida particular e alguns negócios seculares. O efeito dessas mudanças é um foco mais nítido na relação entre esse capítulo e o encon­tro de Salomão com Deus em Gibeão (2Cr 1).

Deus prometeu naquela ocasião dar a Salomão não somente a sabedoria que ele pediu (1.11 -12a) mas também riqueza e fama pelas quais ele não havia pedido (1.12b). Segundo Crônicas 9 mostra que aquela promessa foi cumprida de maneira extremamente fiel. O próprio Deus é duas vezes reconhecido como a fonte dos dons de Salomão, em ambas as ocasiões pelo testemunho imparcial de estrangei­ros (v. 8, 23). Embora Salomão tivesse sido obediente a Deus na construção do lemplo, o louvor é devido na verdade a Deus por sua fidelidade e seu amor (v. 8).

Todos os três dons de Deus são tratados em detalhe, e uma ênfase na generosidade de Deus é evidente. A sabedoria de Salomão é reconhecida e testa­da pela rainha de Sabá (v. 2-3,6-8) e buscada por muitos governantes (v. 22,23). O rei também se revelou muito mais generosamente dotado com esse dom do que a rainha havia imaginado: tu ultrapassas em muito o que ouvi (v. 6, NVI). O dom de riqueza não só é reconhecido, mas aumentado por Hirão de Tiro (8.18; 9.10-11), pela rainha de Sabá (v. 3-4,9,12), e por muitos mercadores e reis (v. 13-28). O terceiro dom, o da “honra” (2Cr 1.12), embora não tão freqüentemente reconhecido, é da

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mesma forma proeminente. O relato da fama de Salomão (v. 1,5) é internacional em extensão (especialmente v. 22-24), e gera expressões da supremacia e singu­laridade de Salomão. Ele mostra sua supremacia ao responder todas as pergun­tas da rainha (v. 1-2), dando-lhe mais do que ela havia lhe trazido (v. 12), e ao exercer soberania sobre muitos governantes (v. 26). Sua singularidade é desta­cada em uma série de frases tais como, Nunca se fizera obra semelhante em nenhum dos reinos (v. 19; cf. v. 9, 11). Essa incomparabilidade também fora prometida por Deus (2Cr 1 .1 2 ;# 1 Cr 29.25), e confirma que até mesmo a glória de Salomão (cf. Mt 6.29) era dependente da, e era ultrapassada em muito pela, glória do próprio Deus (cf. 2Cr 7.1-3).

A maior parte das mudanças em relação a Reis é bem menos importante, mas uma se destaca. Ao invés de Deus colocar Salomão no “trono de Israel”, o versículo 8 declara que Deus te colocou no trono dele para reinar pelo S e n h o r ,

pelo teu Deus. A menção do reino de Deus ao lado da grandeza inigualável de Salomão sugeriu a alguns que essa seção pressagia o fim do tempos (Mosis, Dillard, Allen). Essa tese provavelmente é entusiástica demais, visto que outras passagens do Antigo Testamento desenvolvem esses temas de uma maneira escatológica muito mais clara (cf. SI 72.10; Is 60.6). O que está em vista aqui é a realidade presente do reino de Deus antes que sua expectativa no futuro. Deus ainda estava entronizado mesmo nos dias do cronista, apesar da ausência de qualquer versão visível do reino de Deus. Seu amor por Israel também não tinha mudado, como se confirma por uma frase adicional não encontrada em Reis: o estabelecer (preservá-lo, NVI) para sempre (v. 8; c f lRs 10.9).

No Novo Testamento, a glória de Salomão e a visita da rainha de Sabá apontam para a verdade maior de Cristo (Mt 12.42; Lc 11.31). Sábios do Oriente, seguindo os passos da rainha, trazem presentes tradicionais de Sabá, incenso e mirra para o descendente de Salomão (cf. Mt 2.1-12). O próprio Jesus elogiou a rainha por reconhecer a mão de Deus na vida de Salomão, embora ele advertisse também que o esplendor de Salomão era limitado e não deveria ser invejado (Mt6.28-29). A sua riqueza e sabedoria eram dons especiais que simbolizavam a benção de Deus sobre a aliança e dinastia davídicas recentemente estabelecidas, ao pas­so que os cristãos são encorajados a valorizar coisas mais em termos celestiais do que terrenos (Mt 6.19-21) e exercitar sabedoria pondo fé em Cristo (ICo 1.18-25). A bondade de Deus para com Salomão não pretende ser uma tentação ao materialis» mo, e sim um convite a se buscar o reino de Deus em primeiro lugar na confiançide que “todas essas coisas lhes serão acrescentadas” (Mt 6.33). 1

i

i. As relações internacionais de Salomão (8.17—9.12) '“Bendito seja o S e n h o r seu Deus que se agradou de ti e o colocou em setf

trono como rei para o S e n h o r teu Deus” (9.8, NRSV, RSV).8 .17-18-c/ lReis9.26-289 .1 -12 -c /IR eis 10.1-13

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Os negócios de Salomão com dois governantes importantes de sua época ilustram sua reputação internacional e estendem o louvor de Deus. O incidentel amoso que envolve a rainha de Sabá (9.1 -9,12) é intercalado entre dois parágrafos c urtos relativos à parceria marítima de Israel com Tiro (8.17-18; 9.10-11, 9.21).

a. Salomão e o rei de Tiro (8.17-18; 9.10-11). Há algumas diferenças menores com o texto de Reis em ambos os parágrafos, que são interpretadas como resultado de uma leitura incorreta que o cronista faz de sua fonte (veja lambém v. 21). Hirão, por exemplo, enviou navios em 2Crônicas 8.18, enquanto que 1 Reis 9.26-27 diz que Hirão enviou marinheiros e que Salomão construiu os navios. Porém, o fato de que em IReis 9.27 os marinheiros de Hirão são enviados com a frota confirma que mesmo na versão mais antiga os marinheiros não viajaram desacompanhados. É muito provável que os materiais fossem importa­dos de Tiro e reunidos perto do mar Vermelho.

17-18. O porto israelita de Eziom-Geber provavelmente deve ser localiza­do em Jezirat Fara’un, uma ilha mais ao sul de Elate, e não no local tradicional de Tell el-Kheleifeh a oeste de Aqaba. Ele preserva a evidência de uma instalação marítima de tamanho e complexidade consideráveis, e o padrão de portos peque­nos em ilhas próximas à costa é repetido em Sidom, Tiro e Arwad na pátria fenícia.67 Ofir é de localização muito mais incerta, e poderia estar no sudoeste da Arábia, no extremo leste da África, ou mesmo na índia. Ofir, no entanto, é relaci­onada com Sabá em Gênesis 10.28-29 (= lC r 1.22-23) que toma a última proposta menos provável.

9.10-11. O segundo parágrafo está relacionado com a visita da rainha como uma segunda fonte de pedras preciosas e produtos exóticos. A identifica­ção da madeira de algum (melhor, almugue; cf. 1 Rs 10.11 -12) permanece desco­nhecida (veja comentário de 2Cr 2.8), assim como o uso para o qual foi posto no templo e no palácio (v. 11). A palavra hebraica para este último normalmente significa “estrada”, mas dificilmente isso seria adequado aqui. “portas”,68 esca­daria (NVI, BJ, NRSV, RSV; cf. NTLH), “plataformas” (REB, NEB), ou “balaústres” (ARA), tudo isso já foi proposto, embora, à luz da frase seguinte, pode ser até mesmo um termo para outro instrumento musical!

b. Salomão e a rainha de Sabá (9.1-9,12). O nome e identidade da rainha infelizmente ainda são desconhecidos. Seu reino de Sabá ou Saba corresponde aproximadamente ao atual Iêmen e era bem conhecido em tempos antigos por

67 A. Flinder, Secrets o f the B ible Seas: An Underwater A rchaelogist in the H oly Land (Londres: Seven House, 1985), p. 42-82; idem, “Israel this S o lom on’s seaport?” B iblical Archaeology R eview 15/4, 1989, p. 30-43.

68 Essa proposta é baseada em analogias assírias, cf. D. Dorsey, “Another peculiar term in the book of Chronicles: n fsilã h , ‘H ighw ay’?” Jewish Quarterly Review 75, 1984-391, com base em analogias assírias.

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sua riqueza, baseada no comércio de incenso e mirra (cf. Ez 27.22-23). É muito provável que o contexto da visita fosse uma missão comercial, embora ainda não se saiba se essa missão foi uma tentativa de proteger as rotas terrestres de Sabá contra a competição marítima de Salomão e Hirão ou de pagar tarifas comerciais pelo privilégio de usar as rotas para o Mediterrâneo (cf. v. 14).

O relato, que segue de perto a versão em Reis, sofreu considerável ex­pansão e embelezamento nas versões posteriores, em comparação com as quais os relatos do Antigo Testamento são “mais breves e mais concisos”.69 São os acréscimos legendários que falam de uma união entre o rei e rainha, com base em uma compreensão sexual do verbo veio (v. 1) e da frase tudo o que ela desejou (v. 12). De acordo com as tradições judaicas e etíopes respec­tivamente, ou Nabucodonosor ou Menelique I, o fundador da dinastia etíope, nasceram dessa união. A existência de uma rainha de Sabá nos dias de Salomão, porém, é perfeitamente razoável, considerando-se as referências em textos assírios do oitavo século a.C. às rainhas árabes do Norte, e a governantes de Sabá de cerca de 800 a.C.™

Depois da chegada da rainha (v. 1), a história bíblica concentra-se sobre o que a rainha viu e ouviu (v. 2-4), o que ela disse (v. 5-8), e o que ela fez (v. 9). Seu objetivo era provar Salomão com perguntas difíceis (v. 1). Trata-se aqui do que às vezes é traduzido por “enigmas”, e não inclui não só enigmas e charadas populares (cf. Jz 14.12-18), mas as questões difíceis da sabedoria do Antigo Testamento tais como o significado da vida e da morte (SI 49.4) ou as maravilhas insondáveis de Deus (SI 78.2; “enigmas”, NVI). A palavra grega equivalente (ainigma) na Septuaginta só ocorre uma vez no Novo Testamento em ICoríntios13.12, onde normalmente é traduzida por “obscuro, sombrio”, tipificando a ma­neira como as coisas são compreendidas nesta vida. O dom sobrenatural de sabedoria que Salomão possui (cf. ICo 12.8), no entanto, o permitiu responder a todas os testes da rainha (v. 2). Além de suas qualidades intelectuais e de resolver problemas, essa sabedoria também era prática e religiosa. Sua evidência podia ser vista na “casa” (NEB, NRSV, RSV; palácio, NVI, REB, NTLH) que ele tinha construído (v. 3), e em sua administração (v. 4). A casa quase certamente refere-se ao templo, visto que o palácio real sempre é identificado separadamen­te como tal (cf. 2.1; 7.11; 8.1), ao passo que “a casa” sozinha significa o templo (e.g. 2 .4,9; 6.2,9). Entre a lista de itens que ilustram a sabedoria de Salomão, a leitura holocaustos (v. 4, NVI, NRSV, RSV, cf. NTLH) é baseada apenas nas VSS e em IReis 10.5 (cf. 2Cr 5.6; 7.4-5,7). O TM lê “câmara superior”, embora a maioria dos comentaristas prefira “escadas, rampa”, envolvendo uma pequena emenda (cf. nota de rodapé da NVI).

69 E. Ullendorff, Ethiopia and the Bible (Londres: Oxford University Press, 1968), p. 132,70 Para mais detalhes, veja ibid., p. 131-145.

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O que a rainha viu tirou seu fôlego (v. 4; “ficou fora de si”, BJ; ela ficou impressionada, NVI), literalmente, “nela não havia mais fôlego/espírito”. Fora IReis 10.5, a frase ocorre somente em Josué 2.11; 5.1, e em cada ocasião é aplicada ao assombro de não-israelitas com o que Deus fez. Quando ela falou, foi para reconhecer que ela agora acreditava no que ela via (v. 6), e então ela louvou a Deus (v. 8).

As palavras hebraicas para verdade (v. 5) e acreditar (v. 6) estão intima­mente relacionadas, e sugerem um tema importante na história, embora não seja declarado se essa fé simplesmente reconhece a grandeza de Javé {cf. e.g. Dn 4.1- 3, 34-37) ou é se de um tipo mais profundo. Ela é, no entanto, um exemplo interessante do provérbio “ver para crer”, apesar do princípio de 2Coríntios 5.7. A fé às vezes envolve crer na evidência que se tem diante dos olhos, como no caso da ressurreição de Jesus (cf. e.g. Jo 19.35; 20.8, 27-29).71

O louvor da rainha (v. 8) é importante, visto que resume no estilo típico de Crônicas a causa da grandeza de Salomão. O trono de Deus é de fato uma importante alusão ao reino de Deus, um conceito distintivo em Crônicas, mas que é raro no Antigo Testamento e não tem nenhum paralelo em Reis (c f lC r 17.14; 28.5; 29.11,23; 2Cr 13.8). O elo entre os reinos celestial e humano enfoca a origem e o propósito da realeza de Salomão. Por causa do amor de Deus por Israel, Salomão reina para eles como também sobre eles. Como em Deuteronômio, o amor expressa a idéia de eleição (cf. Dt 4.37; 7.7-8; 10.15), e o cronista combina aqui seu interesse especial na eleição de Salomão (cf. lC r 28.4-10) com uma rara menção da escolha amorosa de Israel por Deus. Com uma declaração paralela em 2.11, este último conceito forma um parêntese teológico ao redor do relato de Salomão pelo cronista. O propósito do governo de Salomão era demonstrar justiça e retidão (NVI). Esse par comum de termos expressa os princípios da aliança de Deus (cf. lC r 18.14) e o dom celestial de sabedoria (c f 1Rs3.28).

Embora a tradução do versículo 12 seja um pouco incerta, a rainha sem dúvida voltou para casa com muito mais do que ela lhe tinha trazido (NVI, NRSV, RSV), possivelmente como resultado de uma troca mútua de presentes (REB, NTLH; cf. v. 9).

ii. A sabedoria, a fama e a prosperidade de Salomão (9.13-28)9.13-25- c / IReis 10.14-269.25a-c f. IReis4.26(EVV) = 5 .6(TM)9.26 -c f. IReis 4.21a (EVV) = 5. Ia (TM)9 .27 -28 -c / IReis 10.27-29

71 No v. 7, a leitura “tuas esposas” (RSV, REB, NEB) é baseada nas vss, mas é inferior a "os homens” (NVI, com base no TM e IRs 10.8; c f NRSV, GNB). Não é o mesmo que “teus servos/oficiais”, já que o prim eiro é mais geral e o último mais específico.

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Este é um resumo mais geral da sabedoria, riqueza e fama de Salomão, no qual pelo menos sua sabedoria é atribuída diretamente a Deus (v. 23). Seu ouro (v. 13-21) e sua supremacia entre todos os reis do mundo (v. 22-28) recebem menção especial. Suas riquezas variadas também incluíam prata (v. 14,20-21,24, 27), marfim (v. 17,21), macacos e “micos” (v. 21, NTLH, REB, NEB; estes últimos podem ser “pavões”, NVI, NRSV, RSV seguindo VSS), especiarias (v. 24; cf. v. 1,9), “mirra” (v. 24, RSV; talvez “perfumes”, REB, NEB, ou armas, NVI, NTLH, BJ), mulas (v. 24), cavalos e carros (v. 24, 25, 28), e cedro (v. 27).

a. O ouro de Salomão (9.13-21). A renda anual em ouro de Salomão ( v. 13- 14) parece extraordinária para os padrões atuais, mas, no contexto do mundo antigo, não seria um exagero.72

O montante não é declarado, embora os 666 talentos (aproximadamente igual a 22 toneladas) recebidos cada ano provavelmente derivavam de tributos e algum comércio.73 Menção especial é feita ao uso do ouro para a confecção de escudos (NVI) adornados grandes e pequenos (v. 15-16; cf. 2Cr 12.9), um trono de marfim (v. 17-19), e várias taças (v. 20). Os escudos foram depositados no arsenal, quer dizer, a Casa do Bosque do Líbano (cf. Is 22.8).74 A medida de ouro usada para os escudos não é especificada no TM, que normalmente significa que se trata de siclos (assim a maior parte das versões modernas). A NIV, no entanto, tem bekas ou meio-siclos, que tenta harmonizar com “três minas” em IReis 10.17., Porém, visto que nem sempre é claro se a mina valia cinqüenta ou 100 siclos, é bom ter cautela. O trono sem igual, que provavelmente foi feito de madeira com marfim incrustado, tinha um estrado de ouro (v. 18), embora em IReis 10.19 (TM) tenha “um topo arredondado” ou possivelmente “a cabeça de um bezerro” (LXX). A solução mais simples para essas discrepâncias é aceitar que Reis e Crônicas estavam chamando atenção para características diferentes desse trono especial.75 Reinos (v. 19) provavelmente deveria ser entendido como “rei”, um termo abstrato sendo usado em lugar de um concreto, como em 2Crô- nicas 12.8.76 “não havia nada de prata” (v. 20, NVI) é uma frase adicional que não aparece no TM, e deve ser apagada. Navios mercantes (v. 21, NVI; cf. GNB) é uma tradução preferível à mais literal “navios que iam a Társis” (ARA, BJ; cf NRSV, RSV, REB, NEB). Dizendo Társis, provavelmente Tartessus na Espanha,

72 A. R. M illard, “Solomon in ali his glory” , Vòx Evangélica 12, 1981, p. 5-18.73 “Im postos” (NTLH e outras versões) envolve um a pequena, mas necessária mudança

do TM (“hom ens” ).74 Vários tipos de escudo do período são ilustrados, principalmente nos exemplos assírio»,

in Y. Yadin, The A rt o f Watfare in Biblical Lands (Londres: Weidenfeld and Nicolson, 1963), p. 13-15, 295, 360ss.

75 Sobre a tradução “estrado”, cf. W. G. E. Watson, “Archaic elements in the language o* C hronicles’, Bib. 53, 1972, p. 194” .

76 357 Ibid. p. 204.

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se queria dizer simplesmente um lugar distante, como “as índias” nos inícios da exploração européia (c f 2Cr 20.37).

b. A supremacia internacional de Salomão (9.22-28). O parágrafo come­ça com todos os reis do mundo (v. 22, 23), está centrado em todos os reis (v. 26), e conclui com todas as terras (v. 28). Ele resume vários elementos, com os versículos 25-28 parcialmente repetindo 2Crônicas 1.14-17 e os versículos 25-26 incluindo declarações espalhadas de IReis 4.21, 26. Tal fama extensa não era nenhum acidente, e foi considerada certamente como uma das bênçãos da alian­ça de Deus para a dinastia de Davi (cf. 1 Cr 17.8). Ela também foi desfrutada por outros reis que permaneceram fiéis ao Senhor (e.g. lC r 14.17; 2Cr 20.29; 26.8,15).

Cavalos, no antigo Oriente Próximo, eram um símbolo de riqueza como ouro e marfim, e só foram introduzidos em Israel pelo pai de Salomão. A compa­ração entre os números de estábulos, cavalos e carros (c f NVI) no versículo 25 com os das passagens paralelas (IRs 4.26; 10.26; 2Cr 1.14) revela certa confusão na transmissão textual. Embora a certeza seja impossível, uma solução razoável é pensar em 1.400 carros (IRs 10.26; 2Cr 1.14) e doze mil cavalos (NVI, REB, NEB; em lugar de “cavaleiros”, RSV), com base na analogia da prática ugarítica de três cavalos por carro, e permitindo procriação e treinamento. Nesse contex­to, quatro mil estábulos é preferível a “quarenta mil” de IReis 4.26 (TM, 5.6). Há dois exemplos adicionais nos versículos 25-26 onde Crônicas preservou um texto superior a Reis. Mantinha (v. 25; “distribuiu”, ARA), é universalmente preferido ao verbo defectivo equivalente em IReis 10.26, enquanto a palavra até antes de terra dos filisteus é omitida em IReis 4.21. Sobre o “sicômoro” (v. 27, G N B ,c/ REB, NEB), veja sobre 1.15,esobre 1.16-17 para explicação adicional sobre o comércio de cavalos.

iii. Fórmula de conclusão para Salomão (9.29-31)9.29-31 -c f. IReis 11.41-43Este parágrafo segue o padrão normal de fórmulas de conclusão para

reinados em Reis e Crônicas (para Davi, c f lC r 29.26-30). Ele contém declarações relativas à extensão do reinado do rei (v. 30), o lugar de seu enterro, o nome do seu sucessor (v. 31), e a fonte de informação adicional (v. 29). Somente neste último ponto há uma divergência significativa em relação a IReis 11.41-43. Tanto os primeiros como os últimos (“do primeiro ao último”, JB, NRSV, RSV, REB, NEB) é uma expressão típica de Crônicas não encontrada em Reis (cf. lC r 29.29; 2Cr 12.15; 35.27). As fontes proféticas (v. 29; cf. lC r 29.29) muito provavelmente se referem a Reis, ou talvez a coleções proféticas dentro de Reis. A contribuição de Natã vem de IReis 1.1-53, ade/l/fl.vdc IReis 11.29-39, eldo é tradicionalmen­te considerado o profeta anônimo de IReis 13.1-10 (c f 2Cr 12.15; 13.22). O cro­nista mantém seu forte interesse nos profetas, confirmando que seu relato de Salomão está baseado nas palavras de porta-vozes de Deus (cf. 2Pe 1.21).

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III. O REINO DE JUDÁ (2Cr 10.1—36.23)A. Roboão (10.1— 12.16)i. Israel se separa de Judá (10.1-19)“Assim, Israel se mantém rebelado contra a casa de Davi até o dia de

hoje” (10.19).10 .1-19-c/IR eis 12.1-19As três fases do reinado de Roboão correspondem exatamente às divi­

sões dos capítulos (2Cr 10— 12). A primeira (cap. 10) segue Reis muito de perto, embora a segunda e terceira (caps. 11— 12) divirjam substancialmente da obra mais antiga, dando à visão global de Crônicas sobre Roboão um aspecto bem diferente do de Reis. Enquanto aceita os grandes fracassos de Roboão como um líder, Crônicas procura demonstrar o valor do arrependimento e a extensão da misericórdia de Deus.

Este capítulo trata dos motivos da divisão de Israel depois da morte de Salomão (cf. v. 19), armando o palco não só para o restante do reinado de Roboão mas para o restante de 2Crônicas. A frase fundamental mudança nos aconteci­mentos (v. 15, NVI; “virada nos acontecimentos”, NRSV, RSV) traduz uma pala­vra rara em hebraico que deve ser interpretada junto com o verbo relacionado “deu/transferiu” em lCrônicas 10.14 (cf. 12.23). Esses dois versículos descre­vem dois grandes “momentos de virada”, momentos decisivos que conduzem a novas eras concernentes ao estabelecimento e queda da dinastia de Davi. A primeira era abre com a transferência do reino de Saul para Davi (ICr 10.14) e resulta na dinastia de Davi e Salomão (IC r 10— 2Cr 9). Esse incidente introduz uma história muito mais triste, começando com a divisão do reino de Salomão e culminando no colapso de Israel e sua monarquia (2Cr 10— 36).

Por que há uma mudança súbita entre os capítulos 9 e 10, dando a impres­são de um declínio acentuado depois da idade dourada de Salomão (cf. 2Cr 4.7-8,19-22; 9.13-21)? E de fato muito improvável que o cronista pretenda apresentar a reviravolta como algo desvinculado de Salomão, pois ele também preserva cuidadosamente IReis 12.1-19 (v. 1-19), e há sugestões de que ele espere que o leitor saiba de outros aspectos de Salomão, particularmente as suas fraquezas (lR s 11.1-25; cf. v. 4, 9-11, 14), a profecia de Aías, e a fuga de Jeroboão para o Egito (lR s 11.26-39; cf. 2,15). De acordo com esse material mais antigo, a divisão foi um caso mais complexo, mas também o objetivo do cronista não é principal­mente histórico. Ele concentra-se não só nos motivos do desastre, mas nos princípios pelos quais a restauração poderia acontecer.

Quando Reis e Crônicas são lidos um ao lado do outro, fica claro que Salomão, Roboão e Jeroboão devem todos compartilhar de uma parte da culpa. Ambos os escritores insistem que Salomão impôs um jugo pesado ao povo (v. 4, 9-11, 14), que Jeroboão se rebelou (v. 19; cf. 2Cr 13.6-7; lRs 11.26-40), e que Roboão rejeitou o conselho sábio dos anciãos (v. 6-8,13). Embora este capítulo

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f

dê mais proeminência à loucura de Roboão enquanto 2Crônicas 13.6-7 realça a rebeldia de Jeroboão, nenhum indivíduo é isento. O denominador comum é que todos foram desobedientes à palavra de Deus dada por meio da lei e dos profe­tas. Opressão, loucura e idolatria (c f IRs 12.25-33; 2Cr 13.8-9) tudo mostra como esses reis ficaram abaixo do padrão de obediência requerido da linhagem de Davi (c /lC r 22.13; 2Cr6.16; 7.17-18).

A questão, porém, é complicada pelo fato de que em outras ocasiões, todos os três receberam sinais claros do favor de Deus. Salomão obedeceu ao chamado de Deus para construir o templo, Jeroboão era o rei escolhido de Deus ( IRs 11.29-39), e Roboão se arrependeu quando ouviu a palavra de Deus (2Cr 11.4; 12.6-7,12). Sem dúvida eles não eram uniformemente ruins. E o versículo 15 não implica que Deus agiu injustamente. Antes, ele reconhece que certo com­portamento é inaceitável no reino de Deus, mas que Deus continua tendo total controle. A sobrevivência do reino foi uma grande surpresa, e o versículo 15 testemunha a graça preservadora de Deus (cf. 1 Cr 17.13; 2Cr 21.7) como também o seu julgamento justo.

Deve-se também insistir no fato de que a divisão não era nem inevitável nem irreversível. Roboão teve uma oportunidade clara de reverter pelo menos os efeitos mais sérios da situação, talvez até de evitá-la completamente. O mesmo se aplica a Jeroboão (IR s 12.25-33) e no final da vida de Roboão quando presumivelmente ele era um pouco mais sábio (2Cr 12.6-12), e também na vida de Davi (lC r2 1 .1 3 ,17-18) eEzequias (2Cr 32.24-26). É importante reconhecer que Roboão teve uma escolha, um ponto de relevância especial para os primeiros leitores de Crônicas. Embora, em seus dias, a monarquia davídica não estava apenas dividida mas tinha desaparecido havia muito tempo, mesmo assim sua situação não devia ser considerada perdida. Eles também tinham a oportunidade de seguir a sabedoria de Deus (c f v. 6-7), de se arrepender (cf. 2Cr 7.14; 12.6), e procurar pelo próximo “momento de virada” de Deus (cf. v. 15).

O momento de virada final de Deus veio quando Jesus herdou o reino. Ele veio na “plenitude dos tempos” (cf. G1 4.4) para inaugurar a nova era dos “últimos dias” (At 2.17; Hb 1.2). Também naquela ocasião Deus cumpriu seus próprios planos através dos seres humanos que pensavam estar apenas reali­zando seus próprios objetivos. Nem os homens ímpios que pregaram Jesus na cruz nem Salomão, Roboão e Jeroboão em suas ambições egoístas sabiam que estavam participando de um ato decisivo de Deus (At 2.23). As operações da soberania divina por meio da tragédia humana, no entanto, são um tema co­mum nas Escrituras, desde os sofrimentos de José (Gn 50.20) à perseguição da Igreja (Rm 8.28, 35-39), encorajando cada leitor a encontrar esperança sob a superfície dos acontecimentos.

a. Os planos frustrados de coroação de Roboão (10.1-5). Este parágrafo prepara o cenário. Roboão recebe uma delegação tribal que pretende antes

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negociar as condições da sua realeza do que celebrar o fato dela (v. 3-4), como ele esperava (v. 1). Ele, portanto, sugere um adiamento de três dias (v. 5). O fato de ele ficar surpreso mostra o quanto ele estava distante dos reais sentimentos de todo Israel (v. 1, 3). Provavelmente, todas as doze tribos estão envolvidas, visto que para Crônicas as dez tribos do norte são da mesma maneira o povo da aliança (veja também v. 16-19).

Siquém (atual Nablus) era um centro tradicional onde as tribos tinham uma vez renovado sua aliança (Js 24.1 -27), embora Davi tivesse sido reconhecido como rei em Hebrom (ICr 11.1-3). Ela parece ter se tomado a primeira capital do norte (lR s 12.25). A cerimônia testemunha a vitalidade do ideal democrático de realeza em Israel, embora, em comparação com as coroações de Davi e Salomão (cf. 1 Rs 1.17,29-30,48), Deus se destaque por sua ausência.

A referência a Jeroboão levanta alguns problemas textuais. A razão prin­cipal é que o texto grego de IReis 12.24 tem um relato muito mais longo das atividades de Jeroboão, embora a omissão em Crônicas da usurpação da realeza por Jeroboão em IReis 12.20 seja um fator de complicação. Noentanto, esse fato é omitido porque Crônicas não está interessado na história separada do reino do norte. Muitas vezes é afirmado que IReis 12.20 refere-se ao retorno inicial de Jeroboão do Egito, e essa referência a ele em IReis 12.2-3a, 12 é uma inserção posterior baseada em Crônicas (veja e.g. Rudolph, Jones, de Vries). Se, no en­tanto, IReis 12.20 é visto como referência à coroação de Jeroboão antes que ao seu retomo inicial do Egito, então o problema fica muito menor. Nesse caso, Jeroboão era realmente o líder das tribos do norte nas negociações com Roboão (note-se mandaram chamá-lo, v. 3). Como um “homem de posição” (JB) que tinha tomado conta dos grupos de trabalho forçado de Israel para Salomão (lRs 11.26-28), e como destinatário de uma profecia em seu favor (lR s 11.29-39), ele estava bem colocado para esse papel.77

As acusações das tribos contra Salomão eram sérias. As frases dura ser­vidão (cf. Êx 5.9; 6.9) e jugo pesado (cf. Êx 6.6-7; Lv 26.13) acusam-no de oprimir Israel como o Faraó tinha feito (contraste Mt 11.29-30; G15.1). Em nenhum sen­tido, portanto, pode-se dizer que Crônicas exonera Salomão como inocente (con­tra Dillard), especialmente quando uma outra analogia entre Zedequias e o Faraó do êxodo é dada como uma das razões para o exílio (cf. 2Cr 36.13). As queixas específicas diziam respeito à tributação, ao trabalho forçado, e a uma política de centralização que reduziu a influência e autoridade das tribos. Não obstante, o povo ainda esperava fazer de Roboão rei - o versículo 4 diz literalmente “para que nós possamos servi-lo”.

77 “Ele retornou” (v. 2) é um a leitura superior a “ele viveu, habitou” ( lR s 12.2). Para maiores detalhes das questões textuais, veja e.g. Dillard, W illiamson.

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b. Conselho para Roboão (10.6-15). Roboão consulta-se primeiro com os anciãos (v. 6-8a) e em seguida com seus próprios conselheiros mais jovens (v. 8b-11) antes de apresentar à assembléia sua decisão (v. 12-15). Buscar e seguir sábios conselhos são vistos como exigências básicas de liderança. O mesmo ponto é ilustrado por Davi (lC r 13.1-4), Josafá (2Cr 20.21), e Ezequias (2Cr 30.2; 32.3), embora a insensatez de Roboão tenha sido igualada por Amazias (2Cr. 25.16-17). Dois exemplos contrastantes de conselho são buscados (v. 6, 8a; ambos começam com tomou conselho, ARA; “perguntou”, NVI), e termi­nam com a substituição do jugo pesado de Salomão (v. 4, 9-10-11, 14) pelos mais dolorosos escorpiões (v. 11, 14, NRSV, RSV). A repetição esclarece o tema central, e também aumenta o sentimento de opressão. O problema de Roboão não era somente sua juventude, como ilustrado por Salomão e outros (lC r 22.5; 29.1; Ec 4.13; Dn 1.17-20), ou a indisponibilidade de conselho. Foi antes ele ter rejeitado (v. 8) o bom conselho e favorecido o mau, não buscando a fonte da verdadeira sabedoria (cf. lC r 1.10; Pv 2.6; Tg 1.5).

Os anciãos (v. 6, 8, 13; “homens idosos”, ARA; “autoridades”, NVI) ocupa­vam cargos oficiais na corte de Salomão (“estavam diante”, v. 6, RSV). Eles prova­velmente não são líderes tribais, visto que não há nenhuma evidência de que a monarquia davídica tenha amalgamado essa estrutura tradicional na corte. Antes, eles e os jovens (v. 8, 10, 14; na realidade “rapazes”) eram os conselheiros reais mais velhos e mais jovens, muito provavelmente designados pelo próprio rei (c f a repetição de “estavam diante”, v. 8).78 Esses jovens talvez fossem membros da família real, possivelmente meio-irmãos de Roboão (cf. 2Cr 10.1-6; Dn 1.3-4).

Os anciãos aconselharam Roboão que fizesse mais que simplesmente “ser amável” (v. 7, NRSV, RSV, NVI, etc.) com o povo. O hebraico literalmente signifi­ca “bom”, que, junto com “boas palavras” (NRSV, RSV), provavelmente tem um significado mais formal. O primeiro freqüentemente significa “estar em aliança, concordar com”, e o último “fazer um acordo” (“resposta atenciosa”, GNB; “resposta favorável”, NVI; cf. ISm 20.23; Is 8.10). A mesma idéia também pode estar presente em IReis 12.7, que fala do rei e do povo como servos um do outro. Também é possível que a linguagem de Crônicas seja simplesmente mais suave que a de Reis. Porém, é possível que esses anciãos tivessem apoiado as duras políticas de Salomão, o que toma os seus conselhos tanto mais irônicos e os dos mais jovens ainda mais opressivos.

A ameaça dos jovens é registrada cuidadosamente e com muita repetição (v. 8b-11), como que para mostrar que se tratava de uma política pensada e não casual. Os três dias de adiamento (v. 5,12) e a frase nós respondamos (v. 9; GNB, REB, NEB erroneamente têm o singular) confirmam essa impressão. Uma metáfo­ra dupla fortalece a decisão de aumentar o fardo de Israel. Primeiramente, a

78 Cf. H. Reviv, The Elders in Ancient Israel (Jerusalém: Magnes Press, 1989), p. 100-101.

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“coisa pequena” de Roboão (uma palavra rara normalmente traduzida por dedo mínimo mas que talvez seja “uma referência ao orgão sexual masculino”, cf. KB 1022) é mais grossa que a cintura de Salomão, parafraseado por Tg. como “mi­nha fraqueza é mais forte que o poder de meu pai” (cf. ironicamente ICo 1.25). Em segundo lugar, os açoites de Roboão serão mais terríveis que qualquer usado por Salomão - o escorpião é conhecido desde Ephraem Syrus no quarto século d.C. como algo com a reputação de um “gato de nove rabos” (“correias”, NTLH; “chicotes pontiagudos” , N V I).79 “açoitou” (v. 11; “castigou”, NVI) é freqüentemente usado a respeito da disciplina aplicada a crianças, dando a impressão que Roboão tratou o povo como uma criança teimosa.

A resposta de Roboão é transmitida ao povo (v. 12-14), que na verdade desempenha um papel bastante secundário em todo o evento. E possível que o versículo 14 aumente a ameaça ainda mais; o hebraico tem “eu estou tomando seu jugo pesado, e o farei cada vez mais”, embora EVV leia Meu pai, como no versículo 11. Sobre o significado do versículo 15, veja acima. O conhecimento da palavra profética em 1 Reis 11.29-39 é presumido, embora Aías tenha sido men­cionado de passagem em 2Crônicas 9.29. Como é comum em Crônicas, os mo­mentos cruciais na história de Israel cumprem o que Deus falou por meio de seus profetas (e.g. lC r ll .2 ; 17.3-15; 2C r36.22-23).

c. Divisão entre Israel e Judá (10.16-19). O momento da divisão é resumi­do de um modo notavelmente insípido, E assim os israelitas foram para suas casas (v. 16, NVI, REB, NEB; “para suas tendas”, ARA, NRSV, RSV, JB; “se rebelaram” da GNB não tem base). Só um fragmento poético (v. 16b) dá alguma sugestão da visão do povo de que Roboão era insensível a seu sofrimento, e portanto era incapaz de governar.80

Uma série de pequenas mudanças destacam toda a extensão das divisões de Israel. Primeiramente, o aspirante a rei estava separado de toda a nação, que é chamada de “todo Israel” (v. 16c, NRSV, RSV, etc.). A segunda ocorrência dessa frase no versículo 16 é adaptada de 1 Reis 12.16 (“Israel”) para corresponder aos versículos 1,3, 16a. Em segundo lugar, a unidade do povo é preservada pelo uso da frase os israelitas (ou os filhos de Israel) para descrever tanto os habi­tantes do reino sul, Judá (v. 17; cf. também 11.3), quanto do reino do norte (v. 18; “povo de Israel”, NRSV, RSV; “todo Israel” em lRs 12.18). Em terceiro lugar, a divisão real é entre o Israel e a casa de Davi (v. 16, 19; note-se a repetição de [casa de] Davi). Em quarto lugar, a antiga unidade de Israel é destruída. O tradi­

79 Cf. Gray, p. 306.811 Embora “viu” esteja faltando no TM, ele é corretamente suprido pelas versões moder­

nas a partir de lR s 12.16. A referência a “todo Israel”, repetida várias vezes com variações nos v. 16-19, demarca isso como o início de um parágrafo, tornando muito improvável que a frase continue a partir do v. 15 (veja W illiamson, Dillard).

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cional cham ado às tribos do norte (v. 16; cf. 2Sm 20.1) é contrastado deliberadamente com o apoio que no passado todo Israel tinha dado a Davi (cf. o paralelo entre Davi e o filho deJessé aqui e em lC r 12.18). Em quinto lugar, o acréscimo de “cada (homem)” diante de “para suas tendas” (v. 16, NRSV, RSV, cf. JB) convida todo indivíduo do norte a separar-se da dinastia de Davi. Um pensa­mento semelhante ocorre na frase, “parte com Davi” (v. 16, NRSV, JB), insi­nuando que os nortistas na verdade se deserdaram da família de Davi.

18. Roboão faz um esforço patético para restabelecer a unidade, ilustran­do perfeitamente a pobreza de sua política. Sabendo que a tolerância do povo tinha sido exaurida por sua experiência do sistema de trabalho forçado, parece inconcebível que o envio de “Hadorão” (também conhecido como Adorão, IRs 12.18; cf. JB; Adonirão, IRs 4.6; 5. 14; c f NVI, NTLH), um dos sucessores de Jeroboão, pudesse terminar em qualquer coisa salvo o desastre. No fim, o pró­prio Roboão fugiu, escapando por pouco, em contraste irônico com a fuga de Jeroboão de Salomão (v. 2).

19. A rebelião de Israel provavelmente é um termo neutro que descreve a separação, mas talvez seja uma antecipação da posterior idolatria e rebelião de Jeroboão contra Javé (IR s 12.25-33). Até ao dia de hoje, que na realidade está baseado no significado em Reis, é um dos poucos exemplos que também se aplica ao tempo de Crônicas (também lC r 5.26, em contraste com e.g lC r 17.5;2Cr8.8;21.10).

ii. A força de Roboão (11.1-23)“assim, fortaleceram o reino de Judá” (11.17).l í A - 4 - c f IReis 12.21-24O relato do reinado de Roboão sobre o reino do sul, Judá, foi alterado

consideravelmente a partir de Reis. O relato de Crônicas é muito mais longo (2Cr 11— 12 contra IRs 12.1-4; 14.21-31), e tem uma ênfase diferente. Em contraste com a apresentação de Roboão como um homem que “fez o mal aos olhos do S e n h o r ” ( I R s 14.22), sua obediência e arrependimento são elementos proemi­nentes em Crônicas. Isso parece uma contradição, derivando talvez do maior interesse de Crônicas pela teologia do que pela história (assim Coggins), mas isso seria deturpar a abordagem distintiva do cronista.

A extensão extra do relato testemunha a maior importância de Roboão em Crônicas. Isso vem de dois fatores. O primeiro diz respeito à relação de Roboão com o reino do norte, que, como já foi notado de passagem, é praticamente excluído de Crônicas (veja comentário sobre 2Cr 10.1-5). Ao passo que, em Reis, o reinado de Roboão não é mais que um suplemento ao de Jeroboão e é só mais um de uma coleção de reis cujos reinados são brevemente resumidos (IRs 14.21— 16.4; cf. Nelson, Jones), aqui Roboão é considerado por si só. O segundo fator é que, como o primeiro rei de Judá, Roboão é um exemplo dos procedimentos de Deus para com a dinastia inteira de Davi. Vários temas típicos em Crônicas

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ocorrem nos capítulos 11— 12, a maioria sem paralelo em Reis, inclusive a obediência para com a palavra profética (11.1-4), fortalecimento do reino atra­vés da obra de construção (11.5-12), as atividades dos sacerdotes, dos levitas e dos que buscam a Deus (11.13-17), uma família em expansão (11.18-21), e arrependimento humilde (12.5-12).

A razão para essas mudanças parece ser demonstrar que existe um modo de voltar para Deus até mesmo para o ímpio. Enquanto o cronista confirma o julgamento de Reis sobre Roboão (2Cr 12.1-2, 14), seu propósito primário é ilustrar como os princípios de perdão e restauração descritos em 2Crônicas 7.13- 14 funcionam na prática. Deus responde diretamente ao arrependimento de Roboão (12.12), sem minimizar as suas fraquezas. O arrependimento de Roboão, por exemplo, parece ter sido mais temporário que permanente, visto que ele é resumido como alguém q u e f e z o m a l (12.14; c f. 1 Rs 14.22). E ainda, a maior parte do “bem” que ele fez (c f . 2Cr 12.12) foi devido mais ao povo do que ao seu rei. E foram e l e s que o b e d e c e r a m a s p a l a v r a s d o S e n h o r (11.4) e que “resolveram buscar o S e n h o r ” (11.16), enquanto Roboão fez exatamente o oposto ( c f 10.15- 16, onde a t e n d e r , NVI, ou “ouvir atentamente”, RSV, é o mesmo termo heb. para o b e d e c e n d o , 11.4 e 12.14).

Os capítulos 11— 12, portanto, afirmam claramente a realidade e a eficácia do evangelho segundo Crônicas. Se Deus pode mostrar favor a um homem como Roboão, que deu o exemplo da atitude que por fim resultou no colapso de Judá, sempre há esperança para aqueles que se humilham diante de Deus. De fato, o interesse no povo seguramente era um encorajamento direto aos contemporâneos do cronista a buscarem a Deus por si mesmos. O Novo Testamento, naturalmente, estende o mesmo convite, pois o arrependimento é tanto o caminho para Deus (c f .

Mc 1.4,15; At 11.18) quanto parte do modo de vida do povo de Deus (2Co7.9-10; Ap 2.5,16; 3.3,19). O princípio de que Deus “não nos trata como nossos pecados merecem” (SI 103.10; c f. Ed 9.13) não é de modo algum exclusivo de Crônicas.

A luz dessas observações, parece impossível ver nesta seção uma doutri­na da retribuição imediata ( e .g . Dillard) ou retribuição divina baseada no princí­pio de “medida por medida”.81 Embora em Crônicas regularmente a benção siga a obediência e o castigo divino suceda a rebelião, em todo caso Deus é mais generoso do que deveria se esperar. As bênçãos da obra de fortificação de Roboão (v. 5-12) e da prosperidade de sua família (v. 18-23) devem ter transbor­dado além dos primeiros três anos de seu reinado ( c f . v. 17), e ele nunca sentiu a força total da ira de Deus por seus maus caminhos (10.13-14; 12.14). Deus o preservou dos resultados de sua insensatez no começo de seu reinado (11.2-4), e assegurou que a dinastia continuasse após sua morte (13.5).

A maior parte deste capítulo não tem nenhum outro paralelo bíblico. So­mente os versículos 1-4 seguem IReis, enquanto o restante parece depender de

81 Japhet, Ideology, p 157, 170, seguindo Loewenstam m .

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fontes oficiais de informação (v. 5-12, 18-23), provavelmente incluindo relatos sacerdotais assim como proféticos (v. 13-17; 12.15). Seja lá o que fossem essas fontes desconhecidas, os versículos 5-23 contêm várias referências breves ao relato de Jeroboão I em IReis, especialmente relativas à sua designação de sacerdotes (v. 15; cf. IRs 12.31; 13.33). A inclusão desse material não deveria ser considerada surpreendente, visto que os efeitos de se estabelecer novos santu­ários nacionais no norte naturalmente teriam repercussão em todo Judá, especi­almente por Betei ficar a apenas dezenove quilômetros de Jerusalém.

Em acréscimo ao tema da graça redentora de Deus, o capítulo 11 focaliza as bênçãos específicas de Deus para Roboão. O termo característico é “força” (cf. v. 11-12, 17) que é ilustrado pela atividade de construção (v. 5-12), uma família extensa (v. 18-21), e sábia administração (v. 22-23). A disposição interna daque­les que se deram primeiro ao Senhor também fortaleceu o reino de Roboão (v. 13- 17). Vários reis exibiram força semelhante no começo dos seus reinados, mas, como no caso de Roboão, um bom começo nem sempre tinha continuidade (cf 2Cr 1.1; 17.1; 21.4; 25.3,11;26.8-16).

a. Paz entre Israel e Judá (11.1-4). Esse parágrafo exemplifica Provér­bios 16.9: “Em seu coração um homem planeja o seu curso, mas o S e n h o r

determina os seus passos” . A resposta de Roboão ao cisma do norte mostra mais opressão (v. 1), mas dessa vez o profeta Semaías (cf. 2Cr 12.5, 7, 15) garante que ele não faça do seu jeito (v. 2-4). Quando Roboão tentou recupe­rar (v. 1; “ter de volta”, JB) o reino para si, Deus teve que lembrá-lo de quem era de fato o reino (eu é que f iz isto, v. 4; cf. 10.15). O plano de Davi de construir um templo e a esperança dos discípulos para Israel são outros exemplos onde uma visão estreita do reino de Deus teve que ser corrigida (1 Cr 17.1-15; Atos1.6-8). A vontade de Deus era a paz, mesmo em um reino dividido, ao passo que a inclinação da natureza humana era “lutar” (NRSV, RSV, REB, NEB) para pre­servar a antiga ordem. Esse é, de fato, o único exemplo onde Roboão responde positivamente a Deus. Em outros momentos ele ou age sob coerção (12.5-6) ou depende da espiritualidade do povo (cf. eles obedeceram... retrocederam; também v. 16).

“O foco está na palavra e seu efeito” (Nelson; cf. v. 2-4). O clímax é no versículo 4, onde é possível notar a relação estreita entre os três imperativos, literalmente, “Não subam, não lutem, voltem para casa”, e os verbos seguintes, “eles obedeceram... e voltaram”. O mesmo verbo hebraico traduzido por “volta­ram” (“retomaram”, RSV; “não foram”, NTLH) ocorre em voltem para casa (NVI, GNB; “retomem”, RSV) e também em “reconquistar” (v. 1, JB; “restabelecer”, NRSV, RSV, GNB; “restaurar”, REB, NEB), ilustrando como Judá aceitou a von­tade de Deus e não a de Roboão.

Uma característica dominante desse parágrafo é o modo pelo qual o verda­deiro Israel continua tanto no sul quanto no norte (cf. 10.17-18). “reuniu” (v. 1,

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NRSV, RSV; “convocou”, NVI) tem um significa mais elevado em comparação com IReis 12.21. Ele é um verbo especial em Crônicas usado quando o povo unido de Deus foi congregado (cf. ICr 13.5; 15.3; 28.1; 2Cr 5.2-3; 20.26). “Todo Israel” que foi acrescentado ao versículo 3 (NRSV, RSV; todos os israelitas, outras EVV; cf. lRs 12.23), está associado tanto ao sul quanto ao norte (cf.10.16). Irmãos (v. 4) tem a mesma conotação, e deve ser comparado com 2Crôni- cas 28.8-15, onde se pode sentir que a ira de Deus cai sobre aqueles que não discernem o verdadeiro Israel (cf. também 2Sm 2.24-28). Finalmente, cada um de vós (v. 4; cf. RSV, BJ) enfatiza a resposta pessoal de indivíduos do sul à vontade de Deus (a mesma expressão é aplicada ao norte em 10.16). Cento e oitenta mil (v. 1) poderia se referir a dezoito unidades militares (cf. Myers e comentários sobre ICr 23.3), embora entendido literalmente ou não, ainda é menor que outros exércitos de Judá em 2Crônicas (cf. 13.3; 14.7; 17.14-19).

b. Judá é fortificada (11.5-12). Essa lista da construção de Roboão é comparável com uma declaração análoga sobre Roboão em IReis 12.25. Em Crônicas, tais passagens são um sinal da bênção e apoio divinos (cf. e.g. ICr11.8-9; 2Cr 8.1-6; 14.7; 26.9-10), em bora aqui provavelm ente revele entrincheiramento defensivo em lugar de força positiva (cf. v. 11,12). Essas quin­ze cidades fortificadas (v. 6.-10) não defendem a fronteira norte com Israel, mas os acessos sul, leste e oeste. Elas estão, portanto, associadas com a invasão de Sisaque do Egito (12.2-11), e algumas pelo menos devem ter sido construídas em antecipação daquele evento (cf. 12.4). O fato de que Sisaque conquistou essas cidades e que elas incluíam apenas as colinas e as planícies de Judá conhecidas como Sefelá, uma área muito menor que o império davídico-salomônico, é uma das várias indicações nesse capítulo de que até as bênçãos de Roboão tiveram problemas sérios. Seu reino restrito é chamado Judá e Benjamim (v. 10,12; cf. v.1, 3, 23), refletindo a terminologia pós-exílica com suas antigas associações tribais em lugar do nome político pré-exílico (cf. ICr 9.3-9; 2Cr 15.2-9; 34.9).

O único lugar sobre o qual existe alguma dúvida é Gate (v. 8) que é mais provável ser Moresete-Gate em Judá do que a famosa cidade filistéia.*2

c. A verdadeira adoração é mantida (11.13-17). A reforma religiosa de Jeroboão, na verdade baseada na ideologia cananita com uma camada super­ficial de tradições javistas, teve sérias conseqüências tanto no sul como no norte. A declaração relativa aos sacerdotes e levitas (v. 13-15) vai além da

82 Para mais detalhes sobre esses locais, e a forma e data da lista, veja e.g. Williamson, Dillard e o debate entre N. Naaman (“Hezekiah’s fortified cities and the Imlk stamps”, BASOR, 261, 1986, p. 5-21; “The date of 2Chronicles 11:5-10 - a reply to Y. Garfinkel”, BASOR 271,1988, p. 74-77) and Y. Garfinkel (“2Chr 11:5-10 Fortified cities and the Imlk stamps - reply to Nadab Naam an”, BASOR 271, 1988, p. 69-73). Para um mapa, veja J. M. Miller e J. H. Hayes, A History o f Ancient Israel and Judah (Londres: SCM Press, 1986), p. 239.

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referência mais antiga (IRs 12.31; 13.33) ao mencionar a rejeição e migração dos levitas (v. 14), e os ídolos em forma de bodes (v. 15) ou “sátiros” (RSV, REB nr., NEB nr.; “demônios”; REB, NEB, NTLH). Um comentário importante tam­bém é acrescentado acerca do povo de toda tribo de Israel (v. 16) que veio a Jerusalém para oferecer culto sacrificial.

Essa seção é significativa por várias razões. Ela acrescenta uma nota his­tórica importante ao que se sabe a partir de Reis com relação ao reinado de Jeroboão. Embora alguns levitas fossem para o sul fazendo um grande sacrifício pessoal (sobre a propriedade do levitas, c f lC r 6.54-80; 13.2; 2Cr 31.19), outros simplesmente apoiaram Roboão (v. 13, NVI) ou viajaram para adorar em Jerusa­lém (v. 16). Em segundo lugar, ele realça a liderança provida pelos sacerdotes e especialmente pelos levitas (note-se que os leigos seguiram os levitas a Jerusa­lém, v. 16). Isso provavelmente pretendia encorajar os levitas muito mais insegu­ros da época do cronista a assumir liderança espiritual. Em terceiro lugar, ela salienta novamente a unidade do povo, com a representação de cada tribo. O cronista nunca perdeu de vista o ideal da unidade israelita, desde o tempo quando Davi foi feito rei (c f lC r 12.23-40), até outras ocasiões quando os nortis­tas se juntaram aos seus vizinhos do sul para adorar no templo de Jerusalém (cf. 2Cr 15.9; 30.11). Em quarto lugar, a frase colocaram seus corações para buscar o S e n h o r (v . 16) sublinha o aspecto interno da religião bíblica. “O reino verda­deiro é uma comunidade reunida” (Ackroyd) daqueles cujo modo de vida é buscar a Deus, isso é, eles buscam continuamente a vontade de Deus para suas vidas (cf. e.g. lC r 13.3; 28.9; 2Cr7.14; 15.4,15). Tal atitude deriva de um coração voltado para com Deus. Essa é uma expressão distintiva em Crônicas, com exem­plos não só positivos (lC r 29.18; 2Cr 19.3; 30.19) mas também negativos (2Cr20.33). Ironicamente, Roboão deve ser contado na última categoria (2Cr 12.14). Uma atitude correta no culto, no entanto, não é suficiente, ela deve ser expressa por sacrifício físico e em um lugar específico. Embora o culto do Novo Testamen­to remova todas as restrições geográficas (cf. Jo 4.19-24) e a natureza das ofertas sacrificiais seja alterada (cf. F14.18; Hb 13.15-16), o culto cristão aceitável ainda inclui uma dimensão física e uma espiritual (c f Rm 12.1).

O problema, no entanto, era que esse lampejo de coisas boas (cf. 2Cr 12.12) foi sustentado por apenas três anos (v. 17). O padrão fixado pelo reino unido de Davi e Salomão (c f 2Cr 7.10; 33.7) foi logo abandonado (12.1-2). “Andar no caminho de” (NRSV, RSV; “seguir o exemplo de”, REB, NEB, JB) parece signifi­car atender às exigências da lei de Deus (cf. 12.1) e adorar a Deus no seu templo. Isso implica manter uma atitude amorosa para com Deus (cf. Dt 10.12; 11.22; 19.9;30.16) antes que viver uma vida perfeita, e se aplica principalmente ao povo.83

83 Embora a LXX tenha “ele andou”, o plural do TM deve ser preferido, em vista dos dois verbos precedentes e do conteúdo dos v. 13-16.

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d. A fam ília real cresce (11.18-23). O crescimento da família de Roboão é o símbolo final de benção (cf. 1 Cr 26.5; cf. 25.5) e de força (2Cr 13.21). Novamen­te, porém, há sinais de que essa não era uma bênção pura. Enquanto as esposas do pai de Roboão tinham-no desviado (lR s 11.3), sua própria preferência por uma nova esposa, Maaca (v. 20-21; note “Depois dela”, v. 20, NRSV, RSV, JB; Em seguida, NIV), e a promoção de seu filho Abias como o seu sucessor (v. 22), infringiu diretamente a lei deuteronômica (Dt 21.15-17).

Ambas as esposas nomeadas (v. 18,20) demonstram a extensão do declínio de Roboão em relação a Davi, assumindo que Absalão (v. 20-21) era o filho de Davi. Absalão teve só uma filha, Tamar (2Sm 14.27), assim normalmente enten­de-se que Maaca fosse neta de Absalão através de Tamar. No entanto, como os nomes dessa família aparentemente têm grafias diferentes (e.g. Abishalão, lRs 15.2,10; Micaías, 2Cr 13.2, NVI nr) e Maaca era um nome popular na família (2Sm 3.3), não é sensato ser dogmático sobre identidades exatas.84

O parágrafo conclui com uma nota sobre Abias (v. 22). O fato de que ele é chamado príncipe chefe (“cabeça da família”, JB) sugere uma co-regência no padrão de Davi e Salomão (1 Cr 23.1).85 Também mostra que as regras normais de primogenitura foram desconsideradas (cf. v. 20-21). A possível oposição de outros filhos do rei foi parcialmente resolvida pela dispersão destes por todo o país (v. 23), embora a política só se tornasse efetiva através de favores especiais de ricas provisões e muitas esposas. A tradução do versículo 23 é difícil, mas ele agiu sabiamente é preferível a “ele construiu” (JB), e ele tomou muitas esposas (NIV, c f, NRSV, RSV, REB, NEB) é superior a “ele consultou os muitos deuses das suas esposas” (JB; embora “tomou” seja uma emenda para “buscou”).

iii. O arrependimento de Roboão (12.1-12)“Tendo-se ele humilhado, apartou-se dele a ira do Senhor para que não o

destruisse de todo; porque em Judá ainda havia boas coisas” . (12.12).12.2-c f. IReis 14.2512.9-11 -c f. IReis 14.25-28Esse terceiro e último estágio do reinado de Roboão (cf. caps. 10— 11)

representa uma expansão considerável de IReis 14.21 -31. O relato de Crônicas é mais nuançado do que a avaliação de Reis acerca da liderança de Roboão, “Judá fez o mal aos olhos do S e n h o r ” (lR s 14.22). Mesmo apoiando a conclu­são básica de Reis, Crônicas mostra como um ato nacional de arrependimento desviou a ira de Deus (v. 5-12).

84 “A biail” (v. 18) deve sem dúvida ser considerada mãe de Maalate (com as vss) e não outra das esposas de Reoboâo (assim aparentem ente o TM).

85 NRSV, RSV provavelm ente estão corretas ao seguirem a LXX, Vulg., ao acrescentar “ele pretendeu” (“intentar” , REB, NEB), como é exigido pela sintaxe do TM.

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Freqüentemente se diz que Crônicas é mais favorável a Roboão que Reis ao mencionar coisas b o a s (c f. v. 12) que não estão no relato mais antigo. No entanto, a conclusão oposta pode ser mais precisa, visto que Roboão permanece condena­do apesar de seu arrependimento (v. 14). Os julgamentos mais sérios da Bíblia são dirigidos contra aqueles que continuam pecando depois de receber a graça de Deus, e então chega um momento quando não há mais oportunidade para arrepen­dimento ou para qualquer sacrifício expiatório (c f. Hb 6.4-8; 10.26-29; 12.16-17). De acordo com o Novo Testamento, é como crucificar novamente o Filho de Deus (Hb6.6), e embora o Antigo Testamento expresse a questão diferentemente (Jr 7.16;11.11; Ez 8.18), ele não é menos enfático. O povo de Deus foi para o exílio porque endureceu seu coração repetidamente contra o seu templo e a sua palavra (2Cr 36.13-16), e foi nesse curso que Roboão embarcou.

O ponto principal, no entanto, é ilustrar a efetividade do arrependimento de Roboão, particularmente nos versículos que são a contribuição do próprio cronista (v. 5-8, 12). Algo do vocabulário mais típico de Crônicas pode ser en­contrado aqui, especialmente o contraste entre d e i x a r (v. 1,5) e s e h u m i l h a r

(v. 6-7,12). Esses e outros termos favoritos como a l e i d o S e n h o r ( v . 1), infideli­dade (v. 2), a i r a de Deus (v. 7,12), dispor s e u c o r a ç ã o e b u s c a r o S e n h o r ( v . 14), tudo confirma que Roboão deve ser interpretado como um paradigma que apre­senta ao leitor uma escolha. Pode-se seguir o próprio caminho, reconhecendo que tais atitudes dividiram um reino (cap. 10) e levaram ao exílio (cap. 36). Por outro lado, o caminho da humildade e arrependimento sempre está disponível, tendo o templo (c f . v. 14) e a palavra dos profetas (v. 5, 7-8) como lembretes constantes da oferta de Deus de restauração. A característica fundamental, então, é a graça de Deus e não o arrependimento de Judá. Seu desejo é mais para que o povo fixe sua mente nele ( c f . 11.16; 12.4) do que se sujeitar a governantes humanos (v. 8).

a. Sisaque, do Egito, ataca (12.1-4). Reis geralmente começam seus rei­nados em Crônicas fortalecendo sua posição, mas a linguagem aqui, f o i e s t a b e ­

l e c i d o e t i n h a s e t o r n a d o f o r t e , é duplamente enfática (v. 1). O primeiro verbo regularmente se refere em Crônicas ao estabelecimento do reino de Israel por Deus, e a ausência de Deus só aqui provavelmente é deliberada (c f . lC r 14.2; 17.11; 28.7; 2Cr 17.5).86 O segundo é mais neutro, e é de significado positivo (e.g 2Cr 1.1; 17.1; 27.6) ou negativo ( e .g . 2Cr21.4; 25.3) de acordo com o contexto. Aqui é possível distinguir entre o fato da força de Roboão, entendida como um bom sinal (c f . 11.11 -12,17), e o efeito dela, que levou a um desvio dos caminhos de Deus. Roboão deixou de atender a Deuteronômio 8.10-18, permitindo que seu sucesso (cap. 11) se degenerasse em orgulho e autoconfiança.

86 “Foi estabelecido” (NIV, NRSV, RSV, cf. REB) representa uma leve, m as aceitável variação do TM, com Roboão com o o agente provável.

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O fracasso de Roboão é descrito por duas das frases típicas de Crônicas: ele a b a n d o n o u a l e i d o S e n h o r (v . 1) e f o i i n f i e l a o S e n h o r (v . 2). O versículo 1 provavelmente resume lRs 14.22-24, em especial por ser a única seção do relato de Reis acerca de Roboão não diretamente mencionada em Crônicas. O paralelo entre abandonar a lei e m e a b a n d o n o u (v. 5) enfatiza o elo pessoal de Deus com a lei ( c f . 6.16, onde seguir a lei é caminhar diante de Deus; sobre a forma escrita da lei, c f. 2Cr 17.9; 25.4; 34.14-15).87 Abandonar ou deixar Deus, que é o oposto de buscá-lo ( c f . v. 14; ICr 28.9; 2Cr 15.2), significava rejeitar o templo e cultuar outros deuses ( e .g . 2Cr 7.19, 22; 2Cr 24.18; 34.25). Os perigos de abandonar as leis de Deus eram em potencial extremamente sérios, e os versículos 2-4 ilustram a efetividade dos princípios de 2Crônicas 7.19-22, embora o julgamento do exílio seja detido por causa da misericórdia de Deus.

Ser i n f i e l (heb. m ã ‘a l ) a Deus é um dos termos principais de Crônicas (ele nunca ocorre em Samuel ou Reis), e sua ocorrência regular mostra a constante alienação de Israel em relação a Deus. Ele aparece nos momentos decisivos de sua obra, como no começo e no fim das genealogias (lC r2 .5 ;9 .1 ),o começo e o fim da monarquia (ICr 10.13; 2Cr 36.14), como também sendo uma característica típica da Monarquia Dividida ( e .g . 2Cr 26.16, 18; 28.19, 22; 29.6, 19). Envolve negar a Deus a adoração devida a ele, normalmente em uma escala nacional, e é a razão primária dada em Crônicas para o exílio.

A infidelidade de Roboão tem duas analogias interessantes em outras passagens de Crônicas. Primeiramente, a combinação de sua infidelidade (v. 2) com um fracasso em obedecer a palavra de Deus (v. 1) ou buscar a vontade de Deus(v. 14), efetivamente faz dele um segundo Saul (c f. ICr 10.13-14). Em segun­do lugar, o seu orgulho por sua própria força é um prenúncio a queda de Uzias (2Cr 26.16). Os dois paralelos fortalecem a natureza típica dos pecados de Roboão.

A campanha do Faraó Sisaque, ou Sheshonq I (c. 945-924 a.C.), o primeiro rei da vigésima segunda dinastia [líbia] (v. 2-4) parece ter visado principalmente o velho aliado de Sheshonq, Jeroboão ( c f . lRs 11.40), e os relatos bíblicos são apoiados por um relevo triunfal no templo de Amun em Kamak e um pequeno fragmento de esteia de Megido.88 A impressão de uma demonstração isolada de força na qual Jerusalém não foi capturada também é refletida em fontes de extrabíblicas. Os l í b i o s e s u q u i t a s eram do lado ocidental de Egito, enquanto os c u x i t a s (REB, NEB; “etíopes”, NVI, NRSV, RSV, JB; “sudaneses”, GNB) eram do sul. Quantas das c i d a d e s f o r t i f i c a d a s foram capturadas em 11.5-10 é desconhe­cido (v. 4), emboraAijalom estej a listada em 11.10 e em Kamak.

Crônicas toma explícito o que está implícito em Reis, que a invasão de Sisaque era uma punição divina ( p o r q u e e l e s t i n h a m s i d o in f i é i s , v. 2, foi acres­

87 Cf. T. Willi, “Thora in den biblischen Chronikbüchern”, Judaica 36, 1980, p. 102-105.88 Cf. K. A. Kitchen, “W here did Solom on’s gold go?” Biblical Archaeology Review 15/

3, 1989, p. 32-33.

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centado a IRs 14.25). Isso é típico do elo freqüente em Crônicas entre o pecado de Israel e o desastre nacional (e.g. 2Cr 6.24-39; 21.10; 24.24), como também entre a obediência e a benção (e.g. lC r 11.7-9; 2Cr 12.6-8), embora não se deva supor que Crônicas veja o sofrimento como resultado automático do pecado. Alguns ataques, por exemplo, claramente não foram provocados (e.g. 2Cr 14.9-15; 16.1 - 7; 20.1-30), enquanto as bênçãos nunca poderiam ser merecidas, pois ninguém estava sem pecado (2Cr 6.36). O objetivo do cronista é mostrar que o pecado, ou infidelidade e abandono de Deus como ele o chama, sempre leva ao desgosto de Deus, mas que Deus sempre mistura clemência com juízo. Em contraste com o restante do Antigo Testamento, a força da conexão é enfatizada talvez mais nitidamente em Crônicas. O Novo Testamento mantém o elo, mas tem uma ênfa­se maior na vida após a morte que na presente, e mais na questão individual e eclesiástica do que na nacional. Assim, enquanto a imediatismo do castigo de Roboão é comparada à de Herodes Agripa I (At 12.21-23), Ananias e Safira (At 5.1 -11), ou à doença e morte entre os membros da igreja em Corinto (1 Co 11.29- 32), o ensino de Jesus concentrou-se no juízo futuro (e.g. Mt 13.40-42; Lc 16.19- 31). Da mesma forma, enquanto os cristãos às vezes podem receber benefícios materiais (e.g. Mt 6.33b; F14.18), Jesus encorajou seus seguidores a esperarem bênçãos espirituais tanto agora quanto no futuro (Mt 19.28-30; Ef 1.3-10).

b. O humilde arrependimento de Judá (12.5-12). Nesta crise, o profeta Semaías (cf. 11.2) traz mensagens de julgamento (v. 5) e de misericórdia (v. 7-8). Cada uma recebe uma resposta, e, como em 11.1-4, a relação entre profecia e cumprimento é crítica. Embora a resposta para a segunda profecia seja previsí­vel, este não é o caso da primeira. O princípio (v. 5) de que Deus abandona aqueles que o abandonam parece claro e bastante simples. Ele também é um princípio básico da teologia de Crônicas, sendo repetido quase verbatim em lCrônicas 28.9,20; 2Crônicas 15.2; 24.20, e se expandiu em 2Crônicas 7.19-22 (cf. “desviar, abandonar” nos v. 19, 22). Mas como em outras partes do Antigo Testamento (cf. Jn 3.4-10; 2Rs 20.1-6; 2Cr 24.20), um pronunciamento incondici­onal de castigo pode ser entendido como uma outra oportunidade para se arre­pender, como os líderes de Israel (= Judá, cf. v. 1) se humilharam (v. 6). Antes que se resignar aos juízos de 7.19-22, eles se agarram à oferta de perdão em 7.13-14. Humilhar-se em arrependimento é o modo reconhecido de Crônicas de se voltar para Deus, como é especialmente afirmado em 2Crônicas 30— 36 (cf. 30.11; 32.26; 33.12; 34.27). Esse também é o termo fundamental nesta seção (v. 6-7,12), porque ele transforma o desastre em libertação. Seguindo o exemplo de Davi (lC r 21.13), parece ser preferível confiar na “justiça” de Deus (v. 6, RSV; justo, NIV, etc.) do que se submeter ao exército do Faraó (o fim do v. 5 diz lit. “pela ação de, por Sisaque, c f v. 7).

Como resultado do arrependimento de Judá, Deus promete “uma peque­na” (“alguma”, REB, NRSV, RSV) libertação (v. 7, NIV, etc.; “alívio”, REB), ou

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talvez, “em breve” (B J, cf. NVI). A linguagem parece ser influenciada por Esdras9.8-9 (c f a referência aos “servos/serviços”, v. 8). Essa analogia poderia ter dado real encorajamento aos contemporâneos do cronista, como deveria também a promessa de Deus remover sua “ira” (GNB; ira/fúria, NRSV, RSV, NIV, etc.), que parecia pairar sobre o Israel pós-exílico (cf. 2Cr 34.25; 36.16; Ed 9.14; 10.14). A libertação parcial era de forma que Israel pudesse aprender mais uma vez o que significava servir a Deus (v. 8). Isso envolvia não só guardar a sua lei (cf. v. 1), mas também era a melhor esperança de liberdade da tirania dos reis terrenos (cf. “cujo ofício é a liberdade perfeita”).89

O começo do versículo 9 repete o versículo 2 parcialmente, para mostrar que IReis 14.25 está sendo retomado. Sisaque é subornado com um simples pagamento de tributo (v. 10), que significou substituir os escudo de ouro (cf 2Cr9.16) por escudos de bronze e instalar um sistema novo de segurança (v. 11). Além dos guardas, os escudos foram mantidas em uma câmara especial - a palavra hebraica só ocorre uma vez mas tem o sentido de “sala interna”.90

O versículo 12 é mais bem entendido como um resumo de todo o reinado de Roboão, com a primeira frase referindo-se ao versículos 5-11, e as (lit.) “ coisas boas” remontando ao capítulo 11. A segunda frase é difícil de traduzir e interpretar. Algo de bom da NVI é uma tentativa tão boa quanto qualquer outra, e embora a frase se refira em 2Crônicas 19.3 à reforma e renovação do culto, o contexto aqui sugere um significado mais amplo (para um comentário semelhan­te no NT, cf. Ap 3.4).

iv. Fórm ulas de conclusão (12.13-16)12.13b-14-c/IR eis 14.21-2212.15-16-c f. IReis 14.29-31Este parágrafo combina as fórmulas de abertura e de conclusão em IReis

14.21-22,29-31. As datas do seu reinado de dezessete anos variam entre 937-921 (Hughes), 931/30-913 (Thiele) e 922-915 a.C. (Albright), dependendo de opções textuais. Estabelecendo-se firmemente (v. 13; lit. “se fez forte”) combina os primeiros dois verbos no versículo 1, e provavelmente se refere à duração total de seu reinado. Essa tese está baseado no “porque” do TM, que ocorre antes das declarações sobre sua idade e extensão do reinado, embora seja omitido nas versões modernas. Isso é preferível a “aumentou seu poder” (REB, NEB, GNB), que o relaciona com o resultado da invasão de Sisaque.

13-14. A declaração de que Deus havia escolhido Jerusalém (cf. IRs 14.21), e a menção do Nome de Deus estão relacionadas com o templo (cf. 2Cr 6.5-6,34,

89 Sobre “reis” (v. 8; cf. REB, NEB) e não “reinos” (João Batista, NRSV, RSV), cf. 9.19 e W. G. E. Watson, “Archaie elements in the language of Chronicles”, Bib. 53, 1972, p. 204.

,0 Cf. Akk. ta ’um (AH w b , p. 1340).

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38; 7.12,16; 33.7). Elas também podem prover um pano de fundo à humildade de Roboão, pois o templo existia para encorajar o arrependimento humilde (c f . 2Cr7.14). Em contraste, o comentário final sobre Roboão realça a avaliação negativa de Reis. Onde IReis 14.22 tem “Judá fez o mal”, Crônicas o faz pessoalmente responsável, e acrescenta, “ele não dispôs o seu coração para buscar o S e n h o r ”

(NRSV, RSV). “Buscar a Deus” em Crônicas descreve uma atitude global, e contrasta Roboão com Asa (2Cr 14.4, 7, etc.), Jeosafá (2Cr 20.3-4), Uzias (2Cr26.4-5), Ezequias (2Cr 30.19; 31.21) e Josias (2Cr 34.3), embora Amazias seja um incrédulo da mesma categoria (2Cr 25.15,20).

15-16. A fórmula de conclusão segue IReis mais de perto, embora com algumas variações pequenas. Ela enfatiza o caráter profético das fontes do cro­nista (ao invés dos “registros históricos dos reis de Judá”, lRs 14.29) que o cronista pode ter utilizado diretamente, pelo menos para informação sobre S e m a í a s (2Cr 11.2-4; 12.5, 7-8; sobre I d o , c f . 2Cr 9.29). Outra adição, embora omitida em muitas versões modernas, é uma referência a um certo tipo de regis­tro genealógico (c f. NVI). Enquanto isso possa ter algo a ver com os levitas ( c f .

JB, Ackroyd), parece mais provável se referir ao conteúdo das fontes proféticas. Embora o cronista omita uma segunda declaração sobre a mãe amonita de Roboão (lR s 14.31; c f. v. 13) presumivelmente por razões estilísticas, sua omissão do sepultamento de Roboão “com seus pais” (lR s 14.31) pode refletir umjulgamen- to negativo.

B. Abias e Asa (13.1— 16.14)i. Abias (13.1— 14.1)“Israelitas, não lutem contra o S e n h o r , o Deus dos seus antepassados,

pois vocês não terão êxito” (13.12, NVI).13 .1 -2 -c /IR eis 15.1-2,613 .22 -14 -# IReis 15.7-8Este relato de Abias é notavelmente diferente daquele em IReis, onde esse

rei é conhecido como Abião. Aversão de Crônicas é três vezes maior, mas, mais importante, parece contradizer a avaliação de Reis. Onde o último conclui que “ele cometeu todos os pecados que seu pai cometera antes dele” (lRs 15.3), para o cronista ele é um governante fiel a quem Deus concede uma vitória milagrosa. Por que tal discrepância?

As diferenças são na verdade o resultado do propósito e métodos distin­tivos do cronista, e não são irreconciliáveis. O interesse primário do cronista está mais no desenvolvimento dos planos de Deus do que na vida pessoal ou orientação espiritual dos reis individualmente. Abias é menos importante por sua própria causa do que pelo que Deus fez através dele, motivo pelo qual o capítulo 13 concentra-se quase completamente em um único incidente relativo ao r e i n o d o S e n h o r ( c f . v. 8). E claro que o cronista sabe dos fracassos de Abias, embora como no caso de Salomão, os detalhes apareçam no relato sobre seu

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sucessor antes que em seu próprio reinado (2Cr 14.3-5; 15.8, 16-17).91 Esses fracassos, porém, não desqualificaram Israel para experimentar a libertação de Deus, e como no caso de Roboão (caps. 11— 12), Deus respondeu aos pecado­res que confiaram Nele (cf. v. 18). O ponto principal diz respeito aos propósitos de Deus para com a realeza davídica e o sacerdócio araônico, em contraste com o reino de Jeroboão que não teve nenhuma pretensão de ser ortodoxo. O cronis­ta, portanto, não estava reescrevendo a história, mas mostrando que o povo imperfeito que expressasse fé (13.15, 18) em Deus poderia ter esperança. A importância disso não passaria despercebida aos contemporâneos do cronista que precisavam de todo encorajamento para exercer fé, a qual para eles era um artigo raro (e.g. Ed 8.22-23,31; Ne 1.11; 2.20; 6.15-16).

A comparação cuidadosa de Reis e Crônicas também revela que longe de tratar Reis de uma maneira arbitrária, essa versão de Abias é baseada na versão mais antiga, em acréscimo ao uso provável de uma fonte desconhecida para a batalha contra Jeroboão (cf. Noth, Rudolph). Quatro elementos de IReis 15.1-7 são visíveis neste capítulo. Primeiramente, a dupla menção em Reis da guerra entre Judá e Israel indica sua importância aqui (IRs 15.6-7; cf. 2Cr 13.2). Em segundo lugar, a idéia principal em Reis de que Deus estava preservando Jeru­salém e a dinastia de Davi como uma pequena luz em meio à escuridão é repetida nos versículos 5-12 (cf. IRs 15.4). Em terceiro lugar, a avaliação bastante ambivalente de IReis 15.3 sugere que Abias não foi visto de forma completa­mente negativa em Reis. Em quarto lugar, o cronista estruturou seu relato em tomo das fórmulas de abertura e conclusão de Reis.

Abias tem um perfil muito mais elevado em Crônicas porque, como Roboão, seu reinado realça várias ênfases especiais dos capítulos 10— 36. A fala de Abias (v. 4-12) é paralela em estilo e teor à de Ezequias (2Cr 29.5-11; cf. 30.6-9). Esta última, por exemplo, confirma que o padrão de fidelidade fixado por Abias foi continuado nos últimos anos da realeza de Judá. Ambas as falas também têm um efeito estabilizador, a de Abias seguindo a catástrofe da divisão, a de Ezequias depois da queda de Samaria e do reinado desastroso de Acaz (cap. 28).92 Ambas as crises também envolvem guerra civil, com derrotas aqui para Israel e no oitavo século para Judá. Ambas as nações por sua vez abandonam a Deus, e ambas as falas apontam para o culto centrado em Deus no terreno comum da esperança futura.

Os capítulos 13— 16 formam uma seção à parte ao redor do tema da confian­ça no Senhor. O verbo fundamental, “confiar” (heb. shã‘ari), ocorre cinco vezes nesses capítulos com exemplos positivos (13.18; 14.11; 16.8) e negativos (16.7), e em nenhuma outra parte em Crônicas. O tema é desenvolvido por um contraste

91 Cf. D. G. Deboys, “History and theology in the Chronicler’senhor portrayal o f Abijah” , Bib. 71, 1990, p. 48-62, especialm ente p. 51-52.

92 Cf. M. A. Throntveit, Kings, p. 109-120.

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entre “abandonar” (13.10-11) e “buscar” a Deus (14.4, 7; 15.2, 4, 12, 15; 16.12). Abias e Jeroboão ilustram as alternativas, como também Asa (caps. 14— 16).

Essas estruturas literárias oferecem uma mensagem de esperança para o indigno. Se o capítulo 12 realçou a importância do arrependimento, aqui é a fé e a confiança. Esse também é um tema familiar ao Novo Testamento. Podem ser acha­das analogias em passagens que falam da fidelidade em face da apostasia ou perseguição (e.g. Hb 10.32-39; Ap 2.12-13) ou que a força espiritual possa ser uma realidade na fraqueza e inferioridade humanas (e.g. ICo 1.26-31; 2Co 12.9-10). Mesmo o fracasso anterior não é nenhum obstáculo, pois “em cada ponto há a chance de um novo começo” (Wilcock).

a. Fórmula introdutória (13.1-2a). Essa é a primeira fórmula introdutória em Crônicas que de fato ocorre no começo do reinado de um rei (cf. ICr 29.22-24; 2Cr 12.13-14). Também é a única em Crônicas a incluir uma sincronização com Israel, presumivelmente porque o evento principal neste capítulo é relativo a ambos os reinos. Os detalhes sobre a mãe de Abias divergem de IReis 15.2. O nome dela provavelmente é uma variante escribal (“Micaía” em lugar de Maaca), e Uriel pode ser um filho de Absalão (“Abishalão”, lRs 15.2), fazendo Micaía/ Maaca a neta deste, embora a certeza seja impossível.93 O reinado de Abias foi curto, datado em 921-916 (Hughes; cf. LXX), 913-910 (Thiele) ou 915-913 a.C. (Albright). A falta de uma avaliação teológica é notável, indicando talvez que seu reinado como um todo careceu de uma orientação clara, apesar do exemplo positivo aqui (cf lRs 15.3).

b. Guerra civil entre Israel e Judá (13.2b-19). O único evento no reinado de Abias que Crônicas relata é a guerra com Jeroboão (cf. v. 2b). Este provavel­mente foi o agressor, a julgar pela fala bastante defensiva de Abias (cf. v. 8) e pelo ataque de Jeroboão (v. 13-14). Se essa tese estiver correta, essa é a tentativa de Jeroboão de juntar os reinos. Porém, visto que tanto ele quanto Roboão antes dele foram repelidos por Deus (cf. 11.1-4), claramente ainda não chegou o tempo de Deus para reunificação. O local em Zemaraim em Efraim (v. 4) normal­mente é relacionado com um lugar benjamita do mesmo nome perto do monte Efraim (Js 18.22), provavelmente Ras et-Tahuneh no lado sul da montanha.94 Os números de soldados (v. 3) não devem ser entendidos literalmente e mostram que Judá excedia em dois para um.

i. O discurso de Abias (13.4-12). O “sermão do monte” (Rudolph) de Abias domina essa seção. Embora inesperado em termos de estratégia militar, é

93 Veja tam bém 2Cr 11.20-21 e M yers, 2Chronicles, p. 79-80.94 Z. Kallai, H istorical Geography o f the Bible (Jerusalem: Magnes Press, 1986), p. 401.

A identificação mais com um de Ras ‘ez-Zemariah é rejeitada por razões arqueológicas.

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típico das falas e orações que ocorrem em pontos-chave em Crônicas. A forma atual reflete a linguagem e interesses do cronista, embora sugestões da perspec­tiva do próprio Abias também apareçam (v. 7, 10-11). Ela é dirigida principalmen­te ao povo de Israel (v. 4, 12; Jeroboão é referido na terceira pessoa, v. 6,8), embora o povo pareça ser plenamente identificado com o seu rei. Há três seções.

(a) 13.5-8a. Realeza. Abias faz duas acusações contra Israel, que eles rejei­taram os dons de Deus da dinastia de Davi e do templo. Ele, por outro lado, tem sido fiel. Ele reconhece que a dinastia foi dada p a r a s e m p r e (lCr 17.12,14) como uma a l i a n ç a d e s a l (v. 5), uma metáfora para a permanência baseada em Núme­ros 18.19.95 Ela também está associada com o r e i n o d o S e n h o r ( v . 8 ) , uma idéia também refletida no versículo 5, literalmente, “...deu o reino/realeza a Davi sobre Israel...”. Esse é um tema familiar em Crônicas (e .g 17.14; 28.5; 29.23; 2Cr 9.8), ainda que surpreendente aqui em vista da idolatria de Abias (IRs 15.3). No entanto, uma distinção é feita entre os dois reinos porque o reino de Deus ainda estava sob sua autoridade, e estava mais nas m ã o s da família de Davi do que nas de um indivíduo.96

Jeroboão, no entanto, r e b e l o u - se contra seu m e s t r e , i . e . . Salomão (v. 6; a idéia é tirada de IRs 11.26-27), contra Roboão (v. 7; c f. 2Cr 10), e pretende fazer o mesmo com Abias (v. 8). A defesa de Abias de seu pai Roboão (v. 7) parece um tanto exagerada em vista do capítulo 10, embora a estratégia política de apresen­tar os fatos na melhor luz possível seja bastante familiar! Embora Roboão fosse na verdade inexperiente e hesitante (“jovem e irresoluto”, NRSV, RSV), aos qua­renta e um anos de idade ele era completamente responsável por sua insensatez (c f . 12.13). Um jogo de palavras irônico resume Jeroboão - embora Roboão não pudesse r e s i s t i - lo (v. 7), ele pode r e s i s t i r a Deus (v. 8; c f. NIV, JB, GNB; “se opor”, NRSV, RSV).

(b) 13.8b-12a. O culto. A segunda acusação diz respeito aos propósitos de Deus para o templo, e enfoca a natureza de Deus, sacerdócio e sacrifício. Primei­ramente, os deuses de Israel n ã o s ã o d e u s e s (v. 9), uma alusão aos bezerros de ouro de Oséias 8.6. Como no costume do antigo Oriente Próximo, estes eram aparentemente carregados com o exército como um encantamento protetor (v. 8b). Em segundo lugar, os s a c e r d o t e s de Israel não são qualificados e os sacer­dotes aronitas e os levitas foram despedidos (v. 9-10; c f. 11.15). Em terceiro lugar, só o padrão de culto em Jerusalém é aceitável ao Senhor, pois os cultos de fertilidade de Israel eram politeístas e idólatras (v. 11; c f. IRs 12.26-33). Esses sacrifícios regulares, celebrados diariamente à parte da substituição semanal do p ã o , são uma ênfase típica em Crônicas. Eles são o “preceito” (v. 11; NRSV, RSV, REB, NEB; e x i g ê n c i a s , NVI; mas não “ritual”, JB) do Senhor, uma palavra que

95 Cf. Japhet, Ideology, p. 465; Rudolph.96 Veja tam bém , M. J. Selm an, “The kingdom o f G od in the Old Testam ent” , TB 40,

1989, p. 161-183, especialm ente p. 163-171.

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resume os deveres do culto (IC r 9.27; 23.32; 2Cr 35.2), e mostra que o templo estava sendo usado corretamente (cf. ICr 23.29-31; 2Cr 2.4; 4.7; 8.12-15).

A defesa de Abias, expressa de uma maneira um pouco presunçosa, é simples: nós não o abandonamos,... mas tu o cibandonaste (v. 10-11). Isso era extremamente sério, pois Deus abandonaria aqueles que o abandonassem (IC r 28.9; 2Cr 15.2; 24.20; cf. 2Cr 12.1, 5), ao passo que Judá podia dizer, Deus está conosco (v. 12). Embora a divisão fosse da vontade de Deus (10.15; 11.4), o não reconhecimento por parte de Jeroboão da legitimidade da realeza de Abias e do culto de Jerusalém significava que o seu reinado já não era mais aprovado por Deus. Ele estava fundamentalmente invalidado, e não oferecia nenhuma espe­rança para o futuro de Israel.

(c) 13.12b. Apelo. Abias conclui com um apelo, Não pelejeis contra o S e ­

n h o r . .. pois não terás sucesso. Esse é o ponto central do argumento de Abias, e se assemelha a um texto de sermão, como em outras falas nas quais o texto vem freqüentemente no final.97 Ele contém dois temas importantes, os quais são de­senvolvidos em 2Crônicas 20.1-30, a centro da Monarquia Dividida. O primeiro, que tem sua origem no êxodo, é que é inútil se opor a Deus, porque ele luta suas próprias batalhas (cf. 1 Cr 5.22; 2Cr 11.4; 20.17; 32.8; cf. Êx 14.14; Dt 20.4; At 5.39). O segundo é que só se pode ter êxito com a ajuda de Deus, como é ilustrado positivamente (e. g. lCr29.23;2Cr 14.6; 20.20; 26.5) e negativamente (e.g. 2Cr24.20).

ii. Relatório de batalha (13.13-19). O relato da batalha em si passa por quatro fases, (a) a emboscada de Jeroboão (v. 13-14a); (b) as orações de Judá (v. 14b-15a); (c) o dom de Deus da vitória para Judá (v. 15b-16); e (d) os resultados (v. 17-19). O parágrafo inteiro reflete as vitórias de Israel nos primeiros dias, mostrando que desvantagens esmagadoras não eram nenhum problema quan­do Israel confiava (v. 18) em Deus. Israel tinha sofrido uma emboscada em Juizes 9.25, por um exército tanto à frente quanto na retaguarda em 2Samuel 10.9 (= ICr 19.10), e até por um grande exército (v. 8) em IReis 20 .13 ,28(c / 2Cr 14.9; 20.2,12,15,24; 32.7). O soar de um clamor de batalha (v. 12,15) com o acompa­nhamento de trombetas sopradas pelos sacerdotes lembra a captura memorável de Jericó(Js6.1-20;c/ Nm 10.9; 31.6). Os relatos parecem utilizar particularmente Deuteronômio 20.1-4, 10-15, demonstrando a fidelidade de Judá para com os princípios de lei da aliança. A ênfase na confiança em Deus apesar da força superior do inimigo, a afirmação de que Deus está com seu exército, e a oferta de paz antes da batalha são especialmente dignas de nota (v. 12). Esse padrão é chamado freqüentemente de guerra santa, embora, quando aplicado ao Antigo Testamento, o termo seja um tanto equivocado.98 Israel nunca poderia assumir o

91 G. von Rad, “The lev itica l serm on in 1 and 2C hronic les” , in The Problem o f the l/cxateuch (Edimburgh: O liver & Boyd, 1966), p. 267-280, especialm ente p. 278.

98 Especialmente G. von Rad, Holy War in Ancient Israel (Grand Rapids: Eerdmans, 1991) (liT o f Die heilige Krieg im alten Israel, rev. ed., Gõttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1951).

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direito de ir à guerra em favor de Deus, porque a nação poderia achar-se às vezes opondo-se a Deus. Um termo melhor é “guerra de Javé” que às vezes era apropri­ado para as guerras de Israel porque ela era a nação de Javé, mas só é aplicável à igreja quando compreendido como batalha espiritual (cf. 2Co 10.3-6; Ef 6.10-20)."

O tema central é a confiança em Deus (v. 18 ). Judá clamou ao S en h o r (v . 14, NRSV, RSV, etc.) e levantou o grito de batalha (v. 15; cf. 2Cr 20.19-22), em contraste com o abandono de Deus por Israel (v. 11). A vitória pertencia a Deus que derrotou Israel (v. 15; cf. REB, NEB; lit. “feriu”) e entregou-a (v. 16) nas mãos de Judá. O termo para a derrota de Israel, foram conquistados (v. 18), é, literalmente, “foram humilhados” (JB), i.e. exatamente o oposto do que Deus desejava (cf. 2Cr 7.14; 12.6, 12). O resultado foi uma “grande matança” (v. 17, NRSV, RSV; “derrota esmagadora”, GNB, JB), a versão hebraica do que normal­mente se referia aos inimigos de Israel (e.g. Js 10.10; ISm 19.8; 23.5), embora pudesse ser aplicado a israelitas rebeldes (Nm 11.33).

Apesar das conquistas de Abias no sul de Israel, os conflitos de fronteiras continuaram por muitos anos (v. 19, cf. 2Cr 15.8; 16.6; 17.2). A captura de Betei é um comentário irônico sobre a incapacidade dos bezerros de ouro de defender seu próprio santuário (cf. IRs 12.28-33).

c. O poder de Abias (13.20-21). O fracasso de Jeroboão em readquirir o poder (v. 20) é um contraste deliberado ao fato de que Abias cresceu em força (v. 21). Embora Jeroboão sobrevivesse a Abias (IRs 15.9), a morte do primeiro é entendida como um sinal do julgamento divino (feriu, v. 20, é o mesmo verbo heb. para derrotou, v. 15, NVI). Sobre uma família grande como sinal de benção e força (v.21), c f lCrônicas 26.5; 2Crônicas 11.18-21.

d. Fórmula de conclusão (13.22— 14.1). Duas mudanças em relação a IReis 15.6-7 são dignas de nota. Embora a “história” (v. 22, NRSV, RSV, NEB; relatos, NVI) seja literalmente “midrash” (JB), trata-se provavelmente de mais um termo para os escritos de Ido (cf. 2Cr 9.29; 12.15) antes que de um uso antigo de um termo para um tipo de exegese rabínica (também 24.27). O período de dez anos de paz (14.1) refere-se ao reinado de Asa (c f 14.5-7; 15.15, 19), visto que Abias reinou durante apenas três anos (13.2).

ii. Asa (14.2—16.14)“(Ele) ordenou ao povo de Judá que buscasse o S e n h o r ” (14.4, NVI).“(Eles) fizeram um acordo de todo o coração e de toda a alma de buscar o

S en h o r” (15.12, NVI).

” Veja e.g. A. Ruffing, Jahw ekrieg ais Weltmetapher, SBB 24 (Stuttgart: K atholísches Bibelwerk, 1992).

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“Ele não buscou o S e n h o r ” (16.12, NRSV).14.2-c f. IReis 15.1115.16-18-c/IR eis 15.13-1516.1-6-c f. IReis 15.17-2216.11-14-c f. IReis 15.23-24Asa é o terceiro rei a quem, em uma seqüência, Crônicas concedeu muito

mais atenção que Reis (2Cr 14— 16. cf. lRs 15.9-24). Em contraste com Roboão e Abias, porém, a versão de Crônicas é bem menos lisonjeira. Isso não é porque o cronista faz julgamentos arbitrários, mas, como já foi notado, é para chamar atenção a certas características teológicas globais antes que a detalhes sobre indivíduos. Dois temas proporcionam o quadro para o reinado de Asa. O primei­ro é “confiança” em Deus, indicado pela ocorrência do verbo hebraico shã‘an cinco vezes nos capítulos 13— 16 mas em nenhuma outra parte em Crônicas. Tanto Abias quanto Asa oferecem exemplos para outros imitarem (13.18; 14.11; 16.8), embora infelizmente Asa não tenha terminado como começou (16.7). O segundo tema, o de buscar a Deus, é central ao reinado de Asa (o verbo “bus­car” ocorre nove vezes). O rei e o povo ambos vivem o princípio de 15.2 (14.4,7;15.4), se comprometendo com Deus por meio de uma aliança (15.12,15). Porém, novamente Asa abandona sua atitude anterior (16.12), potencialmente se colo­cando sob a maldição de sua própria aliança (15.13).

Uma variedade de outros temas também se liga ao remado de Asa. Um dos mais persistentes são a guerra e paz (ou repouso). Onde o gênero humano parece inclinado a fazer guerra (14.9-10; 15.5-6; 16.1,4), Deus dá libertação e paz (14.1,5-7,12-15; 15.15,19) àqueles que colocam sua confiança nele, embora ele possa enviar guerra como um castigo para aqueles que procuram ajuda em outro lugar (16.9). Um tema relacionado é o do fortalecimento do reino, tanto através de fortificações (14.6-7; 16.6) quanto por força interna (15.7-8; 16.9). A confiança em Deus também é expressa pela fidelidade ao javismo, especialmente no cuida­do com o templo (15.8,18) e na intolerância com a parafernália da religião cananita (14.2-5; 15.8,16-18). Uma característica fundamental é o respeito pela autoridade da palavra profética. Duas profecias são proeminentes, uma à qual Asa respon­de com entusiasmo (15.1-8) e uma que lhe causa muita raiva (16.7-10). A peça central da fidelidade de Asa, no entanto, é indubitavelmente a aliança feita em uma assembléia especial (15.10-15). Esse ponto alto da vida nacional de Judá até aqui é assumido por todo o povo com coração e alma, e foi acompanhado por muito culto sacrificial e regozijo. Isso, no entanto, tem o outro lado da moeda em uma aliança ou tratado feito entre Asa e Ben-Hadade da Síria (16.2-3), cujas conseqüências infelizes (16.7-12) substituíram as bênçãos da primeira aliança.

Um aspecto muito interessante dessa abordagem temática é até que ponto o remado de Asa é paralelo ao de Ezequias. Embora Asa não seja da mesma estatura, muitas características de seu reinado apontam diretamente para o gran­de reformador. Ambos prosperaram (14.7; 31.21) por fazerem o que era bom e

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correto aos olhos de Deus (14.2; 31.20), buscando a Deus (15.4, etc.; 31.21), servindo-o de coração (15.17; 31.21), e obedecendo apropriadamente sua lei e mandamentos (14.4; 31.21). Eles removeram os símbolos de idolatria (14.3-5;31.1), reuniram uma assembléia (15.9-10; 30. 13ss) e renovaram a aliança do povo (15.12-15; 29.10). Uma característica particularmente notável é que ambos acolheram os israelitas do norte para adorar em Jerusalém (15.9; 30.11). Os dois também sofreram o infortúnio de invasão militar depois de expressões públicas de lealdade para com Deus, e ambos responderam a essas ameaças com uma declaração que a fé em Deus era superior à confiança em um vasto exército (14.9- 10; 32.7-8). Até mesmo o período final de suas vidas têm analogias fortes. Am­bos sofreram com doenças atribuídas a uma falta de confiança em Deus, embora não seja registrado que Asa se arrependeu como Ezequias (16.12; 32.24-26), e finalmente, eles receberam honra especial em seus funerais (16.14; 32.33). Esses paralelos não são acidentais, e apontam a um padrão de vida que em geral o cronista recomenda aos seus leitores.

Os altos e baixos da vida de Asa são apresentados de uma forma estilizada. São empregados dois padrões, ambos comuns a outras partes em Crônicas. Um é a periodização do seu reinado, que é muito óbvia a partir de uma série de datas sem paralelo em Reis (14.1, 9; 15.10, 19; 16.1, 12-13). O efeito desse arranjo é caracterizar a maior parte de seu reinado como um reinado de paz, interrompido apenas por uma invasão (14.9-15) e hostilidades ocasionais com Israel (15.8; 16.1-6). O segundo padrão é uma estrutura de tipo quiástico centrada na cerimônia de renovação da aliança (15.9-18), e pode ser apresenta­do como segue:

a. 14.2-7 Prosperidade por buscar a Deusb. 14.8-15 Vitória pela confiança em Deusc. 15.1-8 Obediência à palavra proféticad. 15.9-18 Aliança com Deusd l. 16.1-6 Aliança com o homem (e vitória temporária)cl. 16.7-10 Rejeição à palavra profética (e falta de confiança)al. 16.11-12 Doença incurável por não buscar a Deus

A maioria das conexões entre os parágrafos é bastante clara, fora 14.8-15 que na verdade tem paralelo tanto em 16.1-6 quanto em 16.7-10. O primeiro plano de batalha de Asa (14.8-15) contrasta nitidamente com o seu segundo plano (16.1-6), como é ilustrado pela referência específica aos cuxitas em 16.8 (cf. 14.9-13) e àqueles em quem Asa confiou (c f 14.11; 16.7-8). 16.1-10, portanto, é uma “antialiança” (cf. 15.9-18) que combina derrota militar e desobediência à palavra profética, e toda a estrutura mostra como os últimos anos de Asa representaram uma completa inversão das suas realizações anteriores.

O relato de Asa em Crônicas segue o esquema básico de Reis. Por exemplo, 14.3— 15.15 preenche IReis 15.11-15 que mostra como “Asa fez o que era certo

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aos olhos do S e n h o r ” , e o capítulo 16 dá mais detalhes da guerra israelita de Asa, sua doença final e morte (cf. lR s 15.17-24). Uma questão mais complexa é a relação entre os períodos bons e ruins do seu reinado, os quais já estão presen­tes em Reis. Embora o cronista seja acusado freqüentemente de impor sua pró­pria interpretação artificial sobre Asa, um julgamento menos precipitado é mais apropriado. Os pontos seguintes deveriam ser especialmente levados em conta. Em primeiro lugar, o quadro cronológico não apóia uma teologia rígida de recom­pensa e castigo, visto que os ataques de 14.9; 15.1 ocorrem depois de períodos de fidelidade. Em segundo lugar, uma abordagem explicitamente teológica não diminui automaticamente a confiança no valor histórico de Crônicas. Em terceiro lugar, há evidência de dependência de várias fontes (cf. Williamson). Isso é verdade principalmente quanto ao material profético, que tem um papel funda­mental (15.1-8; 16.7-10) aqui e ao longo de Crônicas. Em quarto lugar, as aparen­tes contradições (veja especialmente sobre 15.17, 19) pode dever-se a algumas causas possíveis. Só a questão das datas em 15.19 e 16.1 permanece sem solu­ção até agora, embora isso também deva ser visto como parte de um problema mais amplo da cronologia da monarquia. As questões da retidão de Asa (14.2; 15.17; 16.7-12) e sua remoção dos lugares altos (14.3, 5; 15.17) podem ser o resultado da citação fiel, mas não harmonizada, de material fonte, ou da inclusão de exceções ao lado de declarações sumarizantes.

O capítulo 14 introduz os temas principais do reinado de Asa, combinando as ênfases de buscar a Deus (v. 4 ,7) e confiar nele (v. 11). Na realidade, esses são lados diferentes da mesma moeda, isso é, uma atitude de fé e confiança, embora a primeira seja mais geral e a segunda mais específica. Essa confiança funciona na prática, por meio de uma reforma religiosa (v. 3-5), um reforço das fortifica­ções (v. 6-7) e uma vitória sobre um exército invasor mais poderoso (v. 8-15). Tal ênfase prática é uma boa ilustração da relação interna entre fé e obras (cf. Tg2.14-26; Ap 3.1 -6). Ela também sublinha que a fé é mais efetiva em um tempo de crise quando brota de uma atitude mais geral para com Deus, um tema que ocorre regularmente no Antigo Testamento (e.g. Dn 1— 6; Gn 12— 22) assim como no Novo Testamento (e.g. Hb 10.32— 12.3; Ap 3.7-13).

a. Asa busca a Deus e prospera (14.2-7).'"" A primeira parte do reinado de Asa exemplifica fidelidade, expansão e segurança. Na avaliação, o bom foi soma­do a reto (v. 2; cf. lRs 15.11), aparentemente como um paralelo a Ezequias (a frase ocorre novamente só em 2Cr 31.20). A reforma tem três características piincipais: adoração (v. 3-5), construções e fortificações (v. 6-7) e o exército (v. 8).

As reformas religiosas (v. 3-5), que são complementadas em 15.16-18 (= lRs 15.13-15), diferem em detalhes de IReis 15.12, embora Crônicas sejatotal-

100 Os números dos versículos em Hebraico são mais baixos do que nas EVV por todo o cap ítu lo .

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mente dependente de Reis para a origem das práticas idólatras (v. 3-5; elas são atribuídas a Salomão, Roboão e Abias, IRs 11.3-13; 14.22-24; 15.3). Porém, três dos quatro elementos da religião cananita mencionados no versículo 3 ocorrem emDeuteronômio7.5 (cf. Êx34.13;Dt 12.3), sublinhando a fidelidade de Asa à lei mosaica. Uma forte ligação com Ezequias também emerge, visto que todos os quatro elementos do versículo 3 são mencionados em 2Crônicas 31.1, e a expres­são “derrubar os postes de A será” ocorre em outra parte som ente em Deuteronômio 7.5 e 2Crônicas 31.1. As pedras sagradas (v. 3; “colunas”, NRSV, RSV, etc.; heb. matstsêbôt, v. 2, TM) normalmente eram pedras (verticais) come­morativas dedicadas a divindades individuais, e os postes de Aserá (v. 3; “pos­tes sagrados”, REB, NEB, JB) eram objetos de madeira que representavam a deusa da fertilidade Aserá. A palavra para altar de incenso (v. 5) é incerta, e poderia significar uma pequena construção religiosa, embora a tradução “colu­na do sol” seja agora rejeitada.

A “lei” e o “mandamento” (v. 4, NRSV, RSV; cf. 2Cr 31.21) são descritos de maneira diferente em Crônicas, indicando que o significado de termos individuais para a lei era mais fluido do que rigidamente técnico.101 A lei continuava sendo um conceito mais vivo que legalista, e, já que a obediência é comparada com o buscar a Deus, a lei é vista como um meio de manter comunhão com Deus (cf. 6.16; 12.1,5).

As atividades de construção, em Crônicas (v. 6-7), são tipicamente atribu­ídas a reis fiéis (e.g. 2Cr 11.5-2; 17.12; 26.6,9-10; 32.29-30), embora a preparação do exército esteja associada com reis de diferentes reputações (cf 17.14-19; 25.5;26.11-15). Essas realizações são indicações do dom de Deus de paz, repouso (v.5-7; cf. v. 1) e prosperidade (v. 7) porque o povo de Asa buscou a Deus (v. 7). O repouso simbolizava a ocupação da Terra Prometida por Israel ( lCr 22.9,18; cf. Dt 12.8-10), mas tinha de ser mantido com vigilância e confiança em Deus. Até mesmo reis fiéis poderiam sofrer ataques (contraste 2Cr 12.2,5). Outros reis que prosperaram (v. 7; heb. hitsliah, v. 6, TM) por causa de sua fé incluíam Davi (1 Cr 22.11,13), Salomão (lCr 29.23), Josafá (2Cr 18.11,14; 20.4,20), e Uzias (2Cr26.5; contraste com 2Cr 12.12; 24.20).

A breve fala de Asa (v. 7) que mostra o rei se abrindo com o povo (edifiquemos), se encaixa na ênfase do cronista da necessidade de consulta dos reis (cf. lC r 13.1-5; contraste com 2Cr 10.1-16). Seu convite e a frase “enquanto a terra ainda é nossa” (ou “enquanto nós estamos no controle da terra”, cf. Rudolph, GNB) teria constituído um incentivo especial para o povo da época do cronista fazer o que eles pudessem para reconstruir o país. A repetição de nós buscamos tem parecido desnecessária para alguns, que preferem ler “como te­mos buscado ao S e n h o r ... , ele nos buscou” (assim REB, NEB, GNB com LXX, P, Vulg.). Porém, o TM é preferível visto que a mudança proposta reflete o princí­

101 C f Japhet, Ideology, p. 235-236.

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pio encontrado em lCrônicas 28.9; 2Crônicas 15.2, a busca de Deus é limitada a contextos que tratam de julgamento (ICr 28.9; 2Cr 24.22).

b. A sa confia em Deus e é vitorioso (14.8-15). Visto que Zera, o cuxita, é desconhecido fora de Crônicas, sua identidade e até mesmo sua existência são debatidas. Normalmente na Bíblia Cuxe é a região sul do Egito, i.e., o Sudão (cf. GNB; antes que a Etiópia moderna, cf. NRSV, RSV). A Menção de Gerar (v. 13-14), porém, bem na fronteira entre Judá e Filístia, pode indicar um conflito beduíno mais local, talvez apoiado pelo paralelo entre “Cushã” e Midiam (Hc 3.7; cf. Curtis e Madsen, Williamson, de Vries, etc.). A interpreta­ção africana, no entanto, é mais provável pelas seguintes razões:

Os cuxitas estão associados com os líbios (2Cr 16.8, cf. 12.3), é imprová­vel que as tribos de beduínos locais tenham possuído 300 carros quando Judá não tinha nenhum (v. 9), e conclusões geográficas precisas não deveriam ser tiradas com base em um único exemplo de poesia profética, especialmente quando Gerar fica a oeste de Judá e Midiam ao sul. E mais provável que o próprio Zerá tenha sido um general núbio (isto é, sudanês) do exército do Faraó Osorkon I (c. 924-884 a.C.), filho e sucessor de Shoshenq I (cf. 12.2ss). A guerra é datada do décimo quinto ano de Asa (c f 15.10-11), aproximadamente 897 a.C., e ocorreu na fronteira sudoeste de Judá emM aressa (v. 9-10; cf. 11.8). O Vale de Zefatá (v. 10) é desconhecido.1(12

Segundo a melhor compreensão, o exército de Zerá (v. 9) incluía 1.000 componentes, o que faria mais sentido ao lado de trezentos carros do que “um milhão” de soldados (GNB, etc.). Porém, de qualquer forma que os números sejam entendidos, o exército invasor era quase duas vezes o tamanho do exérci­to de Judá (v. 8), e assim Asa tinha toda razão em clamar pela ajuda de Deus contra uma “multidão” (v. 11, NRSV, RSV; “exército enorme”, GNB, cf. NIV).

O tema dos registros da batalha é o da “guerra de Javé” (cf. 13.13-18). Ele centra-se na oração de Asa (v. 11), que deve ser entendido como um apelo no nome de Javé dirigido para o templo (cf. 6.34-35). Ele também antecipa a clássica oração de Josafá (20.5-31; cf. 13.4-12). Ele tem várias ênfases típicas de Crônicas, como a ajuda de Deus (cf. lCr5.20; 15.26; 2Cr 18.31; 32.8), sua preocupação com o fraco (cf. 2Cr 20.12), que ele é o Deus de Israel (cf. 2Cr 13.12; 32.8) em quem eles confiam (cf. 13.18; 16.8), e contra quem nem essa “multidão” (NRSV, RSV; vasto exército, NIV; cf. 2Cr 20.12,15; 32.7) nem o homem “mortal” (REB) pode prevale­cer.103 A vitória é atribuída ao Senhor (v. 12-13; “derrotou”, v. 12, NRSV, RSV, JB, é o mesmo verbo que em 13.15,20),jáqueosinimigosj/M<gira»í (v. 12; cf. 2Cr 13.16;

102 “norte de” da LXX, baseada em uma palavra semelhante, é uma leitura mais fácil e provavelm ente m enos im portante .

103 Ele é um testemunho do poder desta oração que (na versão AV) inpirou o famoso hino de E. G. Cherry, “Nós repousam os em ti, nosso escudo e defensor” .

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25.22) e foram paralisados pelo terror do S en h o r (v . 14; cf. lC r 14.17; 2Cr 17.10; 20.29). Todo esse tema pode ser resumido assim: “A batalha não é vossa, mas de Deus” (2Cr 20.15; cf. Ef 6.12; Cl 2.15; Ap 5.5). Apesar da fidelidade e preparativos de Israel (v. 2-8), foi Deus quem mostrou a diferença entre destruição e vitória.

Alguns detalhes do resultado são apresentados (v. 13-15). Os cuxitas ficaram tão (lit.) “quebrados” (v. 13, NRSV, RSV) que não houve “nenhuma recuperação” (cf. NIV, GNR, JB). O hebraico para o último termo é “reviver” em lugar de “vida” (cf. Gn 45.5; Ed 9.8-9), fazendo a tradução da RSV, “ninguém ficou vivo” (cf. REB, NEB), parecer um exagero. O povo ao redor de Gerar (v.14) e os pastores (v. 15) presumivelmente eram aliados de Zerá, embora os últimos provavelmente fossem atacados (NIV, NRSV, RSV, etc.) em lugar de “mortos” (REB, NEB). O interesse no espólio (v. 13-15) é explicado por seu uso no sacrifício (15.11).

c. Asa obedece a palavra de um profeta (15.1-8). O relato da reforma e reestruturação de Asa (c f 14.2-8) leva agora no capítulo 15 a suas duas caracte­rísticas principais, uma profecia por Azarias (15.1 -8), e uma cerimônia de aliança (15.9-15). Ambos os eventos são exclusivos de Crônicas, mas eles são comple­tados através de detalhes adicionais de Reis (v. 16-18; cf. IRs 15.13-15).

Apesar da inclusão de algumas datas, a disposição quiástica global dos capítulos 14-15 não permite que a ordem de eventos seja reconstruída com muita confiança. A única conclusão razoavelmente definida é que a cerimônia de alian­ça (15.9-15) no décimo quinto ano de Asa (15.3) seguiu a guerra cuxita (14.13-15;15.11) e foi uma das conseqüências da profecia de Azarias (cf v. 9). Isso teste­munha a importância da palavra profética (15.1-8), ainda que possa não ter pro­porcionado o ímpeto para a reforma como um todo. Ela também salienta a cerimô­nia de aliança como o evento principal, provavelmente como seu clímax (isso pode ter implicações para nossa compreensão da função de outras reformas no Antigo Testamento, especialmente a de Josias, c f 2Rs 22— 23; 2Cr 34— 35). Os outros eventos da reforma (14.2-5; 15.8,16-18) eram parte de um processo mais amplo que poderia ter acontecido em um período mais curto ou mais longo. O que é mais importante é que ele tocou toda a nação, inclusive a rainha-mãe (15.16), todo Judá (14.5), e até mesmo o norte (15.8-9).

O tema da busca de Deus continua a partir do capítulo 14, ocupando um papel central tanto na profecia (v. 2, 4) quanto na aliança (v. 12-13, 15). Dois elementos são destacados, que o propósito de buscar a Deus deve ser encon­trado por ele (v. 2 ,4 ,15), e que essa é uma atitude que afeta a vida como um todo. Buscar não é um fim em si mesmo, mas um meio dado por Deus de restauração do relacionamento com ele. Aquele relacionamento é entendido como abarcando os mundos interno e externo, tanto atitudes como ações. Nem o pietismo nem a reestruturação são adequados por si sós, e qualquer movimento autêntico de renovação espiritual deve mostrar evidência de ambos.

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Embora o Novo Testamento encoraje as pessoas a dar prioridade à busca por Deus, ele enfatiza que Deus nos busca muito mais do que nós o buscamos. Há um sentido no qual ninguém busca verdadeiramente a Deus (cf. Rm 3.11), ainda que Deus convide todo mundo a buscá-lo (At 15.17; 17.27). No final das contas, o povo encontra Deus porque Jesus veio “buscar e salvar o que estava perdido” (Lc 19.10), e estava preparado para procurar por uma ovelha perdida em cem ou por um filho pródigo (Lc 15). Buscar a Deus é no entanto muito necessário, e o Novo Testamento renova o convite do Antigo Testamento “buscai e encontrareis” (Mt 7.7, etc.), e afirma que Deus recompensa aos que o buscam com fé (Hb 11.6).

No período da Monarquia Dividida, muitas vezes são feitas referências a profetas desconhecidos como Azarias (v. 1 \ c f e.g. 16.7-10; 24.20-22; 28.9-11). Eles trazem a palavra de Deus diretamente ao povo ou a seus líderes, às vezes para advertência ou julgamento, com menos freqüência, como aqui, para os encorajar a um curso de ação em particular (cf. 20.14-17). A vinda do Espírito de Deus (v. 1) sobre um indivíduo geralmente leva ao exercício de profecia (e.g. ISm 10.10; Is 42.1; 61.1; Ez 11.5), embora seja notável que todos os outros exemplos de tal linguagem em Crônicas atribuam esse dom a pessoas que na verdade não são chamadas profetas (1 Cr 12.18; 2Cr 20.14; 24.20). Na realidade, nem Azarias é chamado profeta, e devido ao seu conhecimento das Escrituras pode ser que ele íbsse ou um sacerdote (cf. v. 3; 2Cr 24.20) ou um levita (cf. 2Cr 20.14).

Essa profecia é incomum no sentido de que é uma exposição de partes anteriores do Antigo Testamento, embora como um exemplo de falas em Crônicas não seja atípica. Seu estilo é de sermão, mas seu caráter profético vem através da imediação do imperativo final (v. 7) e de seu ensino autorizado (c f Mt 7.29). O sermão tem três seções, um texto (v. 2b), uma exposição (v. 3-6) e um apelo (v. 7).

O texto é baseado em Deuteronômio 4.29; Jeremias 29.13-14; Isaías 55.6 (cf. também lC r 28.9). Enquanto em outras partes do Antigo Testamento o princípio neste texto seja um convite para restabelecer aqueles que estão es­palhados, aqui ele inclui uma advertência para não abandonar a Deus. Porém, uma outra promessa também é acrescentada para que se mantenha o impulso positivo, a saber que o S e n h o r está contigo quando tu estás com ele (essa tradução é preferível a “... como/enquanto...”, GNB, JB). Vale notar que o texto resume a mensagem de Deus sobre o propósito do templo (2Cr 7.13-22).

A parte principal do sermão ilustra, a partir da história de Israel, que a intenção de Deus deve ser encontrada por seu povo. Ela mostra que Israel sofreu quando eles viraram as costas para Deus (v. 3, 5-6) e que eles foram restaurados assim que o buscaram em arrependimento (v. 4). As vezes Deus enviava a angústia (v. 6, c f v. 4), caracterizada pela anarquia religiosa (v. 3) e pelo tumulto geral (v. 5; “dificuldade”, REB, NEB; “perturbações”, NRSV, RSV) entre as nações (v. 5-6), provavelmente uma referência ao período dos juizes. Certamente havia naquela época uma falta de lei ou sacerdócio reconhecidos (e.g. Jz 17.5; 21.25), embora também fosse uma descrição desconfortavelmente

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precisa de eventos recentes no norte (2Cr 11.5; 13.9). O papel do ensino sacerdotal era vital à qualidade moral e espiritual da vida da nação (cf. e.g. Lv 10.11; Dt 33.10; Ml 2.7; 2Cr 17.7-9), mas quando era negligenciado, a verdade sobre Deus era negada (v. 3) e a estrutura da sociedade da aliança ficava arrumada (cf. v. 3; Os 4.1- 9; Ml 2.8). A descrição do tumulto (heb. mehümâ) é influenciada por várias passa­gens do Antigo Testamento. Parece ser baseada em Deuteronômio 7.23, embora transfira a Israel aquilo que Deus pretendia para as nações. O quadro de insegu­rança é bem parecido ao de Juizes 5.6; 6.2, enquanto a incredulidade israelita como uma causa de dificuldade em outras nações ocorra em 1 Samuel 5.9 (EVV, “pânico”) e em várias passagens proféticas (e.g. Is 22.5; Am 3.9; Zc 8.10; 14.13). A restaura­ção, no entanto, sempre era possível quando Israel se arrependia (v. 4; voltaram ao S e n h o r ). Buscaram (v. 4) também expressa a idéia de arrependimento, e real­mente é um sinônimo para “humilhar-se” (7.14; 12.5,12).

Azarias apela para que Asa busque a Deus mais uma vez (v. 7). Novamente a linguagem é influenciada pela literatura profética. Embora a tentação de desfale­cer (lit., “deixar cair as mãos”, cf. NRSV, RSV, JB) fosse forte (cf. e.g. Jr 6.24; Ez 7.17), ela precisava ser resistida à luz de Sofonias 3.16; Isaías 35.3 e da promessa de recompensa por sua obra em Jeremias 31.16.

As alusões aos profetas não só refletem o estilo literário do cronista mas também as necessidades de seus leitores. Eles também tinham sido tentados a deixar que suas mãos ficassem fracas (cf. Ne 6.9; cf. Hb 12.12-13), contudo tinham respondido à palavra de Deus e entre outras coisas tinham reparado o altar do templo (v. 8; cf. Ed 3.3). Eles também teriam sido encorajados pela obediência de Asa - “tenham coragem” (v. 7, NRSV, RSV, JB; sejam fortes, NVI, GNB, REB, NEB) é do mesmo verbo em hebraico como teve ânimo (v. 8, NRSV, NIV; “ficou cheio de coragem”, NTLH). Se Asa respondeu só às palavras de Azarias (v. 8, NRSV, GNB) ou a uma outra profecia pelo pai de Azarias, Odede (assim TM), não está comple­tamente claro. Outro problema é decidir quando Asa capturou (v. 8) as cidades em Efraim, embora isso e 16.1 insinuem que os êxitos militares no norte por Abias (13.19) ou por Asa foram, em todo caso, de vida curta.

d. A aliança de Asa com Deus (15.9-19).(i) Uma nova aliança (15.9-15). A cerimônia da aliança era parte de uma

assembléia (v. 9-10; cf. NIV, REB, NEB). Tais assembléias são típicas de vários reis em Crônicas, inclusive Davi (ICr 13.2-5; 15.3; 28.8; 29.1ss), Salomão (2Cr 1.3;5.6), Josafá (2Cr 20.5; etc), e especialmente Ezequias (e.g. 2Cr 29.23; 28; 30.2,25). Isso sem dúvida reflete a importância da assembléia no período de Esdras e Neemias em diante (e.g. Ed 3.1; 10.12; Ne8.1ss.; 13. l) ,e testemunha a importante função desempenhada pelo povo, como nesta cerimônia de aliança (cf. v. 13). As elementos fundamentais nesta ocasião eram que Deus estava com ele, i.e., Asa (v. 9), e que um grande número de nortistas estava presente (v. 9). Crônicas constantemente realça as oportunidades para reunificação (cf. 11.13-17; 30.11;

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34.6), que sempre surgiam mais no contexto do culto do que como resultado de ação militar (cf. 11.1-4; 13.8,13-14). A unidade só era possível quando Deus era cultuado do modo como havia ordenado. O motivo da presença de Simeão não é muito claro, pois, embora essa tribo pareça ter sido incluída entre as dez tribos do norte ( IRs 11.31), seu território era originalmente ao sul de Judá (cf. Js 19.1 -9;1 Cr 4.28-33). Adata do terceiro mês (v. 10) indica que essa assembléia provavel­mente fazia parte da Festa das Semanas ou Pentecostes (cf. Êx 23.16; 34.22; etc.).

A aliança do povo (v. 12) forma o clímax da reforma. Ela é a primeira de quatro alianças listadas em Crônicas contra só duas em Reis (cf 2Cr 23.16; 29.10; 34.31 -32; 2Rs 11.17; 23.3), o que testemunha a sua maior importância para Crôni­cas.104 Todas essas alianças permitiram ao povo renovar o seu compromisso com Deus, embora cada uma tivesse características distintivas. Essa aliança, por exemplo, comprometia o povo a buscar a Deus (v. 12-13,15), quer dizer, expres­sar obediência total a ele. Esse é um significado especial de “buscar”. Ao passo que em outras partes se referia ou a uma ocasião específica (e.g. v. 4; 20.4) ou a uma atitude geral de seguir os caminhos de Deus (lC r 28.9; 2Cr 7.14; 34.3), aqui é equivalente a um total compromisso com Deus. Isso é combinado com uma variedade de expressões de a liança associadas p rin c ip a lm en te com Deuteronômio. A frase com todo seu coração e alma (v. 12; cf. v. 15, “com todo seu coração”, NRSV, RSV, etc.) é encontrada em e.g. Deuteronômio 6.5; 10.12;11.13; uma pena de morte para quem não se subm etesse (v. 13) segue Deuteronômio 13.6-10; 17.2-7; e uma aliança confirmada por um juramento (v. 14-15)émencionadaemDeuteronômio29.12, 14(cf. Ne 10.29).

Esses elos indicam que essa aliança está baseada na tradição da aliança do Sinai. Como no caso da maioria das cerimônias de aliança, essa tradição estava sendo aplicada a novas circunstâncias. A nova situação tinha sido criada pela divisão da monarquia vinte e cinco anos antes, de forma que essa cerimônia é na realidade a instalação da constituição religiosa de Judá, reconhecendo a conti­nuação dos propósitos da aliança de Deus baseados na linhagem davídica e no templo de Jerusalém. E por isso que muitos nortistas participaram (v. 9), e lhes foi exigido abandonar (cf. v. 2) o culto idólatra do norte (cf. v. 8,16-18) como também cuidar do altar no templo do S e n h o r (v . 8 ) . A importância da ocasião provavel­mente também explica as lembranças do tempo de Davi e Salomão. A aclamação e regozijo (v. 14-15) estão relacionados com Davi (lC r 15.25,28) e a paz por todos os lados com Salomão (lC r 22.9,18; 28.2). Só aqui no Antigo Testamento é dito que Israel deve ser encontrado por Deus (v. 15; cf. v. 2).

(ii) Outras reformas (15.16-19). Os detalhes adicionais das reformas de Asa(v. 16-18) estão baseados em IReis 15.13-15,emboraafidelidadedeCrôni-

104 É preciso fazer um a distinção entre as alianças po lítica e religiosa, pois Crônicas repete três do tipo anteriorm ente m encionados em Sam uel-Reis ( lC r 11.3 = 2Sm 5.3; 2Cr 16.3 = IR eis 15.19; 2Cr 23.1 = 2Reis 11.4).

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cas ao texto mais antigo tenha resultado em duas aparentes contradições no versículo 17, que Asa não removeu os lugares altos (contra 14.3, 5) e que seu coração estava completamente comprometido com o S e n h o r toda sua vida (contra o cap. 16). O cronista, no entanto, nem sempre harmoniza cada detalhe ao citar de fontes diferentes. Nesse caso, a inocência total de Asa não foi nega­da pelo declínio contrastante dos seus últimos poucos anos. O mesmo tipo de explicação também pode se aplicar aos lugares altos, de forma que 14.3, 5 se referiria à política geral de Asa enquanto o versículo 17 indicaria o fato de que ela não foi levada a cabo completamente. É mais provável, porém, que o acrésci­mo da expressão de Israel (cf. lRs 15.14; cf. v. 8) sugira que o cronista distinguia entre os lugares altos em Judá (14.3, 5) e os de Israel (15.17).105

A função da rainha mãe (v. 16) foi muito importante, especialmente pelo fato de que, no caso de Asa, ele era menor de idade quando de sua ascensão, e Maaca provavelmente teve controle total durante os anos iniciais de seu reina­do. Ao chamá-la de avó de Asa, NVI, REB, NEB, e GNB presumem que ela seja a mesma pessoa de 13.2; IReis 15.2,10, m asnãoésábio ser tão dogmático. O fato de ela ter um objeto pessoal de adoração dá continuidade uma tradição de esposas reais que remonta a Salomão (cf. lRs 11.1-5; 16.31; 17.19). Sua “imagem de Aserá” (poste sagrado, NVI) parece ter sido particularmente repulsiva (“obs­cena”, GNB, REB, NEB), uma palavra hebraica que ocorre só aqui e em IReis15.13. O vale de Cedrom era um famoso depósito de entulho para objetos religi­osos não desejados (cf. 2Cr29.16; 30.14; 2C r23.4,6,12).

A consagração de artigos de metal precioso (v. 18) foi uma prática iniciada por Davi (IC r 18.11; 22.3; 29.1-2; 2Cr 5.1), embora nada seja conhecido de tais ações de devoção por Abias ou Asa de outras fontes.

O versículo 19 parece indicar que Judá e Israel estavam em paz entre o décimo quinto e o trigésimo quinto anos de Asa (cf. v. 10), confirmando o versículo15. Isso é provavelmente conciliável com a declaração em IReis 15.16 que um estado de guerra existiu entre Baasa de Israel (cf. 16.1) e Asa ao longo de seus reinados, permitindo hostilidades algum tempo entre o décimo (14.1) e décimo quinto anos de Asa (15.10) e também em seu trigésimo sexto ano (16.1). O que aparentemente não é reconciliável é que Baasa avançou contra Judá no trigési­mo sexto ano de Asa, visto que Baasa morreu no vigésimo sexto ano de Asa (1 Rs 15.33; 16.8). O rei de Israel no trigésimo sexto ano de Asa era Onri, o terceiro sucessor de Baasa!

Considerando que Reis e Crônicas concordam que Asa reinou por quarenta e um anos (lRs 15.10; 2Cr 16.13; i.e., ou c. 910-869 a.C. [Thiele] ou c. 913-873 a.C. [Albright]), parece à primeira vista que Crônicas ou está seguindo um esquema diferente para a monarquia israelita aqui (mas só aqui!) ou que ocorreu algum erro do escriba. Porém, duas outras alternativas são possíveis. A mais engenhosa é

105 Veja tam bém e especialm ente Dillard, p. 117-118.

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seguir Thiele, vendo esse trecho e 16.1 como referência ao trigésimo quinto e trigésimo sexto anos depois da divisão, o que convenientemente os igualaria ao décimo quinto e décimo sexto anos de Asa, e se ajustaria perfeitamente com a data para a aliança. Tal fórmula, no entanto, seria única no Antigo Testamento. Caso contrário, a discrepância pode ser atribuída aos propósitos teológicos do cronis­ta, fazendo com que a devoção de Asa seja seguida por paz e a sua incredulidade por aflição. Isso, no entanto, é igualmente insatisfatório, não menos porque o ataque de Baasa (16.1) não pode ser facilmente encaixado em um tal esquema de recompensa e castigo. Não existe, portanto, nenhuma solução segura o bastante.

e. A aliança de Asa com Ben-Hadade (16.1-6). Os últimos cinco anos de Asa, contados no capítulo 16, invertem completamente o padrão do restan­te de sua vida, um declínio que é tanto mais inesperado porque parece ter começado de um ato de hostilidade não provocado (v. 1). Daquele ponto em diante, porém, Asa parecia determinado a seguir seu próprio caminho, e ele seguiu sua rejeição inicial da ajuda de Deus (v. 2-3) perseguindo um profeta (v.10), oprimindo seu povo (v. 10), e negligenciando a Deus (v. 12). Um padrão se desenvolveu então, o qual, embora possa ter começado sem querer, se tornou uma série de decisões conscientes.

Isso é fica claro por uma estrutura literária que mostra quão completa e deliberadamente Asa voltou suas costas a suas atitudes e realizações passadas (caps. 14-15). Cada seção do capítulo 16 tem uma contraparte negativa com os períodos mais antigos na vida de Asa.

16.1-6 Uma aliança com Ben-Hadade da Síria16.7-10 Uma profecia por Hanani16.11-14 A morte e enterro de Asa

A aliança com Ben-Hadade (v. 1-6) compara-se desfavoravelmente com a aliança de 15.9-15, o alerta profético de Hanani (v. 7-10) deve ser contrastado com o encorajamento de Azarias (15.1-8), o conflito com Israel (v. 1-10) reverte a experiência de Asa de fé e vitória na guerra cuxita (14.8-15), e ele já não busca mais a Deus quando fica doente (v. 11-12; cf. 14.4,7; 15.2,12,15). Frases incidentais revelam outros contrastes, tais como prata e ouro (v. 2; cf. 5.1; 14.13-15), que os sírios ou arameus escaparam embora os cuxitas tivessem fugido (v. 7; cf. 14.12), que Israel estava agora oprimido em vez de seus inimigos estarem sendo que­brados (v. 9; cf. 14.13), e a respeito daqueles cujos corações estavam comprome­tidos com Deus (v. 9; cf. 15.17).

O capítulo 16 está baseado em IReis 15, mas, embora as mudanças sejam menos extensas que nos capítulos 14— 15, elas conduzem a uma interpretação bastante diferente. Ao passo que IReis 15.16-24 é um relatório comum da guerra israelita de Asa e sua doença, aqui Asa é criticado por falta de fé de uma forma

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que não tem analogia explícita em Reis. Outro elemento sem paralelo em Reis é o esquema de datação usado ao longo do capítulo. Não é possível saber, desse modo, que fontes o cronista pode ter usado ao apresentar o seu material, embora uma fonte seja nomeada (v. 11) e a profecia está sem dúvida conectada com a citação freqüente do cronista de autoridades proféticas (e.g. 2Cr 9.29; 12.15).

O tema do capítulo é uma versão negativa dos capítulos 14— 15, voltando- se da fé e da confiança à incredulidade. Asa confiou mais em seres humanos do que em Deus (v. 6-7; cf. 14.11), e não buscou a Deus como tinha feito previamente (v. 12). Esse contraste revela três aspectos importantes da fé. Primeiramente, a validez ou mesmo a existência da fé não pode ser justificada pelo sucesso ou não de uma atividade. Embora a guerra defensiva de Asa contra Israel fosse por uma causa justa e alcançasse seus objetivos (v. 4-6), isso em si mesmo não constituía evidência de confiança em Deus. Verdadeira fé é uma atitude correta para com Deus, e é basicamente uma questão de discernimento espiritual (cf. ICo 2.1-16), mesmo que possa ser exercitada no contexto de questões “mundanas” como política e guerra. Em segundo lugar, a fé é freqüentemente uma questão mais de prioridades corretas e tempo (gr. kairos, “tempo certo”, em lugar de chronos, “tempo concreto”) do que de regras inflexíveis. A incredulidade de Asa não esta­va relacionada a uma desaprovação geral de alianças políticas (v. 2-3) ou da profis­são médica (v. 12). Inclusive, ambas são até recomendadas em outros lugares na Bíblia. Embora em questões de ensino bíblico básico certas convicções estão corretas e outras estão erradas (e.g. Ex 20.3-6; lJo 5.11-12), quando e como exercer a fé em outras questões dependerá em parte das circunstâncias em que se estiver. Isso pode até resultar no que parecem ser contradições, como a opinião dos profetas sobre a defesa de Jerusalém (Is 37.33-35; Jr 19.1-15), ou a disposição de Jesus de ser entregue a seus oponentes (Lc 4.28-30; Jo 18.1-9). Ter uma ampla visão da Bíblia garante uma orientação muito mais segura para o viver cristão do que isolar um único incidente.

A terceira e provavelmente mais importante questão é se a fé anterior de Asa foi invalidada por essa incredulidade. A Bíblia assume algumas posturas possíveis sobre essa questão. Ela reconhece constantemente que a vida dos crentes é imperfeita, exigindo confissão regular e perdão (cf. SI 51; Jo 13.10; 1 Jo2.1-2), e que a disciplina dolorosa às vezes é necessária (cf. 2Sm 7.14; ICo 3.15; Hb 12.7-13). Por outro lado, aqueles que persistentemente rejeitam a Deus de­pois de provar sua graça são tratados com mais severidade (cf. Ez 18.24; Jo 15.6; Hb 10.26-31). Porém, em casos individuais, é melhor confiar na misericórdia de Deus para si mesmo do que fazer julgamentos superficiais sobre outros (cf. Mt7.1-5; Hb 10.19-25, 32-39). Isso também parece ser a abordagem do cronista, embora ele dê uma sugestão positiva de que a experiência de Asa da graça de Deus foi só reduzida em lugar de destruída (v. 14; cf. 14.2).

O objetivo de Baasa ao fortalecer Ramá provavelmente era impedir o aces­so a Jerusalém por razões religiosas ou comerciais (v. 1 \cf. 11.13-17; 15.9).Ramá

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normalmente é identificada com er-Ram, na estrada principal, apenas oito quilô­metros ao norte de Jerusalém.

Asa respondeu comprando um tratado (v. 3; “aliança”, JB, REB, NEB, NRSV; “liga”, RSV) com Ben-Hadade de Arã/Síria (v. 2). Um rei Ben-Hadade (aram. Bar- ou Bir-hadad) de Damasco é famoso, mas esse provavelmente é Ben- Hadade I, que deve ser distinguido de Ben-Hadade II, que se opôs a Acabe e Jorão (lR s 20-2Rs 8).106 Esse tratado é um dos três mencionados em Crônicas (a palavra heb. b‘rít é a mesma palavra para “aliança” [cf. 15.12], embora só este seja internacional (c/; 1 Cr 11.13; 2Cr 23.1). Davi provavelmente também se envol­veu em tratados de amizade, porém, com Hamate (2Sm 8.9-10; lC r 18.9-10) e Tiro (cf. 2Sm5.11; lCr 14.1; lRs 5.1). Crônicas alude a mais dois tratados, entre Abias e o pai de Ben-Hadade e entre Baasa e Ben-Hadade, nenhum dos quais é conhe­cido em outra fonte (porém, cf. 13.20). Baasa pode ter buscado proteção contra o poder em expansão de Damasco, mas Ben-Hadade era mais casual. Se o preço fosse correto, um tratado era tão bom quanto outro. Esse preço era prata e ouro (lC r 15.18 tem “todo o...”) do palácio e do templo (v. 2). Provavelmente foi a natureza especial dessa riqueza que fez Hanani tão crítico de Asa (v. 7), visto que representava os resultados das vitórias de Deus para Israel e os dons sacrificiais do seu povo (2Sm 8.6; lC r 18.11; 29.3-9; cf. 2Cr 12.9).

Inicialmente, as coisas foram favoráveis para Asa, com Baasa perdendo território em suas fronteiras norte e sul (v. 4-6). Ijom, Dã, e Abel-Maim (igual a Abel-Betesda-Maaca, lRs 15.20) ficavam todas dentro de Naftali ou perto da estrada do vale de Rift (v. 4).107 As cidades celeiro são “Quinerete” em IReis 15.20 que se tomou Geneserete no período pós-exílico (Josefo, Jewish Wars, 2.573). O texto do cronista aqui pode ter diferido ligeiramente do TM de Reis, visto que as “cidades celeiro” poderiam representar ou a forma plural de Quinerete ou “toda a terra de Naftali”. A localização de Geba (“colina”) e Mispa (“posto de vigilância”) é discutível, em parte porque esses nomes podiam se aplicar a vários lugares. Porém, é mais provável que elas representem Jeba e Tell en-Nasbeh, aproximadamente 9,5 e 12,8 quilômetros respectivamente ao norte de Jerusalém, empurrando assim a fronteira alguns quilômetros de volta para Israel. Geba se tomou a fronteira reconhecido de Judá (2Rs 23.8), provavelmente o primeiro posto de fronteira estável desde a divisão, embora não se saiba se o trabalho de construção defensivo de Asa pertenceu a essa fase do conflito (Jr 41.9).

/ . Asa rejeita a palavra de um profeta (16.7-10). Os limites da profecia são marcados por naquele tempo nos versículos 7 e 10 (o heb. tem a mesma frase, EVV

106 Cf. F. M. Cross, “The stele dedicated to Melcarth by Ben-hadad o f Damascus”, BASOR 205, 1972, p. 36— 42; K. A. Kitchen, IBD, p. 184. Sobre um ponto de vista alternativo de que Ben-Hadade não deve ser distinguido, veja J. C. L. Gibson, Textbook o f Syrian Semitic Inscriptions, 2 (Oxford; C larendon Press, 1975), p. 1-4.

107 Cf. D. Baly, Geography o f the Bihle (Guildford: Lutterworth, 21974), p. 98, 192-193.

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2CRÔNICAS 13.1— 16.14

têm na mesma ocasião no v. 10). Hanani provavelmente deve ser identificado com o pai do profeta Jeú, que atuou no reinado do filho de Asa (lRs 16.1,7; 2Cr 19.2;20.34). Vidente (heb. rõ’eh) é um palavra antiga em geral associada com o período de Samuel (e.g. lS m 9.9 ,19; 1&9.22; 26.28; porém ,c/ls 30.10).Sua ocorrência aqui pode aludir à antigüidade da fonte do cronista para essa profecia.

A mensagem da profecia é nitidamente oposta ao tom encorajador de Azarias (15.1-7). Asa tinha cometido uma l o u c u r a (v. 9) ao não confiar em Deus (v. 7), e seu tratado (v. 3) tinha negado sua antiga aliança (15.9-15). Ele também tinha rejeitado o princípio da “guerra de Javé” (c f . 14.9-15). Onde previamente Asa havia c o n f i a d o no Deus que o havia l i v r a d o de um e x é r c i t o p o d e r o s o (v. 8; c f. 14.11), agora ele c o n f i a v a somente em recursos humanos (v. 7). O inimigo tinha portanto e s c a p a d o d e s u a m ã o em vez de ser e n t r e g u e e m s u a m ã o (v. 7-8). A reação de Asa só foi igualada pelos atos de insensatez de Saul e Davi e pela incredulidade de Acaz. Por “agir loucamente” (v. 9, REB, NEB), Saul perdeu um reino (ISm 13.13) e Davi chegou perto disso (lC r 21.8; o único outro uso desse verbo em Crônicas), enquanto o apelo de Acaz à ajuda militar estrangeira o deixou em grande dificuldade (2Cr 28.16-21).

Como Azarias, Hanani também acha apoio na literatura profética. A má vontade de Acaz em acreditar em Deus quando ameaçado por Israel (Is 7.9) reflete-se na falta de confiança de Asa (c f . v. 7; “confiar” também ocorre em Is 10.20; 31.1), enquanto Zacharias 4.10 ( o s o l h o s d o S e n h o r p e r c o r r e m a t e r r a )

que é citado diretamente no versículo 9, é usado para encorajar aqueles cuja fé se volta para Deus.

Hanani menciona duas conseqüências surpreendentes da incredulidade de Asa: que foi o exército sírio e não o israelita (cf. LXX (L)) que escapou (v. 7), e que Asa sofreria guerras futuras (v. 9). De fato, a Síria foi uma ameaça crescente aos sucessores de Asa, que Hanani insinua que poderia ter sido detida na fonte (cf. 18.30; 22.5). A vitória sobre a Síria também teria estendido o sucesso anterior de Asa, de forma que sua incredulidade não deveria ser medida pela vitória sobre Israel (v. 6), mas por uma oportunidade perdida (cf. lRs 20.31-34; 2Rs 13.14-19). O segundo problema é que não é mencionada nenhuma outra guerra de Asa, talvez porque o castigo fosse adiado até o reinado de Josafá (cap. 18). Essa é pelo menos uma ocasião em que a retribuição não foi imediata.

A resposta furiosa de Asa levou ao primeiro caso conhecido de persegui­ção profética e à opressão de seu próprio povo (v. 10). Não se conhece a forma precisa do castigo de Hanani, embora provavelmente ele tenha sido detido em algum tipo de prisão (lit., “casa do tronco”; cf. NIV, prisão; a palavra para “pri­são” em 18.26 é diferente).

g. A sa não busca a Deus (16.11-12). Três acréscimos importantes a IReis 15.23-24 aparecem no relato da morte e enterro de Asa nos versículos 11- 14, os quais têm paralelos nos acréscimos ao relato de Ezequias. O primeiro é

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o acréscimo de “e Israel” na primeira ocorrência em Crônicas de o livro dos reis de Judá e Israel (v. 11; cf. 2Cr 25.26; 28.26; 32.32). O título dessa fonte, que é diferente dos livros bíblicos de Reis, confirma que o reino de Judá ainda é o povo de Israel (cf. 11.3; 12.1).

Em segundo lugar, detalhes extras são fornecidos sobre a doença de Asa (v. 12) que poderia ser gota, hidropisia, ou “gangrena” (NEB). A doença pode ser castigo divino (cf. v. 7-10), mas a crítica mais séria é que Asa buscou os “médicos” (GNB, JB) ao invés de o S e n h o r enquanto estava enfermo. Visto que “essa é a única vez na Bíblia em que a consulta aos médicos é considerada um pecado”, esse não pode ser um ataque à profissão médica (em uma perspectiva positiva, cf. Gn 50.2; Jr 8.22; Is 38.21; Cl 4.14).108 Sem dúvida, Asa não reconhece o Senhor como a verdadeira fonte de cura (cf. Êx 15.26; SI 103.3). A idéia de buscar a Deus para receber cura pode mostrar influência dos Salmos (e.g. 34.4;77.2) e de dois exemplos irônicos em Reis em que um rei israelita buscou Baal- Zebube e morreu (2Cr 1.2, 6, 16) e um rei arameu foi restabelecido depois de buscar o Senhor (2Rs 8.8). Visto que os profetas estavam envolvidos em ambos os incidentes em Reis (cf. também 2Rs 20.5), pode ser que se esperasse que Asa tivesse ajuda por meio de um profeta, especialmente porque “médicos” pode implicar “antepassados” ou “médiuns”.109 Em tudo isso, Asa abandonou e des­prezou seu próprio padrão (14.4,7; 15.12,15), embora estranhamente o padrão também fosse seguido por Ezequias, que, apesar do fato de ter sido curado, “não respondeu à bondade que lhe foi mostrada” (2Cr 32.25).

h. Fórmula de conclusão (16.13-14). A terceira mudança proporciona mais detalhes do funeral de Asa (v. 14). Enterros são importantes em Crônicas (informa­ção é acrescentada a Reis em e.g. 21.20; 24.25), e a honra especial concedida a Asa (cf. também Ezequias, 2Cr 32.33) provavelmente é um sinal de que, apesar do seu fracasso, a avaliação global permaneceu válida (cf. 14.2). A natureza incomum do tributo é indicada pela “túmulo de pedra” (GNB) pessoal que ele tinha “cavado” (JB), a variedade especial de especiarias, e o fato de que a fogueira foi “muito grande” (NRSV, RSV). Tais fogueiras eram comuns em funerais de reis (cf. Jr 34.5), e não eram para cremar o corpo mas um sinal de honra (cf. 2Cr 21.19).

C. Josafá (17.1— 21.1)i. Introdução (17.1-19).“O S e n h o r foi com Josafá (17.3).n . l a - c f . IReis 15.24bJosafá ocupa os próximos quatro capítulos (17— 20), e, como no caso de

todos os seus antecessores na M onarquia Dividida, a versão do cronista

108 Japhet, Ideology, p. 256, n. 186.109 C f e.g. de Vries, p. 304; G. C. Heider, The Cult o f Molek, JSOTS 43 (Sheffield: JSOT

Press, 1985), p. 399-400.

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2CRÔNICAS 17.1—21.1

difere muito de Reis. Novamente Crônicas é muito mais longo e tem uma ava­liação mais variada, embora a diferença mais notável seja a nova importância global dada a Josafá. Ao passo que em Reis ele é principalmente um adjunto do reino do norte (lR s 22.1-38; 2Rs 3.4-27; c f lRs 22.41-50), ele assume o centro do palco no relato de Crônicas da Monarquia Dividida (caps. 10— 28), exemplificando muitos dos temas fundamentais de Crônicas. Ele é um homem de oração e fé que remove símbolos idólatras, dá à lei de Deus nova prioridade, e tem uma preocupação especial pelos levitas. A maneira típica de Crônicas, ele é abençoado com um exército forte, novas construções, riqueza e reconhe­cimento internacional. Por outro lado, sua disposição para compromissos com o reino do norte é uma fraqueza notável, e nem ele nem seu povo estão comple­tamente comprometidos com Deus.

Seu reinado, portanto, como no caso de todos os melhores reis de Judá, é misto, e, longe de varrer os elementos negativos para debaixo do tapete, Crônicas acrescenta duas profecias diretamente críticas a Josafá (19.1- 3; 20.37). Porém, o efeito global é destacar a função crucial de Deus na preservação de seu povo, como pode ser visto em uma passagem fundamen­tal que retrata bem o reinado de Josafá e a M onarquia Dividida (20.14-22). Um profeta levítico e o próprio rei apelam ao povo a p e r m a n e c e r e m f i r m e s e

v e r a l i b e r t a ç ã o q u e o S e n h o r d a r á , porque eles têm a garantia de que o S e n h o r e s t á c o n v o s c o (20.17).

O capítulo 17 é uma espécie de abertura aos capítulos 18—20, introduzindo brevemente muitas questões que depois são tratadas com mais profundidade. Isso é verdade principalmente com relação à seção de abertura (v. 1-6), mas tam­bém se aplica às questões do ensino da lei de Deus e do temor do S e n h o r (v. 7-11; c f. 19.1-11; 20.29-30) e às forças armadas (v. 12-19; c f. caps. 18 e 20).

O tema principal ocorre nos versículos 1-6, onde a atividade de Deus em favor de Judá é equilibrado com a fé prática de Josafá. Deus é mencionado quatro vezes, duas descrevendo o que ele tem feito para Josafá (v. 3, 5) e duas vezes relativas à atitude de Josafá para com ele (v. 4,6). A presença de Deus com o rei e seu povo é especialmente importante nos capítulos 17— 20 ( c f . v. 3; 19.6, 11; 20.17). Essa é mais uma das ênfases favoritas de Crônicas, com exemplos que se estendem de Jabez ( lC r 4.10) aos exilados (2Cr 36.23), embora também venha à tona no reinado de Asa (2Cr 15.2, 9). Ela fala da presença de Deus e da sua ajuda, como na declaração de que Deus estabeleceu o reino de Josafá (v. 5). Por outro lado, a parte de Josafá buscando a Deus (v. 4) e o seu orgulho em servi-lo (v. 6, c f. GNB, REB, NEB) são igualmente vitais. Seus próprios fracassos não deveriam diminuir a realidade de sua confiança em Deus. Sua fé não era quietista, pois dela dependia a própria sobrevivência da nação. Um equilíbrio semelhante aparece no chamado de Paulo para os cristãos desenvolverem sua salvação porque Deus opera neles (F12.12-13), e em sua própria experiência de se esforçar com toda a energia de Deus (Cl 1.29).

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a. Josafá fortalece seu reino (17.1-6). As várias atividades de Josafá ante­cipam o restante de seu reinado. As frases seguintes ocorrem periodicamente: as tropas (v. 2; cf. 17.13b-19; caps. 18,20) e as cidades fortificadas (v. 2;cf. 17.12,19;19.5), a sua atividade em Efraim (v. 2; cf. 19.4), os presentes ganhados (v. 5; cf.17.11), a sua posse de grande riqueza e honra (v. 5; cf. 18.1), que o S e n h o r esteve, está ou estará convosco (v. 3; cf. 19.6,11; 20;17), que ele buscou a Deus (v. 4; cf. 18.4, 7; 19.3; 20.3-4; 22.9) e andou nos caminhos de seu pai (v. 3; cf. 20.32), e removeu as Aserás ou postes sagrados (v. 6; cf. 19.3). Sobre os lugares altos que são tema de declarações contraditórias no versículo 6 e 20.33, veja abaixo.

A seção tem duas partes, a primeira concentrando-se na atividade militar de Josafá (v. 1 -2) e a segunda em sua atividade religiosa (v. 3-6). Ele se fortaleceu (v.1) é uma idéia familiar em Crônicas (cf. 2Cr 1.1; 12.1; 26.8,15; 27.5). Seu significado não é principalmente militar, apesar do contexto imediato do versículo 2, mas à luz de passagens semelhantes refere-se aos vários tópicos mencionados nos versículos 1 -6. Se esse fortalecimento ocorreu em Judá ou Israel é menos certo. A maior parte das EVV lê contra Israel, supondo que Josafá estava confirmando a ampliação da fronteira israelita por Asa (cf. 16.6; 17.2), mas é preferível “sobre Israel”, compreendendo Israel em seu sentido religioso. Essa tese é apoiada pelos fatos de que somente Crônicas aplica a expressão “fortalecer-se” ao reinado do próprio governante, que Josafá não era hostil ao norte (cap. 18; 20.35-37; 2Rs 3.4- 27), e que as atividades do versículo 2 incluem Judá. As cidades fortificadas de Judá (v. 2) são presumivelmente as construídas por Roboão (11.5-12), e as cidades em Efraim que seu pai Asa capturou (v. 2) refere-se aos lugares em 15.8 (a frase heb. é quase idêntica, sugerindo antes o monte Efraim do que o reino do norte) e não àqueles em 13.19; 16.6, que eram principalmente benjamitas.

As atividades religiosas de Josafá (v. 3-6) são refletidas em dois padrões relacionados. Primeiramente, há uma disposição quiástica que envolve várias frases acerca de “andar nos caminhos de” (v. 3-4, 6) e o verbo “buscar” (v. 3-4). A parte externa do quiasma é formada por andou nos caminhos de seu pai (v. 3a) e nos caminhos do S e n h o r (v . 6), e a parte interna (v. 3b, 4) pelas frases contrastantes sobre o Deus a quem Josafá buscou (v. 3; consultar e buscar traduzem o mesmo verbo heb.). “Ele andou em seus mandamentos” (v. 4, lit.) é uma frase confirmatória. O segundo padrão é formado pelo contraste já mencio­nado entre a presença e a ajuda de Deus a Josafá (v. 3,5) e o compromisso deste para com Deus (v. 4,6). Essas formas literárias confirmam que a ajuda de Deus e a fé obediente de Josafá são as bases do seu sucesso.

Vários refinamentos são dignos de nota. O pai de Josafá poderia ser Asa ou Davi (v. 3). Só a NIV entre EVV retém Davi (TM), com o restante seguindo a LXX por causa da referência incomum aos “primeiros caminhos” de Davi (embo­ra não seja completamente sem analogia, cf. lC r 29.29).110 Na realidade, prova­

1,0 N IV tam bém erroneam ente transferiu os “anos recen tes” do pai de Josafá para o próprio Josafá. O TM, no entanto, é apoiado por D. Barthélem y, CTAT, p. 493.

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velmente trata-se de Asa, já que seu reinado é dividido em duas partes (caps.14— 15 e 16), e porque um rei é comparado freqüentemente em capítulos próxi­mos com seu próprio pai (20.32; 21.12; 22.9). Os baalins, mencionados pela primeira vez em Crônicas (v. 3), provavelmente aludem ao conflito de Elias com Acabe e Jesabel. O estabelecimento do reino por Deus (v. 5), que se encaixa na ênfase de Crônicas sobre o dom de Deus de um reino para Israel (cf. e.g. lC r 10.14; 14.2; 22.10), cumpre parte das promessas da aliança davídica (lC r 17.11;28.7). E uma indicação segura da autoridade contínua de Deus sobre seu povo. Aexpressão “teve orgulho em” (v. 6, GNB, REB, NEB; “seguiu corajosamente”, NVI; “corajoso”, NRSV, RSV) é única nesse sentido positivo, mas transmite bem a determinação de Josafá em seguir ao Senhor. A menção dos lugares altos é duplamente problemática, visto que se supunha que Asa os tivesse removido de Judá (14.3, 5), mas uma declaração posterior indica que eles não tinham sido completamente removidos (20.33; cf. também 15.17). Embora essas declarações contraditórias possam ser explicadas em parte pela citação de fontes diferentes por parte do cronista, elas também podem ser um testemunho da profunda influ­ência das formas cananéias e sincretistas de religião sobre os israelitas comuns. Opiniões e costumes populares são muitas vezes bastante diferentes dos pro­nunciamentos feitos por autoridades religiosas. Sobre os postes de Aserá (v. 6), veja comentário sobre 14.3.

b. A s bênçãos de Josafá (17.7-11). Esse parágrafo continua a apontar para os capítulos 18— 20, resumindo três das realizações de Josafá. A primeira é a designação de oficiais (v. 7), levitas (v. 8) e sacerdotes (v. 8) para ensinar (v. 7,9) o povo usando o Livro da Lei do S e n h o r (v . 9). Esse evento está associado, se não for idêntico, a uma campanha semelhante por alguns juizes em 19.4-11, visto ambos envolviam a mesma gama de líderes e estavam baseados na lei, que era presumivelmente alguma forma do Pentateuco (c f 19.8,10).

Um ministério pedagógico exercido pelos sacerdotes é conhecido em várias partes do Antigo Testamento (cf. e.g. Lv 10.11;Dt33.10;Os4.1-6;M 12.7),masa evidência do ensino pelos levitas é geralmente restrita ao período pós-exílico (especialmente Ne 8.7-9). Isso não deve abalar a probabilidade histórica dessa atividade no século IX a.C., mas enfatizar sua importância para o Israel pós-exílico, onde a reforma surgiu da convicção de que a palavra de Deus deveria ser o fundamento da vida nacional. A campanha de Josafá, de fato, pode ter se baseado na aliança de Asa (15.12-15) que estava interessada igualmente em aplicar as exigências da palavra de Deus à situação atual do povo. Embora o povo estivesse completamente envolvido em ambos os eventos, agora a palavra de Deus era trazida para onde o povo vivia. Josafá pode também ter tentado desligar o povo de sua relação com os lugares altos da região (cf. v. 6). Nesse caso, trata-se de um movimento de uma forma sacramental de religião para uma onde o culto de acordo com o padrão revelado por Deus (cf caps. 5—7) foi combinado com a autoridade

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de sua palavra escrita. Ela também convidava o povo comum e os líderes civis a levar a palavra de Deus a sério (c f. também v. 16). A data no te r c e i r o a n o do rei (v. 7) insinua uma co-regência com Asa que faria desse o primeiro ano em que ele reinava sozinho (c f . 16.12 e comentário sobre 20.31).

A segunda e a terceira das realizações de Josafá são a paz (v. 10) e a riqueza (v. 11). Essas são atribuídas ao t e m o r d o S e n h o r (v . 10), i . e . , um reconhecimento por estrangeiros de alguma proteção especial sobre Judá. O fato de que elas são mencionadas logo depois da campanha do “De volta à Bíblia” sugere que elas são resultado de fidelidade à palavra de Deus. Como nos versículos 1-6, algu­mas frases antecipam elementos posteriores do reinado de Josafá. Por exemplo, o t e m o r d o S e n h o r ocorre em 19.7,9; 20.29; a designação de s a c e r d o t e s e l e v i t a s

em 19.8 (c f . também a função de um levita e dos cantores em 20.14,21); o s r e i n o s

d a s t e r r a s em 20.29, c f 20.6; e a ausência de guerra em 20.29. Visto que esses temas e frases são indicativos de bênçãos celestiais ao longo de Crônicas, Josafá é apresentado como alguém especialmente favorecido (sobre t e m o r d o

S e n h o r , c f . lC r 14.17; 2Cr 14.14; os r e i n o s d a s t e r r a s , c f . lC r 29.30; e a ausência de guerra, c f. lC r 22.9; 2Cr 14.1; 15.19).

A palavra para t r i b u t o (v. 11) teria esse significado só aqui, e pode ser mais bem traduzida por “uma grande quantidade” (REB, NEB, c f. GNB). Os á r a b e s (v.11) são mencionados algumas vezes em Crônicas ao lado dos filisteus como tribos que vivem no sudeste da Palestina (c f . 2Cr 21.16-17; 26.6-8). Os textos mais antigos que mencionam os árabes datam do século IX a.C., e essa descri­ção iguala-se àquelas em inscrições assírias de apenas um século depois.111

c. Os recursos militares de Josafá (17.12-19). Detalhes da fortificação, suprimentos (v. 12-13a) e tropas de Josafá (v. 13b-19) são dados em antecipação às batalhas de Josafá nos capítulos 18 e 20 (c f . também v. 1-2). Ele aparentemente aumentou o número á e f o r t a l e z a s (v. 12) além das construídas por Roboão (11.5-12) e Asa (14.6-7). Esse era um sinal da força dada por Deus, embora tivesse seus perigos (2Cr 26.15-16). Nessas cidades, ele provavelmente mantinha s u p r i m e n t o s

(NVI, e t c . ) em vez de estar ocupado com “muitas obras” (v. 13, ARA, REB, NEB).Os números da tropa são baseados em uma lista de chamada (v. 14, NRSV,

RSV) ou alistamento (NIV, c f. REB, NEB). Eles são contados por f a m í l i a s (v. 14, NIV, JB; “as casas dos pais”, RSV; qualquer um é melhor que “clãs”, GNB, REB, NEB) dos recrutamentos tribais, embora um exército permanente seja menciona­do no versículo 19 e provavelmente no versículo 13b. O estilo da lista sugere que ela se originou de algum tipo de lista de censo militar (Williamson). Como em outras passagens, m i l provavelmente deve ser entendido como uma unidade militar, embora esses números ainda sejam extraordinariamente altos (c f . 14.8;25.5-6; 26.12-13). A observação de que um dos chefes “ofereceu-se para o servi­

111 Cf. I. E pha’al, The A ncient A rabs (Jerusalem: M agnes Press, 1982), p. 75-78.

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ço do S e n h o r ” (v . 16 , REB, NEB) infelizmente não é explicada, embora mostre que o espírito de sacrifício da época de Davi ainda existia (lC r 29.5; cf. 2Cr 29.31). A frase, que literalmente significa “se ofereceu livremente”, encontra eco no Novo Testamento (Rm 12.1; 2Tm 4.6; Hb 10.7).

ii. Josafá, Acabe e os profetas (18.1— 19.3)“Jeú... disse ao rei, “Devias tu ajudar o perverso e amar aqueles que abor­

recem o S e n h o r ?’” (19.2).1 8 .2 -3 4 -# IReis 22.2-35A tentativa de Josafá e Acabe de retomar Ramote-Gileade dos sírios é uma

narrativa altamente intrigante que envolve o entrelaçamento de duas linhas diferentes. Embora abertamente trate da guerra, ela mostra principalmente que Deus cumpre sua palavra profética apesar de todos os esforços humanos em contrário. Nesse caso, essa palavra levou a resultados contrastantes, trazendo morte para Acabe (v. 33-34) mas uma libertação milagrosa para Josafá, embora este também recebesse uma advertência (18.31-32; 19.1-3).

O texto segue 1 Reis 22 muito de perto, com exceção de acréscimos no princípio e no fim (18.1-2; 19.1-3), com outras mudanças secundárias no versículo 31 e em alguns verbos que mudam do singular para o plural (e.g. v. 5,14,29). As alterações não são extensas, mas, à luz de um contexto diferente para o capítulo, elas são suficientemente importantes para mudar a interpretação de toda a nar­rativa. Ao passo que IReis 22 na realidade trata da confrontação de Acabe com Elias e os profetas no contexto de sua guerra com a Síria, aqui Acabe desempe­nha um papel de apoio a Josafá.

Em seu novo contexto, a história reflete dois dos interesses principais do cronista, dos quais o primeiro é a importância da profecia. Embora a forma de diálogo seja bastante diferente do estilo de pronunciamento mais habitual de profecias em Crônicas (e.g. lCr 17.4-14; 2Cr 15.17; 24.20), a importância da mensa­gem de Micaías (v. 7-27) é destacada pelo acréscimo de uma segunda profecia (19.1-3). O resultado é que a profecia é aplicada a ambos os reinos em vez de principalmente a Israel. Isso se une com o segundo interesse do cronista, isso é, a relação de Josafá com o reino do norte (18.1-2; 19.1-3). A despeito dos motivos bem-intencionados de Josafá (v. 3-4), ele dá mais um exemplo de uma união inacei­tável entre os dois reinos (cf. 10.18-19; 11.1-4; 13.3-19; 16.1-9). Como antes, entre­tanto, Crônicas mostra que o fracasso não é final, e uma rota alternativa preferível para a reunificação ainda está disponível (19.4; c / 11.13-17; 13.12; 15.8).

Essas questões eram muito pertinentes no tempo do cronista, quando Esdras e Neemias asseguraram que a palavra de Deus fosse restabelecida a sua função própria como fonte primária de autoridade em Israel. O cumprimento da palavra dos profetas foi um elemento fundamental naquela reforma (e.g. Ed 1.1; 5.1; 9.11; Ne 1.8-9; 9.30), como foi a relação de Judá com os sucessores do reino do norte. Exemplos específicos deste último incluem o debate sobre casamentos

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mistos (Ed 9— 10; Ne 13.1-3,23-29) e a reconstrução de Jerusalém (Ed 4.1 -23; Ne2.19-20; 4.1-15; 6.1-9; 13.4-9). Conflitos de um tipo semelhante afetaram a igreja do Novo Testamento. Desafios foram feitos à autoridade da palavra de Deus, inclusive à palavra dos profetas, ao ponto até de alguns voltarem aos funda­mentos de sua fé (e.g. G13.1-5; 2Pe 2.1-3; lJo 4.1-3). Outros como Josafá foram censurados por entrar em parcerias formais com aqueles que negavam as própri­as bases do evangelho. Como aqui, isso poderia incluir participantes da idolatria (2Co6.14—7 .1 ;# lRs 16.30-33; 18.18-19; 21.25-26) como também pessoas que negavam a encarnação de Cristo (2Jo 7-11).

a. Uma aliança para a guerra (18.1-3). Uma ligação adequada com IReis 22 só começa no versículo 3, seguindo uma introdução bem diferente (v.1 -2) que apresenta o tema de que a relação de Josafá com Acabe era um desvio dos propósitos de Deus (cf. 19.1-3). Ela também deixa claro que sua associação não era o resultado do oportunismo de Acabe mas de uma “aliança” formal (v. 1, NRSV, RSV). Essa aliança tinha sido selada alguns anos antes da batalha (cf.v. 2) por um matrimônio entre Jeorão, filho de Josafá, e Atalia, filha de Acabe (cf. 2Rs 8.18; 2Cr 21.6). Tais alianças de matrimônio eram típicas no mundo antigo, servindo freqüentemente como uma expressão de paz entre aqueles que antes tinham sido adversários (cf. lR s 22.44). Visto que, nesta ocasião, a paz tinha vindo após cinqüenta anos de hostilidades, para muitos deve ter sido bem-vinda não importando o preço. Para o cronista, no entanto, mesmo a união dos dois reis contra um inimigo comum não era suficiente para dar aprovação divina à aliança (cf. 10.18-19; 11.1-4; 13.3-19; 16.1-9). As razões para o descontentamento de Deus são indicadas no versículo 1, que poderia ser traduzido, “Embora ele tivesse grande riqueza e honra, ele se aliou...” a grande riqueza e honra de Josafá, embora fosse uma bênção celestial (17.5), o cegou para a realidade que Acabe era implacavelmente oposto aos caminhos de Deus (19.2; cf. lRs 16.30-33; 18.18; 21.20,25-26).

Acabe provavelmente esperava que seria bem fácil reconquistar Ramote- Gileade, uma cidade murada a sudeste do mar da Galiléia (provavelmente Tell Ramith), visto que com encorajamento profético suas forças tinham rechaçado ataques sírios duas vezes (lR s 20.1-21,22-34). A caráter vago da data do cronis­ta (Alguns anos mais tarde, v. 2) é devido a sua omissão do curso anterior da guerra (cf. lRs 22.1-2). Acabe pode ter sido motivado por Ben-Hadade a não observar as condições de seu tratado com Israel (lR s 20.34), mas, qualquer que seja a razão, Josafá estava completamente pronto para essa aliança. As suas pala­vras, eu sou como és... (v. 4), implicam compromisso com um contrato ou tratado (cf. Rt 1.16; 2Rs 3.7), como também é implicado na crítica do profeta (19.2).

b. Os profetas e a guerra (18.4-27). A parte principal do capítulo é um diálogo entre os dois reis e os profetas. E passa por várias fases distintas.

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i. Profecias enganosas (18.4-14). O primeiro grupo de profecias surge em resposta à tentativa repetida de Josafá (mas não de Acabe) de “consultar” ao Senhor (v. 4, 6-7, GNB). O verbo hebraico é traduzido freqüentemente por “bus­car” (cf. 15.2; 19.3), e é usado aqui em seu sentido mais familiar no Antigo Testa­mento de buscar orientação dos profetas (cf. lRs 14.5; Jr21.2;Ez 14.7,10). Acabe no princípio parecia bastante disposto a ouvir, embora aparentemente sem qual­quer intenção de obedecer ao que ele ouvia. Ele, entretanto, juntou quatrocentos profetas (v. 5), que provavelmente pertenciam ao grupo de profetas de Baal e Aserá que formavam um tipo de departamento de governo em Israel (1 Rs 18.19). Josafá não os reconhece como pertencentes aos profetas de Javé que tinham sido perseguidos recentemente (v. 6; cf. lRs 18.4), embora teria sido bastante aceitável naqueles tempos sincretistas falar em nome de mais de uma divindade (cf. v. 11).

Esses profetas inequivocamente prometem vitória. Deus a entregará na mão do rei (v. 5). A promessa é reafirmada duas vezes com palavras ligeiramente diferentes (v. 11,14), incluindo uma vez por Micaías (!), e também é apoiada pela ação simbólica de Zedequias (v. 10). Dramas desse tipo eram um método típico de revelação profética (cf. Jr 27— 28), baseado nesta ocasião nos chifres como um símbolo de força (cf. Dt 33.17; Dn 7.19— 8.12; Zc 1.18-21). Mas embora a promessa seja tão dominante, algumas alusões sugerem que ela não é a vontade de Deus. Nem Josafá (v. 6) nem Acabe (v. 7) aceitam que os profetas realmente falam em nome de Javé, enquanto a contribuição de Micaías é feita claramente a força (v. 12). Além disso, o quadro dos dois reis em plena regalia em um “espaço aberto” público, i.e., em uma eira (v. 9, NIV, NRSV, RSV), revela uma maior preocupação por sua imagem pública que em descobrir a verdade de Deus.

Até certo ponto pode-se entender por que essa profecia em particular foi dada. Ela foi, por exemplo, somente uma repetição de profecias anteriores (“entre­gues em sua mão” é idêntico a lRs 20.13, 28), embora os profetas não entendes­sem que religião emprestada sempre se deteriora. A impressão dos reis agindo juntos é mais forte aqui que em IReis 22, fortalecendo a razão dos profetas de querer conformar-se aos desejos dos seus mestres (devemos ir à guerra... ?, v. 5, e Sobe e triunfarás, v. 14, estão no plural em hebraico aqui e no singular em 1 Rs 22.6, 15; também o verbo final em v. 29). Havia uma tradição, há muito estabelecida, que remontava pelo menos ao reino de Mari, no século XVIII a.C., de que os profetas deveriam obedecer à política real, i.e., falar o que o rei considerava ser bom (v. 7,17; o mesmo termo heb. também subjaz a sucesso e favoravelmente no v. 12).

Porém, ainda é desconcertante por que Micaías deveria ter-se conformado aos outros profetas, quando sua submissão a Javé era reconhecida por todos (v.7,12-13). Possivelmente Micaías estava simplesmente sendo irônico ou os pro­fetas de Javé também tinham sido afetados pelo mal-estar da época. É mais provável, no entanto, que fosse um estratagema deliberado, dando a Acabe uma dose de seu próprio remédio como um sinal do julgamento de Deus sobre ele. É difícil que o nome de Deus tenha sido omitido por acidente, e.g., como uma

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sugestão de que essa não era a real orientação de Javé. Isso, porém, é antecipar a próxima seção do diálogo.

ii. A profecia de Micaías (18.15-22). A reação de Acabe (v. 15) sugere que ele não foi enganado por Micaías, e gostaria de ouvir a opinião real de Deus, na esperança de que pudesse apoiar seu próprio ponto de vista. Ela é concedida por meio de duas visões (ambas começam com Eu vi), a primeira dando a orien­tação de Deus sobre a batalha planejada (v. 16) e a outra explicando por que os profetas falaram daquela forma (v. 18-22).

Longe de encorajar Acabe, porém, a primeira profecia ou visão ordena todo mundo a ir para casa em paz (NIV, REB, NEB, GNB). Sua mensagem é transmitida por um quadro tradicional de Israel como o rebanho de Deus que é pastoreado por seus líderes. Nesse caso, porém, Israel estava sem um mestre. Embora isso normalmente seja considerado uma predição da derrota e morte de Acabe (cf. v. 34), é mais provável que ela seja uma representação de sua atual completa ineficácia na visão de Deus. Tragédias desse tipo não eram novas nem impossíveis de se repetir (cf. Nra 27.16-17; Ez 34.5-6; Zc 10.2), mas era uma situação com a qual Deus estava profundamente preocupado e que levou no final das contas à vinda do Bom Pastor (cf. Mt 9.36; Mc 6.34).

Porém, a opinião de Acabe era a de que a palavra de Deus é má (heb. ra ‘ v. 17; NIV, GNB; “mal”, RSV, REB, NEB). Infelizmente para Acabe, Deus tinha a mesma opinião sobre ele, e o correspondente desastre (heb. rã‘â, v. 22; NIV, REB, NEB, NRSV; “mal”, RSV) foi decretado para ele. Para reforçar sua mensa­gem, Micaías passa a descrever o verdadeiro mestre de Israel em sua corte celestial (v. 18). Cenas da corte celestial normalmente são mencionadas durante as grandes crises nacionais (cf. Is 6.1-8; Ez 1; Dn 7.9-10,13-14; para um contexto individual, c f Jó 1—2), com a função de destacar o controle soberano de Deus sobre seu povo. Nesse exemplo há também um contraste irônico com os dois reis em sua elegância (v. 9-11). As hostes celestes (v. 18) são os exércitos celestiais, inclusive anjos e espíritos ministradores, que realizam a vontade de Deus (cf. SI 103.21; 148.2; Lc 2.13). Eles devem ser nitidamente distinguidos de dois sentidos bastante diferentes da mesma frase, isso é, os céus físicos (e.g. Is 40.26; Dn 8.10) ou as divindades astrais de religiões pagãs (2Cr 33.3,5; Sf 1.5).

A corte celestial cria o espaço para uma explicação dos propósitos de Deus para os falsos profetas. Deus é retratado como convidando os espíritos em sua corte para enganar Acabe causando sua morte (v. 19), e um deles é por fim envi­ado como um espírito mentiroso na boca de todos estes teus profetas (v. 21). Esse estranho incidente só pode ser entendido levando-se em conta o pano de fundo de outras passagens do Antigo Testamento, especialmente Deuteronômio 13.11 e Ezequiel 14.1-11. Ambas as passagens falam do povo sendo enganado por falsos profetas, em cada caso como resultado de uma ligação com a idolatria. Ezequiel14.1-11 é particularmente apropriada, visto que descreve Deus enganando um

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profeta para profetizar como um castigo contra a idolatria e para purificar Israel.112 Parece, portanto, que as palavras dos falsos profetas aqui são a resposta de Deus à confiança de Acabe em falsos deuses e uma condenação de sua idolatria (cf. SI 40.5; Is 2.4 sobre a ilusão dos ídolos). Acabe era na realidade famoso por cultuar ídolos (lRs 16.30-33; 21.22,26) e também por seu envolvimento com o mal (lRs 21.20,25; v. 7,17 aqui). Por conseguinte, Deus já tinha decretado a morte (v. 19) e a tragédia (v. 22; “mal”, RSV) por meio de Elias ( lRs 21.21), que os falsos profetas sem saber estavam fazendo acontecer (para exemplos do Novo Testamento do mesmo princípio, cf. 2Ts 2.9-12; Ap 13.13-14).

Três comentários são dignos de nota. Primeiramente, o conceito de um castigo que corresponde ao crime é um princípio bíblico típico (cf. Ob 15). Em segundo lugar, Acabe não foi enganado de fato, nem mesmo por Micaías, e reconheceu sua necessidade de saber a verdade (v. 15). A dificuldade não era que ele não pudesse entender o que Deus queria, mas que ele não queria enten­der (v. 26). Em terceiro lugar, Deus enganar ou ludibriar uma pessoa dessa manei­ra nunca deve ser entendido como sua palavra final. O objetivo de Deus era purificar o seu povo (cf. Dt 13.11;Ez 14.11)elhe dar uma oportunidade de se arrepender. Isso é bem ilustrado por Davi, que também tinha sido seduzido como um castigo, mas que por fim percebeu que devia voltar-se para Deus para obter misericórdia (2Sm 24.1,14; 1 Cr 21.1,13; cf. 1 Sm 26.19). Acabe, no entanto, fixou seu curso firmemente na direção oposta (v. 25).

iii. Rejeição da profecia de Micaías (18.23-27). Zedequias (v. 23-24) e Acabe (v. 25-27) reagiram rejeitando a mensagem de Deus, confirmando assim a exatidão do seu julgamento. As palavras de Zedequias mostram que seu motivo principal foi o ciúme, que infelizmente o levou à violência. A forma em que ele tratou Micaías é notavelmente semelhante à sofrida por Jesus o Servo Sofredor (cf. Is 50.6; Mt 26.67; 27.30; Jo 18.22). Ele provavelmente referia-se a um espírito da parte do S e n h o r (v . 23) e não ao “Espírito do S e n h o r ” (RSV; cf. REB, NEB). A expressão hebraica (lit. “o espírito”, também v. 20) refere-se a um espírito particular, e nada no contexto exige que esse seja o Espírito do próprio Deus.113 Por outro lado, não é um espírito mau ou uma forma elementar de Satanás mas um dos servos de Deus que foi enviado para realizar uma tarefa especial. Sobre o conceito de palavras proféticas sendo proferidas na corte de Deus e transmi­tidas ao profeta por intermediários angelicais, cf. e.g. Isaías 40.1-6; Jeremias 22.18,22; Zacarias 1.9,14.

112 Visto que Ez 14 é mais recente que a versão original deste incidente em IReis 22, é provável que a formulação do profeta deste princípio tenha sido influenciada pelo incidente sobre Micaías.

113 Cf. GK # 126r.

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O tratamento dado por Acabe a Micaías também tem paralelo no tratamen­to dado a outros profetas, particularmente Jeremias (Jr 37.15-16). Embora a per­seguição de profetas já tivesse começado no tempo de Asa (2Cr 16.10), a mesma tradição de sofrimento continuou na experiência de Jesus e seus discípulos (Mt 5.12; 23.30-35). AMicaías é determinada uma “dieta de prisão” (v. 26, REB, NEB) de pão e água (lit. “pão/água de opressão”; cf. Is 30.20). Acabe esperava que seu encarceramento fosse meramente temporário, mas para Micaías isso seria uma negação da palavra de Deus (v. 27). Afrase volte em paz (v. 26,27) é idêntica em hebraico a “tome em paz para casa” (v. 16) — se Acabe não for para casa em paz agora, ele nunca o fará.114

c. O cumprimento da profecia de Micaías (18.28-34). Ao entrar em batalha, Acabe, então, cumpre as profecias originais (cf. v. 20) e traz o julga­mento de Deus sobre si mesmo. O seu estratagema de usar disfarce (v. 29) pode bem ser uma tentativa supersticiosa de evitar o cumprimento da palavra de Deus, como se Acabe reconhecesse que Deus, na verdade, falara com ele. A aceitação do plano por Josafá (v. 29) é uma de várias indicações que Acabe é o parceiro mais forte (cf. v. 3,30).

“Muitos são os planos no coração de um homem, mas é o propósito do S e n h o r que prevalece” (Pv 19.21) é um resumo correto do resultado em Ramote- Gileade, pois o livramento de Josafá e a morte de Acabe representaram uma guinada totalmente inesperada dos eventos. Presumivelmente os condutores de carros sírios reconheceram no último momento quem era (ou não era!) Josafá, mas Crônicas fez um acréscimo interessante ao final do versículo 31 que mostra que isso foi uma intervenção milagrosa da providência (e o S e n h o r o ajudou. Deus os afastou dele não está no TM de lR s 22.32).115 O grito de desespero de Josafá (lR s 22.32) é compreendido como uma oração, ilustrando o princípio de 2Crônicas 6.34-35 de que Deus responde à oração (cf. também 2Cr 14.10). Essa interpretação também é indicada por ajudou, um termo típico usado para a liber­tação de Deus em contexto de batalha (cf. 1 Cr 5.20; 2Cr 25.8; 26.7; 32.8). Desviou é significativo, visto que o mesmo verbo hebraico no versículo 2 é traduzido por persuadiu (“induziu”, NRSV, RSV; “incitou”, REB, NEB), e ambos são sinôni­mos de “sedução” ou enganar (v. 19). Ao passo que Acabe foi seduzido em direção ao julgamento, Josafá foi afastado dele pela oração.

114 Visto que “Ouçam todos os povos” (v. 27, NRSV, RSV) não ocorre em alguns MSS da LXX e tam bém se encontra em M q 1.2, é às vezes om itido aqui (com o REB, NEB). No entanto, nem a ocorrência da frase em outras passagens, nem a sem elhança entre os nomes M icaías e Micá, é base suficiente para omiti-la. E la está presente em IReis 22.28.

115 A primeira parte, no entanto, ocorre em alguns MSS da LXX da IReis 22.32, e Cr pode ter seguido um texto H ebraico diferente neste ponto.

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Por outro lado, não houve nenhuma fuga para Acabe. Até mesmo o “aca­so” (v. 33, GNB, NVI, JB, REB, NEB) serve ao propósito soberano de Deus, quando o arqueiro “em sua simplicidade” (lit.; cf. Ackroyd) atira sua seta mortal. Acabe foi ferido entre duas seções de sua armadura (não há acordo sobre os detalhes exatos), e morreu no mesmo dia. Embora nem Crônicas nem Reis sejam explícitos sobre isso, esse parece ter sido o sinal para a retirada e derrota de Israel (cf. lRs 22.36).

d. A profecia de Jeú (19.1-3). Crônicas omitiu os detalhes da morte de Acabe (lR s 22.35-38), inclusive como ela cumpriu uma outra profecia (cf. IRs 21.19; 22.38), em favor das conseqüências da batalha para Josafá. Esse parágra­fo é um acréscimo a IReis 22, provavelmente tirado de uma das fontes proféticas citadas por Crônicas. Jeú o vidente (v. 2) era um profeta idoso que tinha atuado uns quarenta anos antes no reinado de Baasa (IR s 16.1,7; sobre o pai de Jeú, Hanani, cf. 2Cr 16.7,10). Vidente (heb. hõzeh)é um sinônimo para profeta (cf. lCr 29.29; Am 7.12). O fato de Josafá ter chegado em casa com segurança (v. 1) é significativo. E contrasta seu destino com o de Acabe (a frase é idêntica a “em paz”, 18.16,26,27, NRSV, RSV, etc.-, cf. 18.33-34), e testifica da graça de Deus dada a uma pessoa que quase foi destruída por insensatez e falta de discernimento.

Jeú desenvolve uma crítica anteriormente implícita (18.1-2) de que Josafá tinha cometido um erro sério ao se aliar com uma pessoa má que odiava o Senhor (v. 2). Amor e ódio nesse contexto são termos formais para ações dentro de um relacionamento de aliança ou tratado e não sentimentos emocionais, e ajuda é uma expressão típica de Crônicas para o apoio formal ( cf. lCr 18.5; 22.17; 2Cr 28.16). A descrição de Acabe é severa. De vez em quando ele tinha mostrado sinais de arrependimento (e.g. 1 Rs 20.13-14; 21.28-29), mas sempre foi superficial e de vida curta, e sua devoção a Baal justifica completamente o resumo de Jeú (cf. o ódio que Acabe tem de Micaías, 18.7). Não obstante, a instrução para afastar-se de Acabe é rara na Bíblia, e implica que Acabe de fato devia ser tratado como um cananeu.

O não reconhecimento por parte de Josafá da gravidade do comporta­mento de Acabe também é considerado um pecado, e explica por que a ira de Deus (v. 2; “furor”, GNB) estava contra ele. Ira é outro termo formal em Crôni­cas, embora uma distinção seja feita entre a ira que pode e a que não pode ser evitada (sobre esta última, cf. 2Cr 34.25; 36.16). Ela podia ser desviada por sacrifício (cf. lC r 21.14-18) e arrependimento (cf. 2Cr 12.7; 32.25-26), e as “coi­sas boas” de Josafá (v. 3; algum bem, EVV) visam transmitir tal arrependimen­to. Essas incluíam não só sua remoção das Aserás (cf. 17.6) e a busca sincera de Deus (cf. 17.4,6; sobre a frase inteira, cf. lC r 22.19; 28.9; 2 C r l l .16; 15.12), mas também apontava para sua campanha futura de ensinar a lei de Deus (19.4-11, especialmente v. 10). A mensagem inicial de Crônicas é novamente repetida, de que o caminho de volta para Deus estava sempre aberto.

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iii. As reformas legais de Josafá (19.4-11)“Estabeleceu juizes no país” (19.5).Josafá respondeu ao alerta de Jeú sobre a ira de Deus (v. 2-3,10) conduzin­

do um movimento de renovação espiritual (v. 4) cuja característica principal era uma reforma do sistema judiciário (v. 5-11). O leitor atual acostumado a distinguir entre os aspectos secular e sagrado da vida pode achar essa combinação de eventos um pouco estranha, mas ela é um produto da abrangência da fé da aliança bíblica. O cronista, de fato, já havia associado previamente a aliança com os exércitos, construções e administração civil de Israel, incluindo breves alu­sões ao sistema judicial (lC r 23.4; 26.29; 2Cr 1.2), mas agora ele dá uma atenção mais completa ao sistema legal.

Deve-se, no entanto, evitar as falsas expectativas desse capítulo, visto que ele definitivamente não é uma descrição completamente desenvolvida do sistema jurídico de Israel. O estilo é de um “tipo geral, um pouco homilético” (Ackroyd), indicando que o capítulo concentra-se no caráter da reforma. Em termos de estrutura, por exemplo, o capítulo é dominado por dois discursos exortativos (v. 6-7, 9-11), enquanto os conteúdos da reforma são limitados a algumas designações judiciais (v. 5, 8). O objetivo principal é assegurar que os oficiais designados agem fielmente (“fazer, agir” ocorre quatro vezes no heb.; “Vede o que fazeis”, v. 6, RSV; “Cuidado com o que fazeis”, v. 7, RSV; “Assim deveis fazer”, v. 9, RSV; e “Ajam corajosamente”, v. 11, NRSV, RSV), e estão conscientes da presença de Deus (“ele está convosco”, v. 6, NRSV, RSV; esteja o Senhor com aqueles que agirem corretamente, v. 11, NVI).

Muito desse capítulo está baseado em Deuteronômio 16.18-20; 17.8-13 (cf. especialmente v. 6-7,9-11), embora com algumas diferenças administrativas im­portantes. Ali também se encontra o mesmo interesse por atitudes corretas em relação à lei humana, e pela presença e propósitos de Deus (Dt 16.20; 17.12). A reforma, portanto, tenta restabelecer os princípios da aliança mosaica no cora­ção do povo e também em suas ações.

Um interesse pela justiça social e coletiva como também por uma justiça pessoal tem sido uma característica tanto do judaísmo quanto do cristianismo, ainda que o interesse nessas questões nem sempre tenha sido coerente. O Novo Testamento tem uma ênfase dual nesse tema. Embora tanto Jesus (e.g. Mt 18.15-17; 23.23; Lc 18.3-8) quanto Paulo (cf. ICo 6.1-11; lTm 5.21) tenham dado instruções sobre os princípios e prática da lei, também é claro que ne­nhum sistema jurídico pode apropriadamente instituir a justiça de Deus. Isso só é possível por meio de absoluta obediência à lei de Deus (Rm 3.25-26; Mt 12.18, 20), como Jesus demonstrou de maneira singular. Embora a obediência de Jesus ironicamente o privasse da justiça humana (cf. At 8.33; Is 53.8; lPe 3.18), sua obediência trouxe liberdade permanente da ameaça da ira de Deus para aqueles que não conseguem atingir o padrão da justiça de Deus (cf. Rm 5.9; 8.3-4; lJo l.9 ).

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Porque a analogia mais estreita com a reforma de Josafá ocorre na reforma do século V a.C. (e.g. Ed 7.25-26), já se alegou que ela na realidade é uma criação do próprio cronista baseada no nome de Josafá (= “Javé julgou”). No entanto, a falta de um paralelo mais antigo satisfatório não basta para abalar a historicidade da narrativa. A evidência de uma fonte separada nos versículos 5-11 tem sido notada (cf. Williamson), e há diferenças importantes em relação às reformas em Esdras e Deuteronômio (cf. “em toda cidade”, Dt 16.18, contra “as cidades fortificadas”, v. 5, e também afunção do “juiz”, Dt 17.9). Além disso, a contribuição de Josafá pode ser vista não somente como continuação da obra de Davi e Salomão (cf. IRs 3.16ss.; lC r 26.29), mas como “o auge da autoridade judicial monárquica no antigo Israel”.116 A crítica dos profetas do século VIII também requer a existência de um sistema desse tipo (cf. Is 1.21-26;Mq3.1-2,9-11).

a. Renovação religiosa (19.4). Esse versículo introduz e dá o tom para o que segue. A expressão de novo (NVI) mostra que essa campanha continua o ensino dos levitas (17.7-9), e os levitas provavelmente ajudaram o rei. Essas campanhas itinerantes na verdade não têm paralelo no Antigo Testamento, e os profetas, ainda que tenham participado, não estavam envolvidos no ensino sistemático da palavra de Deus. O paralelo mais próximo está no Novo Testa­mento, no ministério itinerante do próprio Jesus.

Os detalhes geográficos são importantes. Longe de revelar o estilo do cronista ao descrever as fronteiras de Judá do sul para o norte (cf. lC r 13.5;21.2), a referência à região montanhosa de Efraim (cf. 15.8; 17.2) implica uma nova oportunidade para a reunificação em contraste com a aliança fracassada de Josafá com Acabe (18.1— 19.3). Somente quando foi aceita a autoridade da lei de Deus é que uma base aceitável para a unidade tornou-se possível. Fez que ele tomasse ao Senhor (“Trouxe de volta”, NRSV, RSV) indica arrependi­mento tanto do rei quanto do povo — o verbo é o mesmo que “converter” em 7.14. Essa conversão envolvia uma mudança profunda de coração, um esforço para obedecer a palavra de Deus, e o abandono de toda forma de idolatria (cf. Dt 30.10; 1 Sm 7.3; 2Rs 23.25; Jr 24.7).

h. Indicação de ju izes (19.5-7). 5. Os detalhes da designação de juizes por Josafá são tão escassos que uma visão adequada da natureza dessa reforma é impossível. Muito depende de se as cidades fortificadas (cf. 11.5-12; 14.6-7;17.2,12-13,19) pertenciam à administração real, nesse caso os juizes faziam parte de um processo de centralização que substituía o antigo sistema de justiça tribal. Estudos recentes, porém, concluíram que a autoridade legal do rei era

116 K. W. W hitelam , The Ju st K ing (Sheffield: JSO T Press, 1979), p. 206; cf. Japhet, Ideology, p. 432; M yers, 2Chronicles, p. 108.

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limitada à organização militar de Judá, e tinha pouco efeito sobre o sistema paralelo de tribunais locais.117

Uma complicação adicional é que a exigência de Deuteronômio 16.18 de designar juizes “em cada cidade” foi apenas parcialmente cumprida. O rei, por­tanto, poderia ter estendido, restringido, ou mais provavelmente ter deixado intacto o sistema existente.

6-7. O discurso de Josafá afirma que o sistema jurídico de Israel não era da parte do homem, e sim da parte do S en h o r (cf. Dt 1.17; Pv 17.23; Ef 6.6; Cl 3.23). Ele deve refletir a realidade da presença de Deus (ele está convosco), e do seu caráter (nele não há injustiça, parcialidade ou suborno). Essas ênfases sugerem que as designações eram mais de uma reforma que de uma inovação, respondendo talvez a dificuldades na prática legal da época. Elas também ilustram a necessidade de se aplicar a lei da aliança a novas situações (cf. Dt 16.19; também Dt 10.17).

c. Indicação de outros oficiais (19.8-11). O padrão do parágrafo anterior é repetido, isso é, uma breve declaração sobre novas designações em Jerusalém (v. 8) é seguida por um discurso relativo aos valores pelos quais elas deveriam ser guiadas (v. 9-10).

A lista dos oficiais recém-designados confirma a natureza tradicional da reforma. A função dos sacerdotes ao lado dos juizes é mencionada em Deuteronômio 17.9,12 (cf. ISm 2.25; Jr 18.18), os levitas foram designados por Davi como seus assistentes (lC r 26.29), e os líderes tribais (chefes de famílias) tinham sido espinha dorsal do sistema jurídico de Israel durante séculos (cf. Dt 19.12; Ed 10.14; Mt 26.57). Essa ênfase tradicional é confirmada pela ausência do rei. Amarias o sumo sacerdote (v. 11) ocorre na lista dos sumo sacerdotes em 1 Crônicas 6.11, embora Zebadias, o líder tribal de Judá (v. 11), seja desconhecido.

A maior dificuldade é decidir sobre a função desses tribunais. Há dois problemas: se a corte de Jerusalém era uma corte suprema, e como a divisão entre casos sagrados e seculares funcionava na prática (v. 11). Sobre o primeiro, o fato de que os casos eram levados a Jerusalém a partir de “seus irmãos que vivem em suas cidades (v. 10, JB) levou alguns a sugerir que tratava-se de uma corte suprema de apelação (e.g. Williamson, Dillard). Esse ponto de vista, no entanto, pressupõe uma política de centralização subjacente, ao passo que a evidência sugere que o sistema básico fora pouco alterado. A corte de Jerusalém portanto tem maior probabilidade de ter sido um auxiliar dos tribunais locais, provavelmente uma corte de referência em casos difíceis (Boecker, Whitelam).118 Como tal, ela estenderia a autoridade jurídica própria do rei sobre casos proble­máticos (cf. 2Sm 14; lRs 3.16-28). A questão é complicada por uma dificuldade

117 Veja e.g. H. J. Boecker, Law and the Administration o f Justice (Minneapolis: Augsburg, 1980), p. 47-48; K. W. W hitelam , op. cit. p. 192-197.

118 H. J. Boecker, op. cit. p. 48-49; K. W. W hitelam , op. cit. p. 197-201.

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textual no fim do versículo 8, onde o hebraico do TM, “eles voltaram a Jerusa­lém”, faz pouco sentido no contexto. Das duas alternativas possíveis, é muito mais simples ler “eles tinham seu assento em Jerusalém”.119 Isso reforça a idéia de uma função em nível nacional (cf. v. 10) que também pode encontrar apoio na tradução “para Israel” no versículo 8 (em lugar de “de Israel”, NRSV, RSV; ou israelitas, NVI, REB, NEB). A segunda alternativa é que a corte fosse tanto uma corte nacional quanto local para Jerusalém, mas isso parece confusão desneces­sária (cf. NEB, “arbitrar em processos entre os habitantes da cidade”).120

A segunda questão diz respeito à divisão entre casos sagrados (coisas que dizem respeito ao S e n h o r ) e seculares (coisas que dizem respeito ao rei) mencio­nados no versículo 11. Embora essa distinção fosse bem conhecida no Israel pós- exílico, como exemplificado pela liderança conjunta de Zorobabel e Josué (cf. Ag1.1,12,14), ela já estava estabelecida nos tempos de Davi ( lCr 26.30,32). Nenhum detalhe adicional pode ser deduzido dos versículos 8 e 10, visto que as frases julgarem da parte do S e n h o r e decidirem as sentenças contestadas (v. 8) e as questões da jurisdição da corte (v. 10) são gerais demais para serem classificadas sob esses tópicos. A lei, mandamento, estatutos e juízos (v. 10) são simplesmente sinônimos para a Torá, e incluiriam questões civis e religiosas. É menos claro por que questões de derramamento de sangue foram incluídas, talvez porque todos os casos capitais devessem ser levados a uma corte central (Macholz), ou porque uma questão mais específica estivesse gerando controvérsia.121

A fala dos versículos 9-10 se compara à dos versículos 6-7 tanto na forma quanto no conteúdo, e, como antes, uma lei deuteronômica é aplicada a uma nova situação (cf. Dt 17.8-13). A natureza elíptica de algumas frases nos versículos 10 deve-se ao fato de serem citadas do texto mais antigo.122 O objetivo principal de se estabelecer uma corte para tratar de casos difíceis era para que não se fizessem “culpados” (v. 10, NRSV, RSV, etc.; não pequem, NVI) e evitassem a ira de Deus (cf. Dt 17.12-13). Esses termos freqüentemente estão relacionados em Crônicas (e.g. lC r 21.3; 2Cr 24.18; 28.10,13), mas seus efeitos potencialmente desastrosos sempre poderiam ser removidos através do arrependimento (cf. v. 2).

Cumpram seus deveres com coragem (v. 11, NVI) é reminiscente da frase mais conhecida, “Seja forte e corajoso” (Js 1.6-7; lC r 22.13; 28.20; 2Cr 32.7; etc.). Visto que ela normalmente está ligada a eventos maiores, mostra a importância da reforma. A frase final é certamente uma promessa da presença de Deus, mas “bom” (REB, NEB) poderia se referir à obra de reforma (cf. NIV) ou àqueles que a realizarão (cf. ARA, NRSV, RSV, REB, NEB, etc.).

115 Esta leitura apenas envolve a repontuação do texto hebraico.120 Isto está baseado na LXX, Vulg., e é também seguido por e.g. GNB, Rudolph, Williamson,

B arthélem y (CTAT, p. 494-495).121 G. C. M acholz, “Zur G eschichte der Justizorganisation in Juda” , ZAW 84, 1972, p.

314 -340 .122 Japhet, Ideology, p. 245-246.

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iv. A fé de Josafá (20.1-30)“A peleja não é vossa, mas de Deus” (20.15).O capítulo 20 contém uma das histórias mais destacadas não só de Crôni­

cas mas de toda a Bíblia. Ele descreve em primeiro lugar uma vitória israelita sem igual. Embora em outras ocasiões Deus capacite as forças israelitas a serem vitoriosas, aqui o crédito é devido inteiramente a Deus enquanto o exército é reduzido ao nível de espectadores. Em segundo lugar, ele é o ponto alto do relato de Crônicas da Monarquia Dividida (caps. 10— 36). A fé e confiança de Israel e as ações Deus em favor de Israel são apresentadas em termos particular­mente intensos. Mesmo os triunfos de outros reis (e.g. 13.3-19; 14.9-15; 26.6-15) tomam-se insignificantes em comparação com o que é alcançado aqui. Em ter­ceiro lugar, o capítulo cria a impressão de uma trama literária e teológica exube­rante pela maneira como seus temas são entrelaçados. Embora focalize a ação vitoriosa de Deus (v. 15, 17, 29), isso está intimamente unido a outros temas como a oração e o culto, a profecia, o templo e seus funcionários, a assembléia do povo, a natureza de Deus, e a relação de Deus com as nações. Em quarto lugar, os temas centrais de Crônicas como um todo parecem se juntar formando um clímax. Aqui a linhagem davídica, como representada por Josafá (cf. lC r 17), e os vários elementos de adoração do templo (cf. 2Cr 6—7) se combinam para mostrar o povo de Deus respondendo a ele através de suas ofertas. E por fim, o capítulo cita extensamente de outras partes do Antigo Testamento, seja direta­mente seja por alusões freqüentes. Embora isso seja mais explícito na oração (v.6-12), profecia (v. 15-17) e louvor (v. 21), quase cada versículo reflete algum elemento do vocabulário, estilo ou teologia do Antigo Testamento. É como se a obra de Deus através de Moisés e Davi, nos salmos e nos profetas, fosse toda reunida nesse único incidente.

Não é fácil ver de imediato como esse capítulo se encaixa no retrato global de Josafá na Bíblia. Embora nos versículos 1-30 sua fé seja exemplar, nos versículos 33, 35-37 Crônicas também aprofundou os exemplos dados em Reis da disposição de Josafá para fazer concessões (cf. 18.1-2; 19.1-3). Em outras palavras, os resultados positivos dos versículos 1-30 não foram alcançados à custa de passar em branco as sérias fraquezas da vida de Josafá. Isso é verdade mesmo que muito da versão de Crônicas de Josafá seja escrita em uma forma bastante estilizada caracterizada por elementos típicos e aspectos sobrenatu­rais dos eventos descritos. Um segundo problema é definir como as duas batalhas no Antigo Testamento que envolvem Josafá e os moabitas estão conectadas. Em 2Reis 3, Josafá está envolvido com Israel e Edom contra Mesa de Moabe quando Mesa tentou se livrar do jugo israelita sobre seu reino .123

123 Um suplemento importante às inform ações bíblicas é a inscrição de M esa conhecida como a pedra M oabita (tradução na ANET, p. 320-321).

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Embora certamente existam semelhanças entre os dois incidentes, particular­mente no encorajamento crucial dado pelos profetas e nas vitórias miraculosas, as diferenças são grandes demais para esse relato estar baseado em 2Reis 3. Porém, o fato de que Mesa se rebelou contra Israel no reinado de Jorão de Israel (2Reis 3.5) pode dar uma pista sobre o que está por trás desse ataque. O fato de que os moabitas sejam listados primeiro (v. 1 ; porem cf. v. 10 , 2 2) sugere que aqui também eles lideraram a invasão, especialmente quando o exército invasor parece ter entrado em Judá a partir de território moabita. Sobre a ordem de eventos, é possível que essa invasão seja uma tentativa renovada de vin­gança contra Israel e seus aliados. Ao passo que os moabitas ficaram ensan­güentados mas não prostrados depois de sua batalha com Jorão (2Rs 3.27), sua derrota aqui tem um forte elemento de finalidade (v. 22-25). Eles podem ter escolhido atacar Judá como o parceiro mais fraco de uma aliança que Josafá tinha feito primeiro com Acabe (2Cr 18.1 -3) e também com Acazias (2Cr 20.35- 37) e depois com Jorão (2Rs 3.7-24). Mesmo que isso significasse que as duas seções desse capítulo não estivessem em ordem cronológica, esse costume é comum em Crônicas (cf. e.g. lC r 14; 18— 19). A ordem atual provavelmente mostra que a vitória de Josafá é o resultado de sua fidelidade (cap. 19), da mesma maneira que as vitórias de Davi são retratadas como resultado de seu cuidado com a arca (note a proeminência de “buscar” a Deus em ambos os casos, lC r 13.3; 14.10,14; 2C r20.3-4).

A importância histórica desse incidente é difícil de avaliar, visto que, em­bora muitos concordem que ele tenha um núcleo histórico,124 grande parte dos dados geográficos não pode ser verificada. Pode ter sido um conflito local (e.g. Williamson), embora a menção freqüente de todo Judá, incluindo mulheres e crianças (e.g. v. 4, 13, 18), sugira que foi da maior importância. O problema tornou-se mais sério porque Josafá provavelmente agora era um homem idoso, governando ao lado do seu filho Jeorão que possuía uma abordagem muito diferente da vida (cf. 2Rs 1.17; 3.1).125 Josafá portanto deve ter sofrido pressões tanto internas quanto externas.

O valor permanente do relato, porém, está em sua preocupação com a fé e o culto. Antes que encorajar seus contemporâneos a se revoltarem contra seus dominadores persas, o objetivo do cronista é mostrar como a fé em Deus sempre é produtiva mesmo nas circunstâncias mais opressivas. Tal fé tem benefícios a serem obtidos aqui e agora, como muitos podiam testemunhar dentro da comuni­dade pós-exílica (cf e.g. Ed 8.21-32; Ne 4.7-23; 6.15-16), onde o poder do Espírito de Deus estava claramente operando (cf v. 14; Ag 2.5; Zc 4.6). Da mesma forma, os

124 E.g. R udolph, M yers, W illiam son. P ara um ponto de v ista m ais negativo , cf. P. W elten, G eschichte und G eschichtsdarstellung (N eukirchen-V luyn: N eukircherner, 1973), p. 140-153.

125 Cf. Thiele, p. 98-101.

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autores do Novo Testamento estavam confiantes de que Deus libertaria seu povo perseguido através da oração em suas circunstâncias presentes, embora a igreja também tivesse uma nova garantia sobre a vida futura (2Co 1.10-11; Hb 12.2-3)

a.Judá é invadido (20.1-2). Provavelmente pretende-se que o leitor veja as grandes bênçãos desse capítulo (v. 24-30) como conseqüência da fidelidade de Josafá na questão da lei de Deus (cf. Depois disto, v. 1, com cap. 19: cf. também 2Cr 32.1), embora possa muito bem ter havido ali um intervalo de alguns anos (veja acima para os possíveis aspectos cronológicos). A primeira tarefa de Josafá, no entanto, é lidar com a coalizão de exércitos invasora. Eles provavelmente foram conduzidos pelos moabitas (veja acima), com seus vizinhos do norte os amonitas e também os meunitas. Os últimos às vezes são relacionados aos árabes (cf. 17.11; 26.7), e viviam na região sudoeste de Judá. Eles são substituídos mais tarde nesse capítulo por “monte Seir” (v. 10, 22, 23), um termo vago associado com a região geral de Edom e a fronteira sul de Judá (cf. Dt 2.1-8; Js 11.17; 12.7; 2Cr 26.7). Os invasores vieram pelo mar (v. 2), i. e., o mar Morto, provavelmente por um vau raso através de Lisan, no extremo sul do mar. En-Gedi fica aproximadamente no centro da costa ocidental, embora Hazazom-Tamar (cf. Gn 14.7) não possa ser localizada com mais precisão. Essa rota provavelmente foi escolhida porque Judá era mais bem defendida pelo oeste (cf. 11.5-10).126

A grande multidão (v. 2; “exército enorme”, NVI; também v. 12, 15, 24) é um dos termos no capítulo originários da tradição da “guerra de Javé” (também em 2Cr 13.8,14.10; 32.7). Em vista das estatísticas militares do próprio Josafá (cf. 17.12-19), a descrição é um pouco surpreendente, mas a comparação é impossí­vel visto que nenhum número é fornecido para os exércitos da coalizão. Os de Judá, porém, sem dúvida acreditavam estar em desvantagem numérica, e o rei ficou alarmado (v. 3).

b. Josafá ora (20.3-13). Em seu temor, Josafá volta-se para a oração antes que ao desespero (v. 6-12) e também ao jejum (v. 3). Sua atitude é resumida pela palavra “buscar” que ocorre duas vezes em hebraico, embora seja traduzida de diversas maneiras nas versões modernas. Essa é uma palavra-chave no reinado de Josafá (cf 17.3-4; 18.4; 19.3), onde tem o sentido básico de “adoração” (cf. 2Cr1.5; 15.12), mas também significa descobrir a vontade de Deus (cf. 2Cr 15.4). Ela mostra que Josafá confia mais em Deus do que nos seus recursos militares, e que ele vê corretamente o templo como o lugar onde se busca a face de Deus (v. 5;c/2Cr7.14).

126 E m bora nem “m eun itas” (v .l) nem “E dom ” (v.2) es tejam no TM ou sejam bem atestados nos antigas VSS, eles são quase universalmente adotados. Ambos envolvem apenas mudanças menores no TM, onde a leitura para o primeiro termo é impossível e para o último m uito im provável.

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O povo juntou-se em uma congregação (v. 5, 14, 26; cf. “reuniu-se”, v. 4, NRSV, RSV, JB). A repetição de todo o Judá (v. 3, 13, 15, 18; cf. v. 20, 27), e a referência a cada cidade em Judá (v. 4) e às mulheres e crianças (v. 13) mostram quão forte era essa idéia de uma comunidade reunida (cf também e.g. Ed 10.7-15; Ne 8.2-12; 13.1-3). Jejuns especiais às vezes eram feitos assim como também os regulares (Lv 16.29,31; Zc 8.19) para buscar a ajuda de Deus em circunstâncias especiais (e.g. Jz 20.26; Ed 8.21-23; J11.14; 2.15-16). O pátio novo (v. 5) era para o povo, e era separado do pátio dos sacerdotes (cf. 2Cr 4.9).

A oração de Josafá emprega a forma reconhecida de um lamento nacional (cf. e.g. SI 44,74,79), embora seja mais próximo na estrutura, conteúdo e lingua­gem das orações em prosa em Crônicas que dos salmos (cf. lC r 17.16-27; 29.10- 19; 2Cr 6.14-42; 14.11; 30.18-19). Como as orações de Davi e Salomão (1 Cr 17.16- 27; 2Cr 6.14-42), ela ocorre em um ponto-chave na narrativa do cronista, e tem a intenção de ser um “meio efetivo de guiar a comunidade através de tempos difíceis e penosos”.127 Ela se divide em quatro seções.

i. Louvor pelo poder soberano de Deus (20.6). Esse tema é especial­mente adequado aqui pelo fato de que o maior problema é a fraqueza de Israel (v. 12). Ele também é um dos temas habituais de Crônicas. Por exemplo, tu reges acima de todos... o poder e a força estão em tuas mãos é repetido da oração de Davi (1 Cr 29.12), com a frase típica de Crônicas reinos das nações inserida de forma pertinente (cf. lC r 29.30; 2Cr 17.10,20.29). Crônicas sempre enfatiza também que Deus está no céu (cf. 2Cr 2.5; 6.18), porque é de lá que ele ouve a oração (2Cr 6.21, etc.; cf. SI 11.4; 103.19; 115.3).

ii. Louvor pela dádiva da terra e do templo (20.7-9). As perguntas retó­ricas (v. 6-7) são uma forma de louvor que indica certeza absoluta.128 Josafá concentra-se nas dádivas de Deus da terra (v. 7-8a) e do santuário (v. 8b-9), que foram prometidos nas alianças feitas com Abraão, Moisés, e Davi/Salomão. Abraão teu amigo (cf. Is 41.8) lembra Gênesis 18.17-19, a retirada dos antigos habitantes da terra por Deus tem base na aliança mosaica (e.g. Êx 33.2; Dt 4.38), e o versículo 9 é um resumo excelente das promessas associadas com a aliança davídica (cf. 2Cr 6.14-42). Esse padrão de recordar antigas promessas de aliança que é encontrado em outras orações em Crônicas (e.g. lC r 17.21-22; 29.15, 18; 2Cr 6.15-17), dá nova garantia do compromisso de Deus de ouvir a oração e salvar seu povo da angústia (v. 9).129

127 P. H. E veson, “P rayer Form s in the W ritings o f the C hron icler” , tese M .Th. não publicada., U niversity London, 1979, p. 94.

128 Na realidade significa, “Certam ente...” Cf. Throntveit, Kings, p. 67-68.129 A “espada do juízo” do TM (NIV, cf. GNB) freqüentemente é substituído por “inunda­

ção”, que é lido na LXX(L) (assim REB, NEB, etc.). O apoio textual para este último não é forte, e o TM faz sentido.

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iii. Queixa contra os invasores (20.10-11). A queixa é um lamento típi­co, que descreve o problema de Josafá em termos bastante claros. O seu sentimento de injustiça é surpreendentemente dirigido não tanto ao exército invasor, mas a Deus. Embora ele não permitisse (v. 10) que Israel sob a lideran­ça de Moisés atacasse essas nações, ele agora lhe permite privar Israel da posse que tu nos deste como herança (v. 11; cf. Nm 20.14-21; Dt 2.1-19; Jz11.14-18). O uso irônico de “pagar/recompensar” (v. 1 1 ) mostra como a história pode emitir sinais contraditórios (cf. v. 7-8). Embora a linguagem de Josafá seja forte ele está, no entanto, muito longe de falar do “pecado de omissão de Javé”.130 Sem dúvida, Deus mostrou graça a Moabe e Amom, e mostrará graça ainda maior a Judá.

iv. Pedido de auxílio (20.12). Só no fim Josafá faz um pedido específico. Como em outras orações de Crônicas, o pedido não é por uma resposta particu­lar mas para que Deus mostre o seu poder, neste caso, que ele julgue aqueles que desafiaram seus propósitos (c f lC r 16.35; 2Cr 14.11). A frase final, Nós não sabemos o que fazer, porém os nossos olhos estão postos em ti, é uma das expressões mais comoventes de confiança em Deus que se pode achar na Bíblia. Reconhecer a própria fraqueza é uma atitude que demonstra muita força (cf. Jo 15.5; 2Co 12.9), porque “é num beco sem saída que se encontram os milagres”.131

c. Jaaziel profetiza (20.14-19). A resposta de Deus a Josafá vem de uma fonte inesperada, por meio de uma profecia dada pelo Espírito do S e n h o r a um levita (v. 14). Dons proféticos que se originam do Espírito de Deus são dados a profetas (e.g. 2Cr 15.1; 18.23; 24.20) e a pessoas que não são profetas (e.g. Nm11.25,29; Jz 6.34; lC r 12.18). O Novo Testamento espera que esses dons conti­nuem e até mesmo se espalhem entre pessoas comuns (c f At 2.18-19; ICo 14.1, 5). Os levitas, porém, são um caso especial visto que o seu ministério musical também é considerado profético (lC r 25.1-3). A profecia de Jaaziel, portanto, pode ter sido acompanhada por música, como no caso de seu contemporâneo Eliseu (2Rs 3.15; cf. Êx 15.10; ISm 10.5, 10). Porém, essa profecia na qual a orientação direta é dada deve ser distinguida da forma mais típica de profecia musical levita, que provavelmente consistia na condução do louvor de Israel a Deus (cf. v. 19,21-22). A genealogia de Jaaziel de cinco gerações remontaria aos dias de Davi (a Asafe, cf. lC r 16.4,37; 25.1-6).

A notável profecia de Jaaziel centra-se no duplo pronunciamento de que é Deus e não Israel quem terá de lutar, literalmente, “não é para vós a batalha/ para lutar” (v. 15,17). No todo há quatro elementos principais: (a) uma ordem

130 D. L. Petersen, L ate Israelita P rophecy (M issoula: S cholars Press, 1977), p. 73; T h ron tveit, Kings, p. 71.

131 W ilcock, p. 196.

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repetida para não temer (v. 15, 17); (b) declarações repetidas de que a batalha não é vossa, mas de Deus (v. 15, cf. v. 17); (c) uma promessa repetida de que Deus estará convosco (v. 17; a repetição só perceptível no heb.); e (d) instru­ções para amanhã sobre onde ir e ver sua [deles] livramento (NVI, REB, NEB), “vitória” (NRSV, RSV, GNB), ou “salvação” JB; v. 16-17). A promessa básica, de fato, combina várias antigas passagens do Antigo Testamento que afirmam que o Senhor luta por Israel (cf. Êx 14.13-14; Dt 20.4; ISm 17.37). O que é distintivo aqui é que Israel tem apenas que tomar seu lugar na galeria dos espectadores (c f v. 24), embora o uso de uma linguagem militar que orienta Judá a tomar suas posições e, ficarfirm e (v. 17; NIV, cf. JB) seja de um agradável toque irônico. Êxodos 14.13-14 oferece uma analogia particularmente próxima, que sugere que o cronista viu esse incidente como um paralelo único ao pró­prio êxodo. Somente nessas duas passagens as seguintes frases são combina­das: “não tenham medo”, “tomem suas posições”, “contemplem a libertação do S e n h o r ” , enquanto as duas declarações nos versículos 15, 17 de que Judá não tem que lutar são apenas uma versão negativa de “o S e n h o r lutará por ti” (Êx 14.14).

Judá é instruído a não temer, por causa da promessa de Deus de estar com eles. Não tenhas medo é uma ordem bíblica comum (e.g. Nm 14.9; Dt 20.3; Is 41.9), e a presença de Deus é uma forma bem conhecida de encorajamento, especialmen­te em Crônicas (cf 2Cr 13.12; 17.3; 32.7). Ambas são aplicáveis aos cristãos que podem ficar seguros da presença constante de Deus através da ressurreição de Cristo e do dom do Espírito (cf. Mt 28.20; Jo 14.16-18). Essas palavras de apoio são respaldadas por ordens específicas sobre o tempo, o lugar e as ações requeridas. Infelizmente, não podem ser identificados com precisão os lugares mencionados no versículo 16, embora houvesse uma rota que levava de En-Gedi a Tecoa (v. 20), aproximadamente 9,5 quilômetros ao sul de Belém, que estava em uso durante a monarquia de Judá.

O povo respondeu com adoração (v. 18) e com louvor extremamente alto (v. 19), ilustrando a confiança de sua fé (cf. v. 20). A dependência de Deus era mais importante do que meramente ganhar a batalha. Novamente os levitas desempe­nham um papel fundamental, especialmente os coreítas que eram uma das subdi­visões dos coatitas (provavelmente seja melhor traduzir “quer dizer, até mesmo” antes de coreítas). Não está claro se eles representam os levitas em geral, entre os quais eles forneciam os porteiros (cf. 1 Cr 9.19; 26.19), ou os músicos em particular (Hemã, contemporâneo de Asafe, era umcoatita, lCr6.33-38).

d. Judá crê (20.20-26). Quando o exército obedece às instruções de Deus (v. 20), dois eventos significativos acontecem. Primeiramente, Josafá faz um chamado à fé (v. 20), aparentemente cumprindo a função do sacerdote em Deuteronômio 20.2-4. Ele é também uma versão positiva das palavras de Isaías a Acaz (Is 7.9), com “acreditem” e vocês serão sustentados (NVI, REB, NEB; “es­

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tarão seguros”, NTLH; “serão estabelecidos”, NRSV, RSV) como o ponto cen­tral de ambas as passagens. Os dois verbos estão de fato baseados na mesma palavra hebraica, sendo conectados por uma relação de causa e efeito. “Acredi- tar/crer” na realidade significa “exercer confiança firme”, de forma que a pessoa que acredita/crê fica firme ou segura. Os profetas em quem se devia crer parece que incluíam Jaaziel, os coreítas, e talvez Isaías, por meio de quem o rei mudou do medo (v. 3) para a fé (v. 20).

O segundo evento pré-batalha é o louvor de Judá (v. 21 -22a). A idéia de um exército que entra em batalha cantando louvores a Deus não tem paralelo nas Escrituras, embora isso esteja relacionado com o costume mais antigo das guer­ras de Javé de soar o chamado da trombeta e o grito de guerra (cf. 2Cr 13.12; Js6.4-20; Jz 7.18-20; SI 47.5). Tanto a forma quanto o conteúdo dessa canção de louvor são baseados no uso dos salmos no culto do templo. Os “músicos” designados (GNB; cf. lC r 15.16ss.; para cantar, NIV, etc.) eram levitas (cf. lC r6.31-32; 25.1-31), sua canção foi tirada do salmo favorito de Crônicas (SI 136.1; cf. lC r 16.34; 2Cr 5.13; 7.3), e a frase o esplendor de sua santidade (REB, NEB; “em ordem santa”, RSV) é encontrada em outras passagens só em Salmos (SI 29.2; 96.9; lC r 16.29). A característica notável, no entanto, é que quando eles começaram a cantar e louvar (v. 22), o Senhor começou a batalha. Não pode haver indicação mais clara de que essa não foi uma batalha comum nem uma guerra santa tradicional, mas a guerra de Javé na qual ele agia sozinho. Nesse sentido, ela antecipa a vitória de Jesus na cruz, embora essa tenha sido acompa­nhada mais pelo silêncio do que pelo canto.

A forma da palavra para emboscadas (v. 22) é um pouco incomum e na realidade significa “aqueles que armam emboscadas”, e, visto que é dito que Deus os enviou, alguns pensam que se trate de agentes sobrenaturais. Porém, o fato de que todos os que armam emboscadas no Antigo Testamento são huma­nos sugere que o mesmo é verdade aqui, o que provavelmente significa que os membros da coalizão atacaram uns aos outros. Os homens do monte Seir foram aniquilados primeiro, talvez suspeitos de algum tipo de deslealdade, antes que os outros se destruíssem uns aos outros (v. 23; cf. também Jz 7.22; ISm 14.20).

Quando os soldados de Judá chegaram ao “posto de observação” (v. 24, NRSV, RSV, etc.; lugar de onde se avista o deserto, NVI), havia só corpos mortos... nenhum escapou (cf. 2Rs 19.35). Essa cena de devastação total foi considerada uma evidência da obra de Deus, como também a quantidade de pilhagem (v. 25).132 Outra ligação entre esse evento e o êxodo (cf. também v. 17) é que o hebraico para “tomaram para si” (v. 25, NRSV, RSV; “saquearam”,

132 Em bora a pilhagem quase certam ente incluísse “vestuário” (EVV, seguindo Vulg. E sete M SS hebraicos) em lugar de “cadáveres” ™, se “m uito gado” (REB, NEB, etc. com a LXX) é o que está em vista não é tão claro. O hebraico no últim o caso é incom um , mas inteligível, lit. “grandes quantidades entre eles” (cf. NIV).

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REB, NEB) é usado em outro lugar somente a respeito do despojo dos egípci­os (cf. Êx 3.22; 12.26). A única resposta possível era louvar a Deus (v. 26), embora se o vale foi renomeado em função disso é impossível dizer (Beraca, NVI, significa, “louvor, benção”).

e. Jerusalém se alegra (20.27-30). O parágrafo final da guerra é uma inver­são das primeiras duas seções do capítulo. A assembléia alegre (v. 27-28) forma um contraste feliz com a assembléia anterior reunida para a oração (v. 6- 12 ), tendo as duas ocorrido no templo. Anota de alegria no culto (cf. lC r 12.40; 29.9, 17; 2Cr 29.30) e o fato de que ele foi acompanhado por instrumentos musicais são ênfases típicas de Crônicas (cf. 1 Cr 15.16, 25; 2Cr 30.21).

O mesmo vale para o resumo da p a z que se seguiu à guerra (v. 29-30), que está em contraste com o relato da invasão inicial (v. 1 -2). Essa paz está relacionada com o reinado de Josafá como um todo (c f . 17.10), e com bênçãos mais amplas de p a z e r e p o u s o que são o resultado de vitórias em outras partes (c f . lC r 22.9; 2Cr 14.1, 5-6; 23.21), e tudo porque o S e n h o r h a v i a l u t a d o (c f . v. 15,17) por Israel.

v. Fórmula de conclusão (20.31—21.1)20 .3 1 -3 4 -# IReis 22.41-45 (EVV)/41-46(TM)20.36—21.l - c f . IReis22.48-50(EVV)/49-51 (TM)Essa é uma versão estendida da fórmula de conclusão que inclui um pará­

grafo adicional (v. 35-37) inserido no padrão habitual (v. 31-34; 21.1). Os vinte e cinco anos do reinado de Josafá (v. 31) incluem uma co-regência de três anos durante a doença final do seu pai Asa (cf. 2Cr 16.12-13; 17.7), de forma que os seus vinte e dois anos (cf. 2Rs 3.1; 8.16) como rei exclusivo abarcariam aproximadamen­te 869-848 a.C. (Thiele) ou 876-852 a.C. (Hughes). A comparação favorável com Asa (v. 32) e a menção aos lugares altos (v. 33) remetem à introdução (17.3, 6). Embora as declarações sobre os lugares altos pareçam contraditórias (cf. 14.3, 5;15.17), a referência aos padrões superficiais da religião popular (v. 33) pode dar uma pista quanto ao motivo de eles persistirem em algumas áreas. Ela também é um lembrete saudável sobre o sucesso limitado das campanhas de Josafá pela refor­ma religiosa e jurídica (17.7-9; 19.4-11). Embora o rei tivesse posto seu coração em Deus (19.3; c f lCr 29.18; 2Cr 30.19), seu exemplo não foi amplamente seguido (cf. 2Cr 12.14). Mais informação deve, como de costume, ser encontrada em uma fonte profética (v. 34; c f 19.2) que está incluída em uma obra maior. Os reis de Israel na realidade quer dizer reis de Judá, indicando como sempre que esse pequeno reino continuava sendo o verdadeiro Israel (cf. 16.11; 27.7).

O parágrafo final tem várias diferenças em relação a Reis, com o objetivo de se concentrar no relacionamento de Josafá com Acazias, o filho de Acabe. Ficam de fora as declarações sobre suas guerras (presumivelmente por causa dos deta­lhes mais completos nos caps. 18, 20), os prostitutos cultuais (todas as quatro referências em Reis são omitidas em Crônicas), e os arranjos em Edom ( lRs 22.45-

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47). Também, os breves detalhes de sua aliança com Acazias são bastante dife­rentes, a descrição de sua construção de uma frota de navios como resultado de uma aliança contrasta com 1 Reis 22.48-49, onde a oferta de ajuda de Acazias segue a destruição dos navios. De fato, as diferenças cronológicas podem não ser tão grandes, especialmente se o começo da oferta de Acazias em IReis 22.48 for traduzida por, “Naquele tempo, Acazias tinha dito...”.133 O objetivo de Crônicas, no entanto, é destacar por meio de duas palavras hebraicas específicas as implica­ções da ligação entre Josafá e Acazias. A primeira é fez uma aliança com (NIV, GNB) que ocorre uma vez em cada um dos versículos 35-37 mas não em IReis 22. Essa mesma palavra também descrevia a aliança de Josafá com Acabe (18.1), indicando que Josafá está repetindo seu erro (isso é apresentado claramente em REB, NEB, “ele errou ao se unir com ele”, v. 35-36). Asegunda palavra importante é destruir (v. 37, NIV, etc:, “levou a nada”, REB, NEB) que já ocorreu em lCrônicas 13.11; 15.13 como “irromper” (heb.pãrats), também tendo Deus como sujeito. Ela fala da ira de Deus que leva os planos humanos a um fim súbito em ambas as ocasiões. A profecia de Eliezer (que aparece só aqui) deve ser comparada com a de Jeú (19.2-3), mostrando que Josafá foi abençoado apesar de suas ações mais do que por causa delas (cf. e.g. 21.7).

Os navios provavelmente devem ser entendidos como navios mercantes (NVI), e não como navios que literalmente vão a “Társis” (ARA, NRSV, RSV, etc.). Társis simplesmente era um lugar distante, mas Josafá não conseguiu imitar Salomão estabelecendo um próspero comércio marítimo (cf. 2Cr 9.21). Eziom- Geber (v. 36), que ficava na fronteira norte do golfo de Acaba tinha sido reconstruída por Salomão (2Rs 8.17) mas logo foi novamente perdida pelo filho de Josafá (cf. 2Rs 8.21-22; 2Cr 21.8-10). Essas mudanças de sorte pretendiam mostrar que como a fé e a incredulidade seguiam uma à outra em rápida suces­são, só a graça de Deus assegurava a preservação de Judá.

D. Judá e a casa de A cabe (21.2— 22.12)i. Jeorão (21.2-20)“O S e n h o r não estava disposto a destruir a casa de Davi” (21.7).21.5-10b-c/2R eis 8.17-22 21,20a - cf. 2Reis 8.17 21.20b - cf. 2Reis 8.24O reino de Judá repentinamente entra em uma fase muito obscura (caps.

21— 23). Os reinados de Jeorão e Acazias (caps. 21—22), e sua continuação na deposição e morte de Atalia (cap. 23), levaram a nação à beira da destruição interna. A causa principal foi a influência insidiosa da casa de Acabe (21.6; 22.3-4,

133 Willi, CA, p. 219; W illiamson, p. 303. Não há motivo para esse não ter sido o sentido original em Reis, tornando desnecessário ver a profecia de Eliezes como criação do próprio Cronista (em bora o estilo da profecia seja outra questão).

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7-8) que era conhecida em documentos contemporâneos não israelitas como “a casa de Onri (cf. 22.2). Ironicamente, essa dinastia tinha sido introduzida nos negócios de Judá pelo piedoso Josafá (cf. 22.9), mas a fé e a coragem deste infeliz­mente não eram nenhuma garantia de sua sabedoria. A natureza desastrosa de sua aliança com Acabe já foi mencionada (cf. 18.1-2; 19.1-3; cf. 20.35-37), mas agora suas conseqüências começam a aparecer. Presume-se que o leitor conheça a his­tória mais ampla da dedicação da casa de Acabe ao culto de Baal e do conflito com os profetas Elias e Eliseu (lR s 17— 2Rs 11), deixando Crônicas livre para se con­centrar em sua relação com Judá.

Os capítulos 21— 22 são da mesma categoria, como é evidenciado por várias expressões comuns. Além de casa de Acabe (21.6; 22.3), essas incluem a morte dos príncipes reais (21.17; 22.8; cf. 21.4), a preservação do filho mais jovem (21.17; 2 2 .1 ; 2 2 .1 1 - 12 ), invasões de árabes ( 2 1 .17; 2 2 .1 ), e o fato de queambos os vás fizeram o mal aos olhos do S e n h o r (21.6; 22.4). O legado de Josafá também continua (21.12; 22.9), embora de modos contrastantes. Ainda que am­bos os reis não seguissem o seu exemplo de buscar a Deus (22.9; cf. 17.34; 18.4, 7; 20.3), eles mantiveram sua ligação perigosa com a casa de Acabe em suas políticas a respeito do matrimônio (21.6; cf. 18.1) e guerra (22.5-6; cf. 18.2-3).

O relato de Crônicas sobre Jeorão é marcado por vários acréscimos à versão de Reis (2Rs 8.16-24). Porém, as mudanças fundamentais devem ser encontradas em referências à aliança davídica (v. 7) e o julgamento profético contra Jeorão (v. 10b-19). O que surge é uma ênfase mais explícita no envolvimento de Deus com o seu povo quando ele atravessa tempos difíceis. O povo pode ficar seguro de que ele permanece totalmente comprometido com suas promessas, e lida severamente com governantes individuais que negam a mesma aliança que os levou ao poder.

A perspectiva mais ampla de Jeorão, portanto, é que o mal é, no final das contas, um fenômeno passageiro porque Deus sustenta incondicionalmente a sua palavra. Para o Israel pós-exílico, o capítulo eqüivale a um chamado à perse­verança, apoiando a fidelidade sob pressão que os líderes e profetas oficiais tinham mostrado (cf. Ed 8.22; Ne 9.31-37; Zc 6.9-15; Ml 3.6-12). Para o Novo Testamento, a experiência da cruz mostra que o alívio do mal é agora absoluta­mente certo, embora não aconteça necessariamente depressa. A cruz é o sinal do compromisso último de Deus, de forma que se a perseguição conduz à vida ou à morte, seu povo não pode ser separado das promessas de sua aliança eterna (Rm 8.39; Hb 12.24; 13.20).

a. Deus preserva a casa de Davi (21.2-7). O relato de Jeorão se inicia com uma versão ampliada da fórmula introdutória habitual. A informação cronológica e a avaliação teológica de praxe (v. 5-6; cf. 24.1-2; 26.3-5) são acompanhadas por uma frase favorita de Crônicas, a de que Jeorão se estabeleceu firmemente (v. 4; lit. “se fez forte”). Porém, esse material é precedido por detalhes anormalmente com­pletos sobre a família de Jeorão (v. 2-3). Essa família mostra sinais comuns das

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bênçãos de Deus, incluindo muitos filhos (c f lC r 14.3-7; 2Cr 13.21), riqueza em prata e. ouro (cf. 2Cr9.13-28; 32.27), e cidades fortificadas (cf. 2Cr 11.5-12; 17.12). No entanto, a resposta de Jeorão à bondade de Deus foi passar não somente todos os seus irmãos à espada (v. 4), mas também alguns de seus “oficiais” destacados (v. 4, NRSV, GNB, JB; não príncipes, RSV, NTV, NEB). “Se fez forte” (v. 4), portanto, claramente significa a remoção violenta de todos os outros possíveis pretenden­tes ao trono (cf. também 12.1; 25.3; contraste 17.1; 23.1).

Os versículos 2-4, que não têm paralelo em Reis, são geralmente conside­rados provenientes de um registro oficial, visto que eles mostram poucos sinais da influência do cronista fora o verbo “fortaleceu-se”. E uma surpresa que dois irmãos de Jeorão tivessem nomes quase idênticos (Azariah, Azariahu, v. 2). Contudo, a lista completa tem um bom apoio textual (a LXX especificamente tem “seis” irmãos), e, visto que os nomes são grafados de forma diferente, é possível que eles tivessem mães diferentes. Jeorão é chamado rei de Israel (v. 1, NIV, etc.; “Judá”, REB, NEB, RSV, GNB), porque o cronista considerava o reino de Judá como o verdadeiro Israel. Embora Jeorão fosse o filho primogênito (v. 3), parece que sua realeza não foi um direito automático. Não só lhe fo i dado o reino, mas filhos além do primogênito às vezes eram designados como rei, ou pelo rei precedente (IRs 1.13,30; 2Cr 11.20-22) ou pelo povo do país (2Rs 23.31; cf. 2Rs 23.36; lC r 3.15, onde Salum é um outro nome de Joacaz).

Os detalhes cronológicos referem-se ao reinado de oito anos de Jeorão como único governante, em aproximadamente 848-841 a.C. (cf. 2Rs 1.17). Porém, como geralmente é o caso, o elemento dominante na fórmula introdutória é a avaliação teológica que menciona duas alianças contrastantes. A primeira é o casamento de Jeorão com Atalia, uma filha de Acabe (v. 6 ; cf. 22.2; 22.10—23.21).134 Os contratos de matrimônio no antigo Oriente Próximo eram conheci­dos coma alianças (cf. Os 2.14-20; Jr 31.32), e freqüentemente selavam alianças políticas (cf. 2Cr 18.1). Contudo, o acordo entre Josafá e Acabe resultou em que Jeorão (e Acazias, 22.4) fez o mal aos olhos do S e n h o r (v. 6). Aresposta de Deus foi invocar a aliança maior que ele havia feito com Davi (v. 7). A importância dessa declaração é indicada por sua ampliação de 2Reis 8.19. Casa de Davi, que previamente fora “casa de Judá”, é agora diretamente oposta à “casa de Acabe” (v. 6), enquanto “Davi meu servo” se tomou a aliança que o S e n h o r fez com Davi. A única outra menção específica da aliança davídica em Crônicas está em 2Crônicas 13.5, onde a casa davídica estava novamente sob ameaça. Ambas as passagens referem-se a 1 Crônicas 17.4-14, embora a linguagem aqui talvez reflita a influência de Salmos (e.g. SI 89.3,35-36; 132.11-12) e dos profetas (e.g. Is55.3; Jr 33.21), que falam da aliança davídica em termos do compromisso incondicio­nal e imutável de Deus com seu povo. A lâmpada também deve ser entendida no

134 Em bora P., Ar, leiam “irmã de A cabe” (c f Begrich, Rudolph), isso provavelm ente é uma harm onização baseada em 2Reis 8.26 = 2Crônicas 22.2.

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mesmo sentido (v. 7; cf. lRs 1136)! Embora essa metáfora incomum seja normal­mente explicada como símbolo da “vida” (Curtis e Madsen, Ackroyd) ou do “do­mínio” (Hanson),135 o contexto aqui e em outras passagens do Antigo Testamento mostra que é de permanência. Embora “a lâmpada do ímpio é apagada” (Jó 18.5; Pv 13.9; 24.20), o povo de Deus brilha em meio à escuridão. O interesse especial do cronista no candelabro que brilha todas as noites no templo pode expressar con­fiança semelhante (cf. 2Cr 4.7; 13.11, ambos sem paralelo em Reis). Não era vonta­de de Deus (lit. “não desejava”) destruir toda a família de Jeorão (v. 7; cf. v. 17; 2 2 .10- 1 1 ), e o cronista parece ter sublinhado a promessa para os seus leitores ao acrescentar “e” antes de “para os seus filhos para sempre” (v. 7, RSV).

b. Deus castiga Jeorão (21.8-20). Além de prometer segurança para a dinas­tia de Davi, a aliança davídica especifica também que reis individuais devem ser castigados por sua obstinação (cf. lC r 28.9; 2Cr 7.19-22). As implicações disso para Jeorão são indicadas de dois modos, primeiramente em uma breve passagem de Reis (v. 8-10b) e em seguida no material exclusivo de Crônicas (v. 10c-19).

A primeira evidência é uma rebelião feita por Edom (v. 8-10a) e uma revolta interna em Libna, uma cidade de Judá (v. 10b). Edom provavelmente fora recupe­rada para Judá sob Josafá (cf. 2Rs 3.9; 2Cr 30.36), mas agora tinha estabelecido seu próprio rei (v. 8). O entendimento mais provável da tentativa de Jeorão de restabelecer o controle é que ele por pouco conseguiu escapar à noite de um cerco edomita (v. 9). Há menos probabilidade de Judá ter sido “derrotado” pelos edomitas (NEB, também Sanda, Williamson).136 Nada mais é conhecido dos pro­blemas em Libna, uma cidade de localização incerta na fronteira ocidental de Judá não longe de Laquis.137 O que é mais importante para o cronista é que esse reveses militares eram sintoma de Jeorão ter abandonado o S e n h o r (v. 10c). Essa frase final do versículo 10 é um acréscimo explicativo a Reis, refletindo a idéia de que abandonar Deus é o oposto de buscá-lo (1 Cr 28.9; 2Cr 7.19,22; 15.2). O princí­pio básico é que Deus abandona os que o abandonam (cf Mt 10.33; 2Tm 2.12), não de um modo determinista e impessoal mas como uma questão de escolha delibera­da (cf. v. 14). Porém, um elemento de escolha também se estende àqueles que estão sob juízo, como pode ser visto no contraste entre a persistência de Jeroboão em rejeitar a Deus (2Cr 13.11-20) e o arrependimento humilde de Roboão (2Cr 12.1-12).

O cronista desenvolve então o seu tema (v. 10c-19) identificando mais

135 cf. P. D. Hanson, “The Song of Hesbhbon and David’s Nir” , HTR 61, 1968, p. 297-320.136 Um outro problem a é que “com seus o ficiais/com andantes” substituiu “para Z air”

(2Reis 8.21) provavelmente porque o nome original do lugar pode ter desaparecido antes da época do Cronista, em bora talvez tam bém como resultado de seu interesse na dem ocratiza­ção (Japhet, Ideology, p. 418).

137 Sobre a identificação de Libna, que é quase certamente não o local tradicional de Tell Escrituras-Safi, cf. Z. Kallai, H istorical Geography (Jerusalém: Magnes Press, 1986), p. 379- 382; D. Baly, Geography o f the B ible (Guildford: Lutterw orth, 1974), p. 139, 142.

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pecados de Jeorão. Ele é o primeiro rei de Judá que de fato construiu lugares altos (v. 11; cf. 2Cr 15.17; 20.33), entre os quais provavelmente deve ser contado um templo de Baal em Jerusalém {cf. 2Cr 23.17). As duas expressões levando... a prostituir-se (NVI, JB) e desviar-se (lit. “pôr de lado”) pertencem ao vocabulário tradicional do Antigo Testamento relativo à idolatria, a primeira é particularmen­te comum nos profetas {e.g. Jr 3.1; Ez 16.16; Os 4.18) e a última na lei deuteronômica {e.g. Dt4.19; 13.10,13; 2Rs 17.21). A primeira também foi usada paraexplicar por que o reino do norte foi para o exílio (lC r 5.25), e mostra que Judá está debaixo da mesma condenação.

Não é nenhuma surpresa que Deus responda a essa apostasia por meio da profecia, embora a presença de uma carta de Elias seja inesperada (v. 12-15). Elias não aparece mais nenhuma vez em Crônicas, e só se sabe que profetizou em Israel (embora c f IRs 19.3, 8), não escreveu nenhuma outra carta, e muitos pensam que já estivesse morto nessa época! Visto que o estilo da carta também é coerente com o do cronista, é compreensível que muitos comentaristas a con­siderem uma criação do próprio cronista. Porém, Elias certamente estava vivo durante parte do reinado de Jeorão (2Rs 1.17), e é bem possível que ele e Eliseu atuassem um ao lado do outro por um tempo antes de sua transladação (2Rs 2.1-12). Cartas {cf. IRs 21.8-10; 2Rs 5.5-7; 10.1-7) e profecias escritas também eram bem conhecidas {cf lC r 28.9; 29.29; 2Cr 20.34) nessa época, e, se Elias não pudesse agora viajar por causa da idade, ele poderia ter achado mais fácil comu­nicar-se por escrito. O conteúdo da carta também reflete os conflitos de Elias com a casa de Acabe, e seu estilo presente pode indicar apenas que a carta foi novamente redigida pelo cronista e não escrita por ele.

A carta tem a forma típica de um julgamento profético, com uma fórmula de mensageiro (v. 12b) introduzindo uma acusação (v 12c-13) e um anúncio de julgamento (v. 14-15). A acusação resume os versículos 2-11, juntando várias frases da primeira parte do capítulo. Ela começa contrastando os caminhos de Asa e Josafá com os da casa de Acabe, para ilustrar como Jeorão traiu os propó­sitos de Deus para Judá (v. 12c-13a). São mencionados então os pecados de idolatria e fratricídio, que são unidos diretamente com o que precede pelas pala­vras “matar” (heb. hãrãg, cf. v. 4) e “se prostituir” (heb. zãna, cf. v. 11). Melhores do que tu (v. 13) é interpretado de várias maneiras. Os significados mais prová­veis são ou que os irmãos de Jeorão não eram idólatras ou que eles eram legal­mente inocentes e foram mortos sem razão.

O juízo (v. 14-15) tem duas partes, cujo cumprimento é descrito separada­mente nos versículos 16-19. A primeira parte é dirigida contra o povo, com os filhos e esposas de Jeorão separados para um tratamento especial (v. 14, 16-17). Eles sofrerão uma “grande calamidade” (JB; golpe pesado, NIV, REB, NEB), uma frase que é invariavelmente associada com o castigo divino. Isso poderia tomar a forma de uma derrota militar {cf. lSm 4.17; 2Sm 18.7) embora com mais freqüência fosse uma peste, especialmente no êxodo e no período do

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deserto (cf. Êx9.14; Nm 16.48-50; 2Cr21.14,22; SI 106.29-30). O castigo em si é uma invasão pelos filisteus e árabes (v. 16). O primeiro pode ter ligação com a rebelião em Libna (v. 10), e o último provavelmente vem do norte da Arábia, embora possam ter vindo do sul da Arábia se os cuxitas (REB, NEB) realmente forem“etíopes” (NVI, RSV; “sudaneses”, GNB; cf. também 14.9-15; 17.11; 26.7). O estilo é uma reminiscência do tema da “guerra de Javé”, porque Deus des­pertou a hostilidade dos (v. 16, NIV) ou “provocou a ira dos” (RSV) invaso­res, e assegurou que o castigo fosse aplicado (v. 17). A palavra de Elias se cumpre, e os assassinatos de Jeorão são vingados (c f v. 4). A “casa” do rei (v. 17; palácio, REB, NEB) fica com muita probabilidade em uma das cidades fortificadas (cf. v. 3), não em Jerusalém. “Jeoacás” (NVI nr, RSV, REB, NEB) é outro nome para Acazias (NVI, JB, GNB; cf. 22.1; as duas partes do nome simplesmente estão na ordem inversa).

A segunda parte do julgamento cai diretamente sobre Jeorão (v. 15,18-19), que sofre uma doença incurável. Infelizmente, ela não pode ser descrita com mais precisão senão como uma doença dos intestinos muito incômoda (apesar de REB, NEB). Os problemas de tradução aumentaram a dificuldade, e o fim pode ter vindo de repente, “em dois dias” (cf. Keil, Dillard), em lugar de ao término do segundo ano (EVV).

Os detalhes factuais da morte de Jeorão também indicam o julgamento de Deus. Há três negativas: que ele não foi honrado com o funeral habitual (v. 19; cf. 2Cr 16.14; Jr 34.5), que não houve nenhum pesar por sua morte, e que ele não foi enterrado no cemitério dos reis (v. 20). Notavelmente, também são omitidos três itens, a saber, qualquer fonte de informação adicional, a sucessão direta, e que ele descansou com os seus pais (cf. e.g. 2Cr 12.15-16; 13.22-14.1; 16.13-14). Nessa questão, o autor mostra que ele considerou o reinado de Jeorão, como também os dos seus sucessores Acazias e Atalia, como uma aberração.

ii. Acazias (22.1-9)“A casa de Acazias não tinha ninguém capaz de governar o reino” (22.9, RSV).2 2 .1 -6 -c / 2Reis 8.24b-2922.7-c /2 R e is 9.2122.8-ç/!2Reis 10.13-1422.9-c /2 R e is 9.28O verdadeiro tema do capítulo 22 é a casa de Acabe (v. 3,7-8) e não os dois

governantes de Judá, Acazias (v. 1-9) e Atalia (v. 10-12). A influência da casa de Acabe foi sentida durante o breve reinado de Acazias pela função de Atalia como rainha mãe (v. 2) e por vários conselheiros (v. 4-5). A pressão externa foi colocada em ação por Jeorão rei de Israel (também chamado Jorão), a quem em um caso é dado o título pleno de filho de Acabe rei de Israel (v. 5; cf. v. 6-8). Acazias era pouco mais que um fantoche, e, depois de sua morte, Atalia governou Judá en­quanto não havia nenhum pretendente masculino efetivo (v. 12). Durante ambos

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os reinados, portanto, a dinastia de Acabe esteve no controle de Judá. A unidade de Judá e Israel é simbolizada eloqüentemente pelos nomes dos seus reis. Ne­nhum outro rei israelita foi chamado Jeorão ou Acazias, contudo ambos os nomes são usados por sucessivos governantes contemporâneos em Judá e Israel.

Acazias e Atalia representam mais dois estágios na subversão de Judá pela dinastia de Acabe antes do desenlace no capítulo 23. Enquanto Jeorão de Judá está apenas aberto à sua influência (cap. 21), Acazias é completamente cooperativo. No entanto, quando Acazias morre a situação toma-se ainda mais desesperadora. Nenhum homem da casa de Davi pode assumir a realeza (v. 9), e qualquer resto de esperança é esmagado pela eliminação violenta do que resta­va da família real levada a cabo por Atalia (v. 10-12). A ameaça opressiva não é mais evidente que nos repetidos assassinatos em grupo que afetaram a casa davídica quatro vezes em duas gerações (21.4; 22.1, 8, 10). É verdade que um bebê escapa à crueldade de Atalia (v. 11-12), mas o que poderia fazer um bebê contra tal tirano? Em tudo isso, a integridade do próprio Deus está cada vez mais em questão, porque parece que ele deixou cumprir suas promessas, e deixou seu povo totalmente indefeso.

Mudanças significativas foram feitas ao relato de Reis, e algum conheci­mento desse pano de fundo é pressuposto. Palavras individuais e frases nos versículos 1-6 foram ajustadas para fortalecer a ligação com o capítulo 2 1 (e.g. filho mais jovem, v. 1 e 21.17; Ele também andou nos caminhos da casa de Acabe, v. 3, c f 21.6), e para destacar a sujeição de Acazias à casa de Acabe (cf. o acréscimo triplo de “conselho, aconselhar” nos v. 3-5). O cronista também rees- creveu a história muito mais longa da revolução de Jeú (v. 7-9) habilmente incor­porando frases espalhadas de 2 Reis 9— 10. Ao passo que em Reis o interesse está focalizado nas ações de Jeú em Israel, aqui o plano de Deus para destruir a casa de Acabe (v. 7; cf. v. 8) centra-se em Acazias, embora Deus ainda se recuse a “destruir a casa de Davi” (21.7). Por meio de todos os desastres, a providência de Deus está atuando para remover o mal e restabelecer seu legítimo govemo. Foi Deus quem na verdade ungiu Jeú, e que provocou a queda de Acazias (v. 7).

A garantia do controle soberano de Deus era igualmente adequada duran­te as dificuldades do período pós-exílico quando a casa de Davi tinha se tornado não mais do que uma lembrança (cf. Ed 9.6-7; Ne 9.36-37). Isso também se aplica aos crentes sofredores em cada geração, que sentem que Deus parece ter renun­ciado ao controle efetivo da situação deles. Uma tal garantia trouxe conforto também aos apóstolos (cf. 2Co 1.3-11; 6.3-10; lPe 2.20-25), e o testemunho bíbli­co como um todo encoraja os crentes a olhar para a mão invisível de Deus mesmo quando a escuridão é a mais densa.

a. Acazias e a casa de Acabe (22.1-4). Por meio da fórmula introdutória padronizada, Acazias está relacionado em cada versículo desse parágrafo com a casa de Acabe. Até mesmo sua ascensão é um lembrete do juízo de Deus sobre

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a parceria (v. 1), embora Acazias ainda continue a política de seu pai. A respon­sabilidade pela morte dos irmãos mais velhos de Acazias é atribuída aos incursores que vieram com os árabes, presumivelmente os filisteus (v. 1; cf. 21.16-17). A função do povo de Jerusalém na escolha do novo rei sugere uma semelhança entre eles e o “povo da terra” {cf 26.1; 33.25; 36.1). Ambos responderam em crises quando os arranjos habituais para a sucessão, normalmente envolvendo uma co-regência, tinham sucumbido. Eles também tinham continuado a tradição do povo que foi a Siquém para designar o sucessor de Salomão (cf. 2Cr 10.1).

A data do reinado de um ano de Acazias (v. 2) é calculada de diversas maneiras como estando em algum momento entre 845 a.C. (Begrich) e 841 a.C. (Thiele). A sua idade, no entanto, é problemática. Onde TM tem “quarenta e dois” anos (NEB, NRSV, RSV), 2Reis 8.26 e um texto grego têm vinte e dois (NVI, REB, GNB), e os principais MSS gregos têm “vinte.” Embora uma das leituras gregas deva ser preferida pois de outro modo Acazias teria sido mais velho que seu pai (cf. 2Cr 21.5,20), não é fácil explicar como nesta idade os filhos dos seus irmãos (v. 8, lit.) tinham idade suficiente para serem servos dele.

A característica principal do reinado de Acazias foi sua dependência dos conselheiros da casa de Acabe (v. 3-5). A responsabilidade por essa situação era de Atalia, que provavelmente era a neta de Onri (v. 2, NVI, etc.) e filha de Acabe e não “a filha de Onri” (JB). Embora sua contribuição ao remado de Acazias só seja mencionada em termos gerais (v. 3), a sua crueldade para com sua própria família (v. 10-12) e a sua idolatria (23.17) mostram do que ela era capaz. Aposição dos conselheiros do rei era muito importante (cf. 2Sm 15.24; lCr 27.32; Ed 4.5; 7.28), e podia ser preenchida pela rainha-mãe em acréscimo ao seu próprio status oficial (cf. lR s 2.13-21; 15.13; 2Rs 24.15).138 Bom conselho era essencial para um bom reinado (e.g. lC r 13.1; 2Cr 20.21), mas Atalia era uma “conselheira da impiedade” (REB, NEB), e os conselheiros de Acazias levaram à sua perda, literalmente, destruição (cf. 2Cr 10.8-9; 25.17). Ao acrescentar ele também (v.3) assim como as frases que começam com pois / visto que nos versículos 3 e 4, o cronista indica que após a morte de seu pai (i.e. de Jeorão), os caminhos da casa de Davi tomaram-se indistintos dos da casa de Acabe.

b. Ruína e morte de Acazias (22.5-9). As hostilidades conjuntas de Judá e Israel contra os “sírios” (v. 5 RSV; arameus, NIV, etc.) exemplificam sua unida­de, embora a aceitação por Acazias do conselho israelita (v. 5) e sua viagem a Jezreel (v. 6) mostrem quem era o parceiro dominante.139 Foi com (v.5) provavel­mente indica o apoio geral de Acazias a Jeorão/Jorão (o heb. tem as duas grafias),

138 Cf. N. Andreasen, “The role of the queen mother in Israelite society” , CBQ 45, 1983, p. 179-193; L. Ruppert, in TDOT 6, 1990, p. 161-163.

135 “sírios/arameus”, que é a leitura de 2Reis 8.28, Tg. , Vulg., e dois manuscritos hebraicos, representa o acréscimo de um a letra ao TM, que é incom preensível como está.

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que na prática é limitado a visitar o rei ferido em Jezreel (v. 6) e não a ajudá-lo na batalha em Ramote-Gileade (v. 5).

Acazias provavelmente não é condenado por participar da guerra. Antes, ao não se separar de Jeorão, ele se tornou passível de sofrer o mesmo castigo que Deus outrora havia anunciado contra a casa de Acabe, e que ele tinha escolhido Hazael e Jeú para aplicar (cf. IRs 19.15-17; 2Rs 8.11-13). Essa falta de discernimento mostra-se em várias ironias presentes no texto. Em primeiro lugar, embora Israel e Judá tivessem sido reunidos, isso aconteceu com base no inte­resse próprio e na idolatria e não na aliança. Em segundo, a ação conjunta contra os sírios em Ramote-Gileade já havia levado a um desastre (cap. 18). Em terceiro, a tentativa de Jeorão de se restaurar (v. 6, NIV, REB, NEB, etc.) literalmente “ser curado” (NRSV, RSV) em Jezreel provavelmente é uma tácita rejeição à oferta do Senhor de curar por meio do arrependimento (cf. 2Cr 7.14; 30.20). Sua ato também pode ter sido agravado por mais idolatria, se a tradição da família é um guia adequado (cf. 2Rs 1.2-6,15-17).

O texto do versículo 6 tem várias dificuldades. “Ramá” (NRSV, RSV) deve ser entendido como um nome alternativo para Ramote-Gileade (NIV, etc.), e “Azarias” do TM foi corretamente mudado para Acazias nas versões modernas. Contudo, “das feridas” (EVV) é um abrandamento de uma oração explicativa inacabada, seguindo 2Rs 8.29. O TM tem “por causa das feridas...”, e, enquanto a harmonização das EVV pode estar correta, o acréscimo da Vulg. de “... eram muitos” é digno de consideração (Rudolph).

Jeú tem um papel paralelo ao de Azael como um agente do juízo de Deus sobre a casa de Acabe (v. 7-9). Ele havia sido ungido com óleo como um símbolo da escolha e capacitação de Deus para realizar uma tarefa (IR s 19.15- 17; 2Rs 9.1-13). A palavra para a ruína de Acazias (v. 7) é única em hebraico, mas não deve ser mudada para a expressão rara “virada nos acontecimentos” (2Cr 10.15; cf. o verbo relacionado em lC r 10.14), visto que a frase “ruína de Acazias” não pode ser facilmente adaptada.140 No versículo 8, Jeú ou estava executando julgamento (NIV, NRSV, RSV, cf. JB) sobre a casa de Acabe ou ele estava em “discordância com” (REB, NEB) ela, i.e. acusou-os de não manterem os padrões da aliança de Deus.

Os detalhes diferem um pouco de 2Reis 9.16-29; 10.12-14, como na ordem das mortes do rei e seus parentes, e o lugar do enterro de Acazias. Porém, algumas versões modernas acrescentaram um então desnecessário no versículo9 (e.g. NVI, REB, NEB), enquanto 2Reis 9.27 não diz nada sobre a defasagem de tempo entre Acazias ser ferido e a sua morte. Também o silêncio do versículo 9 sobre o lugar do seu sepultamento provavelmente indica que ele desagradou a Deus (cf. 2Cr 21.20). Um problema mais difícil é reconstruir os movimentos de Acazias depois que ele foi ferido, mas, visto que os lugares mencionados no

140 Cf. Rudolph, Ackroyd, W illiamson.

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versículo 9 e 2Reis 8.18 não coincidem, é provavelmente imprudência ser dogmático sobre qualquer conclusão. Outros problemas dizem respeito aos ser­vos de Acazias (v. 8). O hebraico os chama “filhos dos irmãos de Acazias”, mas, considerando-se que seus irmãos reais estavam mortos (21.17; 22.1) e seus filhos provavelmente não eram mais que crianças, eles devem ser considerados mais como “parentes” (REB, NEB).

Acazias é contrastado com o seu avô Josafá (v. 9), em cuja memória lhe é dado um enterro decente (2Rs 9.28). Embora críticas tivessem sido dirigidas contra Josafá (18.1-2; 19.1-3; 20.35-37), sua perspectiva geral de tentar seguir a vontade de Deus de coração contrasta nitidamente com Acazias (17.3-4; 19.3). Do lado do débito, entretanto, ninguém se iguala a Atalia e o último estado da linhagem de Davi parece pior que o primeiro (“ninguém capaz de governar”, v. 9, RSV). Embora essa situação seja às vezes comparada com o fim da dinastia de Saul (1 Cr 10.13-14; cf. Mosis, Williamson, Dillard), uma analogia melhor é a linha­gem davídica sem filhos no exílio (Jr 22.29-30). O problema real é o conflito entre a falta de um herdeiro e a promessa eterna de Deus a Davi, que não tem nenhum equivalente no caso de Saul.

ii. Atalia (22.10-12)“Atalia... destruiu toda a descendência real da casa de Judá” (v. 10).22.10-12-c/2R eis 11.1-3Atalia agora tenta o que Deus não estivera disposto a fazer, ou seja, des­

truir de uma vez por todas a casa de Judá (v. 10; c f 21.7), mas até mesmo nisto ela é contrariada pela providência divina. Destruiu (ARA, RSV, etc.) é uma pala­vra rara, e se não for uma corrupção da palavra correspondente de 2Reis 11.1, ela significa “remover” ou até mesmo “exterminar”.141 A proteção de Deus ao bebê Joás (v. 11; cf. 21.17) é apenas um exemplo de várias crianças vulneráveis por quem Deus cumpre seus propósitos (cf Ex 2.1-10; ISm 17; Is 7.14; 9.6; Jr 1.4-8), das quais Jesus é, naturalmente, a mais notável (cf. Mt 1.13-23; Lc 1.26-33; 2.1- 40). O destino de seu povo sempre está seguro em suas mãos, não importa quão intenso seja o seu sofrimento.

Esse incidente é na verdade um conto de duas mulheres. Uma governou a terra durante seis anos (v. 12 ), embora a falta do quadro de fórmulas usual mostre que o autor considerou seu remado ilegítimo, Ela havia assumido o trono através de violência, e foi o único governante em Judá que não era da linhagem de Davi (Begrich dá suas datas como 845-840, Thiele como 841-835). A outra mulher era “Jeosabeate” (ou Jeoseba, como em IRs 11.2; assim NVI, REB, NEB, JB aqui), que era a filha ou enteada de Atalia e a esposa do sacerdote Joiada (o

141 Cf. W. G. E. Watson, “Archaic elements in the language of Chronicles”, Bib. 53, 1972, p. 193; KB, p. 201; CAD , D, p. 186-188.

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termo pré-exílico habitual para sumo sacerdote).142 O cronista inseriu a frase no versículo 11 (cf 2Rs 11.2), explicando como ela, sendo irmã de Acazias, teve acesso ao bebê e que sua fé corajosa foi da mesma maneira tão vital como a de seu marido na restauração da realeza legítima (cf. 1 1 ).

Esse parágrafo normalmente é visto como o começo do fim de Atalia e lido com o que segue. No entanto, ele pode ser considerado igualmente como o esforço final da casa de Acabe em Judá. Embora o processo que começou com Jeorão do fratricídio de Judá (21.4) tivesse piorado muito, a lâmpada não tinha sido apagada (cf. 21.7). Agora, a era de escuridão estava para ser substituída por uma nova era.

E. Três reis em decadência (23.1— 26.23)i. Joás (23.1—24.27)“Joiada e seus filhos o ungiram; e eles gritaram, ‘Longa vida ao rei!’”

(23.11, NRSV).“Ele [Joás] fez o que era certo aos olhos do S e n h o r enquanto Joiada, o

sacerdote, estava vivo” (24.2, REB, NEB).23.1-18a-c/2Reis 11.4-1823.20-21-c /2 R e is 11.19-2024.1-2- t / 2Reis 11.21— 12.224.5-6-c f. 2Reis 12.4-724.8- c / 2Reis 12.924.1 l-12-c/.'2Reis 12.10-1224.14-c/2R eis 12.13 24.23-c /2 R e is 12.1724.25-c /2 R e is 21.22b24.26-c /2 R e is 12.22a24.27-c /2 R e is 12.20,22cSuperficialmente, o capítulo 23 descreve um golpe de estado no qual a

rainha Atalia é afastada pelo sumo sacerdote Joiada, que então instala Joás com sete anos de idade no trono como o rei legítimo (v. 1-15). Porém, o significado subjacente trata da restauração dos princípios da aliança de Deus ao seu lugar de direito na trama da vida nacional (v. 16-21). A ascensão de Joás portanto foi na realidade uma tentativa de reter a raison d ’etre distintiva de Judá em face da arremetida dos valores cananeus, e não apenas o restabelecimento do rei legítimo. Esse objetivo sem dúvida teve êxito a curto prazo, por causa da coragem e compro­misso para com as promessas de Deus mostrados por Joiada e pelo povo. A médio e a longo prazo, entretanto, os resultados não foram tão contínuos. As coisas

142 A forma do nome dela em Crônicas é claramente feminina e não contém ditografia do bat, “filha” (W illi, CA, p. 86-87).

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começaram a dar errado novamente já durante o reinado de Joás (24.17-27), e a apostasia ilustrada pela casa de Acabe no final das contas prevaleceu. Isso levou naturalmente à remoção não só de um único governante mas à remoção da nação de sua terra (2Cr 36.15-16). Por outro lado, a mão protetora de Deus nunca deixou seu povo, e em última instância é a isso que o autor dirige a atenção do leitor. Embora os benefícios da ascensão de Joás tenham tido vida curta, no fim é o tipo de fé e confiança mostradas por Joiada e o povo que mostra o reino de Deus verdadeiramente estabelecido nos corações do seu povo.

Esse relato segue basicamente 2Reis 11.4-20, embora com um grande nú­mero de mudanças, como os acréscimos aos versículos 1 -2a, 6 ,1 8b-19. Por meio das mudanças três temas já presentes no texto anterior tomaram-se centrais. O mais óbvio é a preocupação com o templo, sua santidade e seu pessoal. O templo deve ser mantido santo e limpo (v. 6, 19), enquanto a função dos levitas (v. 6-8,18; cf. 2Rs 11.7-9,18), músicos e porteiros (v. 4,13,18-19) é explicitada e esclarecida. Um segundo tema é o modo pelo qual a ascensão de Joás cumpre as promessas de Deus sobre a casa de Davi. Embora seja surpreendente que Reis e Crônicas refiram-se a Joás como “o rei” ou “o filho do rei” (aparentemente insinuando que Atalia nem mesmo exista!), Crônicas vai além ao falar aberta­mente da reinstituição da dinastia de Davi e dos padrões davídicos de culto (v. 3,18; cf. v. 9). Também ao omitir a história paralela de como Jeú restabeleceu a realeza j avista no reino do norte (2Rs 9— 10), Crônicas focalizou a questão da sobrevivência da realeza da aliança completamente no conflito que envolve a família de Davi. O terceiro tema é a contribuição feita pelo povo. Embora figurem com força em 2Reis 11.13-20, as referências aos líderes das casas dos pais (v. 2), à congregação (v. 3), e a todo Judá (v. 8) dão proeminência adicional a eles como um povo da aliança (cf. v. 1 ,3 ,16). Acima de tudo, a versão do cronista destaca a fidelidade de Deus à sua aliança, e o papel desempenhado no golpe pelo povo e seus líderes religiosos em vez do papel dos oficiais militares.

Todos esses são temas típicos em Crônicas, e sua aplicação aos contem­porâneos do autor teria sido razoavelmente óbvia. Um incentivo claro estava sendo oferecido ao povo, especialmente os sacerdotes e levitas, para se le­vantar e fazer valer seu compromisso com as promessas de Deus. Se Deus tinha preservado a casa davídica uma vez quando ela quase foi eliminada, ele poderia fazê-lo novamente. Como antes, portanto, o cronista cria uma expecta­tiva na mente dos leitores pós-exílicos de que um outro rei que descendesse de Davi poderia novamente governar Israel. E surpreendente que ao fazer isso ele não apele aos quadros proféticos de uma figura messiânica futura, mas se refira a um representante humano. Isso é bastante coerente com o modo que pelo qual o Novo Testamento se refere ao último Filho de Davi que exerce a realeza em Israel. É uma parte importante da humanidade de Jesus que ele descendia da linhagem de reis na qual Joás e até mesmo Atalia tiveram um lugar, um fator que recebe devido reconhecimento em uma variedade de escri­

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tos do Novo Testamento (Mt 1.6-16; Rm 1.3; 2Tm 2.8; Ap 22.16). A coragem de Joiada portanto desempenha uma parte necessária na preservação da linha­gem de Davi até que Jesus revelasse seu reino.

a. A ascensão de Joás sob a liderança de Joiada (23.1-21).i. O rei legítimo volta ao poder (23.1-11). O sumo sacerdote Joiada (cf.

24.6) age no sétimo ano (v. 1), ou seja, quando Joás tinha sete anos de idade (24.1), embora a importância precisa desse tempo não seja explicada. O sacer­dote mostrou sua força (cf. JB, REB, NEB) o que pode significar simplesmente que ele agiu de maneira decisiva. A frase é usada a respeito de vários reis no começo de seus reinados, normalmente em um sentido positivo, embora nesse caso Joiada estivesse agindo em favor de outra pessoa e não de si mesmo (cf.e.g. 2Cr 15.8; 17.1; 27.6).

O primeiro objetivo do golpe, de ver Joás ungido como rei (v. 11), aconteceu em três fases. A primeira (v. 1-3) é uma congregação de levitas e líderes de famílias em Judá (v. 2-3), convocada com a ajuda de alguns oficiais militares (v. 1). A facilidade com que os “rebeldes” se unem sugere que Atalia tivesse pouco apoio popular. A “congregação” é um termo de favorito em Crônicas por causa de sua função crucial no Israel pós-exflico (c f Ed 10.1; Ne 8.2). Em Crônicas ela era norm alm ente um corpo representativo, e, em bora suas decisões fossem freqüentemente de natureza política, elas tendiam a ter implicações religiosas (cf. lC r 13.2; 29.10; 2Cr 30.2). Era considerado uma virtude que os líderes respeitassem a congregação, e é notável que nenhuma congregação seja mencionada enquanto Judá estava sob a casa de Acabe (a referência prévia é 20.5, 14). Uma aliança é feita (v. 3) que provavelmente continha os termos da realeza de Joás, incluindo os da regência de Joiada. A aliança com os oficiais militares (v. 1) provavelmente era uma versão preliminar.

A maioria das EVV sugere que o menino foi na verdade apresentado na congregação, “Aqui está o filho do rei!” (v. 3, NRSV). Alguns sentem que o elemento crucial de surpresa foi, assim, perdido, e como alternativa, ou têm pro­posto que Joiada meramente estabeleceu a identidade do menino (de Vries) ou combinam essa frase com a próxima, o filho do rei deve reinar (NIV). Ainda que, no entanto, seu aparecimento tenha sido breve, com o rei (não em Reis) de fato presume a presença física do menino, como faz a declaração (2Rs 11.4) de que o sacerdote “mostrou-lhes” a criança. A frase final do versículo 3 sobre a promessa de Deus para os descendentes de Davi é um acréscimo, mas claramente mostra por que o autor acreditava que o golpe aconteceu (cf lC r 17.10b-14; 2Cr 6.10; 21.7).

As instruções específicas de Joiada constituem a segunda fase (v. 4-7), embora os detalhes sejam difíceis de desvendar. Há duas dificuldades principais, das quais a primeira é a relação entre os vários grupos. Enquanto Crônicas tem três grupos de guardas de serviço no templo e no palácio com o restante do povo reunido nos pátios do templo, 2Reis 11.5-7 fala de três grupos bastante diferentes

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acompanhados por duas companhias de guardas do templo. O segundo problema é que Crônicas (mas não Reis) identifica alguns desses homens como sacerdotes e levitas (v. 6, 8) ao passo que Reis só fala de “cários e guardas”, i.e., o corpo da guarda real (2Rs 11.4). Embora o cronista não tenha simplesmente substituído os últimos pelos primeiros (cf. v. 1 ,5 ,1 0 ,20com 2Rs 11.46,6,11,19), ele parece ter interpretado aqueles que guardavam o rei nos recintos do templo como sendo levitas (c f v. 6; 2Rs 11.7). Visto que os levitas não estavam isentos do serviço militar, eles teriam sido armados como os demais (cf. lCr 11.22-24; 12.26-28; 27.5-6). Além disso, a inclusão de Crônicas de leigos (v. 2-3) e de todo o Judá (v. 8), junto com a menção de Reis dos guardas do templo que eram presumivelmente levitas (2Rs 11.7), sugere que tanto Reis quanto Crônicas se referem aos leigos e levitas, com o último, como sempre, enfatizando a contribuição dos levitas.

O povo (v. 5-6) permanece fora nos pátios do templo. Exige-se deles que observem a ordem do S e n h o r de não entrar (v. 6, NIV nr., cf. GNB), ao passo que os levitas devem vigiar o rei que tinha sido ocultado no templo (22.12). As portas não podem ser identificadas, embora a Porta do Fundamento (v. 5) pro­vavelmente seja a mesma que a Porta Sur (2Rs 11.6). Aqueles designados como guardas da porta (v. 4) podem ser o mesmo grupo que vigiou uma porta do templo não nomeada (2Rs 11.6).

O plano dependia de dois elementos cruciais. Um era que o momento ade­quado não criasse suspeita, visto que a troca dos guardas do palácio e do templo no sábado envolvia o movimento natural do número máximo de homens armados. A única irregularidade era que toda folga foi cancelada (v. 8). A segunda era que Atalia provavelmente sabia muito pouco do que acontecia no templo do S e n h o r ,

visto que ela adorava a Baal (v. 17). O elemento surpresa é portanto realístico.A terceira fase culminou na unção e aclamação de Joás (v. 8-11). As armas

usadas pelos guardas (v. 9) estavam prontamente disponíveis no templo, e pro­vavelmente eram uma mistura de troféus capturados dos inimigos derrotados por Davi ( lC r l8 .7 - l l ) e armas enfeitadas especialmente feitas por Salomão (2Cr 9.15-16). A palavra que traduz escudos pequenos (NIV, NRSV, RSV, JB; “broquel”, REB, NEB) provavelmente é “aljava” (cf também lC r 18.7).I4 '

Quando o rei menino saiu da frente do templo, ele parece ter sido comple­tamente protegido por homens armados que ficavam entre o templo e o altar e flanqueando-o à esquerda e à direita (norte e sul, v. 10). Ironicamente, essa seria a mesma área geral onde Joás ordenaria mais tarde que o filho de Joiada fosse assassinado por falar sem o devido respeito (2Cr 24.21). A palavra para lado (NIV, RSV; “canto”, REB, NEB, JB) pode se referir à parte da entrada entre a abertura principal e o lado adjacente.144

143 R. Borger, “Die W affentrãger des Kõnigs Darius”, VT 22, 1972, p. 385-398. Note-se tam bém a incerteza na NIV, JB ao traduzir o heb. m agen como “escudo pequeno” em 2Cr 9.16 e “escudo grande” aqui.

144 R. D. Haak, “The ‘Shoulder’ o f the tem ple’, VT 33, 1983, p. 271-278.

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A cerimônia era uma coroação e uma unção (v. 11). Essa é a referência mais completa em Crônicas para tal evento, e dois de seus três elementos fundamentais ocorrem apenas aqui em Crônicas. Um desses é a coroa, na realidade um “diadema” que era usado por sumos sacerdotes como também pelos reis (Êx 29.6; Lv 8.9). O outro é o “testemunho” (REB, RSV; cópia da aliança, NIV). Esse é compreendido ou como alguma forma de jóia ou insígnia, comparável ao diadema, ou como um documento.145 O último é mais provável, mas poderia ser uma cópia das condi­ções da realeza (cf. NEB), uma cópia da lei da aliança como um todo (cf JB) ou das leis concernentes à realeza (Dt 17.14-20; cf. GNB), ou uma inscrição dedicatória.146 O contexto favorece a idéia de que ele conteria as decisões da congregação (v.3), mas, se o sentido “testemunho” for preferível, isso apoiaria uma referência mais ampla à aliança. Independente da identidade precisa do documento, ele era um símbolo de que Joás deveria reger de acordo com as promessas da aliança de Deus e não de acordo com seus próprios termos (cf. v. 3). Sua unção também fala dele como alguém escolhido para os propósitos de Deus. Fora Joás, Crônicas registra apenas a unção de Davi (lC r 11.3; 14.8), Salomão (lC r 23.1; 29.22), e Jeú (2Cr 22.7).

ii. A usurpadora é destituída (23.12-15). Atalia foi tomada completamen­te de surpresa, mas, atraída pelo som incomum de entusiasmo popular, fez uma visita apressada embora rara ao templo do S e n h o r ( v . 12). Ela viu o rei Joás enquanto ele estava junto a uma coluna, presumivelmente uma das colunas Jaquim ou Boaz na entrada do templo (2Cr 3.17), ou em um “palanque” (NEB), embora o último envolva uma pequena emenda. Entre a multidão feliz também estavam os “cantores” (cf. REB, NEB, “explosões de canção” ; a leitura de alguns poucos MSS contra os oficiais do TM, NIV, ou “capitães”, RSV) e “músicos” (GNB; normalmente traduzido por “cantores”). Esses se referem claramente aos levitas (cf. lC r 23.5; 25.1-6), com os sacerdotes tocando trom- betas (cf. lC r 15.24; 2Cr 5.12-14).

O grito de Atalia de Traiçãol é irônico ao extremo, dadas as circunstâncias violentas nas quais ela tinha tirado o trono (22.3,10-11). Sua reação é um exem­plo clássico do ensino de Jesus sobre o cisco e a viga (Mt 7.3-5; Lc 6.41-42). A falta de qualquer fórmula de conclusão revela a visão do escritor da ilegitimida­de do reinado dela, que não era devido aos seus crimes, porque outros eram igualmente culpados (cf. 21.4; 28.22-24; 33.2-9), mas porque ela em primeiro lugar não tinha nenhum direito ao trono.

A morte foi a devida recompensa para seus assassinatos (v. 15; cf. 22.10-11), embora ela fosse morta nos portões do palácio para não contaminar mais o templo

145 U m a em enda para ‘b race le te ’ (cf. 2Sm 1.10; Is 3.30), orig inalm ente proposta por W ellhausen, agora em geral é descartada, em parte porque a raridade da form a sugerida oferece pouca confiança para sua restauração aqui.

146 Para o último, cf. T. N. D. M ettinger, King and M essiah (Lund: Gleerup, 1977), p. 287; Hobbs, p. 141.

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(cf. v. 6-7,19). Ela foi tirada dos recintos (v. 14, NIV nr.; cf. IRs 6.9), uma palavra que é incerta mas é preferível a fileiras (NIV, NRSV, RSV), visto que o contexto é todo sobre a geografia do templo. Eles “puseram as mãos sobre ela” (RSV) é uma expressão única em hebraico, e, embora tenha sido traduzida desde os tempos medievais como “eles abriram espaço para ela” (Ackroyd; cf. VSS), as poucas ocasiões onde o hebraico “mão” poderia significar “sala, espaço” ocorre em con­textos bastante diferentes (cf Gn 34.21; Js 8.20; SI 104.25). Embora ela alcançou (v. 15, NIV, JB; “foi”, RSV) poderia insinuar que Atalia chegou ao palácio por sua própria vontade, o parágrafo inteiro sugere fortemente o contrário.147

iii. A aliança renovada (23.16-21). O clímax não é a coroação de Joás mas uma aliança que renova a relação da nação com Deus. Os participantes (v. 16) são descritos de maneira diferente de 2Reis 11.17, especialmente pela substitui­ção de “entre o S e n h o r ” por “entre ele”, i.e., Joiada (cf. RSV)! O cronista prova­velmente interpretou que eles seriam o povo do S e n h o r como implica a partici­pação de Deus, embora ele pudesse ter considerado a palavra para “ele” como uma abreviação para Javé. O cronista também omitiu a aliança entre o rei e o povo, mas isso já foi mencionado nos versículos 3, 11. Essa aliança é diferente daquela do versículo 11, visto que essa aqui é feita entre o povo e Deus ao invés de o povo e o rei. A seqüência confirma essa distinção, visto que os versículos 17-21 tratam mais de questões religiosas em geral do que da questão específica nos versículos 4-15 de quem deve ser o rei legítimo. O objetivo desta aliança era mudar as injustiças atuais pelo que era certo. Como freqüentemente em Crôni­cas, isso resultou em uma remoção do culto gentio (v. 17; cf. 2Cr 15.12-16; 34.31- 33) em obediência à lei deuteronômica (cf. Dt 4.23; 7.6). Isso também levou à reinstituição das colunas gêmeas da aliança davídica, reorganização do culto no templo de acordo com as leis de Deus (v. 17-19) e fixação do rei davídico sobre seu trono legítimo (v. 20-2 1 ).

A casa de Baal (v. 17) que tinha sido presumivelmente construída sob os auspícios da casa de Acabe (cf. especialmente 21.11,13), foi demolida em uma ação que é notavelmente semelhante à obra de Jeú em Samaria. Esse último pode ter inspirado Joiada, exceto pelo fato de que essa ocasião foi menos sangrenta (cf. 2Rs 10.18-28). Do lado positivo, o culto do templo foi revisto de acordo com as instruções dadas a Davi e Moisés (v. 18; cf. também 24.9-10), um exemplo típico da preocupação do cronista de que qualquer mudança no culto exigisse autoridade adequada (sobre Moisés, cf. e.g. lC r 16.40; 2Cr 31.3; 34.14). Davi tinha dado instruções específicas sobre a música e o pessoal do templo. As responsabilidades especiais dos sacerdotes, levitas, (v. 18, note a menção de

147 Isto seria ainda mais claro se “deu ordem” de 2Rs 11.15 (v.14, REB, NEB) fosse lido no lugar de ‘publicou’ (RSV; ‘gritou’, JB, GNB). TM poderia facilmente ter sido influenciado pelo verbo que segue.

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canto), e “porteiros” (v. 19, NRSV, RSV) são todas mencionadas.148 Naquilo que os versículos 18b-19 são exclusivos do cronista, eles sem dúvida refletem as preocupações especiais de sua própria época.

Aqueles que trouxeram o jovem rei do templo para o palácio (v. 20) são agora os nobres e governantes do povo e não os guarda-costas reais, enfatizando o compromisso dos líderes com o novo rei. Com o rei corretamente instalado, a alegria e a paz floresceram (v. 21). O regozijo do povo aumentou a alegria do culto do templo (v. 18), e se ouviu um som não ouvido desde os dias de Josafá (20.27). O fato de a cidade estar tranqüila era um sinal da bênção de Deus, que seguia freqüentemente atos especiais de fé e obediência (cf. lC r 4.40; 22.9; 2Cr 13.23; 14.4-5; 20.30).

b. A fidelidade de Joás durante a vida de Joiada (24.1-16).A história de Joás é uma das mais tristes em Crônicas. Ela descreve um

rei que deliberadamente deu as costas para Deus depois de ter recebido expe­riência pessoal da misericórdia de Deus e de ter iniciado uma reforma religiosa. Além disso, o padrão do sucesso anterior seguido por um declínio acentuado é estabelecido para os reinados dos seus dois sucessores imediatos, Amazias (cap. 25) e Uzias (cap. 26). O padrão não é novo, pois já foi aplicado a Roboão (2Cr 11-12) e Asa (2Cr 14-16), mas aprofunda-se ainda nos capítulos 24— 26. Os fatores de equilíbrio positivo ao término desses reinados não serão mais encontrados (cf. 12.12; 16.14), e cada um deles termina em desastre.

Embora o cronista tenha feito uso dos elementos essenciais de 2Reis 12, ele dividiu o reinado de Joás em três períodos diferentes.

23.1-21 Ascensão sob a liderança de Joiada24.1-16 Fidelidade durante o restante da vida de Joiada24.17-27 Apostasia depois da morte de JoiadaO motivo de essa disposição não é impor um esquema simplista sobre a

história pessoal de Joás, mas ilustrar certos princípios teológicos básicos. Pala­vras-chave dão o tom em cada uma das duas seções principais do capítulo 24. Primeiro, Joás restaura (“renova”, REB, NEB) o templo (v. 1-16). Aimportância temática dessa palavra é indicada por seu aparecimento na introdução (v. 4) e conclusão (v. 12) da seção principal que trata do templo. Uma vez mais, a atitude de um rei para com o templo é o teste de tomassol de sua fé, refletindo a convic­ção bíblica de que o culto a Deus é a prioridade suprema para qualquer ser humano. Porém, a segunda seção é um contraste total. Seu termo central é deixar ou abandonar (v. 18,20, 24,25), e Joás se torna o oposto exato do que um rei da linhagem de Davi deveria ser (cf. lC r 28.9). Os efeitos são tão devastado­res quanto o legado de Atalia e sua família.

148 “E levitas” (v. 18, REB, NEB, GNB) provavelmente seria lido (com a maior parte das VSS) e não “sacerdotes levíticos” (NRSV, JB).

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Ainda que 2Reis 12 forneça a matéria-prima para esse capítulo, existe entre as duas versões uma variação considerável, se não contradição aparen­te (cf. v. 5, 8, 14, 23-25). Embora algumas das mudanças, como a inclusão dos levitas (v. 5-6, 11) e ligações com o período da Tenda no deserto (v. 9-10) possam ser atribuídas aos interesses especiais do cronista, outras não têm nenhum motivo em particular (e.g. v. llb -1 2 e a omissão de 2Rs 12.8, 14-16). Visto que os detalhes de uma invasão síria (v. 23-25) parecem ser tomados de um registro escrito diferente, o mesmo é provavelmente verdade de outras partes do capítulo, embora possa ser que mais de uma fonte tenha sido con­sultada (cf. v. 27 e Rudolph, Myers; contra Curtis e Madsen, Williamson).

Sem dúvida, as mudanças refletem as circunstâncias do cronista, mas seria imprudente limitar o seu propósito. Certamente, o apoio financeiro para o templo e seu pessoal era um desafio contínuo (e.g. Ne 10.32-39. Ag 1.1-11; Ml 1.6-14; 3.6-12 ), e a necessidade de manter o templo em bom estado de funcionamento era uma preocupação constante (2Cr 29.3— 31.21; 34.1— 35.19). Mas essas questões tam­bém podem ser aplicadas de forma mais geral, não apenas como um encorajamento para se cuidar das igrejas, mas acima de tudo, assegurar que Deus receba o culto que lhe é devido {cf v. 14. Lc 24.53; At 2.46; 5.42). Negligenciar a Deus ou voltar- se a outras formas de adoração não é uma escolha neutra, até mesmo para aqueles que antes adoravam fielmente. Joás é completamente responsável por todas as suas ações, de acordo com a doutrina de responsabilidade individual esboçada em Ezequiel 18.24-32, que se ajusta perfeitamente à situação de Joás. O seu pecado é muito sério para ser expiado pelas boas ações anteriores, ainda que pareça severo para ele ser julgado com base em seus fracassos. A resposta proporciona­da tanto por Ezequiel quanto por Crônicas, porém, é que Deus não tem nenhum prazer na morte do pecador, e repetidamente envia os profetas com ofertas de misericórdia. Mas embora outros respondessem com humildade (12.6,12; 33.12-13), o que aconteceu a Joás é uma séria advertência a todos que voltam suas costas à graça de Deus {cf. Hb 6.4-12; 10.26-31).

i. Introdução ao reinado de Joás {24.1-3). Esses versículos preparam o palco para o reinado de Joás. A declaração de que o rei fez o que era reto (v. 2), na parte inicial do seu reinado por causa do sacerdote Joiada, interpreta 2Reis 12.2 que deve ser traduzida, “...todos os anos Joiada o instruía” (NIV), não “...todos os seus dias, porque Joiada o instruíra” (RSV, etc.). Sua influência é sentida até mesmo na família de Joás (v. 3) que é um foco típico da benção de Deus {cf. lC r26.4-5; 2Cr 11.21; 13.21). O número de esposas e filhos mostra que Deus restabe­lece os anos os quais os gafanhotos haviam comido (21.4, 17; 22.1, 8, 10). Os quarenta anos de Joás (v. 1) são datados entre 840-801 (Begrich) e 835-796 (Thiele).

ii. Restauração do templo (24.4-16). O trabalho básico de restauração (v. 4- 12) é tratado separadamente de seus resultados (v. 13-16). O termo restaurar

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(“renovar”, REB, NEB) marca o começo e o fim da primeira parte (v. 4,12). Essa palavra na realidade significa “renovação”, e é mais freqüentemente usada para renovação pessoal (SI 51.10; 103.5; Lm 5.21), sendo aplicada a construções ape­nas em2Crônicas 15.8 (o altar do templo) e Isaías 61.4. A idéia de “dar vida nova” a edifícios também ocorre em lCrônicas 11.8, e o versículo 14 insinua que isso inclui o uso para o qual eles são feitos assim como a tarefa física de reconstrução.

Atalia e sua família (v. 7; lit., filhos, mas cf. 22.10; “partidários”, REB, NEB) são a causa principal das dificuldades do templo, embora provavelmente ele tivesse sofrido de negligência geral durante algum tempo antes disso (o traba­lho mais recentemente mencionado está em 15.8). A primeira fase do trabalho, porém, claramente não teve sucesso por causa de contribuições anuais insufici­entes (v. 5). Quatro alterações significativas em relação a 2Reis 12 requerem comentário. Primeiramente, Crônicas simplificou os diferentes tipos de renda do templo (2Rs 12.4), talvez distinguindo entre apoio normal e um fundo de restau­ração especial. Em segundo lugar, 2Reis 12.6 insinua que a primeira fase levou vários anos, visto que Joás não chamou os sacerdotes para prestarem contas antes do seu vigésimo terceiro ano. Em terceiro lugar, os levitas (v. 5-6) são responsabilizados pelo fracasso assim como os sacerdotes. Tal crítica é incomum em Crônicas mas não é única (cf. 30.15), e não faz parte necessariamente de um acréscimo posterior (contraste Williamson, de Vries; cf. também Ez 44.10; Ml 3.3). Em quarto lugar, Atalia, que não é mencionada em 2Reis 12, de fato é descrita como a encarnação da “impiedade” (v. 7). Visto que essa descrição é notavel­mente semelhante àquela encontrada em uma das visões de Zacarias, esse bem pode ser outro exemplo do uso do cronista do simbolismo profético (Zc 4.7-8).

O próprio Joás agora assume a responsabilidade pela arrecadação de fun­dos do templo (cf. 1 Cr 29.1-5). Ele fixa um fundo separado através de proclama­ção real (v. 9), exigindo que o povo coloque sua “taxa” (v. 10, RSV; contribui­ções, NIV) em uma “caixa” (GNB; cofre, outras EVV) especialmente feita para este propósito (v. 8-10). Suas ações são um outro exemplo de fidelidade aos caminhos de Moisés (v. 9) e Davi (cf. também 23.18). A palavra para “proclama­ção” liga uma prática do tempo do cronista (cf. 2Cr 30.5; 36.22 = Ed l .l ;E d 10.7; Ne 8.15) com o período do deserto (Êx 36.6). A taxa em si estava baseada na taxa de meio siclo para a Tenda (v. 6,9 ; cf. Êx. 30.12-16; 38.25-26), embora também fosse renovada por Neemias (Ne 10.32; cf. Mt 17.24). De fato, o povo respondeu como tinha feito no caso da Tenda trazendo em excesso (v. 14; c f Êx 36.4-7; até que estivesse cheio, NIV, NRSV, etc., no v. 10 é melhor que “até que eles tivessem terminado”, RSV), como se essa fosse mais uma oferta voluntária antes que uma taxa. As bênçãos dos preparativos do templo de Davi são recordadas enquanto o povo “se alegrava” (RSV) fazendo as suas contribuições (v. 10; cf. lC r 29.1-9), e ele contratou pedreiros e carpinteiros... e ...os que trabalhavam em ferro e bronze (v. 12; cf. 1 Cr 21.15-16). O entusiasmo popular pela obra do S en h o r é um tema favorito em Crônicas (cf. 2Cr 11.16-17; 15.15; 20.4).

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A administração do fundo foi tirada dos sacerdotes e colocada nas mãos de dois oficiais, um designado pelo rei e o outro pelo sumo sacerdote que alocou recursos aos trabalhadores (v. 11 - 12 a) .149 O local da caixa fora da porta (v. 8) diverge de 2Reis 12.9 onde está “ao lado do altar... enquanto se entra na casa do S e n h o r ” . Porém, a última frase poderia ter influenciado o cronista, que estava pensando possivelmente em seus próprios dias quando o pátio interno era reservado para os sacerdotes (c f 2Cr 4.9; 6.13; Ez 40.44-47). Uma harmonização interessante é que um leigo podia pagar um porteiro levita que então colocava o dinheiro na caixa! 150

Finalmente, o templo foi restaurado à sua “condição adequada” (v. 13, NRSV, RSV; “estado anterior”, JB ;projeto original, NIV, REB, NEB). Apalavra hebraica contém a noção de um “padrão” (cf. Ex 30.32,27; Ez 45.11) que remonta aos planos para o templo revelados por Deus (lC r 28.12, 19). Uma vez que o edifício estava acabado (v. 14), mais duas coisas eram necessárias para comple­tar a restauração. Vários artigos (“utensílios”, RSV; “taças”, NEB) foram fabri­cados, e o culto diário, especialmente as ofertas queimadas, reorganizado (v. 14). Uma aparente contradição com 2Reis 12.13-14 sobre as taças do templo parece ser explicada através da referência aos diferentes fundos. Reis alude ao fundo principal para o templo em si, mas essas taças do templo foram pagas com as contribuições excedentes.

A breve notificação da morte de Joiada descreve o templo restaurado como o bem principal que ele tinha feito (v. 16). Essa palavra lembra as orações deNeemias (Ne5.19; 13.31), e seu trabalho semelhante de renovação no sen ’iço de Deus (cf. v. 16). A idade de Joiada quando morreu, cento e trinta anos, não tem paralelo desde os tempos patriarcais (v. 15), embora isso não o torne não-históri- co.151 O sepultamento no cemitério real é único para um sumo sacerdote. Embora esses detalhes o marquem como uma personagem especial, seu desejo de ver o rei legítimo instalado o distinguiu da tendência do final do período pós-exílico, onde os sumos sacerdotes assumiram gradualmente maiores poderes civis.

c. A apostasia de Joás depois da morte de Joiada (24.17-27). Depois que Joiada morreu, a política de Joás mudou completamente sob a influência dos oficiais de Judá (v. 17; “homens de destaque”, REB, NEB). A aparente velocida­de da mudança pode se dever mais à técnica editorial do cronista do que ao que de fato aconteceu, embora dois fatores ajudem a explicar a transição. Joás sem­pre foi mais um seguidor que um líder, e os sacerdotes e levitas já tinham anteci­

149 TM tem “mestre de obras” (v. 12, JB), mas o plural é geralmente encontrado nas EVV, com as VSS e 2Rs 12.11 (EVV) = 12.12 (TM).

150 Cogan and Tadmor, p. 138.151 Veja tam bém A. M alam at, “L ongevity: b ib lica l concepts and som e ancien t N ear

Eastern parallels” , A rchiv fü r Orientforschung, B eiheft 19, 1982, p. 215-224.

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pado a falta de entusiasmo dos oficiais para o que pareciam novos caminhos (cf.v. 5-6). Um número considerável em Judá sem dúvida preferiu os caminhos mais fáceis da casa de Acabe, e, assim que o incômodo Joiada estava fora do cami­nho, eles viram sua oportunidade para voltar ao culto dos postes-ídolos de Aserá (v. 18; “postes e ídolos sagrados”, REB, NEB, NRSV, RSV). Aserá era uma deusa cananita da fertilidade cujo símbolo era algum tipo de objeto de madeira, possivelmente um poste (cf. e.g. 14.3; 15.16; 33.3; 34.3). Ela era intimamente associada no Antigo Testamento com o culto a Baal (cf. 21.11; 23.17), embora nos textos ugaríticos ela fosse a cônjuge de El, o líder do panteão.

Adorar ídolos significava deixar (v. 18) o templo (ou possivelmente “a aliança”, com dois MSS heb., cf. Rudolph, Ackroyd). Como resultado, a culpa caiu sobre eles seguida pela ira de Deus.152 Mas em vez de os castigar imediata­mente, Deus enviou profetas que os reconduzisse a si, (v. 18-19). Isso pode ou não se referir à atividade profética renovada sob o reinado de Joás, mas em todo caso sublinha o princípio mais amplo de que Deus oferece uma segunda chance àqueles que o ofenderam (c f Zc 1.4). Essa mensagem de reconciliação é uma característica comum do ministério profético em Crônicas (c f 2Cr 36.15), mas, também poderia envolver os reis piedosos (2Cr 19.4) e o pessoal do templo (2Cr 7.14; “trazer de volta” é do mesmo verbo heb. que “converter” em 7.14).

O povo ouviu aos oficiais (v. 17) mas eles não deram ouvidos aos profetas (v. 19). Portanto, Deus pronunciou juízo por meio do sacerdote Zacarias, filho de Joiada, que profetizou (v. 20), de quem o Espírito de Deus revestiu (“tomou posse de”, REB, NEB, NRSV, RSV). Dois dos três exemplos do Antigo Testamento dessa expressão distintiva ocorrem em Crônicas (cf Jz 6.34; 1 Cr 12.18), embora continue no Novo Testamento (Lc 24.49; cf. G13.27). Ela se refere ao exercício de um dom profético, e é paralela a uma frase semelhante em 2Cr 15.1; 20.14. A mensagem de Zacarias é típica das profecias em Crônicas ao expor as Escrituras anteriores como também um dos temas centrais de Crônicas. Aescritura é Números 14.41, “Por que transgredis o mandato do S e n h o r ? Pois isso não prosperará. ” O tema familiar é que porque abandonciste o S en h o r , ele te abandonou (lC r 28.9; 2Cr 15.2; cf. 2Cr 7.19; 15.13). O princípio bíblico de que a forma de castigo é de acordo com a ofensa do pecador é confirmado por duas outras ocorrências do verbo hebraico ‘ãzab nos versículos 24-25 (EVV “abandonar”, “deixar”).

Essa idéia de que o castigo ajusta-se ao crime é ilustrada mais adiante por toda uma série de ironias relativas ao assassinato de Zacarias (v. 21-22) e à morte de Joás (v. 23-26). Como para Zacarias, o povo prefere primeiramente a “ordem do rei” (v. 21; NRSV, RSV) à do S e n h o r ( v . 20, a palavra heb. é a mesma). Em

152 “Judá e Jerusalém sofreram” (REB, NEB) é uma tradução inadequada, visto que embora qesep, “ira” , não esteja explicitamente ligado aqui com Deus, só é utilizado em Cr a respeito da ira divina (c f lC r 27.24; 2Cr 19.2, 10; 29.8; 32.25, 26).

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segundo lugar, a bondade do pai de Zacarias ao salvar a vida de Joás quando esse era um bebê (22.10-12) é cruelmente invertida. Em terceiro lugar, ele foi morto no mesmo lugar onde Joiada tinha ungido Joás como rei (23.10-11). Em quarto, embora Joás tivesse abandonado a Deus, Zacarias orou para que Deus ainda o “buscasse” (v. 22). Esse é o significado literal de faça justiça (NVI), “vingue” (JB, NRSV, RSV) ou “aplique apenalidade” (REB, NEB; cf. o significa­do “considere responsável” em Dt 23.21, EVV; Jó 10.6; SI 139.1,23; Ez 34.10). Ele é importante porque “buscar” e “abandonar” são termos antitéticos em Crôni­cas, embora eles não sejam simples opostos. Isso é ilustrado em lC r 28.9, o único outro versículo em Crônicas onde Deus é o que busca. A frase “Deus procura (ou busca) todo coração” poderia significar ou ser achado por Deus ou ser descoberto por ele e abandonado, dependendo da resposta da pessoa. É por esse último que Zacarias pede agora.

Essa oração não deve ser comparada desfavoravelmente com as de Jesus e Estêvão (Lc 23.34; At 7.60). Por um lado, porque Jesus na verdade cita esse incidente ao pronunciar o mesmo juízo sobre seus contemporâneos (cf. Mt 23.33- 36; Lc 11.47-51). Por outro lado, porque Zacarias não está procurando por vin­gança pessoal mas pedindo que Deus aja de acordo com seus princípios decla­rados de justiça. Se Deus fosse inativo, o resultado seria anarquia e as reivindicações de Deus à soberania seriam seriamente postas em perigo.

A resposta de Deus toma a forma de uma invasão por Hazael da Síria (v.23-26; 2Rs 12.17-18). Essa descrição do incidente é tirada de 2Reis 12, embora algumas das variações de Crônicas sejam provavelmente explicadas pelo uso de uma fonte alternativa. De fato, os únicos detalhes efetivos adicionais são a data na virada do ano (NIV, REB, NEB; i.e., na primavera, cf. 2Sm 11.1) e uma nota confirmatória sobre a pilhagem. Crônicas concentra-se na ironia e con­veniência do juízo de Deus (v. 24, NIV, RSV; “castigo”, REB, NEB, GNB). Por exemplo, a mesma palavra é usada para os líderes (v. 23; “oficiais”, NRSV, RSV) que sofrem como no versículo 17. Os servos de Joás conspiraram (v. 25, 26) contra ele como ele e eles tinham “conspirado” (v. 21, NRSV, RSV; trama­ram, NIV; “fizeram causa comum”, REB, NEB) contra Zacarias. O verbo hebraico feriu é o mesmo tanto para Joás (v. 25) como para Zacarias (v. 22). O exército sírio deixou Joás ferido (v. 25, NIV, JB; “deixando”, RSV, REB, NEB) como ele tinha abandonado a Deus, usando a mesma palavra hebraica como “abando­nar/deixar” nos versículos 18,20,24. Até mesmo o tema da “guerra de Javé” é invertido. Ao passo que em gerações anteriores, Deus tinha ajudado os exér­citos de Israel contra a oposição mais forte (cf. referências a um “vasto exérci­to” em 2Cr 13.8; 14.11; 20.2), agora ele entregou um exército muito maior nas mãos de alguns homens (v. 24).

25b-27. A fórmula de conclusão confirma o juízo de Deus sobre Joás. O fato de que ele não foi honrado com um lugar no cemitério real (em contraste com Joiada, v. 16) é importante em Crônicas. Além disso, o fato de que seus conspi­

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radores eram filhos de mulheres estrangeiras aumenta a infâmia.153 Mais infor­mações podem ser encontradas em um “comentário” (GNB, NRSV, RSV) ou anotações (lit., “midrash”,JB), mas nem aqui nem em 13.22 essa palavra possui as conotações que teve na literatura judaica posterior. Ele parece incluir material profético ou histórico ou ambos. O comentário intrigante de que continha mui­tas profecias sobre (REB, NEB, NIV) ou “contra” (GNB, NRSV, RSV) Joás presumivelmente se refere ao versículo 19, e reflete a ênfase contínua de Crôni­cas nas interpretações proféticas da história.154

ii. Amazias (25.1—26.2)“Deus tem força para ajudar e para fazer cair” (25.8).25.1-2-c/2R eis 14.2-325.3-4-c /2 R e is 14.5-625.11-c /2 R e is 14.725.17-24-c /2 R e is 14.8-1425.25-28 - cf. 2Reis 14.17-2026.1-2-c/2R eis 14.21-22Que Amazias fez o que era reto... mas não com inteireza de coração (v. 2)

habilmente resume um reinado viciado por acordos. Embora ele pudesse respei­tar a lei Mosaica (v. 4) e responder à profecia (v. 9-10), tudo está tingido com motivos mistos, e não é nenhuma surpresa que no fim ele deixou de seguir ao S e n h o r (v . 27). Seu reinado é difícil de classificar, e os comentaristas têm discor­dado sobre se deveria ser dividido em partes favorável e desfavorável (Williamson, Allen, Becker, etc.) ou se ele é fundamentalmente indiferente e indeciso (e.g. Coggins, McConville). Em favor do primeiro, a enfática se não violenta vitória de Amazias contra os edomitas (v. 12) é um aparente momento decisivo, visto que qualquer característica boa que existe é limitada aos versículos 1-12. Por outro lado, as fraquezas de Amazias são distribuídas por todo o capítulo, ainda que elas ganhem impulso do versículo 14 em diante. Em geral, enquanto seu reinado ajusta-se ao esquema de periodização dos capítulos 24—26, ele vai de mal a pior!

Crônicas manteve-se bem de perto à estrutura de Reis, com exceção da expansão da guerra edomita de um único versículo (2Rs 14.7) para toda uma seção (v. 5-16). Ao omitir os itens breves como os sincronismos com os reis de Israel (2Rs 1,4,15-16,20), o foco está agora nas guerras de Amazias contra Edom (v. 5-16) e Israel (v. 17-24). Em particular, duas profecias adicionais (v. 7-9,15-16) e uma frase extra no versículo 20 esclarecem a visão de Deus sobre Amazias, a

153 É im possível ter certeza sobre a form a exata destes nom es, especialm ente quando existe confusão interna no texto de Reis.

134 O “pesado tributo imposto a ele” da JB em lugar de “muitas profecias sobre ele” deve mais à LXX(L) e a 2Rs 12.18 do que a este contexto.

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saber que Deus resolveu destruir-te (v. 16; cf. v. 20) pela guerra com Israel. Só é possível conjecturar sobre as fontes disponíveis, embora a descrição efetiva do exército conscrito indique uma fonte militar independente (v. 5-6), e o material profético extra (v. 7-9,15-16) provavelmente está relacionado com as referências freqüentes de Crônicas a outras fontes proféticas.

Embora seja um pouco deprimente ler sobre outro rei desobediente, o possível valor de uma história como essa vale ser considerada antes de passar rapidamente ao próximo capítulo (que é igualmente deprimente embora talvez mais colorido!). Primeiramente, histórias repetidas sobre governantes pecado­res testemunham a paciência de Deus. Em segundo lugar, pessoas que se afastam de Deus depois de receber sua graça também são encontradas na igreja cristã (e.g. ICo 5.1-13; 2Tm2.16-18; Ap 2.4-6,20-25). Em terceiro lugar, tais incidentes são advertências exemplares para que outros não caiam nas mesmas tentações (ICo 10.11-13; cf. Rm 15.4). Em quarto, apenas pertencerão povo de Deus ou fazer parte das suas tradições é insuficiente diante de Deus. Ninguém está imune ao orgulho eauto-satisfação (IC o 10.12; lJo 1.8,10), mas o perdão de Deus a qualquer um que caia sempre está disponível (cf. SI 51.7- 15; 2C r7.13-16; Uo 1.9; 2.1-2).

a. A força de Amazias (25.1-4). A data do reinado de Amazias é um problema aparentemente insolúvel, e seus vinte e nove anos (v. 1 ) têm sido reduzidos a durações variadas tais como treze, dezesseis ou dezenove anos.155 Uma solução considera Amazias como único governante durante apenas cin­co anos antes de ser levado como refém por Jeoás de Israel (v. 23-24), com seu filho Uzias sendo co-regente pelos vinte e quatro anos restantes. Essa conclu­são bastante surpreendente achou apoio no com entário singular de que Amazias viveu durante quinze anos depois da morte de Jeoás (v. 25) e na participação do povo na ascensão de Uzias, indicando talvez algum tipo de crise (26.1; cf. 22.1) .156 Se isso estiver correto, as duas guerras pertencem aos primeiros cinco anos de Amazias, embora o reinado inteiro tenha sido datado entre 801-773 (Begrich) e 796-767 (Thiele).

Uma ocasião em que não pode haver nenhuma crítica a Amazias é quando ele mata os assassinos de seu pai (v. 3). Mesmo aqui, no entanto, ele seguiu de perto a letra da lei (v. 4), e o seu comportamento posterior sugere que isso seja mais um ato de vingança do que de manter o reino firmemente nas suas mãos. Por exemplo, “matou” (RSV, JB; “entregou à morte”, REB, NEB; executou, NIV) traduz a mesma palavra de 21.4, 13; 22.1, 8; 23.17; 24.22, 25, e realmente é um termo temático nos capítulos 21—28 para violência (cf. também 28.6-7,9), ainda que às

155 Cf. Jones, II, p. 507.156 Veja tam bém Thiele, p. 113-116.

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vezes envolvesse justiça retributiva (23.17; 24.25). Por trás da lei mosaica de que indivíduos deveriam ser responsabilizados em crimes capitais pelos seus próprios pecados (cf. Dt 24.16; Jr 31.29-31; Ez 18.1-20) havia o princípio de que a justiça sempre deveria ser limitada (até mesmo ao visitar os pecados dos pais nos seus descendentes, a misericórdia de Deus aos milhares excede em muito o seu juízo à terceira e quarta gerações; cf. Ex 20.5-6). Como no capítulo 24, a influência do ensino de responsabilidade individual em Ezequiel 18 é de novo evidente.

b. Guerra contra Edom (25.5-16). Várias fases podem ser discernidas nesta batalha que ilustra as forças e as fraquezas de Amazias.

i. Ajuntamento das tropas de Judá (25.5). Essa descrição das recrutamen­tos tribais segue um formato familiar (11.1; 14.8; 17.14-19; 26.11-15). A idade mínima de vinteanos está em sintonia com a prática antiga (Nm 1.3,18; lCr 27.23), embora os números sejam significativamente mais baixos que as cifras mais recentes com­paráveis dadas em 17.14-19.

ii. Ajuntamento de tropas israelitas (25.6-10). Amazias pode ter sido pressionado a contratar mercenários israelitas (v. 6) por causa do número redu­zido de conscritos. De acordo com um profeta não nomeado (homem de Deus), porém, esse não é o modo de lutar em nome do S e n h o r (v . 7-9), por duas razões. Primeiramente, o S e n h o r não é com Israel (v. 7), que ainda estava comprometido com a idolatria (2Cr 13.11). Em segundo lugar, a arma principal de Amazias deve ser a confiança em Deus (c f 14.11; 20.20-23; 32.6-8,20-21), porque Deus tem a força para ajudar e para fazer cair. O poder e auxílio de Deus que são um tema central nas passagens da “guerra de Javé” (2Cr 14.11; 20.6; 32.7), são especial­mente dados ao povo fraco e impotente que tem fé em Deus (14.11; 20.12; 32.8). Na verdade, como a cruz mostra de maneira suprema, o poder de Deus aparece particularmente na fraqueza humana (cf. ICo 1.25;2Co 12.9-10; 13.4). O significa­do exato do versículo 8a não está claro. A maior parte das EVV pressupõe um ataque hipotético ao fazer leves mudanças no TM (se fores e lutares, NIV; “se fizeres deste povo teus aliados”, REB, NEB), mas o hebraico em si é irônico, “ide sozinho e aja; seja forte na batalha” (NRSV).

Além dessa falta de confiança, Amazias mostra que ele está comprometido com o materialismo ao tentar ter ao seu lado tanto Mamom como também Deus (v. 9; cf. Mt 6.24; Lc 16.13). Porém, o profeta lhe dá uma garantia, não de uma campanha sem problemas, se ele enviar para casa os mercenários (Dillard, Williamson, etc.), mas que Deus poderia prover muito mais do que ele esperava (cf. Gn 22.14; Mc 10.28-31; Ef 3.20). A seu crédito, Amazias responde positiva­mente (v. 10a). Por outro lado, a grande ira dos israelitas (v. 10b, NIV, JB; “ira feroz”, RSV), repetida no hebraico para ênfase, mostra ainda mais por que o S en h o r não está com eles.

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iii. A batalha contra Edom (25.11-13). Com a intenção de obter sua recompensa da pilhagem (ou “espólio” ou “saque”) através de meios hones­tos ou ilícitos, os soldados israelitas dirigem sua ira ao roubo e ao assassínio (cf. Mt 5.21-22; Tg 4.1-2) vingando-se sobre várias cidades de Judá (v. 13). A declaração de que eles foram de Samaria até Bete-Horom sugere que eles fizeram uma incursão especial a partir de suas casas em Efraim (v. 10).157 Bete- Horom ficava a aproximadamente dezesseis quilômetros de Jerusalém na fron­teira entre Judá e Israel no vale de Aijalom, uma rota importante que levava da planície litoral a Betei e Jerusalém.

A primeira preocupação de Amazias, no entanto, é com os homens de Seir,i.e., osedomitas (v. 11; cf. 2Rs 14.7). O propósito e local da batalha dependem de onde ficava o vale de Sal (também lC r 18.12). Se fosse o Wadi el-Milh, a leste de Berseba,158 então Amazias estava se defendendo contra a invasão, mas muitos preferem pensar em uma ofensiva de Judá em Arabá ao sul do mar Morto. A menos que os edomitas estivessem exacerbando os problemas por ocasião da ascensão de Amazias (24.25-26), o contexto não dá nenhuma pista real sobre as intenções de Amazias (Edom anteriormente tinha se revoltado em 21.10). Sua vitória é bastante explícita, embora seja alcançada sem nenhum reconhecimento da ajuda de Deus e com violência excessiva (v. 12). O precipício (NIV, REB, NEB) é o lugar chamado de Selá em Reis (e NRSV, RSV, GNB), mas a tradição de que esse versículo se refere à capital edomita Petra é quase certamente equivocada. A palavra significa “rocha”, e poderia se referir a diversos locais.

iv. O resultado da vitória (25.14-16). A realização de Amazias parece trazer à tona o pior dele. Ao passo que ele tinha anteriormente se importado com Deus, agora ele se volta à idolatria (v. 14-15), perseguição (v. 16), vingan­ça (v. 17), intransigência (v. 16,20), orgulho (v. 19) e apostasia (v. 27). O fator decisivo é a adoração a deuses edomitas por Amazias (v. 14). Essa é a única referência explícita ao culto edomita na Bíblia, ainda que houvesse um senti­mento persistente de fraternidade entre Israel e Edom (cf. Dt 23.7; Is 1.11). Os edomitas adoravam uma divindade que atendia pelo nome de Qos, embora a evidência mais antiga venha de algumas décadas após Amazias.159 O sacrifí­cio para os deuses de um inimigo derrotado não tem paralelo no Antigo Testa­mento, mas várias características são prontamente compreensíveis à luz do costume do antigo Oriente Próximo. Em primeiro lugar, era uma prática bem

157 É, portanto, desnecessário ler um nom e de lugar de Judá como Migron ao invés de Sam aria (Rudolph, M yers, W illiam son), especialm ente quando não há apoio textual para tal m udança.

158 F. M. Abel, Géographie de la Palestine, I (Paris: Gabalda, 1933), p. 407; J. Simons, The Geographical and Topographical Texts o f the Old Testament (Leiden: Brill, 1959), p. 221.

159 C f J. B artlett, Edom and the Edomites, JSO T 77 (Sheffield: JSO T Press, 1989), p. 187-207 .

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conhecida tomar cativas as imagens divinas de inimigos derrotados. O propó­sito disso tem sido entendido de diversas maneiras, mas um dos efeitos era reduzir a probabilidade de conflito futuro ao deixar os oponentes sem defesa. Em segundo lugar, a derrota na guerra era freqüentemente considerada devida ao descontentamento divino, e a ação de Amazias pode ter visado aplacar a suposta ira dos deuses edomitas.160 Em terceiro lugar, a adoração das divinda­des de inimigos derrotados tem paralelos. O conquistador assírio do sétimo século Assurbanipal fez uma oferta dedicatória à divindade de um inimigo árabe derrotado em troca de ajuda recebida .161 Também, o cronista estaria familiarizado com a prática de reis persas que presenteavam em seus próprios nomes as divindades de povos subjugados (c f e.g. Ed 6.9-10; 7.21-23). Amazias certamente não foi o único governante que reconheceu sua dívida com os deuses de outra nação.

Embora Amazias estivesse simplesmente seguindo um costume contem­porâneo, sua idolatria descarada provocou a ira de Deus (v. 15; cf. Tg. 4.4) e invocou as sanções da aliança davídica (cf. 2Cr 7.19-22). Pela graça de Deus, porém, um segundo profeta anônimo convida Amazias a reconsiderar (v. 15-16; cf. v. 7-8). Sua mensagem era que as divindades edomitas tinham manifestamen­te fracassado no teste básico de qualquer deus, isso é, livrar (NRSV, RSV) seu próprio povo, em contraste com a experiência do próprio Amazias com Javé (v. 8-10). A lógica do profeta como também a sua coragem era indiscutível. Na realida­de, um apelo ao poder salvador de Deus é uma resposta bíblica comum a tenta­tivas de reduzi-lo ao nível de outras divindades (cf. lRs 18.20-39; Is 41.21-29; At4.12). Dois jogos de palavras mostram quão séria era a recusa de Amazias de escutar. Embora o profeta parasse porque o rei disse Pare! (o verbo heb. é repetido), a palavra de Deus continuava a falar: Deus determinou destruir-te. Além disso, determinou está relacionado com as palavras “conselheiro”, conse­lho (v. 16), e tomou conselho (v. 17). Amazias poderia rejeitar o conselho do profeta (v. 16) em favor de seus próprios conselheiros (v. 17), mas ele não pode­ria evitar o conselho de Deus, como demonstra o incidente subseqüente.

c. Guerra contra Israel (25.17-24). O convite de Amazias a Jeoás de Israel tem sido interpretado como um ato neutro (e.g. NEB, Coggins, Jones) o qual pode até ter tido a pretensão de provocar uma aliança através de matrimônio (Curtis e Madsen; cf. v. 18). Mas Jeoás suspeita de uma ameaça sutilmente velada (cf. REB, GNB), enquanto Amazias reage à crítica do profeta ao buscar vingança contra os mercenários israelitas (v. 6-10,13).

160 Cf. B. M eissn e r, B a b y lo n ie n und A ssy rien , 2 (H e id e lb erg : W in te rs U n iv e rs i- tãtsbuchhandlung, 1925), p. 128.

161 C f M. Cogan, Im perialism and Religion (M issoula: Scholars Press, 1974), p. 9-41, especialm ente p. 15-21.

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Jeoás responde com uma história encantadora mas insultuosa (v. 18-19), Ele acusa Amazias de ser soberbo e orgulhoso (v. 19, NTV, cf. NRSV, RSV) e prediz que ele causará sua própria queda (v. 19) como também a de Judá. Alguns dos detalhes do versículo 19 são obscurecidos pela incerteza sobre a extensão em que o texto diverge de Reis, mas o significado global é claro.162 Novamente, no entanto, Amazias não ouviria (cf. v. 16; c f 24.19). Desta vez, porém, Crônicas acrescenta (c f 2Rs 14.11) que sua surdez deliberada vem (lit.) “de Deus” (“é ação de Deus”, v. 20, NRSV, REB, NEB, JB; cf. a frase idêntica em 2Cr 10.15; 22.7), embora isso não signifique que isso fosse contrário às intenções de Amazias. Deus, portanto, “os entregaria” (v. 20, NRSV). O hebraico é abrupto, e a maior parte das EVV acrescenta ou a Jeoás (NIV, REB, NEB; com LXX(L)) ou “a seus inimigos” (JB, cf. RSV). Isso tudo aconteceu porque Amazias buscou (v. 20) os deuses edomitas (cf. v. 15), i.e., ele os tinha “adorado” (GNB; c f lCr22.19; 2Cr 15.2,12; 17.4). Saul é o único outro rei em Crônicas que busca divindades estran­geiras (lC r 10.13), embora outros fossem igualmente culpados por deixar de buscara Javé (cf. lC r 13.3; 2Cr 12.14; 16.12).

O resultado é como foi predito tanto pelo profeta quanto por Jeoás (v. 21 - 24). Dessa vez a linguagem de “guerra de Javé” mostra que Deus não está mais com Amazias (cf. v. 7-8) mas contra ele. Ele é derrotado (v. 22, NIV, REB, NEB; também em e.g. lCr 13.15; 14.12; EVV; 20.22) e cada uni/Mgw (também em e.g. lCr19.14-15,18; 2Cr 13.16; 14.12; EVV). Bete-Semes (v. 21,23), aproximadamente vinte e quatro quilômetros a sudoeste de Jerusalém (cf. Js 15.10; IRs 4.9), implica um ataque pelo oeste sobre Jerusalém e o desejo de Jeoás de controlar rotas de comércio. Jeoás captura Amazias e outros reféns (v. 24b), derruba parte dos muros de Jerusalém, provavelmente do lado noroeste (v. 23), e saqueia o templo e os tesouros do palácio (v. 24a). Tal é seu respeito pela casa de Javé! Na realidade, a invasão do templo deve ser vista como um castigo contra idólatras de acordo com os princípios de 2Crônicas 7.19-22. Areferência adicional a Obede- Edom (c f 2Rs 14.14) remonta a uma família especialmente predileta de porteiros (lC r 13.13-14; 26.4-8,15). Amenção de reféns contrasta com um incidente seme­lhante em 2Crônicas 28.8-15 quando os nortistas tiveram dúvidas sobre a lega­lidade de tomar como reféns irmãos israelitas.

d. O fim de Amazias (25.25—26.2). Se a cronologia mencionada anterior­mente estiver correta, esse parágrafo final cobre os últimos vinte e quatro anos de Amazias quando seu filho Uzias atuou como co-regente (26.1), durante nove anos dos quais ele pode ter sido prisioneiro de Jeoás (cf. v. 1). Em que ponto ele

162 Uma harm onização artificial com Rs deve ser evitada em dois pontos fundamentais. Portanto, é preferível ler: “Vede, eu derrotei...” (NRSV, cf. JB; com VSS), e posteriorm ente no versículo , “com presunção” (NRSV, cf. NIV; com TM ) contra “desfru te teu triun fo” (REB; c f NEB, JB).

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deixou de seguir ao S e n h o r (v . 27) não está claro. Isso pode se referir à adoração aos deuses edomitas (v. 14,20), nesse caso a conspiração que levou à sua morte teria acontecido muitos anos mais tarde. Também é possível que o versículo 27 como um todo se refira a algum incidente desconhecido no final de sua vida. O juízo divino, no entanto, em Crônicas pode acontecer freqüentemente em uma data posterior (cf. caps. 21— 23), de forma que o dogmatismo sobre o momento dos eventos é imprudência. Por exemplo, Amazias pode ter buscado proteção para grande parte de seus últimos quinze anos em Laquis, uma cidade fortificada a sudoeste de Judá. O significado de seu corpo ser devolvido a cavalo é desco­nhecido. Cidade de Judá (v. 28) só ocorre uma vez no Antigo Testamento, mas, embora ela ocorra em fontes assírias e babilônicas, a maior parte das EVV tem o mais habitual “Cidade de Davi” (com 2Rs 14.20 e as VSS).163

Alguma dificuldade geralmente está implicada quando o povo (26.1) se envolve na entronização de um novo rei (cf. 22.11; 33.25; 36.1), talvez relaciona­da aqui com a derrota de Amazias (cf. 25.21-24). A idéia, no entanto, de que o rei poderia ser escolhido pelo povo nunca se perdeu inteiramente em Judá. “Elote” (REB, NEB, NRSV, RSV) ou Elate (NVI, GNB, JB) era um porto importante no extremo norte do Golfo de Ácaba, muito perto de Eziom-Geber onde Salomão e Josafá tinham mantido navios (2Cr 8.17-18; 20.35-37). Sua reivindicação por Uzias para Judá significava duas coisas. Ele deu um fim aos inacabados negóci­os edomitas de Amazias (2Cr 21.8-10; 25.11-12, e simbolizou o início de uma prosperidade sem igual em Judá desde os dias de Salomão.

iii. Uzias (26.3-23)“Mas, havendo-se já fortificado, exaltou-se o seu coração para sua própria

ruína” (26.16).26.3-4 - c / - 2 R e is 15.2-326.20b-23-c/2R eis 15.5-7Fora as seções introdutória e final (v. 3-5, 22-23), o reinado de Uzias é

dividido claramente em dois, cada uma das partes está livremente baseada no breve relato de Reis. As extensas realizações de Uzias (v. 6-15) incorporam vári­os comentários espalhados em 2Reis 14.22; 15.3, 6, enquanto a história sobre sua doença de pele mandada por Deus (v. 16-21) se desenvolve a partir de 2Reis 15.5. Esse é o último de três reinados sucessivos que terminam com um período de desobediência e desastre (caps. 24— 26), e parece que nada pode evitar que Judá e seus reis deslizem para o pecado e juízo. A idolatria, a rejeição dos profe­tas, a violência e o orgulho repetem-se com regularidade devastadora. O quadro

163 Cf. e.g. A. K. Grayson, Assyrian and Babylonian Chronicles (Locust Valley: Augustin, 1975), p. 102 (= D. J. W isem an, Chronicles o f Chaldean Kings, London: British Museum, 1956, p. 73); G. A. Sm ith , Jeru sa lem fro m the E a rliest Tim es, 1 (L ondon: H odder & S toughton , 1907), p. 268.

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se torna pior pelo fato de que cada um desses reis fez o que era certo diante de Deus (24.2; 25.2; 26.4), mas nenhum, parece, poder escapar do erro fatal (cf. Rm 3.23). Mesmo com a ajuda do S en h o r ( v . 7 ,1 5 ; c f 25.8), Judá não tinha nenhuma garantia visível de um futuro seguro.

Em acréscimo ao esquema de periodização, esse capítulo exibe muitas características típicas do estilo do cronista. Por exemplo, cada seção é caracteri­zada por tópicos bem conhecidos. A prosperidade de Uzias é simbolizada com- binando-se os três temas da f a m a e p o d e r de Uzias e a a ju d a de Deus, especial­mente no versículo 15 (também v. 7-8). Essa força também marca o momento decisivo no versículo 16, onde desenvolve sua característica mais obscura de orgulho. Daí em diante, a palavra-chave é que Uzias é in f ie l (v. 16, 18). As características significativas de seu erro são que ele aconteceu no te m p lo (v. 16,19,21) diante do a l ta r d e in c e n s o (v. 16,19) e como resultado Deus o afligiu com uma doença de pele (EVV, l e p r a ; v. 19-21,23).

A maioria destas características, embora nem todas, ocorre nos versículos adicionais de Crônicas (v. 5-20a). De onde esse novo material veio não se sabe, fora o que o próprio cronista declara (v. 22). A maioria dos comentaristas confia no valor histórico de muitos dos versículos 6-15, mas isso não se aplica aos versículos 15-21, uma passagem freqüentemente considerada interpretação do próprio cronista de 2Reis 15.5. Tal incoerência é difícil de justificar, ainda que a evidência de apoio só esteja disponível somente para a primeira seção a partir dos profetas e da arqueologia. Não obstante, nosso conhecimento de Uzias é fortemente dependente de Crônicas, e esse capítulo contém informação históri­ca importante sobre Judá do oitavo século a.C.

O ponto principal do capítulo é que o orgulho de Uzias é o resultado de seu sucesso e a causa de seu fracasso (v. 16; c f. 2Cr 25.19; 32.25). Claro que isso não é um problema apenas do Antigo Testamento, visto que os cristãos são tão vulneráveis como qualquer outro às suas seduções, que, como descobriu Uzias, são tanto mais fortes em um tempo de sucesso e em questões relacionadas à fé (cf. Dt 8. 10-20; IC0 8 .I; 10.12; 13.4; Cl 2.18; lTm 3.6). O problema de Uzias era que ele não estava contente com a autoridade que Deus tinha lhe dado e quis acres­centar mais funções sacerdotais ao seu poder real. Poder absoluto, no entanto, não tem lugar no reino de Deus, por pelo menos duas razões. A liderança bíblica efetiva sempre está consciente de que é mais um dom do que uma posse, e sempre envolve algum tipo de parceria ou espírito de equipe. Por essas e outras razões, a liderança do próprio Jesus foi caracterizada principalmente por serviço obediente. Infelizmente, a prosperidade de Uzias tomou-o cego quanto a quão generoso Deus tinha sido, e, quando ele tentou tomar um dom de liderança que não era seu, até mesmo o que ele tinha lhe foi tirado (cf. Lc 19.25).

a. Uzias busca a Deus e obtém êxito (26.3-15). Embora Uzias reinasse durante c in q ü e n ta e d o i s a n o s (v. 3), seu reinado incluiu co-regências com seu

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pai Amazias (provavelmente durante vinte e quatro anos) e seu filho Jotão (du­rante dez anos). Suas datas variam entre 792-740 (Thiele) e 787-736 (Begrich), embora a cronologia desse período seja particularmente difícil.164 Ele é sempre chamado Uzias em Crônicas (c f Is 1.1; 6.1; etc.), mas Reis temAzarias (2Rs 14.21;15.1 ss.) assim como Uzias (2Rs 15.13,32,34). Os dois nomes devem ser compre­endidos como variantes que surgem do intercâmbio de duas raízes hebraicas estreitamente relacionadas. Uzias pode ser preferido aqui para distingui-lo do sumo sacerdote Azarias (v. 17,20), que não aparece em Reis. Como Azarias, ele pode aparecer nos anais do governante assírio contemporâneo Tiglate-PileserIII, como um líder de um grupo de rebeldes contra os assírios em aproximada­mente 739-738 a.C., mas tanto o local quanto a data causam problemas.165

A aparente dupla introdução para Uzias surge porque os versículos 1-2 de fato concluem o reinado de Amazias (cf. 2Rs 14.21-22). O relato de Uzias começa com os versículos 3-4, aos quais o cronista acrescentou seu próprio material em um versículo extra (v. 5). Que Uzias fez o que era reto... como seu pai Amazias (v. 4) não pretende ser uma recomendação geral de nenhum dos dois reis, como tanto Reis quanto Crônicas reconhecem. Embora a frase originalmente ocorres­se em 2Reis 15.3, o cronista de fato apresenta evidência muito mais positiva sobre Uzias, apesar de sua crítica posterior (v. 16-21).

O versículo 5 continua essa perspectiva positiva, mas usa a linguagem típica do cronista: Deus deu sucesso a Uzias porque ele buscou a Deus (o último verbo ocorre duas vezes). A atitude de Uzias era diretamente oposta àquela que tinha derrubado seu pai (25.15, 20), mas, de maneira ainda mais importante, mostrou que ele viveu em obediência a Javé (cf. e.g. 2Cr 15:2,4,12; 17:4; 30.19), pelo menos enquanto ele estava sob a tutela de um certo Zacarias. Esse era um tipo de “conselheiro religioso” (GNB), como Joiada tinha sido para Joás (2Cr 24.2), embora seu status exato não esteja claro. Nem é certo em que Uzias foi instruído. Embora as EVV mencionem o temor de Deus (com as VSS), essa frase é única em Crônicas (até mesmo “temor do S e n h o r ” só ocorre em 2Cr 19.9). Aleitura da maioria dos MSS hebraicos, “ver a Deus” ou visão (NIV nr.), não pode ser simplesmente descartada. “Visão” é outra palavra para profecia (e.g. Is 1.1; Na 1.1; 2Cr 32.32) que é, naturalmente, central em Crônicas. Além disso, a dependência do cronista de Isaías como uma fonte para Uzias (v. 22) poderia ter resultado em seu interesse no tema da visão espiritual em Isaías (e.g. Is 6.10; 29.18; 35.2; cf. Jr 23.18) e na influência de expressões para “v era Deus” em Isaías 6.1, 5 sobre o fraseado aqui. “Ver a Deus” portanto poderia significar obediência à palavra profética de Deus e uma consciência da pre­sença de Deus no templo.

164 Uma outra proposta é reduzir seu reinado a aproximadamente 26 anos, a saber, 772- ?747. cf. Hughes, p. 219-222.

165 Cf. Cogan and Tadmor, p. 165-166.

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A orientação de Zacarias claramente trouxe sucesso, uma expressão típica em Crônicas. O lado prático disso é detalhado nos versículos 7-15, mas resultou em primeiro lugar de buscar a Deus. Em outras partes obediência à lei ( lC r 22.13; 2Cr 31.21) e aos profetas (2Cr 20.20) traz prosperidade, por outro lado, desobedecê-los ou resistir a Deus leva ao desastre (2Cr 13.12; 24.20). A teologia subjacente não é tão materialista a ponto de esperar ver os resultados da obedi­ência nesta vida. Mesmo assim, o sucesso visível certamente não era automáti­co. Reis obedientes com freqüência experimentaram dificuldades imerecidas (2Cr 13.8,13-14; 14.9-11; 32.1), embora a confiança em Deus nessas ocasiões normal­mente resultem em uma conclusão bem-sucedida.

6-15. Uzias alcançou sucesso em três áreas, na guerra (v. 6-8), na constru­ção e agricultura (v. 9-10), e no exército (v. 11-15). Ele lutou contra três oponen­tes ao sul e sudoeste onde ele talvez quisesse, assumir o controle das rotas de comércio como já implicado pela captura de Elote (v. 2). Primeiro, os filisteus perderam duas das suas cidades principais, Gate e Asdode como também Jabné. Esta era antigamente Jabneel de Judá (Js 15.11) e depois se tornou Jâmnia, onde o Sinédrio foi recriado depois da destruição de Jerusalém, em 70 d.C. A última frase do versículo 6 às vezes é omitida (Ackroyd, Williamson), mas é possível mantê-la como na REB e NEB, “construiu cidades no território de Asdode e entre os filisteus” (cf. NRSV, RSV). Segundo, os árabes é um termo geral para grupos nômades como os meunitas (v. 7). Sua proximidade dos filisteus e da fronteira do Egito (v. 8) como também uma referência em uma inscrição de Tiglate-Pileser III da Assíria indica que eles devem ser localizados a sudoeste de Judá.166 Gur Baal (v. 7) é desconhecida, e de fato é freqüentemente corrigida para Gur (= Gari das cartas de Amama) ou Gerar (cf. Tg.). O terceiro grupo é o dos meunitas (v. 7), cujo nome provavelmente deve ser restabelecido no lugar dos amonitas (v. 8), visto que o último não tem nenhuma conexão com a fronteira do Egito (porém cf. 27.5).167 A razão principal para o sucesso de Uzias é a ajuda de Deus (v. 7; cf. v. 15). Essa é uma palavra especial em Crônicas (cf. e.g. lC r 12.19; 2Cr 14.10; 25.8) cujo significado é equivalente no Novo Testamento à obra capacitadora do Espírito Santo (c f Rm 8.26; 2Tm 1.14; cf. Atos 26.22; lTs 2.2). Dois benefícios advêm a Uzias. O primeiro é renome (v. 8, 15) que o associa especialmente com Davi (c f lC r 14.17; 17.8), e o segundo é que ele se tomou muito forte (v. 8,15). O último freqüentemente caracterizava a primeira parte de um reinado (cf. 2Cr 12.1; 17.1; 27.6), e pode ser aqui um trocadilho com o nome de Uzias (significa, “Javé é forte”).

A obra de construção de Uzias em Jerusalém (v. 9) e em Judá (v. 10) é um segundo sinal de sucesso dado por Deus, e é bastante apoiado por dados

166 Cf. I. E pha’al, The A ncient Arabs (Jerusalem: M agnes Press, 1982), p. 75-81, 91.167 A m udança envolve a inversão de duas letras. Além disso, a expressão com um é “os

filhos de A m om ”. “A m onita” , como aqui, é bastante raro.

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arqueológicos (cf. Myers, Williamson). Os reparos em Jerusalém foram necessá­rios pelo dano ocorrido durante o reinado anterior (note-se a menção específica da Porta da Esquina em 25.23) e possivelmente por um terremoto (Am 1.1; Zc 14.5). O país está dividido em três áreas, o deserto, i.e., o Neguebe, os contrafor­tes {cf GNB) ou Sefelá, e a planície, i.e., partes de Judá na planície filistéia. Essa última foi recapturada e reconstruída por Uzias (v. 6), e não pode nesse contexto ser o “planalto” transjordaniano (JB). As terras férteis são na realidade Carmelo, uma cidade da Judá onze quilômetros ao sul de Hebrom em uma área onde grandes rebanhos podiam pastar (ISm 25; cf. Js 15.55). “Os fazendeiros e vinicultores” (REB, NEB, NRSV, RSV) teriam trabalhado em propriedades do rei (cf. lC r 27.25-31). A evidência para alguns dos oficiais responsáveis por tais trabalhadores vem dos selos que trazem o nome de Uzias/Azarias, um dos quais foi encontrado em uma cisterna em Tell Beit Mirsim .168 A descrição bastante comovedora de que ele amou a terra não tem paralelo na Bíblia.

A descrição do exército (v. 11-15) é a última de algumas em Crônicas, apenas uma delas (25.5) não representa uma marca da bênção de Deus (cf. 14.8;17.14-19). Embora o exército inclua geralmente as tropas tribais lideradas pelos “chefes das famílias” (v. 12, REB, NEB), ele é agora supervisionado pelos co­mandantes do rei e organizado em divisões (v. 11). Os números (v. 13) têm sido explicados como 300 unidades que compreendem 7.500 homens. A expressão “ajudar o rei” (v. 13, NRSV, RSV) é um eco deliberado da ajuda de Deus (v. 7,15), e é comparada à ajuda semelhante para Davi (lC r 12.1,18,21-22), Salomão (lC r22.17) e Ezequias (2Cr 32.3).

Além das suas muitas outras habilidades, Uzias parece ter sido um tipo de inventor (v. 15). Suas (lit.) “invenções” eram provavelmente escudos protetores ou telas sobre os muros da cidade proporcionando aos arqueiros e a outros operarem com relativa segurança.169 Isso é mais provável do que “mecanismos” (RSV, JB) ou máquinas (NIV, NRSV, REB, NEB), o que implica algum tipo de catapulta, e essa não é conhecida antes do quinto século a.C. (cf. Williamson). O versículo 15 forma uma inclusão com os versículos 7 -8 repetindo os três termos principais, fama, ajudou, e forte/poderoso (v. 15), que caracterizam a seção. O advérbio “maravilhosamente” (NRSV, RSV) ou “espantosamente” (REB, NEB) sempre implica que Deus é o sujeito, cf. GNB, “a ajuda que recebeu de Deus” (cf. Is 28.29; 29.14; J12.26; S131.21).

b. O orgulho e queda de Uzias (26.16-23). A força de Uzias, no entanto, também é sua fraqueza, pois “quando se tornou forte ficou cada vez mais orgu­

168 AASO R 21-22, 1943, p. 63s, 73.169 Cf. Y. Yadin, The A rt o f Warfare in Biblical Lands (London: W eidenfeld & Nicolson,

1963), p. 325-328; A. M azar, Archeology o f the L and o f the B ible (New York: Doubleday, 1990, p. 430-433.

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2CRÔNICAS 23.1—26.23

lhoso, para sua destruição” (v. 16, NRSV). Orgulho e destruição são palavras importantes, ambas foram usadas a respeito de Amazias (25.16,19). Uma outra forma da última está por trás das “práticas corruptas” do reinado de Jotão (27.2). A fidelidade anterior de Uzias não pôde evitar a gradual destruição de Judá, embora as conseqüências plenas não sejam sentidas antes do reinado de Acaz (cap. 28). A seriedade do problema é indicada por meio de duas frases. Primeira­mente, orgulho aqui e em 25.19 é uma questão de o “coração se exaltar”. É uma doença grave que poderia ser descrita como problema de coração. Em segundo lugar, Uzias é infiel (v. 16,18). Essa é a expressão mais importante para pecado em Crônicas, e pode derrubar uma dinastia (lC r 10.13) ou levar uma nação ao exílio (lC r 5.25; 9.1; 2Cr 33.19; 36.14). O termo não aparecia desde o tempo de Roboão (2Cr 12.2), mas agora se tomará um tema comum até o final do livro (28.19,22; 29.6,19; 30.7; 33.19; 36.14). Embora o orgulho de Uzias não causasse o exílio, ele é um exemplo excelente de por que afinal o exílio ocorreu. De agora em diante, o fim de Judá está definitivamente à vista.

O pecado de Uzias não foi que ele entrou em choque com regulamentos cúlticos importantes, mas que, como Uzá, antes dele (lC r 13), ele não conhecia a verdadeira natureza da santidade de Deus. Na prática, ele abusou de dois aspectos do culto que Deus tinha reservado aos sacerdotes araônicos e aos levitas — ele entrou no templo (v. 16) e tentou fazer uma oferta no altar do incenso (v. 16b-19). O templo era para os sacerdotes e levitas. E verdade que Salomão e Acaz ofereceram sacrifício no templo, mas eles o fizeram em altares do lado de fora, no pátio (2Cr 6.12-13; 7.7; 2Rs 16.12-15), enquanto o jovem Joás ou foi mantido nos alojamentos das salas adjacentes ou foi tratado como uma exceção devido à ameaça contra sua vida (22.12; 23.11). Queimar incenso ao S e n h o r no altar interno não era um direito de Uzias, mas somente dos sacerdotes consagrados (v. 18; cf. Êx 30.1-10; Nm 16.40; 18.1-7).

A ação de Uzias reflete três incidentes anteriores do Antigo Testamento, envolvendo os filhos de Arão (Lv 10.1 -3), Coré (Nm 16.1-40) e Jeroboão I (IRs 12.33— 13.1). Os filhos de Arão tinham oferecido incenso de uma maneira profa­na, enquanto Coré e Jeroboão eram leigos que tentaram agir como sacerdotes oferecendo incenso. A oposição de Azarias e a dos oitenta sacerdotes corajo­sos (v. 17) tem analogias com a função desempenhada por Moisés (Nm 16.4ss.) e o homem de Deus não nomeado em IReis 13.1-3, especialmente quando as palavras de Azarias são um tipo de advertência profética (v. 18; cf. 12.5; 24.20;25.15-16). A ligação com Números 16, no entanto, é especialmente próxima e mostra não só que Uzias deveria saber que estava agindo errado, mas também que Deus não fica indiferente quando sua santidade é manipulada. Conexões específicas incluem a lepra de Uzias (v. 19-23) com a praga sobre o povo (Nm 16.46-50), o fato de que o castigo irrompeu de repente da parte do S en h o r ( v . 19- 20; cf. Nm 16.35,46), a necessidade de se apressar para evitar uma maior dissemi­nação da doença (v. 20; c f Nm 16.46), e que a glória de Deus (JB) tinha abando­

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nado os transgressores (v. 18; cf. Nm 16.19,42). Em vista do último paralelo, a frase final do versículo 18 deve ser antes “Deus não revelará sua glória a ti” (Ackroyd, cf. JB, GNB) do que “não te trará nenhuma honra...” (RSV, etc.).

Apesar da seriedade do que Uzias tinha feito, Deus não age antes que Uzias fique “enfurecido” (REB), uma palavra enfática que ocorre duas vezes no versículo 19. A justa ira de Deus só irrompe contra a ira rebelde humana. O castigo de Uzias é descrito nos termos de uma escritura mais antigas: compare (lit.) “E Azarias... virou-se para ele e eis que ele estava leproso” com Números 12.10: “E Arão se voltou para Miriam e eis que ela estava leprosa” (RSV, c f também 2Rs 5.27). A doença não é a lepra como é conhecida hoje, mas um termo geral para todos os tipos de doenças de pele.

O relato em Reis é retomado com uma nota de que o rei teve que ser confinado permanentemente em uma casa separada (v. 21). Isso provavel­mente significa uma “casa de liberdade”, i.e., livre das responsabilidades do governo (cf. REB, NEB, GNB), embora pudesse significar “casa de corrupção, contaminação”, com base em uma frase cognata em ugarítico que se refere ao mundo dos mortos. A exclusão de Uzias do templo (v. 21) era exigida pela lei (Lv 13.46; Nm 5.1-3), embora, visto que outros reis que foram afligidos com doença grave podem ter exercido algumas funções de governo, é possível que Uzias também tenha feito (cf. 2Cr 16.11-13; 21.18-19). Enquanto isso, a respon­sabilidade pela administração real (responsabilidade pelo palácio, v. 21; cf. Is 22.15) foi dada por vários anos a seu filho e governante Jotão, até que Uzias morreu (cf. comentário sobre v. 3). O fato de que o filho do rei ocupou esse posto dá testemunho de sua crescente importância na monarquia posterior.170 A natureza especial da função de Jotão é transmitida pelo verbo “governou” (cf. NRSV, RSV), mais freqüentemente usado a respeito de governantes no livro de Juizes.

A fonte do cronista menciona um profeta canônico pela primeira vez (v. 22). Visto que o chamado de Isaías ocorreu no ano da morte de Uzias (Is 6.1), Isaías provavelmente coletou material anterior (também 2Cr 32.32). Essa obra pode ser refletida em várias alusões referidas a Isaías (v. 5,15,21). A notícia do funeral (v. 23) acrescenta um detalhe a 2Reis 15.7 ao notar que a doença de Uzias em vida afetou o seu lugar de descanso na morte. A referência a um local de sepultamento separado pode ser confirmada por uma inscrição em um ossuário do período hasmoneu: “Para cá foram trazidos os ossos de Uzias, rei de Judá, e não devem ser removidos.”171 Não se pode, no entanto, ter certeza de que a inscrição não depen­da desse versículo.

170 Cf. S. C. Layton, “The stew art in ancient Israel” , JBL 109 ,1990, p. 633-649.171 Tradução em J. M. M iller and J. H. Hayes, A H istory o f A ncien t Israel and Judah

(London: SCM Press, 1986), p. 310.

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2CRÔNICAS 27.1—32.33

F. Três reis se alternam (27.1— 32.33)i. A obediência de Jotão (27.1-9)“Jotão foi se tomando mais poderoso, porque dirigia os seus caminhos

segundo a vontade do S e n h o r seu Deus” (v. 27.6, NRSV).27.1-3a-c/2R eis 15.33-352 7 .7 -c /2 R eis 15.3627.8- c / 2Reis 15.332 7 .9 -c /2 R eis 15.38O reinado de Jotão introduz uma nova fase da história do cronista. Onde

cada um dos últimos três reinados foi dividido em períodos contrastantes (caps.24— 26), cada um dos três seguintes é apresentado por um único tema que então contrasta com o que o precede ou segue. Enquanto Jotão é um modelo de obediência e benção, Acaz (cap. 28) é “mais infiel”, e Ezequias (caps. 29— 32) é um grande reformador. Essa seqüência de três gerações de um homem fiel segui­da por um filho ímpio e um neto fiel corresponde exatamente à situação descrita em Ezequiel 18.1 -20 sobre a qual o padrão de Crônicas provavelmente está base­ado. Como em 2Crônicas 24— 25, o princípio básico é que cada pessoa é respon­sável diante de Deus por seu próprio comportamento, com seu corolário de que ninguém está limitado por sua formação ou seu ambiente. Isso era potencial­mente de grande importância para a geração do cronista, sendo que alguns desta acreditavam que ainda estavam debaixo do juízo de Deus (cf. Ne 9.32-37). Pelo contrário, o exemplo de Jotão mostra que eles tinham toda oportunidade para obedecer a Deus fielmente e toda esperança de ver sinais de sua bênção.

A virada da última parte do reinado de Uzias é ainda mais notável quando se lembra que parte da regência de Jotão, talvez a maior, aconteceu enquanto seu pai ainda estava vivo (c f comentário sobre 26.3,21). Talvez a experiência de seu pai no templo tenha sido uma advertência saudável do valor de viver de acordo com a palavra de Deus (v. 6). A obediência de Jotão levou a uma prosperi­dade renovada, e o permitiu retomar vários dos antigos empreendimentos de Uzias (cf. v. 3-5; 26.6-10). No entanto, o que se destaca ao se comparar Jotão com Uzias são suas atitudes contrastantes quanto ao seu poder ou força. Enquanto o sucesso de Uzias tinha subido à sua cabeça, Jotão mostrou que ainda era possível ser submisso à palavra de Deus e, no entanto, ser bem sucedido (cf os usos de poder/força em 26.16; 27.6). Uma característica notável dos feitos de Jotão foi que isso significou ficar longe dos caminhos inúteis de seu antecessor. Embora o Novo Testamento não contenha nenhum paralelo exato, um problema semelhante existiu em algumas das igrejas do primeiro século d.C. que trilhavam caminhos dos quais precisavam se arrepender (e.g. Ap 2.4-5,14-16; 3.1-3). Uma nova geração, no entanto, sempre pode romper com práticas e atitudes impiedosas herdadas.

a. O contraste entre Jotão e seu pai (27.1-2). Embora seja dito que Jotão reinou por dezesseis anos (v. 1 ), sua cronologia levanta dificuldades para as

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quais não existe nenhuma solução convincente. Em contraste com esse dado, Oséias de Israel se tornou rei no vigésimo ano de Jotão (2Rs 15.30) como também no décimo segundo ano de Acaz (2Rs 17.1). A maioria das soluções envolvem Jotão em co-regências com Uzias ou com Acaz ou com ambos, nor­malmente com algum ajuste dos números. Begrich dá suas datas como sendo 756-741, e Thiele como 750-732, embora outros prefiram um reinado muito mais curto. Pensava-se que o nome de Jotão ocorresse em um selo encontrado perto de Elote (c f. 26.2), mas agora ele é interpretado amplamente como sendo edomita.172

Jotão continuou a fazer o que era certo diante de Deus (v. 2), visto que ele n ã o e n t r o u n o t e m p l o d o S e n h o r , em contraste com seu pai. Embora a última frase seja às vezes considerada uma crítica a Jotão (Myers; a o c o n t r á r i o d e l e ,

NIV, REB, NEB, não está no heb.), essa frase é o oposto exato do pecado de Uzias (26.16). Em todo caso, entrar no templo era proibido a qualquer um menos os sacerdotes e levitas. Por outro lado, o p o v o persistiu em suas p r á t i c a s c o r ­

r u p t a s , que se refere a cultuar nos lugares altos (2Rs 15.35). A palavra hebraica, no entanto, vem da mesma raiz que “destruição, ruína” (26.16), e seu objetivo principal pode ser mostrar como os erros de Uzias se espalharam pelo país, apesar do exemplo do novo rei/governante.

b. A continuidade entre Jotão e seu pa i (27.3-6). São mencionados três aspectos das realizações de Jotão, todos eles desenvolvendo o trabalho ante­rior de Uzias. O primeiro é sua construção, que é obviamente o tema dos versículos 3-4 no hebraico, onde ele (re)edificou ocorre quatro vezes. A P orta de cima do templo ficava do lado norte (Ez 9.2; cf. Jr 20.2), e era talvez parte da reconstrução necessária depois do ataque por Jeoás de Israel (cf. 25.24), visto que não se sabe se Uzias trabalhou no templo. Por outro lado, Uzias tinha feito uma “obra extensa” nos muros da cidade (26.9; cf. 25.23), que Jotão continuou na fronteira sul da cidade na colina de Ofel. Essa última normalmente é consi­derada parte da colina sudeste entre o templo e a Cidade de Davi. Tanto Uzias quanto Jotão fizeram alguma construção na região montanhosa de Judá, e ambos construíram torres (v. 4; cf. 26.10). Os bosques ficavam presumivelmente nas colinas, e o fato de serem elas transformadas em Cidades pode ter visado uma reversão de um tema do juízo geral (Is 17.9). As fortificações podem ser um movimento defensivo contra uma possível ameaça de uma coalizão entre a Síria e Israel (2Rs 15.37).

Em segundo lugar, a vitória de Jotão sobre os a m o n i t a s dá prosseguimen­to aos sucessos militares de Uzias, ainda que mais no leste do que no sudoeste (v. 5; cf. 26.6-8). Embora a menção dos amonitas em 26.8 tenha sido questionada

172 Cogan and Tadmor, p. 181; J. C. L. Gibson, Textbook o f Syrian Semitic Inscriptions (Oxford: C larendon Press, 21973), p. 63.

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(aquele versículo pode ter sido influenciado por este), a palavra para amonitas aqui é a conhecida “filhos de Amom”, e os detalhes aqui são específicos e provavelmente autênticos. O tributo era significativo, pouco mais de três tone­ladas de prata e aproximadamente dez mil burros carregados de cevada (o kor era equivalente a um ômer ou uma carga de burro). A guerra amonita também pode refletir um perigo real ou potencial da parte da coalizão siro-efraimita, ou em um estratagema defensivo por Jotão ou como uma razão por que o tributo cessou depois de três anos.

Em terceiro lugar, Jotão se tomou forte/poderoso como Uzias, mas sem cair nas tentações nas quais caíra seu pai (v. 6; cf. 26.8, 15-16). O motivo do sucesso de Jotão foi que ele “dirigia seus caminhos” como Deus exigia (v. 6, NRSV, RSV; caminhou firmemente, NIV). Essa expressão em particular é única em hebraico (lit., “ele estabeleceu seus caminhos”), mas parece ser sinônima de uma frase semelhante, “fixar o coração (em Deus)” (cf. ICr 29.18; 20.33; 30.19).

c. Jotão descansa com seus pais (27.7-9). A fórmula de conclusão con­tém a informação esperada, exceto pelo fato de que o versículo 8 repete os detalhes do versículo la . Porém, essa técnica de reprise já foi usada pelo cronista em 2Crônicas 21.5, 20. Todas as suas guerras (v. 7) presumivelmente se refere às fases iniciais do conflito com a coalizão siro-efraimita que se transformou em uma crise maior sob o reinado de Acaz (cf. 2Cr 28.5-8; Is 7.1-9). Isso foi aludido nos versículos 3-5 que é a razão mais provável por que a referência em 2Reis 15.37 não é repetida aqui. As declarações sobre o seu sepultamento (v. 9) são extraordinariamente normais! Era raro em reinados recentes um rei descansar com seus pais na seção principal do cemitério real (cf. 2Cr 25.28 com 21.20; 22.9; 23.21; 24.25; 26.23).

ii. A infidelidade de Acaz (28.1-27)“Porque o S e n h o r humilhou a Judá por causa de Acaz, rei d e Israel” ( 2 8 .1 9 ) .

28.1-2a-ç/.' 2Reis 16.2-3a28 .3b-4-c/2R eis3b-42 8 .1 6 -c / 2Reis 16.7a28.21 -c f. 2Reis 16.828.26-27 - cf. 2Reis 16.19-20A história do cronista alcança outro ponto baixo com o reinado de Acaz. Para

começar, Acaz não fez o que era reto diante de Deus (v. 1), em contraste com seu antecessor imediato Jotão (27.2). Em segundo lugar, a avaliação totalmente nega­tiva de Acaz o põe no mesmo nível dos governantes da casa de Acabe (2Cr 21-23) e com os reis cujos reinados conduziram diretamente ao exílio (2Cr 36; cf. também 2Cr 33.21-25). Em terceiro lugar, Crônicas tomou as descrições de Reis dos fracas­sos de Acaz muito mais explícitas. Comentários interpretativos adicionais explicam que Judá estava sendo castigado porque eles tinham abandonado a Deus (v. 6) e

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porque Acaz tinha sido muito infiel (v. 19), em nítido contraste com as atitudes misericordiosas mostradas pelos habitantes de Israel (v. 12-15).

Essa apresentação distintiva foi composta a partir de três componentes separados. O primeiro é 2Reis 16, com o qual esse capítulo compartilha a mesma estrutura básica, ainda que os detalhes se sobreponham muito pouco. Fora introduções e conclusões semelhantes, ambos os relatos tratam dos mesmos três tópicos e na mesma ordem, a saber uma guerra contra a Síria e Israel (v. 5-15; cf. 2Rs 16.5-6), um apelo ao rei da Assíria (v. 16-21; cf. 2Rs 16.7-9), e a apostasia de Acaz (v. 22-25; cf. 2Rs 16.10-18). Em segundo lugar, alguns dos detalhes militares e administrativos (e.g. v. 5-8, 12, 16-18) como também a profecia de Odede (v. 9-11) provavelmente derivam de várias fontes desconhecidas. Embora a existência separada desse material não possa ser diretamente comprovada, existe evidência bastante independente dos eventos em Edom e Filístia (v. 17-18) para indicar que o cronista pintou um quadro preciso de Judá no oitavo século. O terceiro componente é o modelo de três gerações sucessivas em Ezequiel 18.1-20. Acaz representa a segunda das três, o filho ímpio de um pai íntegro, que tem que aceitar a responsabilidade por suas próprias ações antes que depender da obediência de seu pai como meio de escapar às conseqüências de seu comportamento (ver também comentário sobre o cap. 27).

A contribuição do próprio cronista é vista no uso de vocabulário especial e de padrões distintivos. A primeira e principal seção (v. 5-15), por exemplo, refere-se repetidamente à captura de cativos/prisioneiros de Judá (v. 5 ,8 ,11, 13- 15, cf. v. 17). Esse tema antecipa o próprio exílio, indicando que as ações de Acaz colocaram em perigo a própria existência do povo da aliança de Deus. As razões para isso são desenvolvidas na segunda seção (v. 16-21), onde a palavra chave é ajuda (v. 16,21; também v. 23; NTV, GNB no v. 20 traduzem uma palavra diferen­te). As ocorrências nos versículos 16, 21 são especialmente importantes, visto que elas marcam o começo e o fim do parágrafo, em ambos os casos como parte de frases que são adicionais a Reis (cf. 2Rs 16.7-8). Judá foi para o cativeiro porque Acaz buscou a falsa ajuda do rei da Assíria e também dos deuses de Damasco (v. 23). Nenhuma palavra em particular se destaca na terceira seção (v.22-25) mas a frase até mesmo mais infiel (NTV, cf. REB, NEB) provavelmente deve ser entendida como um título (v. 22). Ela traduz uma palavra hebraica (mã ‘al) que é central ao pensamento do cronista, e que é especialmente freqüente do capítu­lo 26 em diante como uma explicação para o exílio final de Judá.

O reinado de Acaz tam bém é padronizado segundo os de outros governantes. Saul (lC r 10) e Atalia (2Cr 22.10— 23.2) proporcionam algumas analogias, embora poucas conexões específicas existam entre Saul e Acaz (con­tra Mosis). Como o último rei de Judá sob a Monarquia Dividida, Acaz também foi comparado com seu primeiro rei Roboão. Em cada caso, os habitantes de um reino reconheceram os dos outros como irmãos (parentes ou compatriotas, v. 8, 11,15; cf. 11.4), e, mesmo que ambos os reis abandonaram a Deus (v. 6; cf. 12.6-

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7,12), Roboão se arrependeu mas Acaz não. Duas outras analogias, porém, são mais importantes que qualquer uma dessas. Primeiramente, Judá sob o reinado de Acaz é como Israel sob o de Jeroboão I (cf. 2Cr 13.8-18). Ambos abandonaram a Deus (v. 6; cf. 13.11) ao se envolverem com a idolatria (v. 2-4,23,25; cf. 13.8-9) e ao abandonar o templo em Jerusalém (v. 24; cf. 2Cr 13.9-11), e ambos sofreram “uma derrota severa” para o exército de seus parentes porque Deus os entregou (v. 5; cf. 2Cr 13.16-17). Em segundo lugar, a experiência do cativeiro de Judá no reinado de Acaz é uma precursora direta do exílio babilônico. Que também foi resultado de deslealdade (v. 19,21; cf. 2Cr 36.14) e que encerrou o culto apropri­ado no templo (v. 24; cf. 2Cr 36.14). Porque Deus estava irado com seu povo (v. 9,13; cf. 2Cr 36.16), ele os entregou (v. 5,9; cf. 2Cr 36.17) aos invasores estrangei­ros (v. 5, 17-18; cf. 2Cr 36.17), e como resultado o templo e o palácio foram despojados e as taças do templo danificados (v. 21,24; cf. 2Cr 36.18-19).

O único fio de esperança é proporcionado por alguns bons samaritanos. Ao se arrependerem da violência excessiva do exército do norte, eles cuidam das necessidades dos seus cativos e os enviam de volta para casa (v. 14-15) em uma tentativa de evitar pelo menos um pouco da ira de Deus (v. 13). A mensagem do cronista, que deve ter sido clara aos seus contemporâneos, é que a misericórdia de Deus estava livremente disponível até mesmo aos cativos. A história é de fato tão impressionante que Jesus a usou duas vezes em seu ensino. A unção das feridas dos prisioneiros, a menção de jumentos e de Jericó toma essa uma fonte importante da parábola do Bom Samaritano (Lc 10.25-37), enquanto a pro­visão de comida e vestimentas aos irmãos que são prisioneiros nus e famintos claramente subjaz a Mateus 25.34-46.173 A situação de uma pessoa não pode ser tão desesperadora que Deus não a possa resgatar, e ele reserva-se o direito de mostrar misericórdia por meio das pessoas mais inesperadas, até inimigos tradi­cionais (cf. Jo 1-4; At 10.1— 11.18).

a. A apostasia de Acaz (28.1-4). Como no caso de vários reinados prece­dentes, a cronologia é difícil. A idade na qual Acaz morreu (v. 1) e aquela na qual Ezequias se tomou o rei (29.1) parecem indicar que Acaz se tomou pai aos onze anos! A explicação mais provável é que uma co-regência com seu pai Jotão deveria ser acrescentada ao seu reinado de dezesseis anos, embora alguns MSS da LXX sugiram que ele tivesse vinte e cinco anos quando ascendeu ao trono.174 As datas de seu reinado variam entre 741-725 (Begrich)e 735-715 (Thiele,Albright).

A crítica mais séria a qualquer rei de Judá era que ele andou nos caminhos dos reis de Israel (v. 2). Essa referência explícita à idolatria só foi usada a respei­to de Jeorão (2Cr 21.6; porém cf. 22.4), ainda que esse último não possa oferecer

173 Veja F. S. Spencer, “2Chronicles 25:5-15 and the parable of the Good Samaritan”, WTJ 46, 1984, p. 317-349.

174 Cf. e.g. Cogan and Tadmor, p. 186. Isto, porém , pode ser um a assim ilação aos 25 anos de 27.8.

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a variedade mencionada nos versículos 2-4, 25. As características mais notáveis são os elementos acrescentados a Reis (v. 2b-3a). A adoração dos Baalins por Acaz o põe na tradição da casa de Acabe (lR s 18.18; 2Cr 24.7). Além disso, a referência à prática hedionda de sacrifício de crianças (v. 3) é mais clara que em 2Reis 16.3, onde “fez seu filho passar por” se tomou “queimou seus filhos” (REB, NEB). O nome hebraico do vale de Ben Hinom (cf. 2Cr 33.6; 2Rs 23.10; Jr7.31-32; Ez 16.20-21), onde as fogueiras de entulho e lixo de Jerusalém queima­vam, foi popularizado como Geena, “inferno”.

b. Massacre e misericórdia (28.5-15). Esse parágrafo divide-se claramen­te na guerra contra a Síria e Israel (v. 5-8) e seu resultado inesperado (v. 9-15). Embora a guerra seja várias vezes descrita no Antigo Testamento (2Rs 15.37;16.5-6; Is 7.1— 9.6; Os 5.8— 7.16), o cronista a apresentou de tal modo a dar a impressão de que essa versão contradiz as anteriores. Por exemplo, Síria e Israel parecem ser tratados separadamente aqui mas em outra passagem como uma coalizão (2Rs 16.5; Is 7.1-2), enquanto a concentração de Crônicas na derrota de Judá contrasta com o fracasso da coalizão para alcançar a vitória completa. As diferenças, porém, são mais aparentes que reais. As ações dos dois invasores são tão semelhantes a ponto de insinuar algum tipo de parceria (v. 5), enquanto os versículos 6ss concentra-se no papel de Israel. Também, 2Reis 16 e Isaías 7 deixam muito claro que os exércitos da coalizão devem ter devastado grande parte do norte de Judá, só não capturando Jerusalém.

E portanto coerente dizer que Judá sofreu um (lit.) “grande cativeiro” e uma “grande derrota” nas mãos dos sírios e israelitas respectivamente (v. 5), e não é nenhuma surpresa que os vencedores levaram cativos um grande número de Judeus (v. 5, 8). Os grandes números (v. 6, 8) provavelmente não devem ser lidos literalmente, embora o problema das estatísticas de baixas seja um pouco diferente de calcular o tamanho de um exército (cf. e.g., 13.3; 14.8). Porém, ainda pode ser possível pensar em termos de fatalidades de 120 unidades militares e as mulheres e crianças de 200 famílias ou clãs que são levados. Quaisquer que sejam os números exatos, o fato de que os mortos incluíam membros da família real e os dois oficiais administrativos mais importantes (v. 7) indica quão séria foi a crise.

O motivo do desastre era tão importante quanto sua extensão. Crônicas declara em estilo típico que pelo fato de Judá ter abandonado a Deus (v. 6), Deus tinha se irado (v. 9) e os entregue (v. 5) aos seus inimigos. Judá tinha rompido a aliança ao abandonar a Deus (1 Cr 28.9; 2Cr 7.19-22; 15.2), o que os fez sujeitos à derrota militar e ao cativeiro como um sinal da ira divina (2Cr 6.36). Isaías anteriormente já tinha afirmado o mesmo (c f Is 7.1-12). A mesma soberania divina que tinha protegido Jerusalém contra os exércitos da Síria e de Israel agora os usou como agentes do castigo divino.

Para o momento, porém, Crônicas mostra como a ira de Deus pode ser des­viada inesperadamente. Um profeta de Samaria, chamado Odede, intervém para

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saudar o vitorioso exército israelita, que retoma, com a mensagem aparentemen­te mal recebida de que os prisioneiros devem ser mandados de volta (v. 9-11). Ele dá três razões, que os israelitas tinham reagido com fúria/raiva excessiva (v. 9), que seu plano de sujeitar os prisioneiros de guerra de Judá ao destino comum de escravidão era inaceitável (v. 10a), e que eles tinham “cometido pecados” (v. 10b, JB; “são culpados”, REB, NEB) diante de Deus. Como no caso de muitas profecias anteriores em Crônicas, Odede usa a Escritura mais antiga. Violência excessiva na guerra comumente recebe a desaprovação de Deus (cf. Is 10.15-16; Os 1.4; Hb 2.2-20; Zc 1.15), ainda que os israelitas pudessem reivindicar que eles simplesmente estavam pegando de volta de Amazias o que era seu (cf. 25.11 -12). A escravização de israelitas, seus iguais, era contra a lei de Levítico 25.42-43,46, porque eles eram (lit.) “irmãos” (v. 8, 11, 15; “parentes”, REB, NEB), um tema importante ao longo de Crônicas (cf. lC r 12.39; 13.2; 2Cr 11.4). Além disso, “forçar à escravidão” (v. 10, REB, NEB) sempre é uma frase associada com a desaprovação de Deus, e ocorre somente em Jeremias 34.11,16 e Neemias 5.5, no último caso talvez não muito distante da experiência do próprio cronista. Final­mente, a profecia é uma apelo ao arrependimento (v. 11). A única esperança contra a ira de Deus tanto para israelitas quanto para os de Judá (v. 9, 11) está na misericórdia de Deus, que de acordo com 2Cr 6.36-39, estava disponível até mesmo no cativeiro. Embora eles tivessem pecado contra a lei e os profetas, as Escrituras também apontavam o caminho para o perdão.

Para seu crédito e em contraste com os judeus, os líderes israelitas respon­deram à palavra de Deus (v. 12-13). Na verdade, eles têm consciência de que as ações do seu exército aumentaram a sua culpa e a ira de Deus (v. 12-13). A referência original provavelmente não é tanto à divisão dos reinos, mas à rejei­ção dos nortistas da aliança davídica e do culto do templo em Jerusalém (cf. 2Cr11.14; 13.8). A ausência de qualquer referência a um rei em Israel (v. 12) é signi­ficativa (porém cf. v. 6). Isso, e a menção da congregação do norte (v. 14; cf. 10.1,12, 15) é uma das várias indicações em Crônicas onde o povo do norte responde favoravelmente a Deus (e.g. 11.13-17; 15.9; 30.11). Os homens designados pelo nome eram um comitê especialmente indicado, um procedimento da assembléia conhecido no tempo de Esdras (Ed 10.16; cf. lC r 12.31; 16.41; 2Cr 31.19). Sobre a misericórdia mostrada aos prisioneiros como um pano de fundo para o ensino de Jesus sobre mostrar amor a outros, veja acima. A pergunta, “Quem é meu próxi­mo?” é da mesma forma pertinente aqui (cf. Lc 11.29).

c. Falsa ajuda (28.16-21). As origens como também o resultado do apelo de Acaz a Tiglate-Pileser III, rei da Assíria (745-727), divergem do breve relato em 2Reis 16.7-9.175 Enquanto Reis faz da invasão siro-israelita o motivo do

175 O inesperado “reis [plural] da Assíria” (v. 16, JB) também ocorre em 30.6; 32. 4, que podem juntos se referir ao império da Assíria em geral.

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pedido desesperado de Acaz, aqui os edomitas (v. 17) e filisteus (v. 18) são a causa da dificuldade. Porém, ambas essas nações lutaram contra os assírios como tinham feito sírios e israelitas, e 2Reis 16.6 sugere que os ataques sírio e edomita podem ter sido até mesmo coordenados.176 O jugo imposto por Uzias também lhes deu mais um motivo para serem hostis (2Cr 26.2, 6-7). Os filisteus atacaram os vales estratégicos em Sefelá, embora Gimzo ficasse provavelmente mais ao norte em Israel.

Qualquer alívio trazido pelo “suborno” de Acaz (2Rs 16.8, NEB), entretanto, teve vida curta, visto que no final das contas o rei assírio o pôs em aperto/ dificuldade (v. 20; “afligiu”, RSV; “oprimiu”, NRSV). Apredição de Isaías (Is 7.17) de que Deus enviaria o rei da Assíria em juízo foi logo cumprida, com Judá sendo vassalo da Assíria durante uns trinta anos, e a maior parte de Israel imediatamente sendo transformada em três províncias assírias (cf. Is 9.1). O custo considerável de enviar os tesouros do templo e do palácio foi inútil (v. 21).177

Porém, o fracasso real de Acaz foi buscar antes o auxílio humano do que o celestial. Um dos princípios do cronista é que “Deus tem força para ajudar e para fazer cair” (2Cr 25.8; cf. 32.8), e que ele ajuda aos que põem sua confiança nele (cf. lCr5.20; 14.10; 18.31). A aproximação da Assíria por parte de Acaz era portan­to um sinal de sua incredulidade (c f Is 7.9-12). Acaz também “comportou-se sem restrição” (NRSV) e entregou-se à transgressão (v. 19). Aprimeira expressão na realidade significa antes favorecer à licenciosidade do que verdadeira liberdade, enquanto a última é um termo típico em Crônicas aplicado a deixar de dar a Deus o que lhe é devido. Portanto, o Senhor humilhou a Judá como tinha feito Israel sob Jeroboão (2Cr 13.18), mas com resultados ainda mais desastrosos.

d. A apostasia de Acaz aumenta (28.22-25). Embora esse parágrafo pare­ça breve e repetitivo, ele representa um desenvolvimento importante. A dificul­dade de Acaz (v. 22; cf. também v. 20) deve ser entendida à luz de outras ocorrên­cias da palavra em 2Cr 6.28 (“atacado por seus inimigos”, GNB) e 33.12 (“em sua angústia”) como uma oportunidade para orar a Deus para restaurar seu povo. Acaz, no entanto, não tem consciência desta possibilidade, e ao invés disso comete ainda maiores transgressões (v. 22; cf. v. 19). Ele adora os deuses de seus conquistadores (v. 23), destrói (“quebra”, REB, NEB, GNB) os utensílios do templo, fecha as portas do templo, e instala santuários em cada canto de Jerusalém (v. 24). Todos esses são novos desenvolvimentos em Judá, embora sua busca por auxílio das divindades sírias seja particularmente fútil. Assim

176 C f J. Gray, “The period and office of the prophet Isaiah in the light of a New Assyrian tablet”, Exp. T. 63, 1952, p. 263-265; H. W. Saggs, “The Nimrud letters - II” , Iraq 17, 1955, p. 126-265, especialm ente p. 131-132, 149-153.

177 Isto é m encionado nos anais de T iglate-Pileser, onde Acaz aparece com seu nome com pleto Jeoacaz (c f ANET, p. 282).

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como a queda de Amazias havia acontecido por que ele adorou os deuses dos inimigos derrotados que não podiam salvar (25.14-15, 19), assim Acaz sofre o mesmo destino por cultuar os deuses dos que o derrotaram. Porque Acaz con- sistentemente deixou de reconhecer que sua derrota era devida mais ao S en h o r ,

seu Deus (v. 5) do que aos deuses sírios, Deus derrotou a ele e a seu povo. Queda (NIV, JB, REB, NEB; “ruína” NRSV, RSV) é a mesma palavra que “fazer cair” em 25.8, ilustrando novamente que aqueles que não confiam em Deus para obter ajuda por fim serão arrasados.

No lugar do altar de Damasco, que é a crítica principal de Acaz em 2Rs 16.10- 18, Crônicas prefere incluir uma evidência mais ampla da crescente apostasia de Acaz. Fechar as portas do templo (cf. 29.7) não contradiz o culto de Acaz sobre o novo altar, visto que esse último estava fora do templo. Todas essas ativida­des provocaram a ira de Deus (v. 25). Essa frase lembra bem o livro de Reis (cf.e.g. lRs 16.33;2Rs 17.11; 23.19), sugerindo que embora esse material seja exclu­sivo de Crônicas, pode derivar de uma fonte também disponível a Reis.

e. O sepultamento de Acaz (28.26-27). A fórmula de conclusão associa Acaz duas vezes com os reis de Israel (v. 27; cf. v. 26), o que deve ser notado junto com seu título o “rei de Israel” (v. 19) e a descrição de Judá como “todo o Israel” (v. 23). Tudo isso pode aludir ao fato da assimilação do reino do norte pela Assíria em 722, representando uma nova oportunidade para os sulistas e nortistas considerarem sua unidade religiosa como Israel como mais importan­te do que as novas divisões políticas. Fracassos anteriores, no entanto, não eram bom augúrio(c/ 11.1-4,13.3-18,16.1-9,19.2-3; 20.35-37; 21.2-23.21; 25.7-10,17-24), ainda que os israelitas arrependidos mostrassem que a misericórdia de Deus nunca estivesse longe. Outras oportunidades para a unidade basea­das no culto no templo de Jerusalém vieram com Ezequias e Josias, mas so­m ente um rei posterior ainda poderia verdadeiram ente levar judeus e samaritanos a adorarem juntos (Jo 4.19-24).

Enquanto isso, o reinado de Acaz chegou a seu triste fim, embora seu sepultamento fora do cemitério real dificilmente deva ser interpretado como parte do tema do exílio (v. 27).178 Como no caso de alguns outros reis (cf. 21.20; 24.25; 26.23), isso é antes uma marca do juízo de Deus.

iii. As reformas de Ezequias (29.1—31.21)“Assim se estabeleceu o ministério da Casa do S e n h o r ” (29.35).“O rei tivera conselho com seus príncipes e com toda a congregação (...)

para celebrarem a Páscoa no segundo mês” (30.2).

178 Cf. M. E. W. Thompson, op. cit., p. 97.

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“Porque o S en h o r abençoou ao seu povo, e esta grande quantidade é o que sobra” (31.10).

2 9 .1 -2 -c / 2Reis 18. lb-331 .1a-c /2R eis 18.4a31.20-21 -c /18 .5 -7aA ascensão de Ezequias anuncia o amanhecer de uma nova reforma depois

do nadir do reinado de Acaz. Na realidade, Ezequias é tão importante para o cronista que são dedicados quatro capítulos a ele, mais que para qualquer outro rei exceto Davi e Salomão (caps. 29— 32). Essa apresentação é bem diferente daquela em 2Reis da qual só a introdução (2Rs 18.1-7; cf. 2Cr 29.1 -2; 31.1,20-21) e conclusão (2Rs 20.20-21; cf. 2Cr 32.32-33) reaparecem, junto com os eventos da parte principal de 2Crônicas 32. Embora o cronista certamente concorde com a visão positiva de Reis, ele selecionou exemplos bem diferentes da fé de Ezequias. Ezequias aqui é primordialmente um reformador do culto (caps. 29— 31), com seu sucessos militares e reputação internacional (cap. 32) como conseqüência do novo relacionamento da nação com Deus.

Nada é mais central à mensagem do cronista que adorar a Deus. O templo como a residência terrena de Deus deve portanto ser purificado de toda a impu­reza e re-consagrado (cap. 29) de forma que tanto a Páscoa (cap. 30) quanto o culto regular possam ser restabelecidos (cap. 31). Só nesta base Israel poderia olhar adiante com alguma confiança na bênção de Deus.

Isso é, na realidade, coerente com a mensagem mais ampla da Bíblia, que é a de que a prioridade fundamental de todo ser humano deve ser reconhecer o valor de Deus. E assim, por exemplo, como os dez mandamentos começam (Ex20.3-6), ela é o motivo da morte obediente de Jesus na cruz, e é a característica principal da comunidade no céu (Ap 4.1— 5.14; 22.1-9). Então, quando Ezequias fez dela o primeiro ato de seu reinado preparando-se adequadamente para o culto, ele estava observando um princípio bíblico básico, e não apenas favore­cendo um cerimonial antiquado. Sua ação também lembra os crentes de hoje queo seu padrão de adoração sempre deve expressar sua dedicação sincera a Deus (cf ICo 12— 14; Ap 2.14-16,20-23). Realmente, para o Novo Testamento, o culto sacrificial reivindica a vida inteira da pessoa (Rm 12.1).

Purificar o templo não era uma questão casual, e envolveu Ezequias em três atividades separadas: (a) um convite à consagração (29.3-11); (b) apurifica- ção dos edifícios do templo (29.12-19); (c) a adoração com sacrifício e música (29.20-35).

Esses realmente constituem elementos distintos em um ato de arrependi­mento, que freqüentemente gera movimentos de renovação espiritual. Esse arre­pendimento ilustra os princípios de 2Crônicas 7.14, com três características par­ticulares que se destacam. Em primeiro lugar, o arrependimento freqüentemente envolve ação coletiva como também uma mudança individual de coração. Em segundo lugar, o arrependimento coletivo depende de uma liderança sábia e

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piedosa (cf. o papel do rei nos v. 3-5,20,31). Ezequias era obediente ao que Deus queria, enquanto permanece consciente de que qualquer sucesso era devido a Deus (v. 36). Em terceiro lugar, o arrependimento removia a ira de Deus (cf. 28.25) e alegrava toda a nação (v. 36).

As ênfases especiais do cap. 29 são expressas em três padrões diferentes. No primeiro, o reinado de Ezequias revive a era combinada de Davi e Salomão. O reinado de Davi é evocado por meio de duas referências específicas (v. 25-27,30) como também pelos paralelos entre o papel dos levitas nos versículos 3-19 e1 Crônicas 15. Salomão é retratado no paralelo entre a sua consagração do templo (2Cr 7) e a adoração de Ezequias, no altar novamente consagrado (v. 20-35) e na Páscoa (cap. 30). A ligação com Davi, que é especialmente forte nesse capítulo, mostra que Ezequias é muito mais que um segundo Salomão (contra Williamson), uma tese baseada excessivamente em 30.1-12. O segundo padrão contrasta Ezequias com dois outros reis, isto é, Jeroboão I (como descrito por Abias em 2Cr 13.8-12) e Acaz (2Cr 28.22-24; 2Rs 16.10-18). Isso não apenas faz do reinado de Ezequias o começo de uma nova era, mas confirma a mensagem de Ezequiel 18 de que Israel não estava inevitavelmente preso a seu passado (cf. caps. 27-28). O terceiro padrão foi chamado um “esquema festivo”, e está baseado na consa­gração do templo (2Cr 7.8-10). Isso inclui quatro componentes, uma data (cf. v. 1, 17), identificação (e purificação) dos participantes (cf. v. 4-20), detalhes das cerimônias (cf. v. 21-35), e uma celebração alegre (cf. v. 36).179 Ele é repetido nos reinados de Asa (2Cr 15.9-15) e Josias (2Cr 35.1-19) como também ocorre duas vezes no de Ezequias (cf. também 30.13-27) dos quais todos confirmam o desejo de Ezequias de participar de uma tradição viva de adoração no templo.

a. Convite para a consagração do templo (29.1-11).i. Introdução (29.1-2). Este é o único parágrafo no capítulo que é depen­

dente de Reis (2Reis 18. lb-3) e, fora a omissão usual do sincronismo (2Rs 18.1), acompanha de perto sua fonte. Não deveria, no entanto, ser tratado meramente como rotina. Ezequias é o primeiro rei a ser plenamente comparado com Davi (cf. 17. 3) e o versículo 2 também o contrasta com seu antecessor (cf. 28.1). Na verdade, o versículo 2 realmente apresenta o tema ao antecipar algumas analogi­as diretas com Davi no capítulo. As datas de Ezequias, como no caso da maioria dos reis do oitavo século, permanecem incertas, e são determinadas por Begrich como 725-697 e por Thiele como 715-686.

ii. Um convite à consagração (29.3-11). Ezequias começou a reparar o dano que ele herdou de Acaz logo no primeiro dia (v. 3,17; cf. 28.22-24). Embora o primeiro mês do primeiro ano provavelmente indique seu ano oficial antes que o primeiro mês do seu reinado de fato, sua rapidez ao longo de todo o

179 De Vries, p. 373.

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empreendimento mostra a profundidade de sua dedicação (cf. v. 17,20,36). Esse primeiro mês do ano civil era o tempo adequado para a Páscoa (cf. 30.2), e também o início mais provável de cada ano do reinado. O primeiro ato da reforma foi abrir as portas do templo (v. 3) que Acaz havia fechado (28.24). Elas perten­ciam ao edifício principal e não ao pátio do templo (cf. v. 7), visto que Acaz tinha continuado a exigir acesso a seu novo altar no pátio (2Rs 16.10-18).

Como era o costume dos reis sábios, Ezequias primeiro ajuntou o pessoal que deveria realizar a tarefa planejada (v. 4; cf. v. 20,23,28,31,32; 2Cr 5.2-3; 28.14; 34.29). Eles eram os sacerdotes e levitas cujos antecessores Davi tinha emprega­do para transportar a arca (cf. lC r 15.4; cf. 23.2). O modelo de liderança aprovado pelo cronista sempre era coletivo e nunca autocrático. A praça oriental (v. 4) provavelmente ficava em frente ao templo (cf. Ed 10.9), onde os levitas reunidos podiam ver a impureza do templo por si mesmos, embora uma outra praça existisse perto da porta da cidade, fora dos recintos do templo (Ne 8.1, 3).

O tema principal do capítulo é apresentado em uma fala do rei (v. 5-11). E aparentemente dirigida apenas aos levitas, mas a menção de incenso (v. 11) mostra que os sacerdotes também estavam incluídos. Tais falas normalmente acontecem em pontos-chave em Crônicas. Aqui o tema é a necessidade de fidelidade ao templo, como uma oportunidade nova para adorar a Deus depois da queda do reino de Israel em 722 (cf. 30.6-9). Ela tem alguns paralelos no discurso de Abias (13.4-12), igualmente estratégico na confirmação do padrão de culto para o novo reino do sul, Judá.

Ezequias faz três considerações, das quais a primeira chama os sacerdotes e levitas para santificar tanto a si mesmos quanto ao templo (v. 5; c f v. 10-11). Esse era o primeiro passo para restabelecer a comunhão com Deus (v. 15, 34; 30.15, 24; 31.18; ver também comentário sobre lC r 15.11-15), visto que só um verdadeiro sacerdócio podia prestar um culto aceitável (contraste 2Cr 13.9-10). “Consagrar” significa “fazer santo, santificar”, quer dizer, reservar alguém ou algo para o serviço de Deus (cf. lPe 1.15-16). Embora isso incluísse compromis­so positivo com Deus, também exigia a remoção de todo tipo de corrupção (v. 5, NIV, REB; “o que é impuro”, JB). Este último termo (heb. niddâ) foi usado no exílio e mais tarde para descrever o estado geral do povo de Deus (e.g. Ed 9.11; Lm 1.8,17; Ez 36.17), embora se referisse em outras partes à impureza ritual (e.g. Lv 15.19-33). O público do cronista sem dúvida deveria compreender ambos os significados, embora eles também conhecessem a promessa de Deus de uma fonte que limpa toda impureza (Zc 13.1).

Em segundo lugar, o povo tinha sido “infiel”, voltando as costas em vez de sua face para Deus (v. 6). O culto significava um encontro face a face com Deus (Êx 33.11; SI 27.4-9), mas eles pessoalmente o haviam rejeitado ao não reco­nhecerem sua presença (cf. Jr 18.17). E por isso que eles tinham fechado o templo (v. 7; cf. 13.11; 28.24), e estabelecido padrões gentios de adoração (28.2-4,22-25; 2Rs 16.12-16). O problema, no entanto, não remontava a apenas

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uma geração mas a nossos pais (v. 6) em geral. O uso de termos como infiel (cf. 2Cr 26.16,18; 28.19,22; 36.14) e abandonou (cf. 2Cr 15.2; 24.18,20; 28.6) tipifica as atitudes para com Deus que no final das contas levaram ao castigo do exílio.

Em terceiro lugar, Ezequias sublinha que rejeitar a Deus desperta a ira deste (v. 8,10). Esse tema proporciona outra conexão com o exílio (cf. 2Cr 36.16), como faz a descrição de Jerusalém como um objeto de “horror, surpresa e espan­to” (v. 8, c f NRSV, RSV), uma frase que só tem paralelo em Jeremias 29.18 (cf. também os termos individuais em Jr 15.4; 19.8; 24.9; 25.9). Vero cativeiro (v. 9) com seus próprios olhos (v. 8) também poderia referir-se ao exílio, mas sua referência primária é ao reinado de Acaz no capítulo 28 onde a noção de cativeiro é repetida oito vezes (v .5 ,8 ,11,13-15,17). Foi também durante o reinado de Acaz que seus pais morreram pela espada e foram levados cativos seus filhos, filhas e esposas (v. 9; cf. 28.6, 8). Porém, a chave para o discurso de Ezequias é que o castigo não tem que se seguir automaticamente à ira de Deus (v. 10). O princípio do Novo Testamento de que “Deus não nos designou para sofrer a ira mas para receber salvação” aplica-se igualmente aqui (lTs 5.9; cf. Rm 5.9; lTs 1.10), en­quanto houver arrependimento real (2Cr 12.7; 19.10; 32.26).

O empenho de Ezequias quanto ao arrependimento é revelado por sua in­tenção de fazer uma aliança com Deus (v. 10). Nenhum detalhe desta aliança é dado, e não há nem mesmo qualquer reconhecimento formal de que ela aconteceu de fato, embora a convocação de uma assembléia (v. 15) e a ação que a seguiu (v.16-35) dê forte testemunho de ela ter sido colocada em prática. O uso da preposi­ção hebraica le (“com”) sugere que se trata mais de um juramento unilateral diante de Deus, mas visto que as alianças eram em todo caso confirmadas, geralmente por um juramento, o argumento não é convincente.180 A preposição nesse caso parece ser sinônima de “diante do S en h o r ” (2Cr 34.31). O ato de Ezequias veio de seu “coração” (v. 10, NRSV; intenção, REB, NEB, NIV), quer dizer, sua vontade. A expressão tem uma analogia direta com os desejos íntimos de Davi para o templo (cf. lC r 22.7; 28.2; 2Cr 6.7). O fato de que Deus escolheu os sacerdotes e levitas (v.11) é mais um elo com Davi, pois a eleição dos levitas ocorre somente aqui e em1 Crônicas 15.2. Aexortação final pode ser mais forte do que simplesmente não ser negligente (v. 11). Poderia significar que eles não deviam errar (cf. 2Sm 6.7, AV, RV) ou que eles não deveriam cometer blasfêmia (cf. Dn 3.29, REB, NEB).181

b. Renovando o culto do templo (29.12-36).i. Purificando o templo (29.12-19). Antes de descrever uma atividade em

particular, Crônicas tipicamente lista os nomes dos envolvidos. Os levitas nos

180 E.g. Gn 31.44-53; Dt 29.12, 14; 2Cr 15.12-15; Ed 10.3-5. Contra Japhet, Ideology, p. 112-115.

181 Sobre os diversos e possíveis significados da raiz slh, cf. e.g. A nderson, p. 103; J. Goldingay, Daniel, W BC (Waco: W ord Books, 1989), p. 67.

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versículos 12-14 são os líderes na tarefa de purificação (v. 15-19), um formato que tem um paralelo estreito nos levitas dos dias de Davi (lC r 15.4-10). Em ambos os exemplos, os primeiros quatro grupos nas listas são idênticos, e a única diferença real é que as três famílias musicais nos versículos 13b-14 subs­tituem os dois grupos em 1 Crônicas 15.9-10. Ambos os grupos de líderes têm que se consagrar para a sua tarefa (v. 15, 17, 19; cf. lC r 15.12, 14), o que esses levitas fizeram ao remover toda impureza (v. 16).

A tarefa em si levou duas semanas sucessivas, primeiro limpando o pátio até0 “pórtico” (v. 17, REB, NEB; “vestíbulo”, NRSV, RSV) e depois o templo (v. 16). O tempo gasto ultrapassou a própria data adequada para a Páscoa, para a qual arranjos especiais tinham de ser feitos (cap. 30). O empreendimento inteiro é carac­terizado por uma preocupação em fazer tudo como o S en h o r requeria, especial­mente enquanto a ordem do rei era considerada as “palavras do S en h o r ” (v . 15, NRSV, RSV). Essa última frase pode se referir mais à revelação original de Deus a Davi sobre o templo (1 Cr 28.12,19) do que retratar Ezequias como um profeta, visto que Crônicas às vezes fala de um modo geral sobre “a palavra do S en h o r ” (cf. 1 Cr 10.13; 11.2-3). Um exemplo desse cuidado é que só os sacerdotes se purificavam na “parte interna” do templo (v. 16, NRSV, RSV), quer dizer, o Santo dos Santos, visto que essa era a única parte da qual os levitas foram excluídos (cf. 2Cr 5.7; 23.6). Cuidado especial foi dado também às taças do templo (v. 18-19), que nos tempos pós-exílicos vieram a simbolizar o culto dinâmico do templo (cf. Ed 1.7-11; Dn 5.2-3, 23). Quando os símbolos gentios tinham sido finalmente afastados do modo tradicional para o vale de Cedrom e destruídos (v. 16; cf. 2Cr 15.15; 30.14; 2Rs23.12), o templo poderia ser corretamente purificado (v. 18) e santificado (v. 19) para o serviço de Deus.

ii. O culto restabelecido (29.20-36). Ezequias imediatamente “se levan­tou de madrugada” (v. 20, NRSV, RSV) para juntar os líderes civis e religiosos para o culto de reinauguração.182 Como em ocasiões anteriores, o templo só foi completamente restaurado quando se tornou operacional (cf. 2Cr 5.2—7.10; 15.8- 15; 24.13-14). Cada seção do serviço religioso de reabertura é caracterizada por seus próprios temas individuais de expiação (v. 21-24), consagração e louvor (v.25-30) e ação de graças (v. 31-35).

Primeiro os líderes trouxeram ofertas para expiação de todo o Israel (v. 24), ou mais especificamente para o reino, para o santuário e para Judá (v. 21). Embora o reino possa ser uma referência à casa real, tal significado seria único no Antigo Testamento, e não é impossível que o tema importante de Crônicas do reino de Deus seja visado. “O reino” é usado exatamente nesse sentido em1 Crônicas 29.11, e deveria ainda proporcionar uma outra analogia com o discur­so de Abias (2Cr 13.8).

182 Embora o heb. não especifique “m anhã seguinte” (contra NIV, REB).

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O holocausto e a oferta pelo pecado (v. 24) proporcionam os sacrifícios de expiação. Os holocaustos parecem ter compreendido touros, carneiros e cor­deiros (v. 21-22), e sua função expiatória tem paralelo em e.g. Levítico 1.3-4 e Jó 1.5. A oferta pelo pecado (NIV, RSV) é destacada. De fato, é mais bem descrita como uma “oferta de purificação” (NEB), visto que por ela eram removidas todas as formas de mal e impureza, pessoal e impessoal. Até mesmo o santuário era purificado, uma idéia também encontrada nos rituais para o Dia da Expiação (Lv 16.16,20) e para o templo visionário de Ezequiel (Ez 45.18-20; cf. 43.18-27). A cerimônia de Ezequias remove de forma abrangente toda mancha (cf. v. 5), como também toda ira de Deus (cf. v. 8, 10). Ela é para todo o Israel (v. 24), o povo do norte e do sul,183 e o número maior de animais em comparação com o Dia da Expiação também destaca o sentimento de perfeição (v. 21; cf. Lv 16.3, 5, 24). Ezequias na realidade, parece ter usado em parte o Dia da Expiação como mode­lo, pois esse era o único dia de cada ano quando todo pecado era sacrificialmente expiado (Lv 16.16,21). Outra ligação com o Dia da Expiação é que eles impunham suas mãos sobre os bodes da oferta de purificação (v. 23). Isso lembra o ritual do bode expiatório no qual os pecados de Israel eram confessados sobre o animal antes que fosse banido como um símbolo adicional de que todos os seus peca­dos tinham sido apagados (Lv 16.21). Tanto esse incidente quanto o Dia da Expiação também antecipam a oferta pelo pecado apresentada pelo próprio Je­sus na cruz, que não só remove todo pecado mas o faz de uma vez por todas (cf. Is53.10-ll;Rm 8.3;2Co5.21;H b 10.11-12).

O segundo grupo de sacrifícios eram os holocaustos (v. 27-28) acompa­nhados por louvores e canções (v. 25-30). Porque os holocaustos ocorrem mais de uma vez nos rituais, algumas vezes se pensou que aqueles nos versículos 27- 28 devem ser os mesmos que aparecem no versículo 24, e que os versículos 21- 24 e versículos 25-30 são entre si contemporâneos. Na realidade, os holocaustos acompanhavam cada fase do ritual, incluindo os vários tipos de ofertas de comu­nhão (v. 31-35) e a oferta pelo pecado (v. 24), como também as canções de louvor. Em todo caso, os holocaustos estão associados com uma variedade de atitudes durante o culto. Aqui eles acompanhavam um ato no qual os adoradores santifi- cavam a si mesmos (v. 31; “consagravam-se”, NRSV, RSV), uma expressão em geral usada na ordenação ao sacerdócio, e que tem outros paralelos tanto com Davi (lC r 29.5) quanto com Abias (2Cr 13.9). Como nos dias de Davi, todo o povo se reservava para Deus como seus sacerdotes para prestar culto (cf. Ex 19.6; lPe2.4,9-10). Sua autodedicação é dramatizada no sacrifício animal e verbalizada no sacrifício de louvor. Insiste-se bastante no fato de que a canção comece (v. 27) e termine (v. 29) ao mesmo tempo em que o holocausto. Isso simboliza não só a

183 O termo normalmente inclui o antigo reino do norte como também o do sul em 2Cr 29— 36 (W illiam son, IBC, p. 126-130).

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harmonia que deveria existir entre os aspectos físico e espiritual da adoração, mas também a restauração do verdadeiro padrão de adoração, especialmente na rela­ção entre expiação e louvor. O louvor de Deus só se toma possível pela prévia remoção do pecado (cf. v. 21-24), e só uma pessoa perdoada pode verdadeiramen­te cantar louvores a Deus (cf SI 51.14-15; Ap 7.9-17). Crônicas também implica que a expiação não deve ser vista como um fim em si mesmo mas como uma preparação para o louvor e a ação de graças (c f v. 25-35; cf. 30.27). São essas últimas que o cronista admite como as atividades normais do culto regular, expressas por meio da música e das ofertas sacrificiais (cf. lC r 16.40-41; 23.30 31; 2Cr 8.12-14).

O louvor musical retornou aos padrões fixados por Davi (v. 25-26,30). Os instrumentos de Davi (v. 26) e suas palavras (v. 30) foram revividos, como foram as palavras dos profetas que eram contemporâneos dele (v. 25). Se as palavras de Davi e Asafe (v. 30) são as mesmas que as dos salmos cujos títulos trazem seus nomes, os profetas e os salmos se tornam a base do louvor de Ezequias. Isso também é uma boa ilustração do uso das Escrituras no culto.

O terceiro grupo de ofertas eram os sacrifícios e ofertas de ações de graça (v. 31-35). Embora associado com os holocaustos, eles eram de fato duas ofertas separadas unidas pelo termo geral “comunhão” ou “ofertas pacíficas” (cf. v. 35; cf. Lv 7.11-21). Eles eram ofertas de comunhão onde os adoradores desfrutavam da fraternidade, e eram freqüentemente usadas em ocasiões de ações de graças espe­ciais e não em tempos normais. Eles diferiam daquelas ofertas anteriores (v. 21-30) pelo fato de que eram sacrifícios individuais e não públicos, trazidos por todos os que estavam de coração disposto (v. 31). Essa frase precisa só tem paralelo nas ofertas trazidos à Tenda de Moisés (Êx 35.5,22), embora uma conexão muito forte exista também com Davi. A palavra “disposto” (v. 31) é da mesma raiz que “ofere­cer livremente” que aparece sete vezes em 1 Crônicas 29, novamente em associa­ção com o edifício do templo.

Uma nota especial relata que os sacerdotes foram mais lentos que os levitas e o restante do povo ao se consagrarem para a sua função (v. 34). Não se sabe por que eram os sacerdotes, e não o ofertante, que esfolavam o animal, visto que essa é uma divergência de Levítico 1.6, mas a ênfase mais importante é que os levitas ajudavam os sacerdotes (v. 34). Davi tinha nomeado os levitas para um novo papel como assistentes sacerdotais (lC r 23.28, 32). O incidente também realça a fartura geral de animais para sacrifícios (v. 32-35) e o alcance da sinceridade da congregação.

Assim a vida do templo foi completamente restabelecida (v. 35b-36). O capítulo, de fato, inclui todos os tipos e funções principais de ofertas sacrificiais em seu padrão de culto; isto é, pelo pecado, para louvor e para comunhão. Ele também combina os aspectos externo e intemo de adoração como também suas dimensões religiosas e seculares. Visto que todos esses elementos são encontra­dos no Novo Testamento, estão incluídas todas as características básicas da adoração bíblica. O sacrifício pelo pecado tanto no Antigo quanto no Novo Tes­

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tamento é o trampolim para o sacrifício de louvor (Cl 3.15-16; Hb 13.15-16) e para a comunhão ou refeição comunitária (ICo 11.23-26). Duas conseqüências seguiam- se dessas ofertas. A primeira era reconhecer que só Deus fazia tudo isso possível (v. 36; cf. ICo 12.3; Ef 2.18). A segunda era que todo mundo se alegrava (v. 36), em contraste completo com a situação com a qual eles tinham começado.

c. Convite para a Páscoa (30.1-12). O capítulo 30 descreve os arranjos de Ezequias para uma celebração especial de Páscoa e Pães Asmos no templo reaber­to há pouco. Não se sabe com certeza por que essa festa em particular era destaca­da, embora possam ser dadas três razões possíveis. A primeira é uma razão pura­mente prática, pois a operação de purificação havia continuado para além da data normal para a Páscoa, Ezequias estava indicando o seu empenho ao rearranjar a data, em vez de deixá-la passar completamente (v. 2-3). A segunda é que a Páscoa pode ter sido apropriada na inauguração de um novo reinado porque comemorava o início de Israel como uma nação (cf. Ex 12.27; Dt 16.1; o segundo mês é o do primeiro ano completo de Ezequias, cf. 29.3). A terceira é que porque a Páscoa originalmente tinha sido instituída para evitar as conseqüências da ira de Deus (cf. Ex 12.13 e v. 8 aqui), esse era um modo de Israel deixar o passado para trás e vislumbrar novas oportunidades com Deus (cf. F13.13-14; Hb 10.19-25).

Essa Páscoa faz parte das cerimônias de abertura do reinado de Ezequias, já que os capítulos 29 e 30 são na realidade da mesma categoria. Ambos têm uma estrutura semelhante, com um convite ao culto (v. 1-12; cf. 29.3-11) seguido por um ato de purificação (v. 14; cf. 29.12-19), antes de ocorrerem as cerimônias principais (v. 15-27; cf. 29.20-35). O conteúdo da carta de Ezequias (v. 6-9) tam­bém é notavelmente semelhante à sua fala anterior aos levitas (29.5-11). Um fator adicional é o número de temas comuns, como a consagração para o culto (e.g. v. 15,24; 29.15-19,34), a função da congregação (e.g. v. 2,4,23-25; cf. 29.23,31-32), a fidelidade do povo ao passado (v. 16,26; cf. 29.25-26,30), e a alegria de cultuar a Deus (v. 21,23,25-26; cf. 29.30,36). Tudo isso claramente relaciona a Páscoa com a reconsagração do templo.

O capítulo 30, no entanto, contribui com duas ênfases próprias. A primeira é a de um novo potencial para a unidade entre norte e sul. A congregação incluía gente das tribos do norte (v. 5-6,10-11,18,25; 31.1) que responderam ao convite de Ezequias para vir ao templo (v. 11). Comparado com fracassos anteriores, esse incidente mostra que a única abordagem realmente efetiva para a unidade tem que estar baseada no princípio de adoração fiel. Onde a força (2Cr ll.l-4 ;1 3 .1 3 )e o s acordos formais (2Cr 18.1; 19.2; 25.6-8) tinham falhado, a submissão conjunta a Deus gera uma nova atitude. O caminho para frente tinha sido mostrado previa­mente através dos incidentes nos reinados de Roboão e Asa (2Cr 11.13-17; 15.9), mas esse evento era muito mais significativo. Participaram muito mais nortistas do que antes, e a então recente queda do reino do norte em 722 a.C significava que Jerusalém oferecia agora a única alternativa para a adoração coletiva do S e n h o r .

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Em comparar com os atos anteriores de adoração unida, somente a Páscoa unia o presente de Israel com suas origens. A importância desta unidade, no entanto, não deve ser exagerada visto que certamente não era o caso, mesmo teoricamente, de “a população inteira” estar “reunida em adoração naquele momento no templo de Jerusalém.” Ezequias não foi um segundo Salomão, pois seu reinado de manei­ra nenhuma testemunhou um retomo às condições da Monarquia Unida. Embora o princípio pelo qual a reunificação poderia acontecer estivesse estabelecido, na realidade comparativamente poucos responderam, e Israel como um todo foi ainda mais dividido pelo reino do norte, transformando-se em províncias assírias.

A segunda ênfase é a natureza da Páscoa, um tema que é complicado pela questão se ela de fato ocorreu, e, nesse caso, se foi ou não uma inovação. A maior dificuldade é que 2Reis não menciona a Páscoa no reinado de Ezequias e além disso afirma que a Páscoa de Josias não teve paralelo ao longo do período da monarquia (2Cr 35.18; cf. 2Rs 23.22-23). Quando esses fatores são combina­dos com a teoria de que a Páscoa e os Pães Asmos não se tomaram um único festival antes da Páscoa centralizada de Josias, é fácil ver como a Páscoa de Ezequias poderia ser considerada uma versão idealizada da de Josias. Essa teo­ria das origens da Páscoa centralizada, porém, permanece sem provas e outras interpretações dos dados bíblicos são possíveis. Primeiramente, deve ser nota­do que o festival de Ezequias é marcado por várias irregularidades, como uma data no segundo e não no primeiro mês (v. 2), uma duração de duas semanas e não de uma (v. 23), e a impureza de alguns dos participantes (v. 17-20). Essas eram questões de importância considerável, e não é provável terem sido inven­tadas por um escritor como o cronista que era meticuloso sobre questões cúlticas.184 Em segundo lugar, as duas Páscoas divergem em vários detalhes importantes. Alguns elementos são incluídos na Páscoa de Josias mas não na de Ezequias, tais como o transporte da arca (35.3), assar o cordeiro segundo o padrão do êxodo (35.13), oferecer sacrifícios até o anoitecer (35.14), e observar o Livro da Aliança (2Rs 23.21). Talvez a diferença mais significativa, no entanto, diga respeito aos levitas, sobre quem o cronista é bastante minucioso. Enquan­to se esperava que os levitas de Josias matassem os animais (35.5-6), aqui eles tão somente o fizeram para as pessoas que estavam impuras (v. 17). Essas vari­ações mostram que a Páscoa de Ezequias não pode ter sido escrita com base na de Josias. Além disso, 2Crônicas 35.18 não reivindica que a Páscoa fosse desco­nhecida entre o décimo primeiro século e o fim do sétimo século a.C, mas que ela não tinha sido celebrada da maneira de Josias durante aquele tempo. Embora a evidência seja escassa, a iniciativa de Ezequias é explicada melhor por ter herda­do alguma tradição da observância da Páscoa. A luz das irregularidades presen­

184 O cronista pode até m esmo ter sabido que estes tipos de temas, incluindo a data da Páscoa, eram um a questão em discussão talvez não muito antes de sua época. (c f o chamado “papiro da Páscoa” da com unidade judaica de Elefantina, ANET, p. 491).

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tes nesta ocasião, é provável que essa tradição devesse mais à precedente do que à autoridade bíblica, mas era forte o bastante para convencer Ezequias do potencial espiritual e do impacto político da Páscoa.

Podem ser feitos três breves comentários sobre a natureza dessa Páscoa. Primeiramente, ela é sempre combinada com os Pães Asmos, que é descrito duas vezes como um “festival de peregrinação” (v. 13,21). O termo “páscoa” possui um duplo significado, é o nome de uma festa (v. 1-2,5), e o item principal do cardápio (v. 15,17-18). Os dois festivais são combinados como é habitual na Bíblia (cf. Êx 12.8; Dt 16.1-8; 2Cr 35.17; Mc 14.1; Lc 22.1), contra a teoria (Williamson) de que o relato principal aqui diz respeito aos Pães Asmos com referências adicionais pos­teriores à Páscoa. Em segundo lugar, a extensão do festival para uma quinzena remete à consagração do templo (cf. 2Cr 7.8-9), como indicado pela impressão especial de alegria irrestrita em cada ocasião (v. 23,25,26; 7.10). Em terceiro lugar, as ações de Ezequias recordam o período davídico-salomônico (também cap. 29) do qual o elo com a consagração do templo é apenas um exemplo. Ambos os reis são mencionados diretamente no versículo 26, e estão intimamente relacionados com o tema de todo o Israel (v. 1, 5; 31.1). Davi está associado com a frase de BersebaaDãKy. 5; cf. lC r21.2)ecom os instrumentos musicais (v. 21; cf. lCr23.5; 2Cr 7.6; 29.26-27), e Salomão com a oração que Deus ouve (v. 18-20,27; cf. 2Cr 6.18- 42) e o vocabulário repetido de 2Crônicas 7.14. As palavras seguintes estão todas baseadas nesse versículo, a saber humilhar (v. 11), orar (v. 18,27), buscar (v. 19), voltar (v. 6, 9), ouvir (v. 18, 27), e sarar (v. 20). Essas referências ao passado revelam muito mais que um interesse na analogia histórica ou arte literária. O S en h o r do êxodo e de Davi e Salomão era um Deus vivo, sempre pronto a ouvir e responder às orações dos que o adoravam em espírito e em verdade.

Em termos do Novo Testamento, dois aspectos da Páscoa se destacam. Primeiramente, Jesus é o cordeiro pascal definitivo, que por seu próprio corpo e sangue estabeleceu uma nova aliança (cf. Lc 22.14-20). Da mesma maneira que a congregação de Ezequias foi purificada e curada, os cristãos são purificados por seu sacrifício de Páscoa, salvo que o sacrifício de Jesus é a Páscoa definitiva. Em segundo lugar, os benefícios da Páscoa devem ser recebidos separadamente por aqueles em favor dos quais o sacrifício é oferecido. Um modo de fazer isso é comer o cordeiro sacrificial, que é o motivo pelo qual os cristãos se “alimentam dele pela fé” em suas reuniões de comunhão (cf. Jo 6.53-56). Outro é por meio de uma vida de sinceridade e verdade, com base na analogia dos pães asmos, isto é, não maculados (ICo 5.7-8). Por esses meios, os efeitos da Páscoa definitiva de Jesus estão continuamente disponíveis a todos os crentes.

i. A decisão da congregação (30.1-5). Um cabeçalho (v. 1) introduz os três temas centrais, de que todo o Israel deveria celebrar uma Páscoa no templo. Todo Israel é representado por Efraim e Manassés, as duas tribos principais do antigo reino de Israel. Embora os nomes das tribos do norte variem ao longo do

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capítulo, a ênfase na unidade é contínua (cf. v. 10-11, 18). Como se trata de um cabeçalho, as cartas (v. 1) são as mesmas mencionadas no versículo 6.

O primeiro movimento para a Páscoa é um convite emitido pelo rei e pela congregação (v. 2, 4). A congregação é especialmente importante na versão de Crônicas sobre Ezequias (ocorre nove vezes nesse cap. v. 2 ,4 ,1 3 ,1 7 ,2 3 ,2 4 ,2 4 , 25,25; cf. 29 .4 ,20,23,28,31,32; 31.18), e é um símbolo da unidade do povo. A congregação incluía o povo comum como também os líderes (cf. 1 Cr 13.1-2; Ne 8.2), embora sua característica mais significativa seja a de que o rei tomava “conselho” (v. 2, NRSV, RSV; “concordava”, REB, NEB, GNB) com a congrega­ção. Reis que consultaram o povo ao tomar decisões são invariavelmente apro­vados em Crônicas, em contraste com aqueles de estilo autocrático de liderança. Essa característica é um outro elo com Davi e Salomão (cf. lCr 13.1-5; 29.1,10,20, sobre Davi; 2Cr 1.3-5; 6.3,12-13 sobre Salomão; também especialmente Josafá, 2Cr 20.5,14,21).

A decisão de celebrar uma Páscoa no segundo mês (v. 2) está baseada em Números 9.9-13, que evitava que qualquer um que estivesse cerimonialmente impuro ou ausente no primeiro mês ficasse de fora. Essas razões são essencial­mente as mesmas que aparecem no versículo 3, salvo que a referência individual original é estendida agora à comunidade e o conceito de contaminação foi ampli­ado do contato físico por leigos à impureza cúltica por sacerdotes. Esse é um desenvolvimento notável na interpretação da Escritura mais antiga, ao envolver uma extensão da aplicação original e participação do povo em decisões sobre questões cúlticas.185 A proclamação (heb. qôl, v. 5) também está baseada no Pentateuco, embora também fosse um elemento da congregação de Esdras (Êx 36.6; Ed 10.7; cf. 2Cr24.9; 36.22; Ed 1.1).

Mesmo o grande número (v. 5) é evidência de um desejo de fazer o que fo i escrito nas Escrituras (NIV; “como prescrito”, NRSV, RSV; cf. REB, NEB). O contexto do versículo 5 sugere que esse número reflete a participação do povo de todo Israel, embora possa se referir à natureza centralizada da ocasião (cf. Dt 16.1-8). A descrição de Javé, no entanto, como Deus de Israel e do país que se estende de Berseba a Dã (cf. lC r 21.22) apóia o primeiro ponto de vista.

ii. Cartas de convite (30.6-12). A proclamação foi escrita (v. 6-9) e enviada por mensageiros (v. 6a) a “todo Israel e Judá” (REB, NEB, NRSV, RSV), quer dizer, para o remanescente das tribos do norte e também ao reino de Ezequias. Foram endereçadas aos Filhos de Israel (v. 6b), enfatizando mais o caráter reli­gioso de Israel do que o político. Suas circunstâncias políticas da época eram menos importantes do que seu status como povo de Deus.

185 Veja também M. Fishbane, Biblical Interpretation in Ancient Israel (Oxford: Clarendon Press, 1985), p. 154-159.

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Surpreendentemente, as cartas não mencionam a Páscoa, apesar de um convite para vir ao seu santuário (v. 8). Somente “ir à igreja”, mesmo em uma data especial, não era a coisa mais importante. Ao contrário, uma apelo foi feito para que o povo voltasse ao S e n h o r (v. 6, 9), quer dizer, entrasse em um novo relacionamento espiritual com Deus por meio da Páscoa. A mensagem inteira é um trocadilho com a palavra “voltar/retornar” (heb. shüb), que soa de forma muito parecida com a palavra para captores (heb. shôbim). “Voltar” é usada com várias nuanças diferentes. Quando Israel retornar a Deus em arrependi­mento (v. 6, 9), seus exilados retornarão fisicamente (voltarão) para a Terra Prometida (v. 9). Deus então não mais desviará seu rosto deles (v. 9), mas desviará, ao invés disso, sua ira feroz (v. 8), à medida que ele se volta para eles em compaixão (v. 6; cf. v. 8).

Três outras características se destacam nas cartas. A primeira é que as dificuldades presentes aconteceram porque seus pais e irmãos foram infiéis (v. 7,9, NIV, REB, NEB) a Deus e de dura cerviz, (v. 8, NIV, NRSV, RSV). Exatamente o mesmo foi dito aos sacerdotes e levitas no capítulo anterior (29.6), e a lingua­gem de ambas as passagens é tipicamente dada como um motivo pelo qual Israel foi para o exílio (cf. lC r 5.25; 9.1; 2Cr 28.19; 36.14). Isso leva a um segundo ponto, o de que alguns dos destinatários de Ezequias estão no exílio (v. 9) e outros são “remanescentes” no país (v. 6, NRSV). Esses últimos se tomaram um objeto de horror (v. 7, NIV, REB, NEB; heb. shammâ), um termo profético bem conhecido associado com o juízo do exílio (e.g. Jr25 .9 ,11,18;Mq6.16 ;cf. 2Cr 29.8). Embora essas descrições presumam a perda do reino do norte (cf. 2Rs 18.7-8), elas tam­bém são bem adequadas às condições dos leitores de Crônicas. Eles também eram um remanescente que precisava voltar para Deus e confiar em sua compai­xão. Em terceiro lugar, freqüentes citações de outras escrituras são evidentes, especialmente em relação ao caráter de Deus. Deus voltar-se para aqueles que se arrependem, por exemplo, encontra-se na oração dedicatória de Salomão (e.g. lRs 8.33-34; 2Cr 6.24-25; 7.14) e em Jeremias (Jr 3.22; 15.19; 31.18-19) e Zacarias (Zc 1.2-6). Que ele é misericordioso e compassivo (v. 9, NIV, REB, NEB) é uma das confissões de fé mais freqüentes do Antigo Testamento (e.g. Êx 34.6; SI 103.8; Ne 9.17,31), e que ele é o Deus de Abraão, Isaque e Israel (v. 6) lembra sua resposta às orações de Elias (lR s 18.36).

O cerne da mensagem, portanto, é um apelo para submeter-se ao S e n h o r

(v. 8, NVI, REB, NEB; “entregar-se”, JB, NRSV, RSV) e “adorá-lo” (v. 8, REB, NEB, GNB; servir, NVI, NRSV, RSV). O começo e o fim demandam o retomo de Israel, enfatizando que Deus prefere ver o seu povo face a face do que voltar suas costas a ele (cf. v. 8-9; 29.6). Aresposta foi, previsivelmente, mista, e muitos no norte pagão “riram e ridicularizaram” (v. 10, JB), mas outros foram receptivos (v. 11-12). Mais nortistas que o habitual responderam no espírito de 2Crônicas 7.14 e se humilharam (v. 11), enquanto no sul a mão de Deus produziu, inespe­radamente, um só coração (v. 12).

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d. Celebrando a Páscoa (30.13—31.1).i. Celebrando o festival (30.13-22). A festa dos Pães Asmos, que dura­

va uma semana (v. 13, 21) é uma das três “festas de peregrinos” tradicionais (REB, NEB; cf. Êx 23.14-17; Dt 16.16-17; lC r 8.13). Na Bíblia está sempre asso­ciada com a Páscoa, visto que essa última era celebrada no primeiro dia e os pães asmos sempre estavam no cardápio da refeição da páscoa. Como sempre, a Páscoa é o elemento dominante (v. 15-21). O festival como um todo possui as seguintes características.

(a) Números extraordinariamente grandes, especialmente muitos das tri­bos do norte (v. 18; cf. v. 13,17). O povo como um todo tinha claramente obede­cido às exigências da lei (v. 5), e refletia o desejo de Ezequias de que os represen­tantes de todo Israel estivessem presentes (cf. v. 1).

(b) Remoção do pecado e da impureza. Isso aconteceu em três estágios. O primeiro é a remoção dos altares que Acaz tinha instalado em Jerusalém, com o entulho sendo descartado no vale de Cedrom (v. 14; cf. 29.16). O segundo é quando o povo, especialmente os sacerdotes e levitas, se purificaram (v. 15; c f v. 17). Consagraram (“santificaram”, NRSV, RSV, JB) realmente significa fizeram- se santos”, i.e., separaram-se para Deus, e isso envolveu separação de todas as formas de impurezas (cf. lC r 15.12,14;2C r29.5,15; 31.18). O terceiro estágio é a oferta de sangue sacrificial, que era uma característica distintiva da Páscoa. A unção original das laterais e vigas (Êx 12.7,22-23) é substituída pela aspersão sobre o altar (v. 16), mas a função expiatória subjacente dessa ação continua a mesma (cf. Êx 12.13,23; Nm 28.22; Ed 6.21). Um problema especial surgiu com alguns dos nortistas que estavam cerimonialmente impuros. Como resultado, seus animais tiveram de ser mortos pelos levitas (v. 17) e Ezequias orou pelo seu perdão (v. 18-20). Ambas as ações têm grande importância. A primeira provocou uma mudança permanente na função dos levitas, visto que no tempo de Josias se esperava que os levitas abatessem todos os cordeiros (2Cr 35.5-6; cf. Ed 6.20), ao passo que anteriormente essa era a responsabilidade dos líderes das comuni­dades (cf. Êx 12.6, 21; Dt 16.5-6). A intercessão de Ezequias é uma das muitas orações importantes de Crônicas (cf. e.g. lCr4.9-10; 5.20; 2Cr 14.11; 33.13). Isso ilustra dois princípios importantes: que Deus honra os pedidos de oração ofere­cidos no espírito da oração dedicatória de Salomão (6.18-42; 7.12-16) e que a oração pode superar qualquer deficiência formal na prática religiosa. Ezequias ora pelo perdão (v. 18), literalmente, que Deus “fizesse expiação” durante o sacrifício do povo. A aceitação de Deus é indicada pelo fato de que ele ouviu e curou o povo, cumprindo sua promessa em 2Crônicas 7.14. A cura é mencionada especialmente em Crônicas apenas nestes dois versículos (porém cf. 2Cr 36.16). Embora esse versículo possa pressupor alguma aflição física, é mais provável que ele seja a resposta direta de Deus ao pedido por perdão. Essa cura é, portan­to, primariamente de natureza espiritual, como freqüentemente ocorre no Antigo Testamento (SI 41.4; Is 53.5; Jr30.17).

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(c) Louvor exultante. Com seus pecados e impurezas removidos, o povo sentiu “grande alegria” (v. 21, GNB) e louvou (v. 21-22). Essa é uma característica normal do culto em Crônicas, e a alegria freqüentemente segue sinais especiais da graça perdoadora de Deus (cf. lC r 12.40; 15.25; 29.22; 2Cr 29.30). De novo, os levitas têm um papel central (cf. v. 15-17), desta vez com sua música (v. 21; cf.29.25-27) e na apresentação de ofertas de comunhão (v. 22, NVI; c f 29.31-35; de acordo com NRSV, RSV, GNB, esses sacrifícios eram feitos pelo povo). Eles participaram ou com “instrumentos altos” (NRSV; cf. NIV nr., GNB nr.) ou, com uma leve mudança no texto, “com toda sua força” (JB; cf. REB, NEB). De qual­quer modo, o seu entusiasmo não estava em dúvida, nem sua “competência” (v. 22, NRSV, RSV, cf. GNB; boa disposição, NVI).

ii. Continuando a bênção (30.23—31.1). A cerimônia teve tanto êxito que se estendeu por mais uma semana, como na consagração do templo (v. 23; cf. 2Cr 7.9-10). A segunda semana continua na mesma linha que a primeira, embo­ra com duas variações. O grande número é aplicado mais à quantidade de ofertas do que ao tamanho da multidão (v. 24; cf. 29.32-25), e a nota de júbilo é acentu­ada (v. 23, 25, 26). O motivo dessa alegria mais profunda é que o povo tinha se dado conta de sua união (v. 25) e de fazer parte dos propósitos de Deus a longo prazo (v. 26). Estar na vontade de Deus sempre termina em alegria, como o próprio Jesus confirmou (Jo 15.9-11; Hb. 12.2).

O sentimento de propósito comum é particularmente impressionante, com toda a congregação decidindo continuar (v. 23). Uma indicação única da com­posição da congregação é dada no versículo 25, que menciona quatro partes constituintes, a saber, congregações separadas para Judá e para Israel (sobre a última, cf. 28.14), para sacerdotes e levitas e para “estrangeiros residentes” (REB, NEB). Esses últimos poderiam ser estrangeiro instalados em Israel pelos assírios (cf. GNB) ou um tipo antigo de prosélitos (Ackroyd). A primeira é uma interpre­tação particularmente atraente, pois acrescenta uma dimensão evangelística in­teressante à Páscoa, mas em todo caso, a presença de estrangeiros é outro exemplo de um retomo ao espírito da lei Mosaica (cf. Nm 9.14). Esse também é um dos exemplos mais abrangentes no Antigo Testamento de inclusão de não adoradores de Javé entre o povo de Deus, pois nem os nortistas nem os estran­geiros residentes teriam conhecimento muito preciso dos caminhos do S e n h o r .

Também é notável que eles parecem ser incluídos no culto de Israel antes de serem incorporados em suas estruturas políticas.

O fim da festa teve duas outras conseqüências. Primeiro, o povo foi aben­çoado pelos “sacerdotes levitas” (v. 27, JB).’86 A bênção era uma oração que

186 As EVV em geral seguem as VSS ao ler “sacerdotes e lev itas” , em bora o estilo deuteronôm ico do TM (cf. D t 17.9; 18.1; 27.9) seja contínuo nas seções que tratam dos lugares altos (31.1) e dos dízimos (31.4-8).

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Deus ouvira (cf. v. 20), confirmando o templo como uma genuína casa de oração. Ela também ilustra novamente o retomo de Israel aos princípios do Pentateuco (cf. Nm 6.22-27) e de Salomão (c f 2Cr 6.21,30,33). Em segundo lugar, opovo destruiu espontaneamente os centros de adoração pagãos no antigo reino do norte (Efraim e Manassés) como também em Judá (Judá e Benjamim). A ênfase anterior de Ezequias em remover a parafernália de adoração idólatra (cf. 29.15-19; 30.14; também 2Rs 18.22) agora se tomou um movimento popular. Enquanto que31.1 é vagamente baseado em 2Reis 18.4, os israelitas e não Ezequias se tomam o sujeito dos verbos. O mesmo interesse democrático foi notado na versão de Crônicas de Davi (cf. lCr 13.1-4; 15.25-28), e provavelmente a intenção em ambos os casos, foi de encorajar o povo dos dias do cronista a restabelecer os padrões fiéis do culto por si mesmos.

e. Reorganização dos dízimos e ofertas (31.2-21). A purificação do tem­plo por Ezequias (cap. 29) e a celebração da Páscoa (cap. 30) permitiram-lhe restabelecer o culto regular. Isso envolveu duas tarefas adicionais, reorganizar os sacerdotes e levitas (v. 2) e estabelecer um apoio financeiro adequado para o pessoal do templo e o sistema de ofertas (v. 4-19). A ênfase dominante do capítulo 31, no entanto, é na apresentação concreta de ofertas por parte do povo. Embora a liderança do rei fosse um estímulo importante, um sistema efeti­vo de adoração não era possível sem um pleno envolvimento popular.

O caráter aparentemente rotineiro desse capítulo é ilusório, pois ele lida com dois princípios da máxima importância. O primeiro é que o culto não pode ser deixado para “profissionais”. Esses têm certamente que cumprir seus papéis de­terminados por Deus, mas a participação direta do povo é igualmente crucial (cf. ICo 14.26). Por isso, não eram só os habitantes das cidades de Judá (v. 6) e de Jerusalém (v. 4) os que faziam suas contribuições, mas possivelmente também migrantes do norte (v. 5-6). No entanto, a característica mais distintiva do apoio do povo não é esse fato, mas sua generosidade. Eles ofertaram ricamente (v. 5, NRSV, RSV) e trouxeram em grande quantidade, um dízimo de tudo (v. 5), com suas dádivas formando pilhas (v. 6, 8-9). Como resultado, Judá desfrutou de uma dupla bênção: reconhecendo que o S e n h o r tinha abençoado o seu povo (v. 10), os líderes abençoaram ao S e n h o r e ao seu povo de Israel (v. 8).

O segundo princípio é o cuidado necessário para assegurar que o culto em Israel fosse realizado “decentemente e em ordem” (cf. ICo 14.40). O bom plane­jamento e a implementação de estruturas de apoio adequadas proporcionam um quadro no qual o culto sincero e expressivo pode acontecer. Ezequias portanto preparou depósitos para receber as dádivas, e foram designados vários oficiais para as coletar e distribuir (v. 11 -19). A característica fundamental desse trabalho administrativo é que foi fielmente realizado (v. 12,15; cf. v. 18). Apalavra hebraica (èmünâ) que traduz fielmente sempre é usada em Crônicas a respeito do cuidado dos levitas com questões financeiras (1 Cr 9.22,26,31; 2Cr 19.9; 34.12) e ilustra

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que as atitudes corretas são essenciais para fazer qualquer estrutura funcionar com eficácia. Nesse caso, a observância fiel dos levitas de seus deveres permitiu que o número máximo do povo se beneficiasse com as bênçãos de Deus (cf. Pv 28.20; M t25.21,23).

A bênção celestial que forma o clímax nesse capítulo tem várias marcas distintivas. Primeiramente, ela é o resultado da fidelidade de Ezequias aos princípio» estabelecidos por Davi e Salomão. Foram eles que originalmente organizaram as divisões de sacerdotes e levitas (v. 2; cf. 1 Cr 28.13,21; 2Cr 8.14), estabeleceram o padrão de culto sacrificial regular (v. 2-3; lC r 23.31; 2Cr 2.4; 8.13), assumiram u direção com generosidade (v. 3; lCr 29.2-5; 2Cr 7.5), e abençoaram o povo (v. 8; I Cr 16.2; 2Cr 6.3). Em segundo lugar, está associada com o compromisso sincero dc Ezequias para com a lei de Deus (v. 3-4,21). Em terceiro lugar, Deus abençoa o seu povo pela generosidade deles (cf. 1 Cr 29.14-16). Em quarto, Deus abençoa além da expectativa normal do seu povo (cf. lC r 13.14; 17.27). O sentimento de gratificação inesperada é repetido em outras passagens na Bíblia (e.g. Mt 14.20; 19.29; 2Co 9.8), como se esperaria da promessa do próprio Deus (Ml 3.8-10). A bênção dc Deus nunca é concedida sobre uma base de “toma lá dá cá”, como uma recompen­sa ou um direito, porque Deus nunca pode ser limitado por qualquer ação humana. A garantia real do amor transbordante de Deus é sua própria natureza.

i. Grande quantidade de dádivas (31.2-10). A primeira fase da restaura­ção do culto regular era atribuir os sacerdotes e levitas a seus turnos (v. 2). Isso representava um retomo ao sistema originalmente fixado por Davi ( lC r 28.13,21; cf. lC r 24.3; 26.1) e Salomão (2Cr 8.14), mas que tinha sido obviamente deixado de lado. A supervisão dos sacerdotes e levitas era no final das contas responsa­bilidade da casa davídica. Tudo era parte da tarefa contínua de construir a casa de Deus, que seria uma mera concha vazia se o edifício não fosse preenchido diariamente com o som de louvor.

Era dever dos sacerdotes apresentar holocaustos e “ofertas pacíficas” (v.2, RSV). Os primeiros basicamente representavam o culto ofertado completa­mente a Deus. As últimas eram caracterizadas principalmente por uma comu­nhão ou refeição comunitária, embora seja particularmente difícil de traduzir. É de muitas maneiras traduzida por ofertas de comunhão (NVI, GNB), “ofertas compartilhadas” (REB, NEB), “ofertas de bem-estar” (NRSV, ou “sacrifício de comunhão” (JB). A combinação desses dois tipos de sacrifício simbolizava a restauração com Deus e com os demais seres humanos.

Atarefados levitas era ministrar e cantar (v. 2; cf. lC r 16.4; 23.30-31; 2Cr8.14). A expressão hebraica em si é incomum, por duas razões. Primeiramente, o significado literal é que eles louvavam nas portas (NIV, REB). É mais provável que isso signifique “dentro” das portas (JB), e não “ministrar” nas portas (NEB, NRSV, RSV) o que envolve uma mudança na ordem das palavra. A segunda característica é a frase final, literalmente, “o acampamento do S e n h o r ” (NRSV,

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RSV, cf. JB, geralmente parafraseada nas EVV, como na morada do S en h o r (NIV) ou “as várias partes do Templo” (GNB; c f REB, NEB). Essa expressão pertence ao período da Tenda (cf. Nm 2.17; lC r 9.18), e, como em outros lugares em Crônicas, ilustra a fidelidade aos princípios Mosaicos (cf. e.g. 2Cr 4— 5).

O tema dos versículos 3-19 é que o apoio adequado era vital ao culto regular. Esse apoio foi provido primeiro pelo rei (v. 3) e em seguida pelo povo (v. 4-7). A generosidade de Ezequias reflete a de Davi (lC r 29.2-5), embora o padrão básico de apoio por parte do rei também apareça na visão de Ezequiel do templo restaurado (Ez 45.17,22; 46.2).

O padrão de ofertas diárias, semanais, mensais e anuais é freqüentemente repetido em Crônicas (v. 3; cf. lC r 23.31; 2Cr 2.4; 8.13; 13.11), e era claramente de grande importância. Ele indica que Deus deve ser adorado a todo momento, e que o culto não deve estar sujeito aos caprichos de circunstâncias e emo­ções humanas. A autoridade subjacente para isso estava escrita na Lei do S e n h o r (v . 3; cf. Nm 28— 29), uma frase que era freqüentemente citada no contexto da reforma do culto sacrificial (lC r6 .49; 16.40; 2Cr 8.13; 12.18).

Embora vários grupos do povo trouxessem suas próprias contribuições (v. 4-6), a identidade exata daqueles que contribuíram é controversa. Os habitan­tes de Jerusalém (v. 4) certamente estavam incluídos, como também os que viviam nas cidades de Judá (v. 6), mas quem eram os “israelitas” (v. 5-6, REB, NEB; “o povo de Israel”, NRSV, RSV) é incerto.187 O termo é freqüentemente aplicado a qualquer um que pertencia ao povo da aliança. Se for o caso aqui, aqueles no versículo 5 são presumivelmente os mesmos que os moradores de Jerusalém (como v. 4) e aqueles no versículo 6 são alguns ou todos os habitan­tes das cidades de Judá. Também é possível que o versículo 5 se refira aos representantes de ambos os lados da antiga divisão norte - sul, e o versículo 6, ao povo que havia se mudado para o sul a partir do antigo reino do norte.

A rapidez e o tamanho das ofertas são realçados. Assim que a ordem saiu, as contribuições fluíram “com fartura” (v. 5, NRSV, RSV). Eles trouxeram as primícias de “todo o produto da terra” (v. 5, cf. REB, NEB) e um dízimo de tudo (v. 5), empilhando suas dádivas em “pilhas e pilhas” (v. 6).188 As primícias eram prerrogativa dos sacerdotes (Nm 18.12-13) mas o dízimo, de colheitas e frutos (v.5) ou dos rebanhos (v. 6), era apresentado aos levitas (Nm 18.21; cf. Lv 27.30-33). O dízimo das coisas que foram consagradas (v. 6) provavelmente se refere às dádivas feitas pelos levitas aos sacerdotes daquilo que eles mesmos tinham

187 O heb. tem bl'nê yisra’el em ambos os versículos, embora a NIV traduza-os de maneira diferente e GNB parafraseie o v. 6. A proposta de omitir “e Judá” (v. 6; W illiamson, Curtis and M adsen, etc.) não possui apoio tex tual e p ressupõe que “Israe lita” tenha o m esm o significado que no v. 5.

188 A repetição em heb. [como aqui] de “pilhas” intensifica a expressão ao mais alto grau (cf. GK #123e; tam bém Ex 8.10 [TM] = 8.14 [EVV], em bora este versícu lo tenha uma palavra diferente para “pilhas”).

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recebido. “Coisas santas”, que pode se referir a vários tipos de ofertas, são dizimadas desse modo em Números 18.32.189 Se esse ponto de vista estiver correto, alguns levitas em seus povoados estão incluídos entre os habitantes das cidades de Judá (v. 6; cf. lC r 6.55-60,65; 9.14-16).

Todas as dádivas foram consideradas no final das contas como dedicadas ou consagradas ao S e n h o r e não aos demais seres humanos (v. 6). Esse com­promisso espiritual é a explicação real da generosidade do povo, além do fato de que os sacerdotes se consagravam à Lei de Deus (v. 4). Essa última expressão é única, e na verdade significa se apegar com firmeza à palavra de Deus, que nesse contexto aplica-se particularmente ao tema de culto (cf. v. 2-3). Tal devoção teria sido um modelo útil para os leitores de Crônicas, que tendiam a negligenciar as necessidades do culto no templo, especialmente os dízimos para os levitas (Ne10.32-39; 13.10-13; Ml 3.8-9; cf. Dt 12.19; 14.27).

A dedicação do povo surpreendeu até mesmo Ezequias (v. 9), que desco­briu pelo sumo sacerdote que os sacerdotes e levitas tinham sido abençoados com mais que o suficiente. O sumo sacerdote, no entanto, viu isso como evidência da atuação de Deus. Deus tipicamente provê além da expectativa humana (cf. SI 23.6; lC r 13.14), pois a generosidade imerecida está no coração do evangelho (Jo 10.10; 2Co 9.15). O fato de que sobra uma grande quantidade (v. 10) é uma antecipação interessante da alimentação dos cinco e quatro mil por Jesus (Mt 14.20; 15.37; etc.).

O testemunho do sumo sacerdote (v. 10) resume o capítulo inteiro, e ao fazer isso ecoa outras partes das Escrituras. Atos de dádivas sacrificiais para a Tenda (Êx 36.2-7) e para o templo (lC r 29.6-9; 2Cr 24.8-12) são recordados, como é a explicação de Davi de que todo dom humano é somente uma resposta ao dom maior de Deus (lC r 29.16). Subjacente a todos esses exemplos está o princípio mais básico de adoração de que os homens e mulheres só podem dar a Deus porque ele deu antes muito mais a eles (cf. lJo 4.19). Isso se aplica as ofertas físicas e ao louvor e benção, pois os israelitas louvaram e bendisseram ao S enhor (v. 8) apenas porque ele tinha primeiro abençoado seu povo (v. 10).

Esse Azarias, o sumo sacerdote, é, desconhecido fora do versículo 13, embora o nome fosse comum em sua família (cf. lC r 6.9-14), que remontava a Zadoque no tempo de Davi e Salomão. Sobre o ato sacerdotal do rei de abençoar o povo, compare os exemplos de Davi (lC r 16.2) e Salomão (2Cr 6.3).

ii. Distribuição fie l (31.11-19). As dádivas são distribuídas às famílias sacerdotal e levítica em várias fases.

(a) Elas foram colocadas primeiro nos depósitos do templo (v. 11-13). Esses ficavam situados ao redor do edifício principal (cf. 1 Cr 28.11) ou próximo às portas

189 Esta interpretação também evita a necessidade de omitir “dízimo”, como a RSV, Rudolph, etc.

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(cf. lCr9.26; 26.15,17; Ne 12.25), onde eles eram supervisionados naturalmente pelos porteiros (lC r 9.26). Uma distinção parece ser feita entre os vários tipos de dádivas, os dízimos para os levitas e as contribuições e coisas dedicadas ou consagradas para os sacerdotes (v. 12). As contribuições parecem ser o mesmo que as primícias (v. 5). A responsabilidade geral é do sacerdote, aqui chamado de chefe da Casa de Deus (v. 13; cf. v. 10; também lCr 9.11 ;2Cr 35.8; Ne 11.11).

(b) As ofertas eram então distribuídas, primeiro para os sacerdotes que vivia em cidades periféricas, cujos nomes aparentemente não foram registrados nas listas genealógicas (v. 14-15). O porteiro da Porta Oriental parece ter sido o porteiro sênior (cf. lC r 9.18; 26.14). As ofertas do povo são ofertas voluntárias (v. 14), quer dizer, dadas a mais e acima do que era requerido de fato pela lei.

(c) Três outros grupos do povo, cujos nomes foram listados em registros genealógicos, então receberam ofertas (v. 16-19). Primeiro os homens que exe­cutavam deveres regulares no templo (v. 16), em seguida as famílias sacerdotais e levíticas que moravam em Jerusalém (v. 17-18) e finalmente as famílias sacerdo­tais fora de Jerusalém (v. 19). Essas últimas eram as contrapartes registradas daquelas mencionadas nos versículos 14-15. Infelizmente não há detalhes mais completos, mas duas ênfases se sobressaem. Uma é a totalidade da obra. Nin­guém foi omitido, nem os mais jovens (v. 16, 18), nem aqueles que viviam nos campos (v. 15, 19) e nem mesmo os que não foram registrados (v. 15). A outra ênfase é a fidelidade daqueles que deram e receberam (v. 15,18). Isso incluiu até mesmo a consagração fiel pelos sacerdotes (v. 18), em nítido contraste com sua atitude casual anterior (cf. 29.5,34).

Só é possível conjecturar o que está por trás das idades reais dos envolvi­dos. Talvez crianças começassem a ser separadas para o sacerdócio já na idade de três anos (v. 16), enquanto os levitas assumiam todas as responsabilidades com a idade de vinte anos (v. 17). Esse último número varia ao longo dos tempos do Antigo Testamento (cf. Nm4.3; 8.24; 1& 23 .3 ,24), presumivelmente por causa das realidades da provisão de trabalho.

Quanto tempo essas atividades levaram não está registrado. A coleta foi completada em cinco meses (v. 7), e, embora possa se pressupor que a distribui­ção inicial tenha sido realizada rapidamente, o cronista provavelmente pretende à luz do versículo 2 dar a impressão de uma prática mais habitual do que única. Certamente, em Israel como também na igreja, a liderança ministerial adequada não pode ser sustentada sem o apoio estruturado regular do povo, com o dízimo como uma exigência mínima (cf. Mt 23.23).

iii. A prosperidade de Ezequias (31.20-21). Esse resumo dos capítulos 29— 31 está vagamente baseado em 2Reis 18.5-7a. Todo relato da restauração do culto no templo por Ezequias seguiu a estrutura básica de 2Reis 18. lb-7a, no que o cronista inseriu extensos acréscimos. No entanto, até mesmo passagens para­lelas como essas, revelam o estilo e vocabulário distintos do cronista. Uma

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ênfase característica é que em várias fases é feita uma observação de que a obra no templo foi completada adequadamente e seus serviços restaurados (cf. 2Cr 7.11; 8.16; 24.13-14; 29.35). Sem dúvida o autor tinha em mente o atraso quase fatal na construção do segundo templo (Ed 3.1—6.22).

Ezequias terminou sua tarefa porque ele buscou a Deus de todo coração (v. 21). Nisto, ele atendeu ao conselho de Davi (cf. 2Cr 22.19; 28.9) e seguiu o padrão de outros reis (cf. 2Cr 15.17; 22.9; cf. 2Cr 11.16; 19.3). Buscar a Deus desse modo inevitavelmente significava dar ao culto no templo a devida prioridade, mas isso também afetava toda sua vida. Como resultado, Ezequias prosperou, como prosperaram vários de seus antecessores.190 Embora o caminho para a prosperidade envolvesse Ezequias em decepção (2Cr 30.10), crise severa (32.1- 23), e aceitação da realidade do seu pecado (32.25-26), Deus nunca deixou de abençoar aos que olham para ele (cf. Sl. 1.1-3; 32.1-2; M t5.3-12; 19.29).

iv. Deus salva Judá pela fé de Ezequias (32.1-33)“Assim, livrou o S e n h o r a Ezequias” (32.22).32.1 - c f 2Reis 18.13; Isaías 36.132.9-10- c f 2Reis 18.17-19; Isaías 36.2-432.12-c f. 2Reis 18.22;Isaías36.732.13-14-c f. 2Reis 18.35; Isaías 36.2032.15 -c f. 2Reis 18.29;Isaías 36.143 2 .1 6 -c / 2Reis 18.27-28a; Isaías 36.12-13a32.17-c f. 2Reis 18.33,35;Isaías 36.18,2032.18-c f. 2Reis 18.28a;Isaías36.13a3 2 .19 -c /2R eis 19.18; Isaías 37.1932.20-c f. 2Reis 19.15a; Isaías 37.1532.21 -c f. 2Reis 19.35-37; Isaías 37.36-3832.24- c f 2Reis 20.1-2; Isaías 38.1-232.32-33-c f. 2Reis 20.20-21

Os esforços de Ezequias para restabelecer o culto fiel (caps. 29— 31) for­mam o pano de fundo para a versão de Crônicas da confrontação de Ezequias com Senaqueribe da Assíria (v. 1-23). Embora esse fosse um dos eventos mais importantes na história da monarquia (cf. 2Rs 18.13— 19.37), o que Crônicas descreve não é nenhuma batalha militar comum. Nem o exército assírio nem o israelita toma qualquer parte no que é efetivamente uma guerra de palavras. Uma fala de Ezequias (v. 6b-8) é seguida por ameaças verbais e escritas por oficiais assírios (v. 9-19). Ezequias e o profeta Isaías então se voltam à oração (v. 20), e só depois disso acontece qualquer ação (v. 21).

190 Cf. lC r 22.11, 13; 29.23; 2C r 7.11; 13.12; 14.7; 18.11, 14; 20.20; 24.20; 32.30.

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O formato é o resultado do modo incomum pelo qual o cronista trata seu material fonte. Ele claramente espera que o leitor esteja familiarizado com 2Reis 18— 20, mas, ao passo que o cronista regularmente adapta seções anteriores da Escritura mais antiga, aqui tudo foi simplificado e resumido para concen- trar-se no tema da supremacia de Javé. O número de falas foi drasticamente reduzido, uma profecia importante é omitida (2Rs 19.20-34), e o progresso intrincado de negociações foi posto de lado. Até mesmo os eventos históri­cos são de importância secundária, e o problema bem conhecido de 2Reis 18— 19 de tentar harmonizar duas versões contrastantes da invasão de Senaqueribe não ocorrem. O cronista simplesmente considera uma única campanha assíria, que deve ser datada em 701 a.C.

A questão fundamental é se Javé pode salvar ou livrar o seu povo. A palavra hebraica subjacente (hatstsíl) é mencionada oito vezes (v. 10-17), com os assírios constantemente desafiando qualquer divindade a se opor o poder aparentemente superior do exército assírio. Presume-se que Javé deva ser um deus como qualquer outro, e os assírios tentam abalar a confiança dos israelitas (v. 10) lançando dúvida sobre sua eficácia. A virada acontece quando os líderes de Judá oram (v. 20). Javé ouve o seu apelo desesperado e salva seu povo (v. 22), com Ezequias sendo um simples um espectador. E portanto Javé quem realmente governa em Israel, e o capítulo procura estimular a fé no Deus de Israel, e não a admiração pelo rei.

Essa mensagem não é nova em Crônicas, e claramente precisava ser repe­tida no que dizia respeito aos leitores do cronista (cf. 2Cr 14.9-15; 20.1-30). Embo­ra não estivessem sofrendo ameaça militar, eles precisavam desesperadamente lembrar que Deus podia livrá-los da dominação estrangeira. Uma coisa era acei­tar em termos gerais que Deus estava no controle, e outra bem diferente acredi­tar que ele pudesse intervir de fato em suas vidas como o seu Salvador. Os autores do Novo Testamento estavam igualmente convencidos de que Deus era Senhor e Salvador, e que era essencial estar comprometido com ambos os aspec­tos do caráter de Deus. Perder de vista um é ficar cego para ambos. Fé em Deus significava confiar nele para preservá-los no reino como também levá-los a ele. Paulo, por exemplo, acreditava que, pela oração, Deus continuaria a libertá-lo porque ele já o tinha feito no passado (2Co 1.8-11). Embora ser um cristão signi­fique freqüentemente sofrimento e perseguição, Deus ainda trabalha pelo bem em toda experiência de vida, e o Novo Testamento tem muitos testemunhos do poder salvador de Deus (Atos 12.6-19; 16.16-40; 27.9— 28.10; Rm 8.28,35—39).

a. Ezequias se defende (32.1-8). A expressão “destas coisas” (v. 1, NRSV, RSV) refere-se às reformas do templo de Ezequias (caps. 29— 31), que são caracte­rizadas como “atos de fidelidade” (v. 1,NRSV,RSV;c/“fielmente”, 31.12,15,18).0 fato de que essas coisas são seguidas pelo plano de Senaqueribe (705-689 a.C.) de conquistar Judá (v. 1) destaca o contraste entre os dois episódios. Onde Ezequias

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tinha agido fielmente, o rei assírio não tinha consideração alguma por Javé, e o conflito foi inevitável. Esses eventos também são um lembrete de que até mesmo para os líderes que confiam em Deus, as coisas nem sempre ocorrem suavemente, e é seguramente significativo que Asa e Josafá como também Ezequias sofreram atos de agressão estrangeira depois de realizar atos de devoção (cf. 2Cr 14.9-11;20.1 -13; note a repetição de depois disso ou destas coisas de 20.1). A autenticidade da fé emerge freqüentemente apenas na própria reação à dificuldade.

A invasão de Senaqueribe é relatada em detalhes em registros assírios existentes, onde ele reivindicou ter capturado quarenta e seis cidades de Judá, devastando praticamente todo Judá exceto Jerusalém (cf. 2Rs 18.13). Seu pensa­mento sobre a conquista (v. 1) não se refere a intenções não cumpridas, mas antes ao fato de que isso era o que ele tinha determinado fazer. A frase (lit.) “voltou sua face para a guerra contra Jerusalém” (v. 2) marca o auge de sua campanha, embora também forme um contraste fascinante com a determinação de Jesus quando ele “voltou sua face para ir a Jerusalém” (Lc 9.51, NRSV, RSV) com um propósito totalmente diferente.

A reação de Ezequias, como a de reis sábios antes dele, foi consultar outras pessoas (cf. e.g lC r 13.1; 2Cr 20.21). Como resultado, eles decidiram por uma resposta de duas vias. A primeira envolvia três passos práticos, evitar que os assírios ganhassem acesso ao suprimento de água de Jerusalém (v. 3b-4; cf. v. 30), consertar os muros da cidade (v. 5a), e reorganizar e re-equipar o exército (v. 5b-6a). O suprimento de água de Jerusalém era vulnerável a qualquer ataque, visto ser totalmente dependente de duas fontes, Giom no vale de Cedrom (v. 30) e En-Rogel pouco mais de três quilômetros ao sul. O ribeiro que corria pelo meio da terra (v.4) provavelmente é um curso d’água local (cf. JB) que abastece parte da cidade. A menção do ribeiro e das fontes pode bem ser uma dupla alusão, à provisão espe­cial de Deus para Jerusalém (cf. SI 46.4) e à ostentação de Senaqueribe de ter pessoalmente secado os ribeiros de água do Egito (2Rs 19.24; Is 37.25). A referên­cia aos reis (plural) da Assíria (v. 4) também sugere que Senaqueribe era visto como um típico invasor estrangeiro e um inimigo de Deus. Parte de um muro (v. 5) que pode bem ter sido de Ezequias foi desenterrado na colina ocidental. Com sete metros de largura, é o muro da Idade do Ferro mais largo conhecido na Palestina, e presumivelmente foi projetado para resistir aos poderosos aríetes assírios. Ele foi construído com material de casas demolidas e parece ter incluído um reservató­rio de água (cf. Is 22.8-11), possivelmente trazida de Giom pelo famoso túnel de Ezequias.191 O “Milo” (v. 5, REB, NEB, etc.; terraços de apoio, NTV) fazia parte da cidade velha de Davi, e a menção de consertos nesta área proporciona um elo adicional com Davi e Salomão (lC r 11.8; lRs 11.27).

191 Cf. N. Avigad, “E xcavations in the Jew ish Q uarter o f the O ld C ity o f Jerusalém , 1970” , p. 129-140; A. Mazar, Archaeology o f the Lancl o f the Bible (New York; Doubleday, 1990), p. 420.

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A segunda resposta de Ezequias foi de encorajar os oficiais de guerra (v. 6) a não terem medo dos invasores, mas, confiar em Deus (v. 7-8). Ele compartilhava claramente do ponto de vista de Isaías de que o perigo de confiar somente em defesas militares era muito real (Is 22.8-11). A qualidade da fé é marcada pela extensão a atitude de uma pessoa está focada em Deus. Os recursos físicos podem ser de ajuda real onde eles estão disponíveis, mas eles não substituem a confiança em Deus. A mensagem de Ezequias concentra-se na rejeição do medo e na aceita­ção da diferença entre a força humana e a celestial. Sua resposta ao poder do medo é repetir uma série de quatro imperativos proferidos previamente por Moisés, Josué (Dt 31.7-8, 23; Js 1.6-9), e Davi (lC r 22.13, 28.20), a saber, Sede fortes e corajosos, não temais nem vos assusteis (v. 7). O motivo de sua confiança é que ele está totalmente convencido da supremacia de seu Deus em qualquer situação. Ele apela novamente às Escrituras para apoiar o que diz, especialmente os profetas, embora a frase fundamental, “há um conosco maior do que o que está com ele” (v. 7, NRSV), esteja baseada em 2Reis 6.16. Como o versículo 8 deixa claro, a questão não é simplesmente quem tem o maior poder (NIV, GNB) ou número (REB, NEB), mas qual Deus é intrinsecamente maior. De fato, Senaqueribe não tem nenhum apoio divino, porque ele confia completamente em um braço de carne (v. 8; cf. Jr 17.5), quer dizer, mera força humana. Israel, por outro lado, pode contar com o Deus que está conosco (cf. Is 7.14; 31.1, 3) e que está pronto a nos ajudar (cf. lCr 12.18; 15.26; 2Cr 14.10; contraste 2Cr 28.23).

Não é surpreendente que o povo “fosse encorajado pelas” (NRSV), literal­mente, “se apoiasse nas”, palavras de Ezequias (cf. 2r 18.13, onde a mesma palavra reaparece). Muitos claramente tinham medo e tentaram confiar nas defesas que tinham construído. O fato de que eles encontraram os assírios perto de um aque- duto (2r 18.17-18) sugere que eles tiveram que suportar novas ameaças mesmo enquanto trabalhavam no abastecimento de água (2Rs 18.19-37; 2Cr 32.9-15). No entanto, sob a liderança de Ezequias a unidade e a fé aumentaram. Eles se uniram como um “povo muito grande” (v. 4, NRSV, RSV) para ajudar o rei (v. 3) antes de reunirem-se para o seu encorajamento em uma das praças da cidade (v. 5; cf. 29.4).

b. Senaqueribe ataca (32.9-19). Afala dos oficiais assírios (v. 10-15) é na realidade uma combinação magistral de vários discursos (2Rs 18.10-25, 27-35;19.9-13). A variedade de argumentos nas falas originais foi reduzida a um único tema, cuja importância é destacada mais adiante pelos resumos editoriais do próprio cronista (v. 16,18-19). Além disso, Crônicas proporcionou um currículo de várias cartas enviadas a Ezequias por Senaqueribe (v. 17), ainda que em Reis somente uma seja mencionada sem qualquer indicação precisa quanto ao seu conteúdo (2Rs 19.14-19).

Não está completamente claro a partir apenas de Crônicas onde o exército assírio se acampou. O “grande exército” (2Rs 18.17) que acompanhou os oficiais a Jerusalém foi omitido, criando a possível impressão de que as forças assírias

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permaneceram em Laquis (v, 9) e que nenhum assédio aconteceu a Jerusalém (Childs, Williamson; porém cf. v. 10).192 No entanto, visto que está claro em outra passagem do capítulo que o cronista pressupõe que seus leitores conheçam a versão detalhada dos eventos em Reis, seria estranho se o mesmo não fosse verdade aqui.

A questão central é se Javé pode salvar seu povo em sua hora de necessi­dade ou se ele é tão ineficaz quanto os deuses dos oponentes, anteriormente derrotados pela Assíria. A frase fundamental, livrar (...) de minha mão, baseada em 2Reis 18.30, 32, 35, é constantemente repetida como um desafio direto à confiança do povo (v. 10) no S e n h o r . O objetivo de Senaqueribe era minar o objeto da confiança de Israel, o que é tanto mais interessante pelo fato de que confiança é também um tema comum em inscrições históricas assírias. Os assírios empregam dois argumentos principais. O primeiro é que Ezequias deve ter desa­gradado Javé ao destruir muitos de seus altares (v. 11-12). O conhecimento detalhado das questões internas de outros países tem paralelo freqüente em cartas assírias contemporâneas. Os assírios estão claramente informados da política de Ezequias de centralizar o culto muito tempo antes de Josias (2Cr 34— 36), embora a postura neutra dos assírios indique que isso não fosse visto como um ato antiassírio. Ainda mais importante do ponto de vista do cronista era que isso resultou em oposição à fidelidade de Ezequias a Deus (caps. 29— 31).

A segunda estratégia dos assírios é apelar à história (v. 13-15). As vitórias dos antecessores de Senaqueribe (meus pais, v. 13-15) mostravam quão impo­tentes eram os deuses dos seus inimigos derrotados. Senaqueribe, por outro lado, ostenta que suas realizações não foram ganhas pelas divindades da Assíria mas por minha mão (v. 13-15, 17). O cronista nesse ponto resumiu muito sua fonte, omitindo não só os nomes dos deuses estrangeiros (2Rs 18.34; 19.12), mas também uma oferta de paz e fartura na Assíria para qualquer um que quises­se se render (2Rs 18.31-32; c f a menção de fom e e sede no v. 11). Tudo isso, porém, apenas apóia sua acusação de que Ezequias está enganando e iludindo o povo por ignorar a realidade (v. 11,15).

Os resumos editoriais de Crônicas confirmam que essas acusações eram repetidas (v. 16) e proferidas em hebraico (v. 18; lit. “judeu”). Essa é a única referência direta no Antigo Testamento ao idioma hebraico (porém cf. Is 19.18), que é usado em lugar do aramaico que é o idioma internacional (2Rs 18.26) para atemorizar (v. 18) o povo. A infâmia final, no entanto, é que Javé seja colocado no mesmo nível de todas as outras divindades. O pluralismo religioso é simples­mente incompatível com a fé bíblica, visto que outros deuses são somente “obra das mãos dos homens” (v. 19, NRSV). Os assírios tinham feito a Javé o insulto máximo (v. 17); o termo hebraico correspondente é central à história de Davi e

1,2 A traduçao “fortaleza de Jerusalém” (v. 10, Myers) no lugar do usual “sob sitiamento” (EVV) é mais improvável, visto que o heb. masor jamais é aplicado a Jerusalém dessa maneira.

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Golias(lSm 17.10,25,26,36,45) como também ao relato de Reis (2Rs 19.4,16,22, 23). Ironicamente, o destino do exército de Senaqueribe foi da mesma maneira tão súbito e completo quanto o do antigo herói filisteu (v. 21).

c. O S e n h o r salva (32.20-23). A oração de Ezequias e Isaías (v. 20) e a resposta de Deus (v. 21) são muito mais curtas que em 2Reis 19 que inclui o conteúdo da oração de Ezequias e a predição de Isaías da queda de Senaqueribe (2Rs 19.15-34; a oração de Isaías somente insinuada em 2Rs 19.4). A ênfase do Cronista está na fidelidade de Deus ao responder a oração, como sendo mais um exemplo da eficácia dos princípios de 2Cr 6— 7 (cf. v. 24 e e.g. 2Cr 20.4-12; 30.18- 20; 33.13). A palavra céu lembra particularmente a linguagem da oração de Salomão, e as circunstâncias de 2Crônicas 6.24-25.

A resposta imediata de Deus é enviar um anjo (v. 21). Embora antes em Crônicas um anjo agisse como o agente do juízo de Deus (lC r 21.12-30), esse aqui desempenha a função igualmente importante de ser enviado por Deus como um resgatador (cf. SI 34.7; 91.11; Mt 4.6, etc.). Alguns dos detalhes da calamidade da Assíria são omitidos em relação a Reis, especialmente o número de baixas que causaram aos leitores modernos (e antigos?) tanta dificuldade (2Rs 19.35-37). Na verdade, Crônicas concentra-se no elo entre a oração e a resposta. Essa última tem em duas partes, visto que, embora o exército de Senaqueribe retomasse para casa quase imediatamente, a morte de Senaqueribe vinte anos depois, em 681 a.C., também faça parte da resposta de Deus. Procurar respostas para a oração somente a curto prazo freqüentemente é não entender o que Deus está fazendo. O assassi­nato de Senaqueribe é confirmado em inscrições babilônicas e assírias, embora só um filho seja mencionado nelas pelo nome.193 Aparte de Deus na morte do rei também é indicada pelo uso de várias frases dos Salmos. Lá os inimigos de Deus são repelidos por anjos e “envergonhados” (v. 21, RSV; desgraça, NTV, NRSV, etc.; cf. especialmente SI 34.4-6; 35.4-6), e Deus ridiculariza os governantes que se opõem a ele e a seu servo (v. 16; cf. SI 2.2).

Crônicas confirma que Deus livrou/salvou seu povo (v. 22). A salvação em Crônicas normalmente tem o sentido de vitória militar, e é muito freqüentemente empregada de uma maneira sintetizadora (lC r 11.14; 18.6, 13; 2Cr 20.9). Ela é também mais amplamente usada na Bíblia como uma palavra genérica para a intervenção de Deus em uma variedade de circunstâncias (e.g. At 27.20; 2Co1.10-11). Tais experiências também são freqüentemente coletivas tanto no Novo Testamento como no Antigo (e.g. Atos 2.47; ICo 1.18; 2Co 2.15). A salvação de Deus também é específica: das mãos de Senaqueribe (v. 22) contrasta direta­mente com das minhas mãos (v. 13-15). “Os seus inimigos” (v. 22) foi acrescen­

193 Veja especialmente A N ET , p. 289; A. K. Grayson, Assyrian and Babylonian Chronicles (L ocust V alley: A ugustin , 1975), p. 81 .34-35 ; S. Parpo la, in B. A lste r (ed .), D eath in M esopotam ia (Copenhagen: A kadem isk Forlag, 1980), p. 171-182.

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tado na maior parte das EVV, mas, embora essa seja uma sugestão razoável, o TM simplesmente tem “todos os (outros)” (cf. NIV). A menção de repouso (NIV nr.) em toda parte segue a LXX (v. 22, NRSV, RSV; “paz”, GNB, JB), e é coerente com lCrônicas 22.9; 2Crônicas 14.5-7, etc., embora o TM na verdade tenha “guiou, levou.” O reconhecimento estrangeiro de Ezequias é o modo típico do cronista de expressar as conseqüências da vitória dada por Deus (cf. lC r 14.17; 2Cr 9.23-24; 17.10-11; 20.29; 26.8).

d. Os sucessos e fracassos de Ezequias (32.24-33). Essa parte final com­parativamente longa sobre o reinado de Ezequias lista várias outras realizações, e não evita causar-lhe embaraços. Ela tem quatro breves parágrafos.

i. As orações de Ezequias são respondidas (32.24-26). Depois do suces­so da oração de Ezequias no versículo 20, dois exemplos adicionais se combi­nam para ilustrar modos diferentes nos quais Deus responde à oração. Eles são tomados de dois incidentes separados em 2Reis 20.1-19, ambos provavelmente datam de 705-701 a.C., quer dizer, antes dos eventos dos versículos 1-23. O primeiro diz respeito a uma doença de grave e não identificada da qual Ezequias foi milagrosa e repentinamente curado (v. 24; cf. 2Rs 20.1 -11; Is 38.1 -22). Esse é um caso de milagre de cura comparativamente raro no Antigo Testamento, em­bora como aqui tais eventos freqüentemente envolvam profetas (cf. e.g. Êx 15.22- 26; Nm 21.7-9; lRs 17.17-24; 2Rs 4.8-41). O sinal se refere ao movimento de uma sombra contrário às leis da física (2Rs 20.8-11; Is 38.7-8,22). O segundo inciden­te diz respeito a uma oração de arrependimento e não de cura (v. 25-26; cf. 2Rs20.12-19; Is 39.1-8). Ezequias tinha incorrido na ira de Deus ao fazer um convite tolo aos enviados babilônicos (v. 25, 26; cf. v. 31). O orgulho estava na raiz do seu problema, mas embora a expressão hebraica, literalmente, “seu coração se exaltou”, também fosse aplicada a Uzias (cf. 2Cr 26.16), a reação de Ezequias foi exatamente oposta. Ele e o povo “se humilharam” (GNB; cf. NRSV, RSV; se arrependeram, NIV), um termo que é quase o tema central de 2Crônicas 29— 36.194 Isso foi suficiente para evitar a ira de Deus, ainda que os motivos de Ezequias não fossem completamente puros (2Rs 20.19; Is 38.8). O castigo foi adiado para mais que um século depois (2Rs 20.16-18; Is 38.5-7).

Ambos os incidentes ilustram a fidelidade de Deus à sua promessa sobre a oração (2Cr 7.14; cf. v. 20-21). E ainda mais, Crônicas parece enfatizar a dádiva de cura de Deus a Ezequias como também a do perdão. Ezequias já tinha tido uma oração respondida nesta área (2Cr 30.18-20), e a inclusão do versículo 24 pelo cronista pode ter sido incentivada por uma promessa adicio­nal de cura em 2Reis 20.5.

1,4 Veja 2Cr 30.11; 33.12, 23; 34.27; 36.12; cf. tam bém 2Cr 7.14; 12.6, 7, 12.

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ii. A riqueza de Ezequias (32.27-30a). Riquezas e honra (heb. ‘õsher wekãbôd; “riqueza e fama”, REB, NEB) são em geral combinadas em Crônicas, quase invariavelmente como sinais visíveis da benção celestial, como no caso de Davi (1 Cr 29.28), Salomão (2Cr 1.11 -12; 9.22; cf. lRs 3.13) e Josafá (2Cr 17.5;18.1). Porém, porque elas são qualidades propriamente divinas (lC r 29.12), elas não devem ser consideradas como direitos mas como algo dado por Deus (v. 29; cf. Ec 6.2; Pv 22.4). Tais dons são freqüentemente em outras passagens unidos ao dom da sabedoria (Pv 3.16; 8.18). As riquezas de Ezequias incluíam vários tipos de preciosidades (v. 27; “objetos caros”, NRSV), edifícios (v. 28), grandes rebanhos (v. 29), projetos de abastecimento de água (v. 30a). O último claramen­te inclui o túnel de Siloé, especialmente já que manancial (heb. môtsã’) também é encontrado na inscrição do túnel.195 Essa obra certamente tem ligação com as dos versículos 3-4, e provavelmente também com a construção de um novo muro (v. 5), e tudo estava associado com um aumento na população de Jerusa­lém sob o reinado de Ezequias e uma expansão para o lado oeste da cidade.

iii. Os êxitos e fracassos de Ezequias (32.30b-31). Ter êxito é a mesma palavra em hebraico que as EVV normalmente traduzem por “prosperou” em31.21 (veja comentário ali para outras referências). Aqui, porém, ela tanto resume os versículos 27-30a, quanto faz um contraste com o incidente dos enviados babilônicos (v. 31; embaixadores, GNB). Embora esse último tema tenha sido mencionado nos versículos 25-26, sua interpretação agora é levada mais adian­te. Deus deixou-o implica juízo divino, como é normal quando Deus é o sujeito do verbo hebraico ‘ãzab (cf. 2Cr 12.5; 15.2; 24.20, onde é traduzido freqüentemente por “abandonar”). Isso é confirmado pela menção da ira de Deus no versículo 25, embora os casos de Davi (lC r 21.7) e Roboão (2Cr 12.5) mostrem que o juízo de Deus não era nem irrevogável nem permanente. A referência ao teste de Deus (v. 31) também implica um grau de abertura sobre esse juízo. Quando Deus quer saber tudo que estava em seu coração, isso não significa que Deus seja igno­rante, porque ele conhece cada coração (lC r 29.17; 2Cr 6.30; SI 94.11). Além disso, ele deseja “tornar algo conhecido” (cf. Gn 18.21; Dt 8.2), quer dizer, dar ao povo uma oportunidade de mostrar arrependimento sincero. Deus prova para depurar, estimular o arrependimento e aprofundar a fé (cf. Gn 22.1; Ex 20.20; Dt 8.16). Esse objetivo positivo separa a prova de Deus das tentações de Satanás, pois o diabo apenas incita (lC r 21.1; Jó 2.3) para devorar e destruir (Mt 4.1-10; lPe 5.8). O propósito de Deus também deve ser distinguido da curiosidade dos babilônios, que só foram atraídos pelo que lhes parecia ser a mais recente novidade astrológica.

1,5 J. C. G ibson, Textbook o f Syrian Sem itic Inscriptions, I (Oxford: C larendon Press, 1971), p. 21-23.

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iv. Fontes sobre Ezequias (32.32-33). Obras de misericórdia (v. 32; “obras de piedade”, REB, NEB) aparentemente é uma expressão pós-exílica (cf. 2Cr 35.26; Ne 13.14) que cobre não só a reforma religiosa de Ezequias (de Vries), mas tudo que se associa com a sua “devoção ao S e n h o r ” (GNB). Como ocorre freqüentemente em Crônicas, uma informação adicional é tirada de uma fonte profética incluída em uma obra histórica (v. 32; cf. 2Cr 16.11; 20.34). A visão do profeta Isaías é bem semelhante ao título do livro bíblico de Isaías (1.1), e é possível que os compiladores tanto de Isaías quanto de Crônicas sejam depen­dentes da mesma fonte. Como no caso de outros reis aprovados em Crônicas, o enterro de Ezequias recebeu honra especial (v. 33; cf. 2Cr 16.14; 35.25). Esse possivelmente foi marcado por um local proeminente no cemitério real (Rudolph), na “encosta” (NRSV, RSV) ou colina (NIV).

G Três reis e o arrependimento (33.1— 36.1)i. Manassés (33.1-20)“Ele, angustiado, suplicou deveras ao S e n h o r , seu Deus, e muito se humi­

lhou perante o Deus de seus pais (33.12).33.1-10a-c/2Reis21.1-10a3 3 .18 -20 -# 2Reis 21.17-18Os eventos do capítulo 33 são surpreendentes, por duas razões princi­

pais. A primeira é que esse relato parece contradizer 2Reis 21, que retrata Manassés como o pior governante a se assentar no trono de Davi. Aqui, porém, ele possui um caráter reformado depois de experimentar a conversão no exílio (v. 11-16), embora nem sua deportação para a Babilônia nem seu encontro religioso nem mesmo sejam insinuados na passagem mais antiga. A segunda é que, nada no contexto leva o leitor a esperar ou o fato ou a extensão da conversão de Manassés. Tendo sido mais dedicado à idolatria do que qualquer de seus antecessores (v. 9), e tendo rejeitado severas advertências do S e n h o r (v . 10), a mudança parece fora de questão.

A conversão de Manassés é claramente crucial para esse capítulo, dados sua posição central e seu uso de expressões típicas em Crônicas. Porém, deve ser levado em conta que tanto Crônicas quanto Reis foram extremamente seleti­vos ao resumir o reinado de cinqüenta e cinco anos de Manassés, e que seus objetivos são bastante diferentes um do outro. Manassés ilustra um dos temas centrais de Crônicas, de que Deus pode cumprir sua promessa de restauração em 7.12-16 ao arrependido mesmo nas circunstâncias mais extremas. 2Reis 21, por outro lado, centra-se na relação entre a profundidade dos pecados de Manassés e a certeza do exílio. Em outras palavras, onde Crônicas concentra-se nas reações pessoais de Manassés e nas implicações para seu próprio reinado, Reis tem uma perspectiva de longo prazo.

Um exame cuidadoso revela que essas abordagens contrastantes não são contraditórias. O cronista tem plena consciência da profecia de juízo de 2Reis

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21.10-15, a qual ele resume no versículo 10: Falou o S e n h o r é uma repetição de 2Reis 21.10 e não lhe deram ouvidos é baseado em “o povo não deu ouvidos” (2Rs 21.9). Ele também concorda com a tese de que os pecados de Manassés no final das contas contribuíram para o exílio (cf. v. 8-9 com 7.19-20; 36.15-16). O cronista, portanto, suplementou o relato de Reis, não o substituiu. Mais ainda, o material adicional desenvolve um ponto já presente em Reis de que o exílio poderia ser adiado pelo arrependimento e fé de reis consecutivos. Isso já estava claro no caso de Ezequias (2Rs 20.16-19; 2Cr 32.25-26) e Josias (2Rs 22.11 -20; 2Cr34.19-28), e Manassés simplesmente fornece mais um exemplo, ainda que dife­rente. Na realidade, a conversão de Manassés ajuda a explicar um problema existente há muito em Reis, isto é, por que o exílio não caiu sobre o reinado de Manassés se seus pecados eram realmente tão sérios. O juízo de Deus claramen­te tinha sido pelo menos adiado, embora se a decisão básica de Deus não pudes­se ser impedida pela extensa reforma de Josias, as mudanças mais limitadas de Manassés (cf. v. 17) provavelmente não teriam mais sucesso.196

O elo entre Manassés e Josias provavelmente não é acidental, pois junto com Amom, o filho de Manassés, eles parecem formar um trio distinto (caps. 33— 35). O fio que os une é o tema humilhou-se (heb. hikkãna’), embora cada um responda de uma maneira diferente. Manassés e Josias se arrependem humilde­mente (33.12,19; 34.27), mas Amom infelizmente não o faz (33.23). A importância disso fica aparente quando se percebe que nenhuma destas informações aparece em Reis, nem mesmo no breve reinado de Amom onde em Crônicas o verbo hebraico (normalmente não refletido nas EVV) surge duas vezes. Esse padrão também con­trasta com os de dois trios precedentes, primeiro Joás, Amazias e Uzias (caps. 24— 26), cujos reinados são todos bipartidos, e em seguida Jotão, Acaz e Ezequias (caps. 27— 32), que são apresentados em termos de um único tema altemante.

Os elementos desses dois padrões reaparecem nos capítulos 33— 35. Como no caso do primeiro trio, o reinado de Manassés se divide em duas partes, enquanto Amon e Josias fornecem retratos contrastantes do tema da humildade. Em cada caso, porém, o reinado de Manassés rompe com expectativas anterio­res. Comparada com Joás, Amazias e Uzias, sua vida muda de direção não para pior mas para melhor. Somente Manassés se converte de seus pecados. Ele também parece continuar o padrão alternante de infidelidade e obediência repre­sentado por Jotão, Acaz e Ezequias, seguindo a ligação de Acaz com a impieda­de (cf. v. 3,23, e 28.3,13), mas então rompe o modelo pelo seu arrependimento. Nem comportamento desobediente nem o juízo de Deus têm que seguir automa-, ticamente. Nesse contexto, o exílio de Manassés (na Babilônia! v. 11) é crucial, visto que o tema do exílio domina os capítulos 28— 36 (cf. 28.5-8; 29.8-9; 30.8-9;

196 Para discussão adicional sobre a perspectiva de que o relato de Crônicas de M anassés está baseado na tradição histórica, cf. W. M. Schniedewind, “The source citations of Manasseh: King M anasseh in history and hom ily” , VT 41, 1991, p. 450-461.

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34.23-25). A mudança de coração de Manassés representa uma oportunidade para um fim prematuro ou mesmo uma reversão do Juízo de Deus, se tão somente a geração final de Judá tivesse se humilhado (36.12-16).

A Bíblia afirma constantemente que a porta de Deus permanece aberta a qualquer um, até mesmo depois do que seria a hora de estar fechada. Se tal convite podia ser estendido a Manassés, como foi a um coletor de impostos cheio de culpa, um ladrão em uma cruz, ou ao principal dos pecadores, ninguém éexcluído(Lc 18.9-14; 23.40-43; lTm 1.15). A condição de arrependimento humil­de permanece inalterada, pois “todos... que se humilham serão exaltados” (Lc 14.11; 18.14). Até mesmo Jesus caminhou a mesma estrada de Manassés, porque ele “se humilhou e foi obediente até a morte — e morte em uma cruz” (F12.8).

a. A maldade sem paralelo de Manassés (33.1-9). Esse parágrafo, que é baseado estreitamente em 2Reis 21.1 -10a, é dominado pelas más ações de Manassés (v. 1, 6, 9) e o contraste entre elas e os propósitos declarados de Deus (v. 4,7-8).

De acordo com a fórmula de abertura (v. l-2a), Manassés reinou durante cinqüenta e cinco anos (v. 1). Isso normalmente é datado em 696-642 a.C. (694- 640, Hughes), embora uma co-regência com Ezequias pudesse ser incluída du­rante a primeira década. Curiosamente, são omitidos os nomes das mães dos reis daqui em diante, visto que o mesmo também se aplique a duas frases que nor­malmente ocorrem nas fórmulas de morte, a saber “com seus pais” e “na cidade de Davi”, as mudanças provavelmente são devidas a razões textuais.197

O restante desta seção parece se dividir em duas partes (v. 3-6, 7-9), cada uma se originando talvez de uma fonte separada. A imagem esculpida no templo (v. 7-9) é tratada separadamente de outros símbolos gentios, e a promessa de Deus sobre o templo (v. 4, 7-8) e a extensão do mal de Manassés (v. 6, 9) são ambas mencionados duas vezes. O parágrafo resume os aspectos religiosos do mal de Manassés, inclusive a idolatria (v. 3-5, 7) e o ocultismo (v. 7), embora Manassés também fosse responsável pelo aumento do assassinato e opressão (2Rs 21.16). Os velhos lugares altos foram reconstruídos (v. 3; cf. 2Cr 14.3,5; 15.17; 17.6; 20.33; 21.11; 28.4,25; 31.1), embora tal interesse extenso em feitiçaria e adivinhação (v. 6) não tivesse paralelo desde os tempos de Saul (1 Cr 10.13). Um comentário parti­cularmente triste é que ele fez seus filhos atravessarem o fogo (v. 6, NIV nr., REB), quer dizer, quase certamente praticou um sacrifício de crianças.

Crônicas fez vários ajustes secundários ao longo desse parágrafo, em que duas características se sobressaem. A primeira é que em vários pontos, Manassés segue o exemplo direto de Acaz (cf. v. 2-6 com 28.2-4, 25). A outra substituiu

197 Cf. McKenzie, Use, p. 174-176. Para a sugestão de que a origem edomita ou árabe das mulheres pode ter encorajado as práticas religiosas pagãs, cf. í . McKay, Religion in Judah (London: SCM Press, 1973), p. 23-25.

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Acabe como modelo de Manassés (cf. 2Rs 21.3) que é bastante apropriado visto que Acaz figura diretamente em Crônicas (2Cr 28) mas Acabe só indiretamente (e.g. 18.1-34; 21.6). Em segundo lugar, uma certa intensificação é evidente na comparação com Reis, enquanto realçando ainda mais a preocupação de Manassés com a religião pagã. Por exemplo, os Baalins, os postes-ídolos (v. 3), e os filhos (v. 6) estão no singular em 2Reis 21, o nome de Deus está agora em Jerusalém para sempre (v. 4), Judá e o povo de Jerusalém (v. 9) são especifica­mente mencionados, e o versículo 6 até começa com uma palavra hebraica extra, “foi ele que...”. O mal de Judá também aumenta, primeiro para um grande mal (v.6) e em seguida para muito mais do que aquele das nações que o S e n h o r expul­sara (v. 2) e tinha destruído (v. 9). Eles tinham até profanado o templo com altares pagãos (v. 4-5) e uma imagem de escultura (v. 7) da deusa Aserá (cf. 2Rs 21.7). Eles tinham negado no processo sua própria distinção como o povo de Deus, como também qualquer direito de ocupar sua terra e templo.

O parágrafo é marcado por várias citações e alusões às Escrituras. Por exemplo, o versículo 6 está baseado em Deuteronômio 18.9-13, onde essas ativi­dades e os que se ocupam delas são uma abominação diante de Deus. A maioria das citações remanescentes (v. 4, 7-8) estão baseadas em outras passagens em Crônicas. O nome de Deus é associado mais estreitamente ao templo em 2Crôni- cas 7.16 (c f também lRs 8.16; 9.3), a eleição do templo e de Jerusalém segue 2Crônicas 6.5-6, e a necessidade de obediência está baseada em lCrônicas 28.8. A fonte mais influente, porém, é 2Crônicas 7.19-22. Ela contém a declaração mais clara em Crônicas sobre as conseqüências para o templo e a terra quando Israel abandona as leis de Deus, e se encaixa no uso de 2Crônicas 7.14-16 nos versículos4, 12-13, 18-19. O capítulo inteiro é, portanto, melhor compreendido como um tipo de comentário sobre a fala de Deus em 2Crônicas 7.12-22, tanto em suas promessas quanto em suas ameaças. Se o templo que leva o seu Nome (v. 4, 7; cf. 2Cr 7.16,20) não for usado corretamente, então Israel deve esperar para ver as penalidades apropriadas entrarem em cena.

b. O arrependimento de Manassés e o favor de Deus (33.10-20).Infelizmente, nem Manassés nem o povo pareciam no início conscientes de

nenhum perigo (v. 10), e assim Manassés foi levado cativo para a Babilônia. E notável que isso tenha acontecido porque o S e n h o r trouxe os assírios contra ele, como ele fez no final das contas com os babilônios (v. 11; cf. 2Cr 36.17). O destino de Manassés não estava nas mãos da Assíria (cf. 32.7-8), mas nas de Deus.

Nenhuma menção é feita do exílio de Manassés em fontes assírias, ainda que Manassés apareça nos anais de Esaradom (680-669 a.C.) e Assurbanipal (668- 626 a.C.) como um vassalo indisposto forçado a fornecer materiais para os empre-

198 Cf. ANET, p. 291-294.

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endimentos militares e de construção da Assíria.198 É bem possível que ele tenha se rebelado contra essas imposições em algum momento, embora outros eventos específicos conhecidos de fontes mesopotâmicas também tenham sido sugeridos como a ocasião para o exílio.199 O mais provável desses é que ele estava associado com a rebelião em 652-648 a.C. de Shamash-shum-ukin rei da Babilônia. Ele era o irmão de Assurbanipal, o rei assírio, e havia descontentamento em várias partes do império assírio, especialmente no oeste, durante esse período. Uma vez que o caso com Shamash-shum-ukin foi resolvido, os assírios podem ter chamado Manassés para prestar contas. De qualquer modo, o fato de Manassés ter sido capturado com “ganchos” e “cadeias” (v. 11, RSV) sugere mais uma contravenção do que ele ter sido convidado com outros vassalos de Esaradom em 672 para garantir apoio à sucessão de Assurbanipal ao trono. A presença de Manassés na Babilônia não é surpreendente, visto que a Assíria tinha, havia muito, um interes­se na Babilônia, que estava sob seu controle direto durante todo o reinado de Esaradom e depois do afastamento de Shamash-shum-ukin.

Visto que o efeito da conversão de Manassés parece ter sido limitado (cf.v. 17 e 2Rs 21.10-16), é mais provável que pertença aos seus últimos anos, entre o fim da rebelião babilônica em 648 a.C. e sua morte em 642 a.C. A tradução de “ganchos” (v. 11, Rsv, GNB, JB, c f NIV) é incerta, e, com base em seu significado habitual (“arbusto, espinho”), “armas pontiagudas” (REB, NEB), também é pos­sível.200 Porém, o uso de uma palavra bem parecida para descrever a humilhação de Senaqueribe (2Rs 19.28 = Is 37.29; cf. também Ez 19.4, 9) e o conhecido costume assírio de pôr anéis ou ganchos no narizes dos seus cativos apóiam a perspectiva tradicional.

O interesse do cronista, no entanto, tem menos a ver com os justos mere­cimentos de Manassés que com a restauração que ele certamente não mereceu (v. 12-13). Sua conversão é notável, não só por sua falta de qualquer paralelo em 2Reis 21 (ver acima), mas por causa de seu caráter aparentemente repentino e sua dimensão. Em impacto dramático, ela se iguala na Bíblia somente com a experiência de Saulo de Tarso (Atos 9.1-19, etc.), embora a história Cristã forne­ça muitos exemplos como os de John Newton, o comerciante de escravos.

Esse relato é caracterizado pelo vocabulário distintivo de Crônicas e por outras citações das Escrituras. Na sua angústia (v. 12) é um contraste deliberado com a resposta de Acaz em uma situação semelhante (2Cr 28.22; cf. v. 3, 6). Manassés foi restaurado por oração e arrependimento humilde (v. 12b-13a), embora tenha sido o ato de Deus responder à sua oração e não o ato de Manassés de orar o que causou uma mudança efetiva. Também foi o Senhor que o fez voltar (“o restabeleceu”, NRSV) a

199 Para estas várias propostas, cf. e.g. B. Oded in J. H. H ayes and J. M. M iller (eds.), Israelite and Judean History (London: SCM Press, 1977), p. 454-456; J. M. M iller and J. H. Hayes, A History o f A ncient Israel and Judah (London: SCM Press, 1986), p. 374-376.

2” Cf. KB I, p. 284.

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Jerusalém e ao seu reino (v. 13a), como o próprio Manassés reconheceu (v. 13b). A influência de outras partes de Crônicas é muito evidente, especialmente 2Crônicas 7.14 que se concretiza quando Manassés buscou o favor de Deus (cf. “busque minha face”7.14), se humilhou (v. 12), tfe z oração {\. 13), e então Deus ouviu (v. 13).Ateologiada oração respondida também é derivada de 2Crônicas 6, como na palavra súplica (v. 13, NRSV; “pedido”, NVI) que ocorre em Crônicas só aqui e em 2Crônicas 6.19,29,35,39. Deus o trouxe de volta do exílio está baseado em 2Cr 6.25, e o arrependimento de Manassés no exílio em 2Crônicas 6.24-25,36-39. Finalmente, a frase reconheceu que o S enhor é Deus ocorre em Ezequiel mais de setenta vezes. Os ouvintes tanto de Manassés quanto de Ezequiel encontraram Deus inesperadamente no exílio.

Os versículos 14-16 descrevem a cura da terra por Deus (cf. alinguagemde 2Cr 7.14). Três reformas separadas são mencionadas, cada uma delas típica do entendimento que o cronista tem da fé prática. Manassés consertou e estendeu os muros da cidade de Jerusalém (v. 14a), reorganizou o exército fora de Jerusa­lém (v. 14b), e restabeleceu o culto no templo em sintonia com sua conversão dos ídolos para servir ao Deus vivo (v. 15-16; cf. lTs 1.9). Construir e reparar os muros de Jerusalém é repetidamente mencionado em Crônicas (e.g. 1 Cr 11.8; 2Cr 26.9; 27.3-4). A obra de Manassés está provavelmente conectada com a expan­são da cidade para o oeste e para o norte que começou sob Ezequias (2Cr 32.5; Is 22.10-11), embora depois (v. 14) possa indicar cooperação com as necessida­des de Assurbanipal de fortalecer suas defesas contra possível turbulência a partir do Egito seguindo-se à derrota de Shamash-shum-ukin. Se o versículo 14 fosse traduzido “...estendeu o muro exterior da cidade de Davi para o oeste, de Giom no vale à entrada na Porta do Peixe...”, sugeriria claramente um movimento para o oeste, visto que a cidade de Davi, Giom, e Ofel estavam todas situadas a sudeste. Considera-se que a Porta do Peixe estivesse a noroeste da cidade (cf. Sf 1.10; Ne 3.3; 12.39).201 A reorganização do exército (v. 14b) é outra característica comum de reis fiéis em Crônicas (cf. 2Cr 11.5-12; 14.6; 17.12-19).

As reformas religiosas de Manassés representaram uma inversão direta de políticas anteriores (v. 2-9), visto que cada um dos itens removidos no versículo 15 é mencionado nos versículos 3,7. Alguma forma de culto regular foi recome­çada (v. 16), embora sua gama parece bastante limitada (cf. lC r 23.31; 2Cr 2.4; 8.13; 31.3). Essa tese parece ter base do que vem a seguir. Embora Manassés “ordenasse” (v. 16, REB, NEB, NRSV, RSV) Judá a “adorar” (servir, EVV) ao S e n h o r , o culto pagão continuou por todo o país durante os dois reinados seguintes (v. 17; 2Cr 33.22; 34.3-7, 33). Como no caso de todas as tentativas anteriores para erradicar os sinais e símbolos da religião cananita, na prática sua moralidade pouco exigente e práticas sensuais provaram-se irresistíveis à maio­

201 Veja também A. Mazar, Archaeology o f the Land o f the Bible (New York: Doubleday, 1990), p. 420-424.

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ria do povo (cf. 2Cr 14.3; 15.17; 17.6; 20.33). Apesar das mudanças formais, o povo como um todo não via nenhuma necessidade para uma mudança de cora­ção (cf. Is 29.13; Jr 3.10; 2Tm 3.5).

A fórmula de conclusão (v. 18-20) difere significativamente em pelo menos três formas de 2Reis 21.17-18. Primeiramente, sublinha a centralidade da conver­são de Manassés para o entendimento que o cronista tem de seu reinado, espe­cialmente sua oração e que ele se humilhou (v. 19; c f v. 12-13). Em segundo lugar, ao passo que os profetas ou videntes (v. 18-19) foram perseguidos no reinado de Manassés (2Rs 21.10-16), Crônicas relata a coragem desses ao falar com ele e escrever sobre ele. Com base em passagens anteriores, as palavras dos videntes (v. 18) provavelmente são as mesmas que, ou pelo menos incorpo­rados em, as Histórias dos Reis de Israel (v. 18; cf. 2Cr 20.34; 24.27; 32.32).202 Em terceiro lugar, Crônicas resumiu os detalhes do enterro de Manassés (cf. 2Rs21.18). Visto que a mesma coisa ocorre com Amom (cf. 2Rs 21.26), a razão mais provável para a mudança é textual, a menos que, como no caso de Milo, “o jardim de Uzá” (2Rs 21.26) não fosse mais identificável na época do cronista.

ii. Amom não se arrepende (33.21-25)“Mas não se humilhou perante o S enhor” ( v . 23).3 3 .2 1 -2 5 -# 2Reis21.19-24O reinado de Amom durou meros dois anos (642-640 a.C.), mas ele desem­

penha um papel importante em Crônicas. Isso emerge particularmente de duas expressões típicas de Crônicas que não ocorrem em Reis, a saber, ele não se humilhou e se tornou mais e mais culpável (v. 23). A primeira contrasta Amom com seu pai (diferente de seu pai Manassés, ele não se humilhou', cf. v. 12, 19), e é considerada uma das causas do exílio em sua única outra ocorrência em Crônicas (2Cr 36.12). A distinção entre pai e filho não era que eles fizeram o mal, porque Amom fez como Manassés, seu pai (v. 22; cf. v. 2), mas que Amom não se arrependeu, ainda que o exemplo de Manassés deva ter sido bem conhecido dele. A Bíblia é realista em reconhecer que “não há ninguém que não peque” (2Cr6.36; cf. Is 53.6; Rm 3.23), mas condena os que deixam de aproveitar qualquer oportunidade que eles tenham de se arrepender (cf. Jo 3.18-20; Rm 2.12-16).

Porque ele não se arrependeu, Amom se tornou mais e mais culpável (v. 23). Embora em todas as suas outras ocorrências em Crônicas, a culpa seja diretamente associada com a ira de Deus (lCr21.3; 27.24; 2Cr 19.10; 24.18; 28.9-10,13,25), as conseqüências não eram inevitáveis. A culpa poderia ser expurgada pelo sacrifício no templo, como exemplificado pelo perdão de Davi no local do futuro templo (lC r 21.3; 22.1). Amom também poderia seguir os caminhos de Acaz (2Cr 28.9-10) e da

202 As EVV certamente estão corretas ao adotar a leitura “videntes” no final do v. 19 no lugar do nome pessoal de TM “Hozai” (JB; = “meus videntes”), embora esta última interpre­tação ainda seja a predileta em Barthélemy, CTAT, P. 513-514.

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última geração pré-exílica, os quais sofreram a ira de Deus pelo juízo do exílio (2Cr28.5-8; 36.16). Embora a nuvem do exílio paire sobre os capítulos 28— 36 (e.g. 29.8- 9; 33.10-11; 34.23-25; 36.15-20), Manassés e Amom de formas diferentes mostram que uma atitude fatalista em face do juízo de Deus é bastante injustificada.

Os detalhes da morte de Amom são desconhecidos, e embora a maioria dos comentaristas imagine que foi sua política para com a Assíria o seu erro, isso permanece sem provas. E mais importante reconhecer que todos os outros exem­plos de conspirações em Crônicas são interpretados como o juízo de Deus (2Reis24.25-26; 25.27), e presumivelmente o mesmo se aplica aqui. O povo da terra (v. 25) desempenha um papel consistente em Crônicas, designando um novo rei quando a morte inesperada de seu antecessor tinha levado a uma crise (2Cr 22.1; 26.1;36.1). Esse grupo tinha claramente uma posição de alguma autoridade, e exemplos anteriores sugerem que eles incluíam mais que apenas líderes de família ou anciãos (cf. lC r 11.1-3; 2Cr 10.1-17).203 Embora o parágrafo final em 2Reis 21.25-26 seja omitido, uma declaração sobre a sucessão de Josias já é encontrada em 2Reis21.24 e é uma introdução perfeitamente adequada ao capítulo 34.

iii. Josias (34.1—36.1)“Porquanto (...) te humilhaste perante Deus (...) os teus olhos não verão

todo o mal que hei de trazer sobre este lugar” (34.27-28).“Assim, se estabeleceu todo o serviço do S e n h o r , naquele dia, para cele­

brar a Páscoa...” (35.16).34 .1-2-c/2R eis 22.1-234.8-12a-c/2R eis 22.3-734.15-32-c f. 2Reis22.8— 23.335. l - c /2 R e is 23.2135.18-19-c f. 2Reis23.22-2335.20-c /2 R e is 23.2935.24-c /; 2Reis 23.30a36. l - c /2 R e is 23.30bJunto com Davi, Salomão, Asa, Josafá e Ezequias, o tratamento extenso

dado a Josias (caps. 34— 35) é um sinal de que ele tem qualidades a serem reco­mendadas aos leitores de Crônicas. Embora, como os outros, Josias não seja sem falhas (35.22), sua reforma é a última oportunidade para Judá voltar aos seus fundamentos dados por Deus em uma circunstância de decadência inexorável em direção ao exílio.

Fora os parágrafos introdutório e final (34.1-2; 35.25— 36.1), o reinado de Josias é dividido em três seções, (a) sua fidelidade em buscar a Deus (34.3-33);(b) sua Páscoa (35.1-19); (c) sua morte (35.20-24).

203 As alternativas básicas estão resumidas em Dillard, p. 270.

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Dentro desta estrutura, o tema da humildade continua a partir do capítulo 33. Em 2Reis 22, humilhou-se ocorre uma vez (2Rs 22.19), mas aqui ele é repetido e tem um novo destaque (v. 27) como a base sobre a qual a ameaça de juízo pode ser suspensa, ainda que o alívio seja apenas temporário (c f 32.26; 33.12,19). A humildade de Josias é completada por mais um dos temas favoritos de Crônicas, isso é, buscar a Deus. Buscar ou consultar ocorre três vezes, cada uma das ocorrências sem paralelo em Reis, confirmando Josias como uma pessoa que faz do reino de Deus sua prioridade (v. 3, 21, 26; cf. Mt 6.33). Essa combinação de busca humilde por Deus dá a seu reinado uma consistência que contrasta tanto com a persistência de seu pai no mal (2Cr 33.23) quanto com a necessidade de Manassés por uma mudança cataclísmica (2Cr 33.12-13).

O capítulo está baseado em 2Reis 22.1— 23.3, com parágrafos adicionais (v. 3 -7 ,12b-13), resumos (v. 14, 33), e palavras como levitas (v. 9, 12b-13, 30), remanescente (v. 9, 21), ou maldições (v. 24) sendo incluídas em vários pontos. Essas mudanças individuais, no entanto, são menos importantes que duas alte­rações maiores na estrutura do capítulo. Primeiramente, ao passo que em Reis a reforma de Josias centra-se na descoberta de um antigo rolo bíblico, esse evento é agora somente o terceiro e último estágio (v. 8) em um processo que remonta uns dez anos ao primeiro despertar espiritual de Josias (v. 3). Crônicas concen­tra-se mais na atitude global de Josias do que em qualquer evento singular. A segunda mudança diz respeito à reação de Josias ao rolo. Apesar da campanha vigorosa de Josias contra a parafernália de idolatria em Reis (2Rs 23.4-20,24-25), a decisão de Deus de remover o seu povo da Terra Prometida é afirmada forte­mente (2Rs 23.26-27). Por outro lado, Crônicas destaca a possibilidade de que aqueles que são culpados podem receber o perdão de Deus ainda que o juízo esteja para cair sobre a comunidade como um todo. Apesar da inevitabilidade do desastre (v. 24-25, 28), a aliança de Deus ainda pode ser renovada por aqueles que levarem sua palavra a sério.

Os relatos bíblicos do reinado de Josias levantam várias questões importan­tes de pano de fundo sobre as quais somente uma breve avaliação é possível aqui. Por exemplo, é consenso agora que os fatores principais na reforma eram mais religiosos do que políticos. Embora a reforma coincidisse com um declínio signifi­cativo na influência assíria, tentativas de comparar as fases da reforma com a crescente independência de Josias em relação à Assíria são incertas e talvez bas­tante irrelevantes.204 Em segundo lugar, embora uma conexão estreita entre o rolo de Josias e o Deuteronômio tenha sido aceita por muito tempo, as implicações disso para as origens do Deuteronômio são muito mais incertas, visto que nem Reis nem Crônicas proporcionam evidência direta para a tese, defendida repetida­mente desde 1805, de que o rolo foi composto como parte de um movimento de

204 E.g. F. M. Cross e D. N. Freeman, “Josiah’s revolt against Assyria” , Journal o f Near E astern Studies 12, 1953, p. 56-58.

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reforma deuteronômico. A data do Deuteronômio e do rolo e as razões para esse ser ocultado são questões que vão muito além das preocupações imediatas desta passagem. Em terceiro lugar, embora os relatos variantes da reforma em Reis e Crônicas não possam ser completamente harmonizados, é aceitável seguir a re­cente tendência erudita de distinguir a ênfase diferente em cada obra. Cada apre­sentação é claramente muito seletiva, e é imprudente ser influenciado indevidamente por uma em detrimento da outra. Isso significa que se deve levar a sério as várias fases de Crônicas que conduzem à descoberta do rolo, e que a descoberta pode ser visto mais como resultado da reforma do que sua causa primária.

Embora essas questões históricas e literárias sejam importantes, a coisa mais vital sobre o rolo, de acordo com Josias e a profetisa Hulda, é que ele é as palavras dele [i.e. de Deus] (v. 26; “o que eu falei”, 2Rs 22.19). Além disso, Josias faz o que é necessário com base em sua compreensão da mensagem de Deus. É especialmente interessante que ele considere a forma escrita da pala­vra de Deus como superior à tradição herdada e está disposto a pagar o custo de corrigir suas prioridades. Esse é um dos exemplos mais claros no Antigo Testamento do conceito subjacente de uma Escritura autorizada, que está em pé de igualdade com a palavra falada da profecia. Qualquer que seja a sua forma, a palavra de Deus nunca é completamente confortável para aqueles cujas vidas ela confronta. A questão é tão clara quanto no Novo Testamento onde a palavra de Deus é tanto encarnada como escrita. A palavra de Jesus não é menos autorizada que a da Escritura, porque ele também desafia todas as tradições e autoridades humanas, no final das contas tornando todas as coi­sas sujeitas a si (e.g. Jo 1.1-14; Mc 7.13; Ef 2.20-23; 2Tm 2.9; Hb 4.12-13).

a. Josias busca a Deus fielm ente (34.1-7). Afórm ula de abertura (v. 1-2) introduz uma contínua ligação entre Josias e ambos, Davi e Joás. Além de mencionar Davi explicitamente no versículo 2, Josias o segue buscando a Deus (v. 3 ,21 ,26), assumindo a responsabilidade pelo templo (v. 8), organizan­do os músicos levíticos (v. 12-13), e obedecendo a Deus (v. 31). Tanto Joás quanto Josias se tornaram reis ainda na menoridade (v. 1; cf. 2Cr 24.1), e ambos empreenderam uma grande restauração do templo (v. 8-12a). Não se desviar nem para a direita nem para a esquerda (v. 2) normalmente significa obediên­cia à lei de Deus (cf. Dt 5.32; 17.20; 28.14; Js 1.7; 23.6), e dá o tom para a resposta de Josias ao rolo do templo (v. 19-33).

Josias reinou durante trinta e um anos (v. 1; i.e., 640-609 a.C.), mas não é a primeira vez que Crônicas usa marcadores cronológicos para dividir um reinado (v. 3 ,8 \ c f 2Cr 14— 16). O primeiro estágio começa quando Josias era um “moço” (v. 3a, REB, JB) de quinze anos (o oitavo ano do seu reinado, v. 3a) quando ele começou a buscar a Deus. Embora Salomão tivesse sido impedido uma vez de construir o templo porque era apenas um menino (heb. n a ‘ar, lC r 22.5; 29.1), nenhuma restrição de idade se aplica na busca de Deus (cf. Mt 18.3-4; lTm 4.12).

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“Buscar” em Crônicas descreve o hábito de olhar para Deus em toda situação, e também a atitude de que Deus procura por aqueles que oram (2Cr 7.14; 30. 19). Começou implica o início de uma peregrinação espiritual para o jovem Josias (cf. o mesmo verbo heb. dãrash nos v. 21, 26). Outros reis que buscaram a Deus incluem Davi (lC r 28.19; 28.8-9), Salomão (2Cr 1.5) e Ezequias (2Cr 31.21).

O estágio seguinte do reinado de Josias é uma reforma que resulta dire­tamente de sua busca por Deus. Ele é descrito como uma purificação, primeiro de Judá e Jerusalém (v. 3b-5) e em seguida de “toda a terra de Israel” (v. 6-7, NRSV, RSV). As duas áreas são claramente separadas, a primeira por uma inclusão ao redor dos versículos 3b-5 formada pela palavra purificar, a segun­da pela frase ele voltou para Jerusalém no final do versículo 7. As ações de Josias no sul são efetivamente repetidas no norte. Até as mesmas expressões são usadas: por exemplo, ele derrubou (heb. nittêts) os altares (v. 4, 7) e cortou em pedaços (heb. giddõa') os altares do incenso (v. 4,1) antes que ele “os reduzisse a pó” (heb. hêdaq, v. 4, 7 REB).205

Também existe claramente alguma semelhança entre essa reforma do déci­mo segundo ano de Josias e o que parece ser a fase principal de reforma no seu décimo oitavo ano, como descrito em 2Reis 23.4-20. A maioria dos comentaristas portanto assume que os versículos 3b-7 resumem 2Reis 23.4-20. Essa tese pode­ria estar correta se 2Reis 23.4-20 fosse considerado resumo de um processo mais longo de reforma, porque a última passagem na verdade não menciona a desco­berta do rolo do templo. Porém, se 2Reis 23.4-20 pertencer ao décimo oitavo ano de Josias, isso estará em conflito com a datação de Crônicas, e uma comparação dos detalhes indica que eventos diferentes podem estar em vista. Por exemplo, 2Reis 23.4-14 está limitado principalmente ao templo e à área ao redor de Jerusa­lém e não a Judá e Jerusalém como um todo (v. 3b-5). Diferenças também existem sobre vários atos de profanação. A queima de ossos de sacerdotes de Judá (v.5) não é claramente referida em 2Reis 23, nem mesmo no versículo 14. Em con­traste, enquanto Crônicas não menciona nenhuma ação difamatória em Israel, 2Reis 23.19-20 até descreve Josias matando sacerdotes nos santuários do norte. Na realidade, não seria surpreendente se alguns eventos na reforma fossem repetidos, visto que nenhuma tentativa anterior de erradicar a religião cananita jamais teve sucesso completo (cf. 2Cr 14.5; 15.17; 17.6; 20.33; 33.15-17).

b. Josias se arrepende por causa da palavra de Deus (34.8-33). No déci­mo oitavo ano de Josias (622 a.C.), a reforma chegou ao templo (v. 8). Uma política específica para reparar o templo do S e n h o r foi posta em ação, embora

205 “Em suas ru/nas” (v. 6, NIV, NRSV, RSV; cf. JB, GNB) é uma tentativa convencional dar sentido a um TM incerto, mas a solução mais convincente é ler “destruiu seus tem plos” (I. Seeligm ann, “Indications o f editorial alteration and adaptation in M assoretic Text and the Septuagint” , VT 11, 1961, p. 202, n. 1; cf. W illiam son, D illard and 2Ch. 19:3).

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o objetivo geral de purificar ou purgar (cf. v. 3, 6) a terra ainda estivesse em andamento. Infelizmente, a impressão de ação contínua é obscurecida na NRSV, RSV, REB, NEB, GNB, etc., pela tradução, “quando ele tinha purificado”, mas o hebraico claramente significa, começou purificar.

As reformas do templo são o centro e não o clímax das ações de Josias, e quatro fases são claramente discemíveis.

i. O plano para reparar o templo (34.9-13). Isso evoca lembranças de Davi (1 Cr 26.27) e especialmente de Joás que também coletou dinheiro para um fundo especial de reconstrução (v. 9; 2Cr 24.5, 12; ver também v. 1-2 acima). Contribuições do norte (Manassés, Efraim e todo o resto de Israel, v. 9) prova­velmente tinha sido trazidas à Casa de Deus (v. 9) como resultado da campa­nha nos versículos 6-7. Josias assumiu claramente a jurisdição sobre assuntos religiosos lá (cf. v. 6, 9, 21, 33) ainda que ele possa não ter desfrutado de controle político formal. Uma impressão de sentimento comum com o público do próprio cronista é implicada pela descrição dos nortistas como um rema­nescente (v. 9, 21), visto que 2Reis 22 não têm nenhum termo equivalente. Na verdade, suas contribuições fiéis aos fundos do templo (v. 9) podem ter indu­zido alguns leitores a fazer o mesmo.

As providências administrativas de Josias seguem em grande parte as de Joás. Como tesoureiros (“os guardas da entrada”, NRSV, RSV, i.e., porteiros, NIV; cf. lC r 26), os levitas eram responsáveis diante do rei e de seus oficiais (cf. 2Cr 24.5, 8, 11). Os fundos passavam portanto do sumo sacerdote aos supervisores, aos trabalhadores e aos artesãos especializados (v. 10-11). Duas razões são dadas para o sucesso da operação. Uma era que os homens trabalha­vam fielmente (v. 12), uma palavra associada freqüentemente em Crônicas com a atitude dos levitas em questões financeiras (cf. lC r 9.26,31; 2Cr 19.9; 31.12,15, 18). Isso está em contraste com os reis de Judá, quer dizer, Acaz, Manassés e Amom que tinham permitido que tudo caísse em ruínas (v. 11). A outra era que os levitas ofereciam uma liderança efetiva (v. 12b-13). Essa é outra prática levítica enfatizada em Crônicas mas não em Reis, que pode refletir as condições do tempo do cronista (cf. lC r 15.21; 23.4; Ed 3.8-9; cf. 2Cr 2.2, 18). A informação sobre os levitas nos versículos 12b-13 pode ser lida de dois modos. A opção preferida é tratar a habilidade musical dos levitas (v. 12) como um comentário breve comparável à observação semelhante sobre ocupações levíticas no final do versículo 13 (cf REB, NEB). De outro modo, deve-se pressupor a estratégia altamente duvidosa de encarregar os músicos da obra de construção! De qual­quer modo, os levitas estavam cumprindo uma ampla gama de tarefas tradicio­nais designadas a eles originalmente por Davi (cf. lC r 26).

ii. Descoberta do rolo (34.14-18). O evento central do capítulo, a desco­berta do rolo por Hilquias o sumo sacerdote, de fato é mencionado muito breve­

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mente (cf. v. 9). Mais atenção é dada ao que ocorreu depois, embora a descober­ta seja introduzida duplamente por um relatório objetivo (v. 14) e por testemunho pessoal (v. 15). Visto que os versículos precedentes também estão em forma de narrativa (v. 9 -12a; eles estão em discurso direto em 2Rs 22.4-7), o anúncio pessoal de Hilquias, “Encontrei o Livro da Lei”, destaca-se nitidamente. O secretário Safã confirma que o achado ocorreu no contexto da fidelidade dos trabalhadores (v. 16-17; cf. v. 12).

A descoberta de Hilquias é intitulada tanto de Livro da Lei (v. 14-15) quanto de Livro da Aliança (v. 30). Tradicionalmente ele é identificado com Deuteronômio, embora provavelmente não o livro todo, visto que era lido duas vezes em um dia (2Rs 22.8,10). Alguns comentaristas foram menos pragmáticos, porém, como o Arcebispo medieval de Cantuária que supôs que Josias ouviu a narração do livro todo de uma assentada: “Mas que contraste com nossos reis e magnatas atuais! Se uma vez por ano eles ouvem a palavra de Deus pregada, eles a acham nauseante e deixam a igreja antes do fim do sermão!”206

Um dos elos mais fortes com Deuteronômio são suas repetidas referências a um Livro da Lei (Dt 28.61; 29.21; 30.10; 31.26; cf. Js 1.8; 8.31,34; 23.6; 24.26). Outro é a frase todas as maldições escritas no... (v. 24; em lugar de “tudo escrito no”, 2Rs 22.16), referindo-se ao conteúdo do Livro da Lei em Deuteronômio29.20-21,27; Js 8.34. Outras conexões com Deuteronômio incluem a centraliza­ção do culto (v. 3-7,33; cf. Dt 12), a Páscoa centralizada (35.1-19; cf. Dt 16.1-8), e acima de tudo a cerimônia da aliança (v. 29-32; cf. Dt 31.10-13). Também se reconheceu que o rolo de Hilquias tinha a autoridade de Moisés (v. 14), assim como o Livro da Lei nos dias de Josué (Js 8.31, 34; 23.6), e há pouca dúvida de que sua antigüidade tenha aumentado a sensação de autoridade.

A tradução do título nas EVV como Livro da Lei é um tanto ilusória. Por exemplo, ele era quase certamente um rolo escrito (cf. Jr 36.2; Ez 2.9). Além disso “lei” (heb. tôrâ) é um termo mais bem compreendido como “ensino, instrução”, de forma que uma alternativa melhor poderia ser “Rolo do Ensino” ou até mesmo “Rolo da Instrução [de Deus]”. A tôrâ e a aliança de Deus são projetadas para a vida e benção e não para a morte e maldição, capacitando seu povo confiar nele de todo seu coração e alma (cf. v. 31 e Dt 30).

iii. Reconhecimento da palavra de Deus (34.19-28). Josias parece ter percebido rapidamente que o que estava sendo lido para ele era palavra do próprio Deus (v. 19-21). Sempre é um primeiro passo essencial para ver Deus em operação reconhecer a palavra de Deus pelo que ela é (c f Ag 8.14; lTs 2.13). Josias também reconheceu que grande é o furor do S e n h o r porque seu povo não tinha guardado as palavras do S e n h o r (v. 21). A ira de Deus é um

206 Veja A. Saltman, Stephen L nagton’s Commentary on the Book o f Chronicles (Raml- Gan: Bar-Ilan, U niversity, 1978), p. 42-43.

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tema recorrente nos capítulos 28— 36 (cf. 2Cr 28 .9 ,11 ,13 ,25 ; 29.8,10; 32.25; 33.6; 36.16), pois a desobediência de Israel remontava a gerações (nossos pais,v. 21; 29.8-9; 36.16). Josias tinha razão, portanto, de ficar preocupado a respei­to das conseqüências, pois a penalidade máxima do exílio não era uma ameaça vã(2Cr28.9; 30.9; 36.16).

Apesar disso, Josias sabia que a ira de Deus ainda poderia ser impedida através de arrependimento humilde (cf. 2Cr 29.10; 30.8; 32.26; 33.13), embora uma garantia sobre sua remoção permanente teve que esperar até que Jesus viesse e morresse (Rm 5.9; lTs 1.10). De fato, Josias estava profundamente convencido sobre a condição difícil de seu povo, como ele demonstrou através de duas reações diferentes. Primeiro ele rasgou as suas vestes e lamentou (v. 19,27) o que era um sinal tradicional de angústia (cf. e.g. Gn 37.34; 2Rs 19.1; Jó 1.20). Em seguida ele enviou os seus oficiais a uma profetisa (v. 22) para consultar ao S e n h o r (v. 21). Embora “consultar” traduza a mesma palavra para “buscar” (v. 3), aqui tem mais o sentido de pedir orientação específica (e no v. 26) do que de descrever a orientação básica de Josias em direção a Deus. Como nesta ocasião, seu significado pode ser estreitamente relacionado com te humilhaste (v. 27), especialmente em relação com a promessa favorita de Crônicas relativa à liberta­ção de Deus (2Cr 7.14). A escolha de Josias não era fácil, e contrasta com o comportamento de dois outros reis a quem o cronista provavelmente tinha em mente. Jeoaquim também teve a palavra de Deus lida para si, mas ele apenas a rasgou e a queimou (Jr 36). Semelhantemente Joás que já foi comparado com Josias (cf. v. 8-13), foi resistente quando desafiado quanto à fúria de Deus (2Cr24.18-20). Por outro lado, os oficiais de Jeoaquim que descendiam de Safã e Abdon (Acbor, 2Rs 22.12) deram atenção à palavra de Deus, até protegendo Jeremias do rei (Jr 36.10-19; cf. Jr 26.22,24).207

A profetisa Hulda vivia na Cidade Baixa em Jerusalém (v. 22; cf. Sf 1.10), que, embora normalmente se considere que ficasse no norte, poderia facilmente ter feito parte da recente expansão da cidade para o sudeste. Profetas raramente são nomeadas na Bíblia, embora, como Miriã, Débora e Ana, Hulda profetizasse em um momento crucial da história do povo de Deus (Êx 15.20; Jz 4.4; Lc 2.36; cf. Is 8.3; At 21.9). Por outro lado, a existência de outras profetisas que se opuseram a Deus não deve ser ignorada, de forma que o mero exercício de profecia não é nenhum sinal particular de favor divino (Ne 6.14; Ap 2.20).

A profecia de Hulda (v. 23-28) foi tomada amplamente de 2Reis 22.15-20 que contém vários conceitos fundamentais familiares a Crônicas. Acima de tudo, a palavra falada da profecia confirma a palavra escrita da lei. A mensagem está dividida em duas seções (v. 23-25, 26-28), das quais a primeira sublinha que o exílio era certo. O próprio Deus trará os males (v. 24, 28), porque o povo me

207 Em bora alguns dos nomes nos v. 20, 22 sejam diferentes daqueles em 2Rs 22.12, 14, eles devem ser com preendidos com o variantes textuais.

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deixou (v. 25). Esse último termo (heb. ‘ãzab) é extensamente usado em Crônicas como uma expressão para o pecado (cf. 2Cr 12.1,5; 15.2; 24.18), embora a ênfase nesta e em outras passagens nos capítulos 28— 36 seja um afastamento cumula­tivo através de gerações sucessivas para longe de Deus (cf. v. 21,25 e 29.6; 30.7). A idéia é reforçada mais ainda pelo acréscimo de todas as maldições (v. 24; cf. 2Rs 22.16), uma clara alusão às maldições da aliança (Dt 27.9-26; 28.15-68), e que implicam que a aliança havia sido irreparavelmente rompida. Ao passo que ante­riormente a ira de Deus podia ter sido aplacada (2Cr 29.10; 30.8), ela não podia mais ser apagada (v. 25).

No entanto, a esperança ainda não tinha sido totalmente extinta pois a segunda seção promete paz em meio ao mal (v. 28). Pessoas como Josias cujo coração era (lit.) “brando” ou “terno” (v. 27) (responsivo, NIV; “penitente”, NRSV, RSV; “disposto”, REB, NEB), ainda podiam conhecer a graça de Deus por si mesmas. A frase hebraica “coração brando” em outras passagens fala de temor e timidez (cf. Dt20.3, 8; 2Cr 13.7), mas seu significado aqui é confirmado pelo repetido te humilhaste (v. 27). Visto que, em Crônicas, humilhar-se é sempre o antídoto para o abandono de Deus (cf. lC r 28.9; 2Cr 7.14, 19; 15.2), Deus promete a Josias que ele mesmo não verá o desastre e será sepultado em paz (v. 28). Embora Josias morresse em circunstâncias violentas (2Cr 35.20-24), isso não invalida a promessa de Deus que na realidade significa que o exílio não aconte­ceria durante a vida de Josias. Em todo caso, ser “unido aos pais” é uma expres­são que diz respeito ao sepultamento e não um eufemismo para a morte (lR s 14.20; 22.40; 2Rs 20.21; cf. 2Cr 35.24b).

iv. A renovação da aliança (34.29-32). Embora o povo tivesse sido julga­do pela aliança, a renovação da aliança tomou-se o fundamento de uma nova esperança. Os fatos de que o rolo seja intitulado aqui “O Rolo da Aliança” (v. 30) e que eles agiram de acordo com a aliança de Deus (v. 32) mostram quão impor­tante a aliança foi na determinação da forma do futuro de Israel. As alianças bíblicas sempre contêm tanto a graça quanto a lei, promessa e juízo, e Josias podia se apoiar tanto em Asa quanto em Ezequias para cerimônias de aliança que reafirmaram a graça de Deus a um povo antes desobediente (cf. 2Cr 15.1-15;29.10). A aliança de Josias foi caracterizada pela “obediência de fé” (cf. Rm 1.5). O povo concordou em guardar os mandamentos de Deus e de “pôr em prática” (GNB) os “termos da aliança” (v. 31, REB, NEB). Eles tinham em mente, em primeiro lugar, uma renovação da aliança do Sinai, como indicado pelas frases mandamento, testemunhos, e estatutos (v. 31; cf. e.g. Dt 6.1; 11.1) e de todo o coração e toda a alma (v. 31; cf. e.g. Dt6.5; 11.13; 30.2). Os elementos da aliança davídica também foram incorporados, visto que a cerimônia era conduzida pelo rei. (v. 29,31,32) e acontecia no templo (v. 30; cf. 2Cr7.13-14,17-18). Mesmo que isso fosse apenas temporário, Judá tinha voltado aos seus fundamentos, por­que eles tinham agido segundo a aliança de Deus, o Deus de seus pais (v. 32).

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Enquanto os versículos 29-32 seguem 2Reis 23.1-3 bem de perto, três mu­danças se destacam. A primeira é que os “profetas” são chamados agora levitas (v. 30; cf. 2Rs 23.2). Essa mudança é muito provavelmente ligada ao exercício repetido de um ministério profético pelos levitas (cf. lC r 25.1,3; 2Cr 20.14; 29.30) e as qualificações proféticas de seus fundadores (cf. IC r 25.5; 2Cr 29.25; 35.15), embora seja desnecessário pressupor que os levitas tivessem assumido toda a obra dos profetas na época do cronista.208 Em segundo lugar, o rei agora está “em seu lugar” (v. 31, NRSV, RSV) e não “junto à coluna” (2Rs 23.3). Embora a palavra hebraica para “lugar” só ocorra em partes pós-exílicas do Antigo Testa­mento, essa mudança também pode refletir a ausência de colunas como Jaquim e Boaz no segundo templo (cf. 2Cr 3.17). Em terceiro lugar, o versículo 32 é uma paráfrase livre de “todo o povo aprovou a aliança” (2Rs 23.3). O cronista enfatizou que “todos os que estavam presentes em Jerusalém e em Benjamim” (NRSV, RSV) consentiram com as novas disposições, e que eles fizeram assim ao reviver uma aliança mais antiga e não em fazer uma nova.209 Ele também enfatiza que foi o rei que fez o povo se comprometer (NVI, NRSV; “fazer juramento” NEB; “os fez aderir”, RSV) com aliança. Isso sugere que a fé pessoal de Josias não foi necessariamente copiada pelo povo, uma observação que é confirmada tanto por Jeremias quanto pelos eventos subseqüentes (cf. Jr 3.10; 2Cr 36.14-16).

Finalmente, a obediência do povo às condições de sua aliança é resumida seguindo 2Rs 23.4-25 (v. 33). Os detalhes anteriores não são repetidos, presumivelmente porque algumas coisas do mesmo tipo já haviam acontecido (v. 3b-7). Porém, novamente há sugestões de que o povo necessitava de alguma coerção. Josias os fez servir [i.e., “cultuar”] o S e n h o r , o que eles fizeram, mas só enquanto ele viveu. Não obstante, todos os que estavam em Israel concordaram, como exemplificado acima de tudo pela Páscoa que se seguiu (35.1-19) na qual os representantes do norte e do sul provavelmente estavam presentes (cf. 35.3).

c. Josias celebra a Páscoa (35.1-19). O capítulo 35 está em grande medida ocupado com uma Páscoa (v. 1-19) que é relatada só brevemente em Reis (2Rs23.21-23). Só podemos conjecturar se o material adicional (v. 2-17) vem de algu­ma fonte oficial do templo ou de outro lugar. Visto que este relato segue imedia­tamente a renovação da aliança, ele parece ser parte do movimento de renova­ção da aliança dirigido por Josias (34.29-32). A Páscoa de fato dá à reforma uma imagem muito mais positiva do que em Reis, que se concentra em uma cruzada

208 E.g. D. L. Petersen, Late Israelite Prophecy, SBLM S 23 (M issoula: Scholars Press, 1980), p. 85.

209 A REB e a NEB sem necessidade seguiram Curtis e Madsen, Rudolph, etc., ao pressupor que “e B enjam im ” seja um erro para “na aliança” (2Rs 23.3), visto que não som ente as palavras heb. “Benjamim ” e “aliança” são bem diferentes, mas que “aliança” ocorre no fim do v. 32.

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contra a idolatria (2Rs 23.4-27). A preocupação do cronista é mais encorajar o uso correto do templo (v. 2-3, 8, 20), de seu serviço (v. 2, 10, 15-16), e de suas ofertas (v. 7-9,12-14,16).

A Páscoa representa o zênite do culto do templo em Crônicas (cf. 2Cr 30). Essa proeminência se deve em parte a associações históricas com o êxodo (Ex12.1-13) e a entrada de Israel na Terra Prometida (Js 5.10-11), e em parte a seu lugar no culto do segundo templo (Ed 6.19-22; cf. também Ez 45.21). A Páscoa nos tempos pós-exílicos expressava particularmente muitas das ênfases do pró­prio cronista, tais como a prioridade do culto do templo, a reunificação dos exilados, a separação de Israel das impurezas de seus vizinhos, e o desejo de buscar o S e n h o r (cf. Ed 6.19-22).

A Páscoa de Josias representa um retomo à ortodoxia sem paralelo desde os dias de Samuel (v. 18). Embora na prática ela possa ser comparada apenas com as irregularidades do festival de Ezequias (2Cr 30.2-3,17-20,23), é possível descobrir quatro características que o autor pode ter tido em mente: (a) a data (v. 1), (b) o respeito pela autoridade mosaica (v. 6, 12) e davídica (v. 3-4, 15), (c) a fidelidade dos levitas (v. 4-6, 10-15), e (d) a quantidade de pessoas presentes (v. 18).

O respeito de Josias pela palavra de Deus tem um grande destaque, e, apesar de seu último erro fatal (v. 20-24), ele é resumido como tendo agido de acordo com o que está escrito na Lei do S e n h o r (v . 27). É até possível distinguir as áreas diferentes da autoridade escriturística representadas por Moisés e Davi-Salomão. A primeira dizia respeito aos sacrifícios, e a segunda às modificações dos serviços levíticos tornadas necessárias pelas exigências do culto do templo, especialmente na área da música. Porém, as instruções de Moisés aos levitas também são refleti­das em sua função como representantes do restante da nação (v. 5) e asseguram o andamento tranqüilo da adoração pública (cf. Nm 3.5-13; 8.15-26).

A fidelidade de Josias à palavra de Deus é extremamente relevante. Por um lado, sua reforma e Páscoa mostram quanto os líderes mais jovens podem alcançar quando eles se dedicam totalmente a colocar a palavra de Deus em prática. Por outro lado, ele é um bom exemplo da necessidade de se receber a graça de Deus, porque ele não foi sempre capaz de manter seus altos padrões (v. 22; cf. 34.27). Foi necessário que um outro descendente de Davi até mesmo se tomasse um cordeiro da Páscoa antes que o povo pudesse entrar em uma aliança etema com Deus (cf. Jo 1.29; ICo 5.7; Ap 5.6-14). Da mesma maneira que Josias agiu de acordo com o que ele encontrou escrito na palavra de Deus, assim o relato bíblico do sacrifício Pascal de Jesus no Calvário oferece uma nova dinâmica para a vida e a adoração.

i. Preparativos para a Páscoa (35.1-6). Com a mudança da instrução “Celebrem a Páscoa” (2Rs 23.21) para a declaração Josias celebrou a Páscoa (v. 1), mostra-se que Josias obedeceu a suas próprias exigências. Ele também foi obediente à lei (Lv 23.5; Nm 28.16) e prática (Êx 12.6) do Pentateuco, por exemplo, na questão da data sobre o décimo quarto dia do primeiro mês (v.l)

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que contrastou com o evento não ortodoxo de Ezequias (30.2). Essa data no primeiro mês, porém, causa um problema para a descoberta do rolo da lei (34.8; 2Rs 22.3) e a celebração da Páscoa (v. 19; 2Rs 23.23) ocorridas no mesmo ano. Visto que isso significa que deve ter havido pouco ou nenhum tempo para fazer mudanças radicais do tipo implicado pelo versículo 18, essa Páscoa pode ter precedido a aparição pública do rolo como parte do movimento de reforma mais amplo (34.3b-7). Isso pode explicar a existência de características como a função dos levitas (v. 11) ou a fusão da Páscoa com outros sacrifícios (v. 12, 14), que não são encontrados no Pentateuco e presumivelmente se devem ao costume ou às adaptações do próprio Josias (cf. v. 10, 16). Talvez esse também seja o motivo da omissão da referência ao “Livro da Aliança” (2Rs 23.21).

A primeira tarefa de Josias foi distribuir as tarefas dos sacerdotes e encorajá- los (v. 2b), e também dos levitas (v. 3-6). Pessoas envolvidas em grandes even­tos freqüentemente precisam da garantia de que elas estão nos propósitos de Deus e que ele está com elas (cf. lC r 22.13; 28.20; 2Cr 15.7; 19.11; 32.7). Esse encorajamento é dirigido principalmente aos levitas, dos quais se diz terem ins­truído todo o Israel (v. 3), uma função que eles empreenderam presumivelmente durante as reformas (cf. 2Cr 17.7-8; Ne 8.7-9).

Os levitas recebem uma série de instruções (o heb. tem sete imperativos nosv. 3-6) sobre a preparação do cordeiro da Páscoa (v. 6). A ordem ponde a arca sagrada no templo... (v. 3) no entanto, é problemática visto que a remoção da arca nunca é mencionada, seja em relação com a idolatria de Manassés (33.4, 7) seja com a faxina geral feita por Josias. Entretanto, talvez Servir o S e n h o r . ..(i.e., “ado­rar/cultuar...”; cf. 34.33) deva ser entendido como a oração principal e as palavras de abertura traduzidas como “Deixe a arca sagrada...” ou “Desde a arca sagra­da...”. Mas também é possível que a cerimônia pela qual a arca foi depositada no templo pode ter sido novamente encenada, para sublinhar o novo começo de Josias.210 Uma outra dificuldade é que em contraste com a prática de Ezequias e as implicações da lei do Pentateuco (Dt 16.5-6; 2Cr 30.17), os levitas abateram todos os cordeiros da Páscoa (v. 6; cf. v. 11). As providências emergenciais de Ezequias presumivelmente se tomaram prática padrão.

A autoridade para essas instruções está baseada em Davi e Salomão- (v. 3-4) e em Moisés (v. 6). Os dois reis tinham autorizado uma mudança nos deveres dos levitas (lC r 23-26; 2Cr 8.14-15) uma vez que a arca tinha chegado ao seu repouso (v. 3; cf. 1 Cr 23.25 26), enquanto o apelo a Moisés é uma referência geral às leis da Páscoa (especialmente Êx 12.1-13;Dt 16.1-8).

ii. Provisão da Páscoa (35.7-9). As ofertas de Josias (v. 7) e de outros líderes (v. 8-9) para os sacrifícios seguem um generoso precedente originalmen­te fixado por Davi (cf. lC r 29.2-5; 2Cr7.5; 30.24). Chefes (v. 8; “administradores”,

210 M cConville, p. 262.

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NVI) é um termo neutro usado para os sacerdotes anciãos, inclusive o sumo sacerdote Hilquias (34.9,14, 18), embora seja restringido em outros lugares ao sumo sacerdote (lC r 9.11; 12.28).

Além de serem generosos, os líderes fizeram ofertas voluntárias (v. 8; “de boa vontade”, REB, NEB, NRSV, RSV) para o povo. Embora essa palavra possa ser traduzida “para as ofertas voluntárias” (JB; cf. 31.14), geralmente Crônicas enfatiza a atitude voluntária com a qual o povo apresentava suas ofertas e a si mesmos a Deus (lC r 29.5-14; 2Cr 17.16; 29.31). O mesmo espírito também é evidente no desejo dos levitas de estar plenamente preparados (v. 4,6), incluindo seu reconhe­cimento da necessidade de autopreparação (v. 4; cf. lC r 29.5; 2Cr 17.11). Aprepa- ração para o culto é especialmente importante em Crônicas, e pode ser comparada com os extensos preparativos para o templo (lC r 22) e com a preocupação de Ezequias com autopurificação para Páscoa (29.15,17).

Pode-se incluir o gado (v. 7-9) entre os animais da Páscoa, que podiam vir “de rebanho de boi ou de ovelhas” (Dt 16.2), exceto que eles são separados das ofertas da Páscoa. Elas provavelm ente são providas, portanto, para os holocaustos associados (v. 12,14). O número total de ofertas é mais que o dobro que o da Páscoa de Ezequias (2Cr 30.24), uma indicação adicional da maior generosidade e importância desta ocasião.

iii. Ofertas da Páscoa (35.10-16). A extensão desse parágrafo é marcada pela repetição das frases o serviço fo i organizado e “segundo a ordem do rei” em seu início (v. 10) e fim (v. 16), embora essa estrutura não seja reconhecida na maior parte das versões modernas. Além disso, o uso de palavras hebraicas diferentes para naquele dia marca os versículos 16 e 17 como pertencendo a parágrafos diferentes. O serviço fo i organizado é uma frase rara mas significati­va que ocorre no Antigo Testamento só aqui e em 2Cr 8.16; 29.35, significando que tudo tinha sido feito como Deus exigiu. Visto que ela aparece em outras passagens só em resumos de conclusão, seu aparecimento no versículo 10 sublinha a importância de preparar-se corretamente para o culto, incluindo a contribuição do rei e líderes leigos (v. 2,7-8).

A cerimônia da Páscoa tinha duas partes, a oferta de sacrifício (v. 11 -12) e o comer a refeição da Páscoa (v. 13-15). O ponto alto do sacrifício era quando os sacerdotes aspergiam o sangue (v. 11) sobre o altar (v. 16). Essa era uma adap­tação no ritual do templo da ação dramática no Egito quando cada casa tinha sangue de cordeiro ao redor de suas portas (Êx 12.7, 13, 22-23).21' Holocaustos (v. 12,14), geralmente, não fazem parte da Páscoa, embora por várias razões eles não devem ser considerados como partes dos sacrifícios da Páscoa queimados

211 Nem a palavra “sangue” nem a identidade daqueles a quem pertencem as mãos são mencionadas no TM. E possível pressupor o mesmo significado como o da frase mais longa em 30.16 (cf. Barthélemy, CTAT, 518) ou em endar o texto (como REB, NEB).

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no altar (Rudolph, Williamson, Dillard). Em primeiro lugar, os holocaustos freqüentem ente acom panharam outros sacrifícios como a cerim ônia de reinauguração de Ezequias (2Cr 29.24, 28, 31, 35). Em segundo lugar, a fusão parcial desta Páscoa com ofertas de comunhão (ver comentário sobre v. 14) torna uma associação com os holocaustos bastante apropriada. Em terceiro lugar, os holocaustos poderiam facilmente ter sido anexados à Páscoa como parte do ritual para os Pães Asmos (cf. v. 17; Nm 28.16-25). No entanto, esses eram provavelmente holocaustos especiais para a Páscoa, pois como a Páscoa eles eram para “grupos de famílias” (v. 12, REB, NEB). Eles foram providos para oferecerão S e n h o r (v. 21), quer dizer, para serem consumidos no altar (cf. Lv 1.9) nada restando para uma refeição, em sintonia com os regulamentos gerais para holocaustos como escrito no Livro de Moisés (v. 12).

A segunda parte das celebrações da Páscoa era a refeição Pascal, que é descrita no versículo 13a e distribuída nos versículos 13b-15. A atenção é focada nos levitas que são caracterizados por sua obediência a Deus e uma preocupação pelos outros. Os animais, por exemplo, eram assados como prescrito (v. 13), isto é, como à Páscoa egípcia (Êx 12.8-9), enquanto os serviam rapidamente (v. 13; i.e., fastfood!) alude à pressa com a qual a primeira Páscoa foi comida (Êx 12.11).212 Semelhantemente, os músicos (v. 15, NIV, GNB; não “cantores”, como REB, NEB, NRSV, RSV; ver coment. em lC r 15.16; 23.28-31; 25.6-7) seguiam as instruções dadas por Davi e seus diretores musicais contemporâneos (cf. lC r 25.1-8). A gordura (v. 14, NIV, REB, NEB) é uma referência à oferta pacífica ou de comunhão (cf. Lv 3.9-17) que tinham sido parcialmente assimiladas à Páscoa visto que ambas incluíam uma refeição comunitária ou de comunhão.

A preocupação especial dos levitas por seus colegas sacerdotes (v. 14), músicos e porteiros (v. 15), como também por (lit.) “seus irmãos o povo leigo” (v. 5-6; cf. v. 13b), oferece um modelo melhor de como se comportar em uma refeição comunitária do que as atitudes mostradas pelos cristãos de Corinto (IC o 11.17 22,27-34)! Eles distribuíram a comida primeiro aos leigos (v. 13b), mas também se asseguraram de que aqueles que estavam em serviço não fossem negligenciados (v. 14-15). Prepararam (v. 14-15) na realidade significa “fizeram os arranjos para” visto que o verbo é o mesmo que “organizar” nos versículos 10,16 (REB, NEB; cf. também 2Cr 29.35).

iv. Obediência da Páscoa (35.17-19). A fidelidade de Josias é confirmada nesse resumo. Primeiramente, a Páscoa, como em outras passagens, é combina­da com a Festa dos Pães Asmos (v. 17; c f Êx 12.8; Nm 28.16-17; Dt 16.1-8; 2Cr

2,2 “Assado” (NIV, NRSV) é lit., “cozido no fogo” (REB, NEB) e não “fervido no fogo” (contra e.g. Myers, Williamson). O verbo heb. bissel significa “cozer”, e a maneira de cozinhar em geral é indicada pela palavra qualificadora, como aqui (cf. KB, p. 157; Dillard). “Como prescrito” (cf. GNB, NRSV, JB) é preferível a “de acordo com o costume” (REB, NEB), pois, embora mispat possa ter outro significado, o elo direto com Ex 12.8-9 (e D t 16.7) é decisivo.

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2CRÔNICAS 33.1—36.1

30.13,21;M c 14;1; ICo 5.7-8). Caso sc entenda que Samuel (v. 18) representa o período de Moisés até a monarquia, o seu nome é uma alusão à Páscoa em Josué5.10-11. Além das razões dadas acima, ao explicar a singularidade desta ocasião, o versículo 18 enfatiza a ampla gama de pessoas envolvidas. Três grupos são mencionados, os sacerdotes e levitas, todo Judá e Israel, e habitantes de Jeru­salém. “Todo Judá e Israel” inclui gente do norte e do sul, implicando um público maior que à Páscoa de Ezequias (cf. 30.25).

d. A morte de Josias (35.20-36.1). Uma mudança nítida de padrão marca a transição para o parágrafo final sobre Josias, embora o próprio cronista propor­cione a nova clave com as palavras Depois de tudo isto (v. 20). O contraste é entre o “pôr o templo em ordem” de Josias (NRSV) e a invasão de Neco treze anos depois em 609 a.C. Significativamente, o sofrimento de Ezequias em cir­cunstâncias semelhantes é introduzido de um modo quase idêntico (cf. 2Cr 32.1).

O cronista interpretou o relato básico da morte de Josias em Reis de três modos distintos. Primeiramente, a reação de Josias à invasão de Neco é forte­mente irônica e, de fato, contradiz tudo aquilo que ele tinha representado ante­riormente. Embora, no nível militar, o Faraó não tivesse nenhuma disputa com Josias, e sua ameaça fosse bem menos séria que a de Senaqueribe (cf. 32.1), Josias foi derrotado ao passo que Ezequias foi liberto (32.20-22). No entanto, o contraste espiritual é o mais prejudicial, pois ao passo que Josias tinha anterior­mente ouvido com cuidado a palavra de Deus {cf. 2Cr 34.27; 35.6,12), agora ele não ouviu “às palavras que Neco lhe falara da parte de Deus” (v. 22, NRSV, RSV). Não é especificado como se esperava que Josias deveria reconhecer a orienta­ção de Deus, embora, o senso comum santificado pudesse ser uma resposta perfeitamente adequada. Além disso, como outros autores bíblicos, o cronista nunca limita os modos de Deus falar. Por exemplo, a expressão da parte de Deus é usada tão naturalmente a respeito de Neco como é de Jeremias (cf. 36.12, 21- 22), e Deus emprega regularmente estrangeiros como seus porta-vozes (e.g. 2Cr2.11-12; 9.8; 36.22-23). Embora Neco seja extremamente cego ao reivindicar que disse Deus que me apressasse (v. 21) e que Deus é comigo (v. 21; contraste com 2Cr 13.12; 32.7-81), sua linguagem não é mais chocante do que a de outros não israelitas (e.g. Gn 20.3-7; Mt 27.19).213

O pano de fundo histórico desse incidente é parcialmente esclarecido por fontes extrabíblicas. Neco estava a caminho da Síria para unir-se a Ashur-uballit,

213 Havia uma crença dissem inada no antigo Oriente Próxim o de que a vontade divina podia ser transmitida à humanidade (cf. e.g. H. W. F. Saggs, The Encounter with the Divine in M esopotam ia and Israel (London: A thlone Press, 1978), p. 125-152).

214 C f D. J. W iseman, Chronicles o f Chaldean Kings (London: British Museum, 1956), p. 18-19, 63; H. W. F. Saggs, The M ight that was Assyria (London: Sidgwick & Jackson, 1984), p. 120; A. M alam at, “Jos iah ’s bid for A rm ageddon”, Journal o f the A ncien t N ear Eastern Society 5, 1973, p. 267-278, cf. p. 274.

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2CRÔNICAS 36.2-20

o último rei da Assíria, que no ano anterior (610 a.C.) tinha ido até Carquemis em uma tentativa desesperada de preservar os restos esfarrapados do seu impé­rio.214 Juntos eles esperavam resistir ao avanço da Babilônia, a casa que me faz guerra (v. 21). É até mesmo possível que Egito e Assíria tivessem se comunicado por escrito sobre a necessidade de Neco viajar via uma guarnição egípcia em M egido.215 Ainda não se sabe se Josias decidiu interceptar os egípcios por razões internas ou como o resultado da pressão babilônica, mas se, como alguns acreditam, ele foi antecipado pelo povo de Gaza, as conseqüências foram da mesma forma desastrosas (c f Jr 47.1).

Em segundo lugar, a maneira da morte de Josias também é interpretada ironi­camente ao ser comparada com o falecimento de Acabe (v. 22-24; cf. 2Cr 18.29-34). Os elos são bastante explícitos, pois cada rei se disfarçou (v. 22; cf. 2Rs 18.29), os flecheiros deram o golpe fatal (v. 23; cf. 2Rs 18.33), cada rei admitiu estou ferido (v. 23; cf. 2Rs 18.33), e foi levado em um carro (v. 24; cf. 2Rs 18.34) antes que morresse. A extrema ironia é que apesar dos antecedentes de Josias, ele morreu do mesmo modo que alguém que foi conhecido por “odiar ao S e n h o r ” (2Cr 19.2).

Em terceiro lugar, no entanto, o cronista realçou a graça de Deus e a sua fidelidade. É confirmado que Josias morreu em Jerusalém (diferentemente de “morrer” enquanto era levado em um carro), que ele foi enterrado nos sepulcros de seus pais e não apenas em seu próprio sepulcro (v. 24; cf. 2Rs 23.30), e que ele foi muito pranteado (v. 24b-25).216 Portanto, longe de ficar embaraçado com a profecia de Hulda, o cronista se esforça para enfatizar que Deus cumpriu suas promessas sobre o enterro tranqüilo de Josias e sobre o adiamento do exílio apesar da estupidez de Josias e de sua morte violenta (cf. 2Cr 34.28). O lamento de Jeremias por Josias citado aqui não ocorre em nenhuma outra passagem, visto que os Lamentos escritos (v. 25) tem um título diferente do livro de Lamen­tações do Antigo Testamento.

“Atos” fiéis (v. 26, NRSV, atos de devoção , NIV) é uma expressão pós- exílica {cf 2Cr 32.32; Ne 13.14) que ilustra a realidade e extensão da obediência de Josias à palavra de Deus (a Lei do S e n h o r ) . As circunstâncias infelizes de sua morte, portanto, não evitaram que suas realizações fossem adequadamen­te lembradas. Nem a existência de um vácuo político deteve o povo da terra de assegurar a sucessão a Jeoacaz (36.1), como eles tinham feito com Acazias (2Cr 22.1), Uzias (26.1), e o próprio Josias (33.25), embora essa tenha sido a última oportunidade que eles tiveram de fazê-lo. Mesmo assim, a passagem de Josias afastou o último obstáculo à vinda da catástrofe, e a cerimônia de unção do novo rei não parecia mais digna de menção {cf. 2Rs 23.30).

215 Cf. Y. Yadin, “The historical significance o f Inscription 88 from Arad: a suggestion”, 1EJ 26, 1976, p. 9-14.

216 Para a tradução do particípio heb. em 2Rs 23.30 como “m orto” , cf. Gray, p. 680.

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2CRÔNICAS 36.2-20

H. Quatro reis e o fim do reino (36.2-20)Este capítulo cobre os últimos quatro reis de Judá, uma breve justificação

do exílio e um anúncio da possibilidade de um retomo. O fim vem com velocida­de notável, como uma ave de rapina que mergulha de repente depois de circular várias vezes acima de sua vítima. A forma de apresentação não tem paralelo em Crônicas, ainda que o material apresente alguma semelhança com o relato dos mesmos eventos em 2Reis. A característica mais notável é que os últimos quatro reis não são tratados por si sós mas como sendo engolfados por uma experiên­cia comum de exílio. O colapso final sob o reinado de Zedequias é portanto somente o estágio final em um processo que foi por muito tempo inevitável.

Esse arranjo tem seu próprio impulso, visto que a corrida para o começo do exílio já havia começado com Acaz (2Cr28.5, 8,11,13), Ezequias (2Cr 29.9; 30.9) e Manassés (2Cr 33.11). Ele se avoluma de forma notável em ritmo acele­rado através deste capítulo, enquanto Judá é esmagada por uma avalanche que desaba incontrolavelmente. Em comparação com o número de versículos em Reis, o reinado de Jeoacaz é reduzido em 40%, o de Jeoaquim em 55%, e o de Jeoiaquim em 80%, e quanto ao reinado de Zedequias parágrafos inteiros são reduzidos a um único versículo (cf. v. 17 com 2Rs 25.1-12; v. 18 com 2Rs25.13-17;ev. 19com2Rs25.9-10).

O fato de que essa é a única seção de 2Crônicas 10— 36 onde Crônicas lidou mais brevemente que Reis com o mesmo tema indica claramente um propó­sito especial.217 Esse propósito é revelado em três ênfases diferentes. A primeira é que a responsabilidade pelo exílio não é de nenhum indivíduo ou geração, mas implicava a nação inteira. O sentimento de culpa coletiva é muito forte, e se tornou explícito nos versículos 15-16. A segunda é que o exílio é notavelmente abrangente, tanto em sua natureza quanto em seus efeitos. Para a terra, para a monarquia, e para o templo não houve remédio algum (v. 16), e só um remanes­cente é deixado (v. 20). A única base para a esperança futura é que o S en h o r

permanece no comando. A terceira ênfase e que é a mais surpreendente é que apesar de tudo, ainda existe uma alternativa. As nuvens do juízo que se reúnem jamais obscureceram completamente o brilho da graça de Deus, embora agora ela brilhe através do exílio e não no lugar dele (v. 22-23; cf. 28.14-15; 30.9; 33.12-13). Um efeito é pôr a reforma de Josias (caps. 34— 35) sob uma nova luz, sua aceitação da autoridade da palavra de Deus (c f 34.26-28) permanece em comple­to contraste com aqueles que persistentemente a rejeitaram (36.15-16). A lição visada é óbvia, especialmente quando a palavra de Deus é o meio pelo qual a restauração começa (v. 21-22).

O livro termina, portanto, com uma definitiva nota de esperança, que nem o pecado persistente nem a realidade do juízo podem superar. No entanto, nin­

217 Japhet, Ideology, p. 364-365.

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2CRÔNICAS 36.2-20

guém deve cair no erro de pensar que isso implique que o juízo final nunca virá (e.g. Mc 13.24-31; lTs 5.1-7; cf. Hb 1.10-12). Embora o exílio proporcione evidên­cia adicional de que Deus sempre é gracioso e compassivo (cf. 2Cr 30.9), a oportunidade de clamar por sua misericórdia não existirá para sempre. Portanto, é sábio levar o convite de Deus a sério (v. 23).

Os reinados de Jeoacaz (v. 2-4), Jeoaquim (v. 5-8) e Joaquim (v. 9-10) são apresentados em forma padronizada. Ao passo que os nomes das rainhas- mães e detalhes sobre suas mortes foram omitidos, três tópicos ocorrem repe­tidamente, que os reis fizeram o mal (v. 5,9), que eles foram para o exílio (v. 4,6,10), e que os utensílios do templo foram removidos (v. 7,10). Essa padroni­zação é claramente deliberada, em especial porque parte do material é adicional a Reis (cf. v. 6-7). O objetivo dominante é dar uma interpretação coletiva, ilus­trando que os exílios dos reis não eram eventos separados mas manifestações diferentes do mesmo fenômeno. Ações individuais e até mesmo mortes são menos importantes do que o fato de os reis terem sofrido o exílio juntos por causa das atitudes descritas nos versículos 12-16.

i. A queda de Jeoacaz (36.2-4)36.2-c /2 R e is 23.31a36 .3 -4 -c/2Reis 23.33-34O rei que menos se ajusta ao padrão geral é Jeoacaz (v. 2-4; 609 a.C.),

cujo reino carece de qualquer avaliação teológica (cf. 2Rs 23.32) e não tem nenhuma referência ao templo. Na prática, entretanto, Crônicas presume o que é dito sobre ele em Reis e em Jeremias 22.11-12 (onde ele é chamado Salum), e o padrão não deve ser forçado a uma rigidez absoluta. Não existe nenhuma base para pressupor que seu tributo (v. 3) vinha do templo (Williamson), visto que é sabido que ele foi forçado a impor algum tipo de imposto sobre os rendimentos (2Rs 23.35).

O pagamento, no entanto, não lhe trouxe benefícios bem porque ele foi “deposto” (v. 3, NEB, NRSV, RSV; destronado, NIV, cf. REB), talvez por que ele foi feito rei pelo povo da terra (v. 1), o que significava que ele não era suficiente­mente pró-egípcio. Neco não pretendia correr os mesmos riscos com seu irmão mais velho Jeoaquim, mudando seu nome como um símbolo de sua submissão. Uma leve mudança textual confirma que Jeoacaz foi ao Egito à força: “ele veio” (2Rs 23.34) se toma ele fo i levado (v. 4).

ii. A queda de Jeoaquim (36.5-8)36.5-c /2 R e is 23.36-3736.6a-c f. 2Reis 24.1a36.8-c /2 R e is 24.5-6Tudo que é dito de Jeoaquim (v. 5-8; 609-598 a.C.) é que Nabucodonosor

provavelmente o levou ao exílio e tirou alguns utensílios do templo (v. 6-7).

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2CRÔNICAS 36.2-20

Embora ambos os eventos sejam típicos do padrão exílico do capítulo, o exílio de Jeoaquim causou dificuldade visto que não é mencionado em outras passagens. Um problema adicional é que não está imediatamente claro se Jeoaquim na ver­dade foi para a Babilônia ou se apenas foi ameaçado com a deportação. No entanto, visto que a frase “acorrentou-o para levá-lo para a Babilônia” (RSV) é usada em outra parte somente sobre o exílio de Manassés e Zedequias (note a expressão quase idêntica em Jr 39.7; cf. 2Rs 25.7 = Jr52.11; 2Cr33.11), parece que ele fez a viagem para o leste. Além disso, o pano de fundo para os versículos 6- 7 é aumentado grandemente se o roubo dos utensílios do templo pelos babilônios for o mesmo que é descrito em Daniel 1.1-2. Esse último aconteceu no mesmo ano (605 a.C.) de uma série de advertências feitas por Jeremias a Jeoaquim sobre um ataque babilônico iminente (Jr 25.1; 36.1; 45.1; 46.2; especialmente Jr 25.1-11) depois da vitória decisiva de Nabucodonosor em Carquemis.218 A Crônica Babilônica também declara que depois de Carquemis, “Nabucodonosor con­quistou toda a região de Hatti”, quer dizer, toda a Síria-Palestina. Jeoaquim certamente teve de aceitar a soberania babilônica imediatamente, e também no ano seguinte quando Nabucodonosor capturou Asquelom e “todos os reis de Hatti vieram a ele e ele recebeu um pesado tributo deles” .215 Jeoaquim pode ter sido levado para a Babilônia em qualquer dessas duas ocasiões, embora ele obviamente não tenha achado mais fácil aceitar a soberania babilônica do que ele havia feito com a autoridade de Deus!

O roubo dos utensílios do templo por Nabucodonosor (v. 7; “recipientes”, REB, NEB, NRSV, RSV; “mobília”, JB) é um ato altamente simbólico. Para a comunidade pós-exílica (cf. Ed J .7-1 1; Dn 5.2-3,23), esses utensílios representa­vam a continuidade com Davi (lCr28.14-18)e Salomão (2Cr 4.1 -22) e a adoração viva no templo. Eles provavelmente foram depositados em um dos templos de Nabucodonosor (v. 7; cf. Ed 1.7), embora a palavra hebraica possa significar “palácio” (REB, NEB, etc.).

Só Jeoaquim dos quatro reis nesse capítulo recebe uma fórmula de con­clusão (v. 8). Isso pode implicar que ele morreu em Judá (cf. 2Rs 24.6), embora a falta de qualquer menção de seu enterro reflita as profecias de Jeremias (22.18-19; 36.30) e é uma marca regular de desonra em Crônicas (cf. 2Cr 23.21; 33.24). As coisas detestáveis (v. 8; “abominações”, NRSV, RSV) incluiria as acusações feitas contra ele por Jeremias (cf. Jr 22.13-23; 25.1- 26.24; 35.1-36.32). Tudo que fo i achado contra ele, geralmente é uma frase neutra, é talvez melhor

218 O terceiro ano de Jeoaquim em Dn 1.1 segundo o sistem a babilônio de calcular o calendário é quase universalmente reconhecido como sendo o mesmo quarto ano do sistema palestino usado por Jeremias.

219 D. J. Wiseman, Chronicles o f Chadean Kings (London: British Museum, 1956), p. 25- 27, 66-69.

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2CRÔNICAS 36.2-20

traduzida “o que aconteceu a ele” (Myers; cf. hannimtsa’ em 2Cr 34.30-33; 35.7, 18), referindo-se ao cumprimento das palavras de Jeremias.

iii. A queda de Joaquim (36.9-10)36.9-c /2 R e is 24.8-9Joaquim é tratado tão brevemente (v. 9-10) que seu reinado parece não ter

nenhuma importância, salvo como mais uma ilustração dos temas do exílio e da pilhagem do templo. No entanto, seu exílio é de importância considerável em 2Reis 24.10-16 e em Jeremias 22.24-30, e também é relatado na Crônica Babilônica: “ele [Nabucodonosor] sitiou a cidade de Judá e... tomou a cidade e capturou o rei. Ele designou ali um rei de sua própria escolha, recebeu seu pesado tributo e levou-o para a Babilônia.”220

O próximo rei é descrito como o “irmão” de Joaquim (v. 10, NRSV, RSV), embora, visto que Zedequias era de fato o irmão de seu “pai” (REB, NEB; cf. NIV, GNB), a melhor compreensão para a palavra “irmão” é parente (NIV nr.; cf. JB; como em 2Cr 22.8). A maioria dos MSS hebraicos de Crônicas dá a idade dele na ascensão como “oito” anos (v. 9, REB, NEB, NRSV, RSV, JB), mas como se sabe a partir fontes babilônicas que cinco anos depois ele teve cinco filhos, a leitura “dezoito” (2Rs 24.18, com P e alguns MSS da LXX) é definitivamente preferível. Crônicas acrescenta mais dez dias à extensão do seu reinado de três meses (cf. 2Rs 24.8; em 597 a.C.), mas não é provável que isso tenha ligação com o problema anterior.

iv. A queda de Zedequias e do reino (36.11-20)“A ira do Senhor tornou-se tão grande que não havia mais remédio”

(36.16, NRSV).36.11-13a-c f. 2Reis24.18-20; Jeremias52.1-3Zedequias (597-587 a.C.) é tratado de forma bem diferente do relato mais

factual de 2Reis 25. Seu reinado é dominado por uma explicação teológica do exílio que tem alguma analogia geral com 2Reis 17.1-23, mas esse relato faz uso freqüente do vocabulário distintivo do cronista e tem um estilo semipoético. Em sua resposta emocional à devastação, ele foi descrito como tendo uma qualida­de “semelhante ao Holocausto” (Allen).

12-13. A atitude de Zedequias diante dos eventos é descrita primeiro, e em seguida a do povo (v. 14-16). O rei não é condenado por nenhuma ação específica (os eventos em seu reinado são tratados em detalhes em Jr 27.1— 28.17; 32.1— 34.22; 37.1— 38.28) mas por sua rebeldia geral para com Deus e o homem. Isso é ilustrado pelas versões negativas de duas expressões de 2Crôni- cas 7.14 (não se humilhou', também 2Cr 33.23; não se converteu, e por outras

220 Ibid., p. 72-73.

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frases típicas que indicam a sua semelhança com a geração que morreu no deserto (dura cerviz; cf. Êx 32.9; 33.3,5; Dt 9.6; 2Cr 30.8) e com o Faraó que se opôs a Moisés (endureceu seu coração; cf. Ex 8.15,32). Essas mesmas atitudes são identificadas no Novo Testamento como a causa de incredulidade para com Jesus e o evangelho (At 7.51; Mc 6.52; 8.17; Hb 3.13).

Embora ele pudesse ser fraco e influenciável (Jr 38.14-28), Zedequias basica­mente se opôs a Jeremias que “falou da boca do S en h o r ” (NRSV, RSV; tf. v. 15-16, 21-22). Ele foi conseqüentemente criticado tanto por Jeremias (Jr 37.2) quanto por Ezequiel, esse último em relação com romper seu juramento ao rei da Babilônia (cf. Ez 17.18-20). Seu orgulho e dureza de coração também contrasta com Josias cujo coração era tenro e que se humilhou diante da palavra de Deus (2Cr 34.27).

14-16. A atitude do povo foi, se houve alguma, pior.221 Eles acumularam seus pecados uns sobre os outros, aumentando mais e mais as transgressões (v.14) e rejeitando continuamente aos profetas (v. 15). Três queixas são feitas em particular, que eles eram infiéis (v. 14), contaminaram o templo (v. 14) e escarnece­ram dos profetas (v. 15-16). Todos os três são temas freqüentes ao longo de Crônicas, e é como se a mensagem inteira de Crônicas estivesse sendo resumida.

Ser infiel (heb. m ã‘al) significa deixar de dar a Deus o que lhe é devido e tomar isso para si.222 Isso é considerado ao longo de Crônicas (e.g. lC r 2.7; 5.25; 10.13; 2Cr 12.2; 28.19; 33.17) como uma das principais causas do exílio (c f lC r5.25-26; 9.1; 2Cr 29.6; 30.7). Uma conexão particularmente estreita existe com lCrônicas 5.25-26, visto que em ambas as passagens ainfidelidade é caracteriza­da pela idolatria e é castigada pelo envio por Deus de um exército invasor para levar o seu povo para o exílio. A infidelidade também é associada freqüentemente com a impiedade. Aqui ela envolve a contaminação do templo que Deus consa­grou (v. 14), de que um bom exemplo do tempo de Zedequias é encontrado em Ezequiel 8. Porém, tal comportamento era um convite para Deus invocar o juízo prometido de 2Crônicas 7.19-22 e destruir o templo.

A rejeição dos profetas é um tema constante em Crônicas (e.g. ICr 10.13; 2Cr24.19) e em outros lugares na Bíblia (cf. Ne 9.26; Jr 44.4; Mt 23.30-31; At 7.52). O sentimento de fracasso interminável é acentuado aqui por uma série de particípios, que não têm nenhuma referência temporal específica em hebraico (v. 16; cf. REB, NEB, “nunca deixou de zombar... desprezar... escarnecer”). O uso de várias pala­vras raras permite que o pensamento do próprio cronista se expresse de uma maneira distintiva. Zombar (“ridicularizar”, JB, GNB) e desprezar (“se divertiu com”, Mason) são únicas no Antigo Testamento, enquanto mensageiros é um termo tardio e raro para os profetas (cf. Is 42.19; 44.26; Ag 1.13; Ml 3.1).

221 A GNB (cf. REB, NEB) reza “líderes de Judá, os sacerdotes” (v. 14) com a LXX e lEsdras 1.47 contra “líderes dos sacerdotes” do TM (NIV, cf. NRSV, RSV).

222 Cf. Johnstone, “G uilt” , p. 118.

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Entretanto, no final das contas, o desfecho deve vir quando a ira de Deus é, finalmente, derramada (v. 16). O cataclismo que foi ameaçado desde Acaz (2Cr 28.9,13,25; 29.8,10; 30.8) só foi suspenso por causa da fé e arrepen­dimento de líderes individuais (cf. 2Cr 29.10; 30.8-9; 32.25-26; 33.6; 34.21,25). Agora não há nenhum remédio, uma frase assombrosa que significa literal­mente “nenhuma cura” . Ela implica o cancelamento da promessa de Deus de curar sua terra e que portanto até a oração será totalmente inútil (2Cr 7.14; cf.30.20). A coisa mais triste é que tudo isso aconteceu porque eles deram suas costas para o amor de Deus, não reconhecendo nem ouvindo aos mensageiros da “compaixão” de Deus (v. 15, NRSV; piedade, NIV, REB, NEB). No fim, o exílio não ocorreu porque Israel pecou, mas porque eles rejeitaram as ofertas de reconciliação de Deus (cf. Dt 7.7-8; Os 11.1-4).

17-20. Os eventos finais são tratados com muita rapidez. Em primeiro lugar, o povo foi entregue aos babilônios, e, porque Israel não quis a compaixão de Deus, “nenhuma compaixão” foi recebida de seus conquistadores (v. 17, NRSV, RSV; cf. (v. 15). Então, o templo e palácio foram pilhados (v. 18) antes que a própria cidade fosse destruída (v. 19). O templo e os muros (v. 19) podem ter sido destacados porque eles se tornaram o foco dos projetos de reconstrução nos livros de Esdras (caps. 1— 6) e Neemias (caps. 1— 6) respectivamente. A impressão global é de destruição absoluta. “Tudo, todos” (heb. kõl) é usado cinco vezes nos versículos 17-19, que junto com jovem e velho (v. 17), grande e pequeno (v. 18), e finalmente (lit.), “para destruição” (v. 19) confirma que não havia nenhum descanso, nenhuma fuga.

I. Com eçando a reconstruir a casa de D eus (36.21-23)

36.22-23 - cf. Esdras 1.1 -2aPorém, o que parece ser o fim não é o fim, porque a palavra de Deus na lei

e nos profetas ainda deve ser cumprida (v. 21-23). Em outras palavras, a própria existência de um futuro para Israel é completamente devida ao fato de que Deus falou. Embora Israel chegasse a um beco sem saída, Deus certamente não.

Para começar, a lei de Levítico 26.34-35,43 deve ser cumprida para que a terra experimente seu repouso ou sábado como também desolação (v. 21). Essa é clara­mente uma passagem importante para o conceito de restauração do cronista, visto que seu fraseado também é refletido na promessa central de 2Crônicas 7.14.

Então a palavra do S e n h o r proferida por Jeremias (v. 21-22) tem um duplo cumprimento. Em primeiro lugar, os setenta anos de exílio devem ser com­pletados (v. 21), e, conforme as profecias de Jeremias, esse período é restaurador (Jr 29.10) como também punitivo (Jr 25.11-14). Esse período de setenta anos provavelmente deve ser compreendido qualitativamente e não quantitativamente, como um símbolo da duração da vida humana (cf. SI 90.10). Uma geração inteira

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tinha que ser removida para evitar que qualquer ser humano roubasse o crédito de Deus ao tentar ressuscitar um futuro a partir remanescentes do passado. Abordagens mais matemáticas medem o tempo do primeiro exílio (605 a.C.) até édito de Ciro (539 a.C.) ou da destruição do primeiro templo (587 a.C.) até a reabertura do segundo (516 a.C.), mas isso parece menos sátisfatório.

As profecias de Jeremias são cumpridas, em segundo lugar, quando Deus entra em ação para iniciar o seu programa de reconstrução, com Deus a seu próprio modo mantendo o elemento surpresa até o fim. Desta vez ele cumpre sua palavra através de uma proclamação de um imperador estrangeiro (v. 22-23)! Williamson corretamente reconheceu que o anúncio de Ciro é citado de forma abreviada a partir de Esdras 1.2-4, embora ele seja desnecessariamente pessimis­ta sobre a possibilidade do cronista tê-lo anexado ao restante da obra.223 De fato, o extrato que é citado a partir do édito inclui uma reinterpretação das promessas originais de Deus a Davi em 1 Crônicas 17.4-14 e 2Crônicas 7.12-21. “Construir uma casa para ele” (v. 23, NRSV, RSV, REB, NEB; cf. Ed 1.2) é um eco deliberado da promessa central da aliança davídica (c f lC r 17.11-12; 22.10; 28.6; 2Cr 6.9-10). Ciro naturalmente está considerando apenas a casa em Jerusalém, mas no pensamento do cronista essa frase está inevitavelmente conectada com ambas as casas da aliança davídica, a dinastia e também o templo. No fim, por­tanto, o fim é também um novo começo. As promessas de Deus continuam até o exílio, durante sua própria geração e em direção ao futuro. O fim em si é inespe­radamente repentino, mas, como no caso da conclusão original do evangelho de Marcos (Mc 16.8), ele é aparentemente deliberado. A frase final, deixe-o subir, que é uma única palavra em hebraico, irrompe no meio da versão que Esdras dá do édito. Seu efeito é enfatizar que a resposta final que se espera do leitor ao livro é exercitar a fé nas promessas de Deus.224 Embora para aqueles que foram os primeiros a receber as palavras, uma viagem concreta estivesse em vista (cf. lC r 9.2-34), o convite ainda é válido e aguarda qualquer resposta apropriada enquanto Deus mantém sua promessa de construir sua casa, isto é, sua igreja (cf. Mt 16.18; Ef 2.19-22). Hoje, como nos dias do cronista, apenas as casas que são fundadas, em última instância, nas palavras de Deus permanecerão seguras, quando todas as outras forem abaladas e caírem (cf. Mt. 7.24-27; ICo 3.12-15; Hb12.25-29).

223 W illiansom , IBC, P. 7-11.224 “Yaweh/o S e n h o r ” é provável que fosse originalmente um verbo jussivo, “que ele seja”

como em Ed 1.3 (cf. L. C. Allen, The Greek Chronicles - II, SVT 27, Leiden: Brill, 1974, p. 121). A sugestão alternativa do indicativo “é/será” (de Vries, p. 9) desnecessariamente inter­rompe o sentido de que a promessa de Deus aguarda ser cumprida.

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