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Vanessa Aparecida Ricardo Anastacio UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS – LICENCIATURA EM PORTUGUÊS A Construção Paródica – Bíblica na obra: “A Paixão Segundo GH” de Clarice Lispector

A Construção Paródica – Bíblica na obra A Paixão Segundo GH de Clarice Lispector

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Este trabalho é um estudo sobre o papel da paródia na obra de Lispector “A Paixão Segundo GH” (1964), sobre como se constrói a reinterpretação da história bíblica de maneira contundente e questionadora a Paixão de Cristo aqui é reconstruída em novo sentido e a paródica se dá, sobretudo, a partir do reaproveitamento de temas da Paixão de Cristo e da Criação, os quais são retiradas do contexto religioso cristão e colocadas numa situação cotidiana, uma mulher em um apartamento com uma barata.

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Vanessa Aparecida Ricardo Anastacio

UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS

LETRAS – LICENCIATURA EM PORTUGUÊS

A Construção Paródica – Bíblica na obra: “A Paixão

Segundo GH” de Clarice Lispector

Piracicaba – SP

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Maio 2011

Vanessa Aparecida Ricardo Anastacio

UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS

LETRAS – LICENCIATURA EM PORTUGUÊS

A Construção Paródica – Bíblica na obra: “A Paixão

Segundo GH” de Clarice Lispector

Projeto apresentado ao Curso de

Licenciatura em Português, como

requisito parcial para obtenção da

Licenciatura em Letras -

Português, sob orientação da

Professora Josiane Maria de

Souza.

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PIRACICABA - SPMaio 2011

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, meus familiares, amigos e entes queridos que, ainda muitos sem saber, me ajudaram a caminhar passo a passo e alcançar a este meu objetivo que a principio era tão distante.

Aos professores por tudo que me foi ensinado e, a minha orientadora por fazer caminho comigo.

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RESUMO

Este trabalho é um estudo sobre o papel da paródia na obra de Lispector “A

Paixão Segundo GH” (1964), sobre como se constrói a reinterpretação da história

bíblica de maneira contundente e questionadora a Paixão de Cristo aqui é

reconstruída em novo sentido e a paródica se dá, sobretudo, a partir do

reaproveitamento de temas da Paixão de Cristo e da Criação, os quais são

retiradas do contexto religioso cristão e colocadas numa situação cotidiana, uma

mulher em um apartamento com uma barata.

Palavras chaves: paixão, reconstrução, paródica, barata, bíblia.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................... 06

CAOS .................................................................................................................... 10

PROVAÇÃO ......................................................................................................... 12

PECADO ............................................................................................................... 16

DANAÇÃO ............................................................................................................ 21

PAIXÃO OU O GOLPE DA GRAÇA .................................................................... 23

CONCLUSÃO ....................................................................................................... 34

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 39

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INTRODUÇÃO

A paixão segundo G.H. é construída através de um enredo corriqueiro,

banal. Após mandar embora a empregada, G.H resolve fazer uma faxina no quarto

da serviçal. Ao começar a limpeza, se depara com uma barata. Tomada pelo susto

que, manifesta o grito, o nojo, GH esmaga a barata contra a porta do armário.

A partir desse momento a personagem entrará no fluxo de perda/busca da

identidade pessoal, posto que numa espécie bárbara de “rito”, decide provar da

gosma da barata morta. Ao provar desta gosma, G.H opera-se em uma revelação.

A barata repentina em meio à rotina de G.H, entre a casa, os filhos lançou-a

para um universo fora do humano, onde a personagem inicia um longo processo

de perda/busca da identidade.

Esse anseio de encontrar os restos do homem quando a linguagem se

esgota é o que move a literatura de Clarice Lispector.

Esta literatura, portanto, não é de fácil interpretação, acerca disso Clarice

mesmo afirma:

A obra clariceana não é de fácil assimilação, pois exige demais do leitor,descentrando-o constantemente, questionando-o, abalando seu sistema de referência... incluindo o de leitura. Ou seja, diante de sua obra, os modelos tradicionais de interpretação de texto parecem falhos, como se o tempo todo algo ficasse de fora ¾ e fica. Clarice já havia percebido isso em relação à sua obra e em várias ocasiões comentou o fato, como podemos conferir no trecho a seguir:“Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais’”(Lispector, 1973, p.14).¹

Muito já fora produzido a cerca das escritas de Clarice Lispector, inclusive

de sua obra “A Paixão Segundo GH” (1964).

Assim como toda a escrita de caráter introspectivo de Clarice Lispector, “A paixão

Segundo GH” (1964) é o relato de uma experiência pessoal onde a personagem

G.H passa por um processo de perda/busca de sua identidade pessoal.

O que se pretende neste trabalho é mostrar como a autora constrói este

processo de perda/busca da identidade da personagem “G.H”, através da 1

1 - KANAAN, Dany Al-Behy. À escuta de Clarice Lispector: do biográfico ao literário. São Paulo: EDUC/Limiar.

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reconstrução paródica da história de Cristo, da Criação e da Paixão. Durante toda

a construção da obra observamos transposições, citações ou alusões aos textos

bíblicos, desde ao título até o “caminho” de identidade pessoal que percorre G.H.

São variadas as possibilidades de compreensão abertas pelo texto literário. O

estudo do tema levará em conta apresentar e explicar que a paródia - intertextual

que constrói Clarice Lispector “nada tem de cômico, ao contrario, apresenta um

forte tom irônico e questionador”2, a experiência de perda/busca da identidade

pessoal que passa a narradora-personagem, os momentos de caos, provação,

redenção até a construção final: a Paixão.

Discutir conceitualmente uma obra de arte implica tomá-la numa certa

perspectiva necessariamente, em certo sentido, destruí-la enquanto obra. Uma

das únicas formas de falar de modo artístico de arte é compondo uma outra obra

que dialogue com ela, comparando -as.

O tema escolhido justifica-se na apresentação da reconstrução paródica -

intertextual de Clarice Lispector que, utiliza fragmentos modificados dos textos

bíblicos, rompe com a tradição, com o enredo e constrói sua obra através de uma

desconstrução anterior, por sobreposição, na transposição de textos tanto do

Antigo quanto do Novo testamento no uso da inclusão dos dualismos e paradoxos,

nas alusões implícitas ou explicitas.

O critico Benedito Nunes em O Drama da Linguagem, Uma Leitura de Clarice

Lispector (1995), dedica uma parte à análise do romance “A paixão Segundo G.H”,

onde nos conta que a personagem G.H:

(...) fascinada pela barata que simultaneamente a repugna e atrai, experimenta inicialmente uma náusea seca, que é seguida por um êxtase selvagem em que ela se vê sendo vista, esvaziada de sua vida pessoal . No estado de êxtase, as oposições inconciliáveis da existência se confundem diante de G.H, numa visão abissal que reduz as diferenças e tenta supri-las.Nesta perspectiva a personagem passa por um processo de conversão radical, em que a experiência do sacrifício da identidade pessoal a leva à dolorosa sabedoria da renuncia. Esta sabedoria é paradoxal, pois a perda de G.H se transforma em ganho: através da negação de si mesma, ela atinge a realidade autentica. A descida em direção a esta existência impessoal constitui uma verdadeira ascese, em que G.H se desliga do mundo e experimenta a perda do eu.

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Ora, as correntes místicas do Oriente e do Ocidente convergem na visão do ascetismo como uma prática negativa de pregação e desnudamento da alma. O ascetismo é um método que visa ao sacrifício do eu. O processo só se completa quando o individuo supera suas limitações egoísticas que o separam da totalidade do real. Neste sentido, a purgação ascética constituiria uma antecipação da morte.A fim de ultimar a experiência de perda da individualidade, a personagem ingere a massa branca da barata esmagada, tentando assumir redimir- se na e com a própria coisa que participa: " é uma espécie de comunhão negra, sacrílega e primitivista, que ritualiza o sacrifício consumado". Este gesto de extremo desprezo à própria pessoa, contudo, gera um acesso incoercível de nojo, tal como no começo. E G.H, que saíra de seu mundo pela repugnância, a ele retorna também pela repugnância.Mas a personagem que retorna ao mundo não é mais a mesma que dele saíra. A trajetória seguida por G.H acompanha, muito de perto, a via mística, reproduzindo as suas limagens típicas do deslocamento espacial (saída/entrada), do deserto (aridez, secura, solidão, silêncio) e da contraditória visão do inefável (realidade primária, núcleo, nada, glória). ² ( Grifos meus)

Ainda de acordo com que expõe Benedito Nunes, podemos distinguir duas pautas

no discurso de A Paixão Segundo G.H. A primeira delas diz respeito ao tema da

arte e da linguagem; a outra, transversal a anterior, possui caráter paleológico e

contém a prática meditativa sobre Deus e a existência. Esta última corresponde à

via mística e, a primeira indica o movimento da narrativa em direção ao

inexpressivo, figurado pela realidade nua, vazia e silenciosa da vida divida 4. O

que, conseqüentemente gera um processo discursivo peculiar, envolvendo o

sujeito da narrativa e a própria narrativa, que Benedito Nunes descreve assim:

Na trajetória da ascese, que levaria do pessoal ao impessoal, o eu sacrificado da personagem, como sujeito de uma experiência de natureza mística, é o mesmo eu como sujeito emissor da narração, uma vez que nesse romance em primeira pessoa o narrador e a personagem formam uma só e mesma instância. O sujeito que narra é o sujeito que se desagrega. E à medida que narra a sua desagregação, e se desagrega enquanto narra, o sentido de sua narrativa vai se tornando fugidio. A metamorfose de G.H, que ela própria relata, é concomitantemente a metamorfose da narrativa. A primeira metamorfose, no rumo da experiência mística, se dá como inexpressivo impõe, dá-se como perda de identidade da própria narrativa. Ambas se produzem como um esvaziamento - esvaziamento da alma e da narrativa: a alma desapossada do eu e a narrativa, de seu objeto ³. (Grifos meus)2

2 - Olga de Sá, “Paródia e Metafísica”. Lispector, Clarice. A paixão Segundo GH. Scipione, 1997.

3 - Nunes, Benedito. O Drama da Linguagem - Uma Leitura de Clarice Lispector. 2 ed. São Paulo: Ed. Ática S.A, 1995. Série Temas, Vol 12, p. 75.

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Já fora dito que o objetivo desse trabalho é examinar a reconstrução da história

Bíblica da Paixão de Cristo através da narrativa cotidiana da obra de Lispector, o

percurso dessa reconstrução a ser apresentado no trabalho se dará pelos

seguintes processos: caos, resignação e provação, a redenção e o caminho final

onde se dá o encontro da identidade através da busca: a Paixão.

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CAOS

O caos se instaura na narrativa, através da dificuldade do narrador em

proferir um discurso sobre a experiência vivida: “Só posso compreender o que me

aconteceu, mas só me aconteceu o que eu compreendo - que sei do resto? O

resto não existiu (Lispector. 1998. p.10)”

Inicialmente com a incompreensão de G.H a respeito de sua própria vida:

Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar desorganização (Lispector. 1998. p.07)(...) Fico tão assustada quando percebo que durante horas perdi minha formação humana (...) E - e se a realidade é mesmo que nada existiu?! (...) Quem sabe nada me aconteceu? Só posso compreender o que me acontece mas só acontece o que eu compreendo - que sei do resto? O resto não existiu (...) (PSGH p.10) 4

Ao entrar no quarto da empregada o susto de G.H com o aparecimento da barata,

simultaneamente a “desorganização das idéias”, o questionamento de sua

identidade, o caos: a desordem dos pensamentos de G.H que, sabe que algo lhe

acontecerá depois do susto, no entanto ainda não é capaz de compreender.

A respeito dessa experiência da qual G.H não entende e não quer explicação, que

busca sem sucesso o recurso da linguagem para “dar forma” a experiência:

Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade. Entender é uma criação, meu único modo. (PSGH. P.17 )

A paródia inicial do caos é construída através da criação de um plano narrativo

embasado. Na incompreensão, da entrega da personagem G.H à confusão a

desordem e a impossibilidade de transformar essa experiência, de transmiti-la pra

o plano da linguagem, o que nos permite aludir aos caos cristão narrado no livro

de Gênesis , o vazio que antecede a criação:4

4 - Lispector, Clarice, A paixão Segundo GH. Todas as referências a essa obra a serem citadas daqui a diante serão feitas pela abreviação PSGH.

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No principio, Deus criou o céu e a terra. A terra estava sem forma e vazia;

as trevas cobriam o abismo e um vento impetuoso soprava sobre as

águas.

Deus disse: “ Que exista a luz!” (...)

Deus disse:” Que exista um firmamento no meio das águas para separar

águas de águas!” (Gênesis 1: 1-3; 6)

A construção de toda a criação do mundo é, portanto, através das palavras

proferidas por Deus, ou seja, a partir da linguagem, a mesma idéia é sustentada

no livro de João:

“No principio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era

Deus. Todas as coisas foram feitas por ele e sem ele nada do que foi

feito se fez. (João 1: 1-3)

É nítida a narrativa de incompreensão, de entrega da personagem à

desordem. A impossibilidade de transformar a experiência vivida em linguagem,

nos remetendo a idéia caótica de um mundo primitivo, sem formas nem

linguagem, também ao que se narra em Gênesis:

“E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o

Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. E disse Deus: Haja luz. E

houve luz. (Gen 1: 2-3)

A narrativa parte então do principio do Caos para a tentativa de um discurso que

possa, ao menos em parte, dar conta do vivido, a esse discurso será dado o nome

de Provação, onde a personagem passará pelo sofrimento ao provar da barata

morta. A narrativa nos remete ironicamente o sentido Cristão de agonia que é

justamente imposto para nos testar, como seres humanos e, em G.H esta

provação é imposta pela barata.

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PROVAÇÃO

“Provação. Agora entendo o que é provação. Provação: significa

que a vida está me provando. Mas provação: significa que eu também

estou provando. E provar pode se transformar numa sede cada vez mais

insaciável”. (PSGH p.125)

De acordo com a liturgia Cristã, as provas são instrumentos utilizados por

Deus para revelar nosso verdadeiro caráter, nesse sentido as provações são uma

maneira de sofrimento, na qual Deus nos testa nos experimenta nos conhece.

Ainda na mesma perspectiva cristã, são muitas as provas a que podemos

ser submetidos por Deus, dentre elas estão, as doenças, as perseguições e as

tentações.

No livre de Gênesis, que narra a criação do mundo, temos a narração da

primeira provação imposta ao homem: a tentação do paraíso, Deus coloca no

jardim do Éden o primeiro homem e a primeira mulher, para gozo do paraíso,

restringindo apenas a que comam o fruto da árvore da sabedoria. E, é justamente

sobre essa tentação que se transpõe à narrativa de Lispector.

Em G.H o pecado se constitui a partir da idéia do pecado original contida

em Gênesis que em síntese é o desejo de provar pelo gosto de algo proibido.

G.H passa pela experiência da provação em dois sentidos, a primeira, o ato

de provar, de sentir o gosto da “gosma da barata” e a segunda de experimentar o

sofrimento, de dar prova e testemunho dessa realidade.

Temos uma retomada ao livro de Gênesis, onde a idéia da provação é

representada através da prova do “sabor proibido”. A massa branca da barata é,

pois, uma alusão a Adão e Eva que viviam no paraíso, antes de provarem do fruto

da arvore do conhecimento, cometendo o pecado original. Assim como na

escritura, na vida da narradora, ao provar do fruto então proibido há a revelação

de uma nova verdade. Em Gênesis também, a referência à serpente, na qual a

barata se transforma.

Tocar na barata é, portanto, tocar no impuro, segundo o que a escritura nos

diz em Levitico 11: a lei que ensina a separar o impuro do puro, os animais

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Deuteronômio 14, 11-19 das aves impuras, Mateus 15, 1-11 da desobediência dos

mandamentos de Deus. A narradora acaba, portanto, de “entrar no inferno da

matéria viva, cair na danação de [sua] alma” para fugir da rotina supérflua até

então estabelecida do ser organizado e comungar com o nada, tocando, em ato

sacrílego, no imundo.

Para construir uma alma possível uma alma cuja cabeça não devore a própria cauda a lei manda que só se fique com o que é disfarçadamente vivo. E a lei manda que, quem comer do imundo, que o coma sem saber. Pois quem comer do imundo sabendo que é imundo também saberá que o imundo não é imundo. É isso?

“E tudo o que anda de rastos e tem asas será impuro, e não se comerá”. (PSGH p. 69).

A barata ser impuro, “ser empoeirado”, “um bicho de cisterna seca”

A barata como já fora dito, é a transfiguração da serpente, o animal que

impede G.H a realizar o ato proibido, a prova do interdito, do imundo através de

sua sedução: “A barata que enchia o quarto de vibração enfim aberta, as

vibrações de seus guizos de cascavel no deserto” (PSGH. p.55)

É que assim como a serpente do paraíso fizera com Eva, o inseto seduz

G.H. que provará do fruto proibido: o de dentro da mesma barata.

Assim como a serpente a barata é pura sedução. “Cílios, cílios

pestanejando que chamam. [...] E neste deserto de grandes seduções, as

criaturas: eu e a barata viva “(PSGH. p.56)”.

“A verdade é o que é [...] assim, pois entende? Por que teria eu medo de

comer o bem e o mal? (PSGH.p.140) Se eles existem é porque é isto que existe”.

E depois dessa justificativa, interpela seu interlocutor: “Lembra-te que eu comi do

fruto proibido. O conhecimento do bem e do mal e a vida”. G.H faz clara alusão a

passagem: “A árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do

bem e do mal” (Gn, 2,9) (Grifos meus)

Vai e volta percorrendo, em sua visão infinita, cenários bíblicos: “Olhando-a,

eu via a vastidão do deserto da Líbia, nas proximidades de Elschele. [...] eu já era

capaz de ver ao longe Damasco, a cidade mais velha da terra” (Lispector. 1998.

p.109).

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“Vejo uma noite na Galiléia. A noite na Galiléia é como se no escuro o

tamanho do deserto andasse” (PSGH p. 109).

Além das oposições que se constroem gradativamente na narrativa, a partir

das decisões que são tomadas passo a passo pela protagonista.

Perder/ Achar Mt 10,39: “Quem procura conservar a própria vida, vai perdê-

la. E quem perde a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la”

Perder-se/encontrar-se; ganhar/perder:

“É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo. Até agora achar-me era já ter uma idéia de pessoa e nela me engastar [...]”.

“No entanto na infância as descobertas terão sido como num laboratório onde se acha o que se achar? [...] Mas como adulto terei a coragem infantil de me perder? Perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando”.

“Todo momento de achar é um perder–se a si próprio”.“Quero saber o que mais, ao perder, eu ganhei”. (PSGH. p.17)

João 12,25: “Quem tem apego à sua vida vai perdê-la; quem despreza a

sua vida neste mundo, vai conservá-la para a vida eterna”.

Vida/Morte:

“[...] por um átimo experimentei a vivificadora morte. A fina morte que me fez manusear o proibido tecido da vida. É proibido dizer o nome da vida. E eu quase o disse. Quase não me pude desembaraçar de seu tecido, o que seria a destruição dentro de mim de minha época”. (PSGH. p.11-12)

Mateus 16,25: “Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas quem

perde a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la”.

E migra, frequentemente, do deserto ao dilúvio, de um a outro oposto: “E

então vai acontecer numa rocha nua e seca do deserto da Líbia, vai acontecer o

amor de duas baratas. [...] Sobre a rocha, cujo dilúvio há milênios já secou, duas

baratas secas” (PSGH p. 109).

Nessa paródia à provação cristã, encontramos também uma transfiguração

do deserto:

“E na minha grande dilatação, eu estava no deserto. Como te explicar? Eu estava no deserto como nunca estive. Era um deserto que me chamava como um cântico monótono e remoto chama. Eu estava sendo seduzida. E ia para essa loucura promissora”. (PSGH.p.56)

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O deserto é uma das categorias bíblicas mais férteis: local de rituais de

passagem traz a ambivalência de separação/ proximidade de Deus, os judeus, por

exemplo, denominam o deserto como ambivalente: posto que, se por um lado ele

é experiência de um tempo rude, árido, por outro é tempo em que se experimenta

a maior intimidade com Deus, a cerca disso se remetem no Antigo Testamento,

principalmente os livros de Êxodo e Deuteronômio. Já no Novo Testamento outro

significado atribuído ao deserto está no livro de Mateus, onde é narrada a tentação

de Cristo por Satanás.

O sofrimento de GH, sua provação, é ter que se deparar com a miséria,

com a pobreza, com o sujo, com o feio, enfim com o contrário ao seu mundo

puramente estético, comum. A comunhão com a barata é portanto, a revelação de

uma nova verdade, um encontro com o mundo que ela sempre quisera ignorar.

GH percebe que tanto ela quanto, Janair e a barata são feitas do “mesmo pó” e só

por mera criação humana é que se crêem distintas.

A barata é o objeto transposto da figura do Bom Pastor, que é o caminho

para a Vida: “Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim será salvo; entrará e sairá

e encontrará pastagem” (Jo 10, 9). Mt 11,12: “[...] o Reino dos céus sofre violência

dos que querem entrar e violentos se apoderam dele”.Que, em G.H., ecoará:

“Tenho que me violentar para precisar mais” (PSGH, 97).

“A entrada para este quarto só tinha uma passagem, a estreita: pela barata”

(PSGH, p. 39).

Transposição do texto bíblico: “Entrai pela porta estreita, porque larga é a

porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição. E muitos são os que entram

por ele. Estreita, porém, é a porta e apertado o caminho que conduz à Vida. E

poucos são os que o encontram” (Mt 7, 13-14).

G.H passa pela provação de aceitar e reconhecer a vida em todas as

formas, de passar pelo sofrimento da despersonalização e o reconhecimento de

uma condição de vida totalmente avessa à sua concepção de mundo organizado.

É através dessa provação que, G.H revela seu verdadeiro caráter humano, o que

a levará a cometer o pecado.

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PECADO

Entrar só era pecado porque era a danação de minha vida, para a qual eu depois não pudesse talvez mais regredir. Eu talvez já soubesse que, a partir dos portões, não haveria diferença entre mim e a barata. Nem aos meus próprios olhos nem aos olhos do que é Deus.(PSGH p.77)

Historicamente a noção de pecado está associada a contextos religiosos,

correspondendo a qualquer ato de desobediência à vontade de Deus, toda ação,

palavra ou cobiça cometida contra as leis divinas. Na perspectiva judaico-cristã, o

pecado é uma violação de um mandamento divino, que não está necessariamente

ligada a uma falta de moral.

Para os cristãos, o pecado revela nossa natureza fraca, nossa inclinação

para o Mal.

G.H comete o pecado através do ritual, da manducação da gosma da

barata (isto é, provar do impuro) e consequentemente, prova da experiência de

transcendência para o mundo então, inumano.

Após prender a barata sob o guarda-roupa para matá-la, vive uma

experiência de aversão e sedução, náusea e fascínio, são esses sentimentos que

a farão abandonar sua vida cotidiana e reverter esse espaço também cotidiano

numa paisagem onírica. Este é, portanto, o ponto de extrusão entre GH e esse

“mundo cotidiano”.

G.H passa a reconhecer a barata como algo familiar, passa a perceber a

barata como um ser comum a ela: “Era isso era isso então. É que eu olhara a

barata viva e nela descobria a identidade de minha vida mais profunda”. Essa

percepção desperta a curiosidade, G.H precisa saber, haveria vida na barata?

Essa vida é feita da mesma matéria que G.H? Ela também faria parte da barata?.

“Eu tinha que cair na danação da minha alma, a curiosidade me consumia”

(PSGH p.55).

Mas, para obter resposta a essa curiosidade G.H teria primeiro que

abandonar o mundo como lhe era conhecido, abandonar a ordem. Para obter essa

resposta precisaria estará altura da natureza mais primitiva, humilhar-se ceder aos

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seus instintos ignorados, teria que conhecer a vida através do extremo: a morte da

barata.

G.H entrega-se ao ritual, a experiência de comunhão a ingestão sacrílega

da barata que remete ao ritual católico da eucaristia. A partir desse momento, G.H

revive a origem do mundo e se une à divindade.

A santa Eucaristia conclui a iniciação cristã. Os que foram elevados à

dignidade do sacerdócio régio pelo Batismo e configurados mais profundamente a

Cristo pela Confirmação, estes, por meio da Eucaristia, participam com toda a

comunidade do próprio sacrifício do Senhor. Os cristão recebem o pão

(representado pela hóstia) e o vinho, repetindo os atos que Cristo fez na última

Ceia. A ingestão do pão representa o corpo de Cristo concebido sem pecado, o

vinho é a representação do sangue para remissão de nossos pecados na Paixão.

Na última ceia, na noite em que foi entregue, nosso Salvador institui o Sacrifício

eucarístico de seu Corpo e Sangue:

"Durante a refeição, Jesus tomou o pão e, depois de o benzer, partiu-o e deu-lhe, dizendo: 'Tomai, isto é o meu corpo'. Em seguida, tomou o cálice em suas mãos, deu graças e o apresentou, e todos deles beberam. E disse-lhes: 'Isto é o meu sangue, o sangue da nova e eterna aliança que será derramado por vós e por todos. Em verdade eu vos digo: já não bebereis do fruto da videira, até aquele dia em que o beberei de novo no Reino de Deus'" (Mc 14, 22-25)

"Eu sou o pão da vida: aquele que vem a mim não terá fome, e aquele que crê em

mim jamais terá sede" (Jo 6, 35).

A Eucaristia representa o sacrifício de Cristo na cruz.

Enquanto na Bíblia temos as passagens: “Se não comerdes a carne do

Filho do Homem e não beberdes o seu sangue não tereis a vida em vós”, e ainda:

“Quem come a minha Carne e bebe o meu Sangue tem a vida eterna” (Jó 6, 53-

54). G.H., no entanto, comete o “ato ínfimo”, come da massa insípida, neutra,

numa experiência de vômito e náusea:

Crispei minhas unhas na parede: eu sentia agora o nojento na minha boca, e então comecei a cuspir, a cuspir furiosamente aquele gosto de coisa alguma, gosto de um nada que no entanto me parecia quase adocicado como o de certas pétalas de flor, gosto de mim mesma – eu cuspia a mim mesma, sem chegar jamais ao ponto de sentir que enfim tivesse cuspido minha alma toda. “ – – – porque não és nem frio nem

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quente, porque és morno, eu te vomitarei da minha boca”, era Apocalipse segundo são João, e a frase que devia se referir a outras coisas das quais eu já não me lembrava mais, a frase me veio do fundo da memória, servindo para o insípido do que eu comera – e eu cuspia.O que era difícil: pois a coisa neutra é extremamente enérgica, eu cuspia e ela continuava eu. (PSGH p. 162)

A desleitura do rito da comunhão implica, pois, a opção de G.H. pela

imanência e não pela transcendência. Os rituais, de G.H. e o do cristão,

apresentam efeitos opostos, como observa Olga de Sá:

O cristão é assimilado pelo Corpo de Cristo e Nele se transforma. Se Ele é Deus, como disse, e como crê o cristianismo, transcende o homem. Portanto, pela manducação da hóstia, o cristão é alçado, na medida em que lha é permitido, à comunhão com Deus. Na experiência de G.H., a manducação da barata, protótipo da matéria-prima do mundo, produz pelo mesmo efeito de transformação, mas invertido, a redução da personalidade de G.H. ao nível da pura matéria viva. Há a “despersonalização”, isto é, G.H. se perde como pessoa, para alcançar-se como ser e encontrar sua identidade ao nível do puramente vivo. 5

G.H rompe com sua condição prévia através do nojo repugnante e do

reconhecimento de si na figura da barata. Posteriormente a essa fase se dá o

inicio da própria existência simbólica, na qual a representação se dá na ingestão

da matéria de dentro da barata e corresponde a perda da identidade de G.H como

antes era conhecida.

Benedito Nunes6 aponta que a experiência de desapossamento da

individualidade, de perda da identidade só se dá com a ingestão da barata. G.H

quer se livrar de todo acréscimo e para isso precisa redimir-se na própria coisa

numa espécie de comunhão negra, sacrílega e primitivista em que assimila a vida

divina na própria matéria viva:

O único destino com que nascemos é o do ritual. Eu chamava ‘máscara’ de mentira, e não era: era a essencial máscara da solenidade.Teríamos de pôr máscaras de ritual para nos amarmos (...). Pelo pecado original, nós perdemos a nossa máscara. (PSGH p.112)5

5 – Sá, Olga: Paródia e Metafísica In: LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. Ed. crítica. Benedito Nunes, coord. Florianópolis: 1988.

6 - Nunes, Benedito: O Itinerário místico de G.H. In: O drama da Linguagem, p. 65.

7 – é, pois, uma representação às avessas da Eucaristia, o animal imundo e impuro representando aquilo que é Sagrado: o corpo de Cristo.

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O pecado de G.H consiste fundamentalmente em provar da matéria

expelida pelo corpo da barata, contrariando a proibição bíblica de tocar no imundo.

Pode-se assinalar também que além da transgressão a uma interdição bíblica, a

narrativa de G.H também representa a realização de um ritual místico às avessas

em que o imundo é objeto de comunhão 7 .

Nos é sabido desde os tempos da criação que o ser humano é apontado

como criatura que falha e pecam, somos naturalmente incitados a fazer o mal,

embora tenhamos o livre-arbítrio em optar por não fazê-lo.

A decorrência imediata do pecado é a culpa e o sofrimento, há, no entanto,

outros tipos de punição que é dada de acordo com a gravidade do ato cometido. A

mais severa das punições impostas ao homem é a danação, que corresponde à

condenação da alma ao Inferno. E segundo a perspectiva cristã, a única forma

para o homem livrar-se dessas penas é o arrependimento, a confissão como

forma de unir-se novamente à divindade.

Conforme já fora dito, segundo a ortodoxia cristã, o pecado constitui um ato

consciente e voluntário de desobediência às leis divinas. A ação cometida por G.H

caracteriza-se como pecado, portanto, por se opor diretamente ao texto do

Levítico:

“Tudo o que anda sobre o ventre ou que caminha sobre quatro ou mais patas, isto é todos os répteis que rastejam pelo chão, nenhum deles é comestível, porque são imundos.Não se tornem imundos com nenhum desses répteis que rastejam. Não se contaminem com eles e não sejam contaminados por eles “. (Lev. 11:42-43) (Grifos meus)”.

Segundo a escritura o homem é, portanto proibido de provar, tocar ou alimentar-se

dos seres ditos imundos. A barata não fora aí explicitamente citada, no entanto

podemos enquadrá-la na ordem dos animais que rastejam e que andam sob o

próprio ventre, assim como a serpente, seres imundos.

Mas contrariamente ao que supõe a ortodoxia cristã a respeito das conseqüências

do pecado, o que se observa na ação de G.H não é o arrependimento ou a culpa,

mas sim uma revelação: G.H ao provar da gosma da barata descobre o que o

imundo não é imundo e tudo que é vivo é feito do mesmo.

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Ao provar da barata, G.H toma consciência de si mesma, outra vez aludindo a

Adão e Eva, através da prova do fruto proibido que se chegará ao conhecimento:

“Já então eu talvez soubesse que não me referia ao que eu fizera à barata mas sim a: que fizera eu de mim? É que nesses instantes, de olhos fechados, eu tomava consciência de mim assim como se toma consciência de um sabor: eu toda estava com sabor de aço e azinhavre, eu toda era ácida como um metal na língua, como planta verde esmagada, meu sabor me veio todo à boca” (PSGH p.49) (Grifos meus).

Ao provar da gosma da barata G.H se coloca no mesmo nível desse ser, ambas

faziam parte do mesmo plano e não havia mais diferença entre ambas. Há,

portanto, a desumanização da antiga G.H para entrar no núcleo de uma outra

natureza. E entrar nessa nova natureza não era pecado, mas era a danação de

sua vida como era conhecida anteriormente:

Eu sabia que entrar não é pecado. Mas é arriscado como morrer. Assim como se morre sem se saber para onde, e esta é a maior coragem de um corpo.Entrar só era pecado porque era a danação de minha vida, para a qual eu depois não pudesse talvez mais regredir. Eu talvez já soubesse que, a partir dos portões, não haveria diferença entre mim e a barata. Nem aos meus próprios olhos nem aos olhos do que é Deus. (PSGH p.77)

O ritual da manducação é a tentativa de tornar a experiência de G.H uma espécie

de comunhão com Deus e de conhecer a si mesmo em essência.

Na Bíblia ver é essencial para que se possa profetizar, Ex. 37, por exemplo:

“Não poderás ver a minha face, porque o homem não pode ver-me e

continuar vivendo” (Ex 33,18. 20). Assim também G.H. deseja ver a face de Deus,

mas teme (Lispector. 1998 p. 63), “[...] ai de mim, eu não estava à altura senão de

minha própria vida” (Lispector. 1998 p. 162). “[...] Mas eu bem sabia que não só

mulher que tem medo de ver, qualquer um tem medo de ver o que é Deus. Eu

tinha medo da face de Deus [...]” (Lispector. 1998 p. 93).

O horror é que sabemos que é em vida mesmo que vemos Deus. É com olhos abertos mesmo que vemos Deus. E se adio a face da realidade para depois de minha morte — é por astúcia, porque prefiro estar morta na hora de vê-Lo e assim penso que não O verei realmente, assim como só tenho coragem de verdadeiramente sonhar quando estou dormindo.[...] E se a pessoa vê essa atualidade, ela se queima como se visse o

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Deus. A vida pré-humana divina é de uma atualidade que queima”. (PSGH. p. 97.)

O pecado, portanto, representa uma possibilidade de redenção. Provar da gosma

branca da barata é a possibilidade de arrependimento:

- Então - então pela porta da danação, eu comi a vida e fui comida pela vida. Eu entendia que meu reino é deste mundo. E isto eu entendia pelo lado do inferno em mim. Pois em mim mesma eu vi como é o inferno. (PSGH p.115)

DANAÇÃO

Ao provar da massa da barata G.H está consciente de que será condenada

ao inferno, a danação é, portanto, a consequência do pecado cometido por G.H. O

inferno de G.H é a aceitação da dor, a falta de piedade pelo destino humano, o

que de certa forma faz desse inferno não uma punição, mas a nossa própria

condição consciente de existência.

A tentação do prazer. A tentação é comer direto na fonte. A tentação é comer direto na lei. E o castigo é não querer mais parar de comer, e comer-se a si próprio que sou matéria igualmente comível. E eu procurava a danação como uma alegria. Eu procurava o mais orgíaco de mim mesma. Eu nunca mais repousaria: eu havia roubado o cavalo de caçada de um rei da alegria. Eu era agora pior do que eu mesma Nunca mais repousarei [...] (PSGH p.123)

Esta experiência de danação vivida pela narradora é um misto de gozo e

dor, riso e pranto que pode em síntese ser apontado como a negação da

esperança e da humanização, para afirmar a realidade da condição humana que

nada mais é que nossa sujeição à dor:

Quero o material das coisas. A humanidade está ensopada de humanização, como se fosse preciso; e essa falsa humanização impede o homem e impede a sua humanidade. Existe uma coisa que é mais ampla, mais surda, mais funda, menos boa, menos ruim, menos bonita. Embora também essa coisa corra o perigo de, em nossas mãos grossas, vir a se transformar em “pureza”, nossas mãos que são grossas e cheias de palavras [...][...].

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O mundo não tem intenção de beleza, e isto antes me teria chocado: no mundo não existe nenhum plano estético, nem mesmo o plano estético da bondade, e isto antes me chocaria. A coisa é muito mais que isto. O Deus é maior que a bondade com a sua beleza. (PSGH.p.154)

Temos aí outra inversão importante das escrituras:

“Enquanto, segundo o cristianismo, é pelo amor que os homens podem realizar o melhor de si mesmos, para G.H. é pela ausência de sentimentos, pela redução da vida humana à sensação, à vida física e material, ao ‘mundo da coisa’, que o homem alcança a plenitude. Sem beleza, sem amor. Apenas a monotonia do ser, a ausência do gosto, a violência do neutro”. 8

8Benedito Nunes9 aponta que na maioria das religiões Deus e o homem ocupam

necessariamente, planos ontológicos distintos. Onde o homem é marcado pela

carência, pela falta e está num plano inferior, enquanto que a divindade,

representa a promessa de uma nova vida e da salvação e está sempre num plano

superior. Ao contrário desse plano de ascensão, no entanto, o que G.H

experimenta com a manducação é uma grande indiferença. A experiência de

comunhão de sua alma com Deus resultam na percepção de que o que se que é

apenas uma divindade humana. Não precisamos de alma. Deus que não é nem

bom, nem mal, é apenas indiferente. Deus é a vida que segue seu rumo

interessado somente em caminhar.

Dói em ti que a bondade do Deus seja neutramente contínua e continuamente neutra? Mas o que eu antes queria como milagre, o que eu chamava de milagre, era na verdade um desejo de descontinuidade e de interrupção, o desejo de uma anomalia: eu chamava de milagre exatamente o momento em que o verdadeiro milagre contínuo do processo se interrompia. Mas a bondade neutra do Deus é ainda mais apelável do que se não fosse neutra: é só ir e ter, é só pedir e ter. (PSGH p) (Grifos meus)

Depois do mergulho na consciência, da perda da identidade através da

realização do ritual, o que acontece apenas é o retorno do cotidiano, a danação

experimentada pela narradora, deste modo, não representa a condenação ou

punição, mas ao contrário, se converte em redenção e a paixão passa ser a única

marca da existência humana.8

– Emília Amaral O leitor segundo G.H. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.

9 - Benedito Nunes, O itinerário místico de G.H. In: O drama da linguagem. P. 37.

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A experiência mística por qual passa G.H não leva a sua alma à comunhão

com Deus como relata as escrituras, mas ao seu encontro com as coisas que

compõem o real, o presente humano. Esta experiência não é algo transcendente,

mas que se realiza na prática diária e cotidiana, através do reconhecimento da

vida e do divino. O divino para G.H é o real. Não há alma imaterial.

PAIXÃO OU O GOLPE DA GRAÇA

Falta apenas o golpe da graça - que se chama paixão.O que estou sentindo agora é uma alegria. Através da barata viva estou entendendo que também eu sou o que é vivo. Ser vivo é um estágio muito alto, é alguma coisa que só agora alcancei. É um tal alto equilíbrio instável que sei que não vou poder ficar sabendo desse equilíbrio por muito tempo a graça da paixão é curta. (PSGH p.167)

Na perspectiva cristã a Paixão de Jesus narrada segundo Mateus, Marcos,

Lucas e João é o máximo do sofrimento experimentado pelo Filho de Deus para a

redenção da humanidade. Será recompensada pela Ressurreição. A Paixão de

G.H. se dá numa via sacra profana que a leva do entender ao não entender, do

pensar ao adorar; em todo caso, da morte à vida tendo suposto um defrontar-se

com o mais alto grau de prazer e martírio. “A via-crucis não é um descaminho, é

a passagem única, não se chega senão através dela e com ela.” (PSGH. p. 172).

A isto ela chama paixão: “E é aceita a nossa condição como a única possível, já

que ela é o que existe, e não outra. E já que vivê-la é a nossa paixão. A condição

humana é a paixão de Cristo”.(PSGH. p.171).

Há uma oração feita por Jesus logo antes de sua Paixão, segundo João

(17, 11d, 12c.21bc.22-23)

Pai santo,guarda-os em teu nomeque me deste,para que sejam um como nós.Quando eu estava com eles,eu os guardava em teu nomeque me deste;[...]Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti,

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que eles estejam em nós.[...]Eu lhes dei a glória que me destepara que sejam um, como nós somos um:Eu neles e tu em mim,para que sejam perfeitos na unidadee para que o mundo reconheça que me enviastee os amaste como amaste a mim.

Na narrativa de GH, encontramos o contrário do texto anterior, que se

constrói a partir da repetição e a transposição de certas expressões bíblicas:

Meu Deus, dá-me o que fizeste. Ou já me deste? e sou eu que não posso dar o passo que me dará o que já fizeste? O que fizeste sou eu? e não consigo dar o passo para mim, mim que és Coisa e Tu. Dá-me o que és em mim. Dá-me o que és nos outros, Tu és o ele, eu sei, eu sei porque quando toco eu vejo o ele. Mas o ele, o homem, cuida do que lhe deste e envolve-se num invólucro feito especialmente para eu tocar e ver. E eu quero mais do que o invólucro que também amo. Eu quero o que eu Te amo. (PSGH p. 133).

Na paixão o pecado também leva à danação, porém a perda da graça

divina, a experiência do inferno, mais uma vez, ao contrario do que relata as

escrituras, é percebida como algo positivo e revelador. G.H não quer mais ser

interprete de uma relação com o divino, na qual é baseada apenas na esperança

da transcendência, e que não reconhece a condição real de nossa existência. A

perda da graça divina é o reconhecimento de Deus simplesmente no real.

Ah, despedir-se disso tudo significa tal grande desilusão. Mas é na desilusão que se cumpre a promessa, através da desilusão, através da dor é que se cumpre a promessa, e é por isso que antes se precisa passar pelo inferno: até que se vê que há um modo muito mais profundo de amar, e esse modo prescinde do acréscimo da beleza. Deus é o que existe, e todos os contraditórios são dentro do Deus, e por isso não O contradizem.Ah, em mim toda está doendo largar o que me era o mundo. Largar é uma atitude tão áspera e agressiva que a pessoa que abrisse a boca para falar em largar deveria ser presa e mantida incomunicável - eu mesma prefiro me considerar temporariamente fora de mim, a ter a coragem de achar que tudo isso é uma verdade.(PSGH p.154)

Para G.H., “Deus já é.”G.H. redimensiona sua maneira de relacionar-se com Deus.

Há, com isso, uma nova forma de acreditar no divino; por conseguinte, G.H.

anseia incessantemente a presença “do Deus”, não apenas pela promessa e

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esperança de um reino distante, num plano ontológico distinto. Conforme afirma

G.H.:

eu não quero o reino dos céus, eu não o quero, só agüento a sua promessa! A notícia que estou recebendo de mim mesma me soa cataclísmica, e de novo perto do demoníaco. Mas é só por medo. É medo. Pois prescindir da esperança significa que eu tenho que passar a viver, e não apenas me prometer a vida. E este é o maior susto que se pode ter. Antes eu esperava. Mas o Deus é hoje: seu reino já começou. (PSGH p. 143)

O drama da paixão assemelha-se à narrativa dos Evangelhos do Novo

Testamento; no entanto, quem a protagoniza não é o filho de Deus do

Cristianismo, mas o mesmo sujeito que a relata, como designa Emília Amaral,

acerca da narradora personagem. Ela é G.H.: uma mulher cujo nome se confunde

com as suas iniciais e que, à primeira vista, não parece possuir a exemplaridade

dos evangelistas, os seres escolhidos para revelar o divino, na medida em que se

trata de um eu mutilado, de uma personificação do ser humano retificado. No

entanto, é uma mulher quem substitui não apenas os evangelistas, mas a própria

figura de Jesus Cristo, ocupando espaço do sujeito que se deixou atravessar pelo

sagrado, que provou o conhecimento da divindade e que se reconheceu como

fruto/parte dela.

Segundo Emília Amaral, Clarice Lispector “desloca a paixão de Cristo do

plano da transcendência para o da imanência”, ou seja, “segue um modelo bíblico,

mas o reverte, frequentemente, na construção de seu próprio itinerário”.

“Enquanto as narrativas bíblicas constituem partes dos Evangelhos que relatam os sofrimentos de Cristo como foram vistos ou conhecidos por seus discípulos, em PSGH a paixão é vivida e narrada pela protagonista”. Assim, a autora diferencia a paixão de G.H. da paixão segundo G.H. Se a primeira é uma “experiência-limite”, “porque a manducação da barata levara G.H. à renúncia de sua vida pessoal, de seu ser como linguagem”, a segunda também o é, na medida em que “atinge a natureza do ser produtor de linguagem: o escritor”.A obra estrutura-se, portanto, entre o silêncio da imanência que será conquistada pela personagem G.H. e a transcendência da linguagem com a qual este silêncio será relatado pela narradora G.H. Trata-se de uma ontologia, uma metafísica empiricamente construída para “desvelar o ser contra a linguagem (fazendo linguagem), contra a razão que o encobre, contra a transcendência, que, segundo a narradora, o ultrapassa. A Paixão é dor contra o hábito, que insensibiliza. É a vida, a

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totalidade, contra o ‘eu’, o puramente psicológico”. 10 (Amaral . 2005 p. 36)

Ainda nessa perspectiva de reversão as escrituras na qual se constrói a

narrativa há algumas transposições feitas por G.H no “golpe da paixão”: “A

revelação do amor é uma revelação de carência “Bem-aventurados os pobres de

espírito porque deles é o dilacerante reino da vida” (Lispector. p. 148 ). Enquanto

que nas escrituras temos: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles

é o Reino dos Céus” (Mt 5,3)

Dentre as transposições mais expressivas, ainda que apareça fragmentada

ao longo do texto, está a oração “Ave Maria”. Constituída de duas partes, a

primeira é uma junção de dois versículos bíblicos, saudação do anjo Gabriel:

“Alegra-te (ave), [Maria,] cheia de graça, o Senhor está contigo” (Lc 1,28)

acrescido da exclamação de Isabel: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o

fruto de teu ventre!” (Lc 1, 42).

A segunda parte é uma súplica dos fiéis: “Santa Maria, mãe de Deus, rogai

por nós pecadores agora e na hora de nossa morte. Amém!” Como é comum aos

cristãos que rezam a Ave Maria dirigirem-se à mãe de Jesus com a expressão

“minha mãe”, também ela será retomada aqui como uma transposição:10

“Santa Maria, mãe de Deus, ofereço-vos a minha vida em troca de não ser verdade aquele momento de ontem” (Lispector. 1998p.72).

“ e eu também sabia que na hora de minha morte eu também não seria traduzível por palavra (Lispector.p. 74).

“Reza por mim, minha mãe, pois não transcender é um sacrifício” “O que sai da barata é: “hoje”, bendito o fruto de teu ventre” “ [...] porque, minha mãe, eu me habituei” [...] (PSGH, 79).

“Mãe: matei uma vida, e não há braços que me recebam agora e na hora do nosso deserto, amém. Mãe, tudo agora tornou-se de ouro duro.

Interrompi uma coisa organizada, mãe, e isso é pior que matar, isso me fez

entrar por uma brecha [...] estou com medo de minha rouquidão, mãe.

A barata é de verdade, mãe.Mãe, eu só fiz querer matar, mas olha o que quebrei: quebrei uminvólucro! [...]De dentro do invólucro está saindo um coração

grosso e branco e vivo como pus, mãe, bendita sois entre as baratas,

1 0 - AMARAL, Emília. O leitor segundo G.H. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005

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agora e na hora desta tua minha morte, barata e jóia (PSGH 90. Grifos meus).

Transposição relativa ao Reino de Deus. Excepcionalmente ao que se

refere aqui, claramente, à resposta dada a Pilatos por Jesus, em sua paixão: “O

meu reino não é deste mundo” (Jo 18, 36):

“ Então pela porta da danação eu comi a vida e fui comida pela vida. Eu

entendia que meu reino é deste mundo. E isto eu entendia pelo lado do inferno

em mim” (PSGH, 115). (Grifos meus)

“Porque é como se eu estivesse me dando a notícia de que o reino dos

céus já é (PSGH, 143)”.

(...) E eu não quero o reino dos céus, eu não o quero, só agüento a sua

promessa. [...] Mas o Deus é hoje e seu reino já começou.

(...) “E seu reino, meu amor, também é deste mundo”.

“ Meu reino é deste mundo... e meu reino não era apenas humano.

Eu sabia. Mas saber disso espalharia a vida-morte, e um filho no meu

ventre estaria ameaçado de ser comido pela própria vida-morte, e sem

que uma palavra cristã tivesse sentido... Mas é que há tantos filhos no

ventre que parece uma prece” (PSGH, 143. Grifos meus).

Por analogia, associa-se, logo o gosto quase nulo da massa branca da

barata à hóstia. É a própria narradora quem o diz: “Ah, as tentativas de

experimentar a hóstia.” (PSGH. p. 149).

Olga de Sá comenta essa analogia:

“Um fenômeno místico. O cristão é assimilado pelo Corpo de Cristo e Nele se transforma. Se Ele é Deus, como disse, e como crê o cristianismo, transcende o homem”. Portanto, pela Eucaristia, “manducação da hóstia”, o cristão é alçado à comunhão com Deus. Com G.H. dá-se o mesmo efeito de transformação, só que às avessas.

A manducação da barata, protótipo da matéria-*prima do mundo”, produz “a redução da personalidade de G.H. ao nível da pura matéria viva.” Assim G.H. se despersonaliza, “se perde como pessoa, para alcançar-se como ser e encontrar sua identidade ao nível do puramente vivo”.

(...)“porque para a manducação da barata, G.H. renunciou à sua vida pessoal, a seu ser como linguagem” 11

G.H nega a idéia tradicional de existência de um Deus providencial, pessoal e

transcendente. Deus é o que existe, não é nome próprio, mas, substantivo comum

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e é por esse motivo que a partir de sua experiência irá se referir a Ele como “o

Deus”, artigo definido:

“o Deus não promete. Ele é muito maior que isso: Ele é, e nunca pára de ser. Somos nós que não agüentamos esta luz sempre atual, e então a prometemos para depois, somente para não senti-la hoje mesmo e já. O presente é a face hoje do Deus. O horror é que sabemos que é em vida mesmo que vemos Deus. É com os olhos abertos mesmo que vemos Deus. E se adio a face da realidade para depois de minha morte - é por astúcia, porque prefiro estar morta na hora de vê-Lo e assim penso que não O verei realmente, assim como só tenho coragem de verdadeiramente sonhar quando estou dormindo”. (Lispector. 1998 p.142-143).

A G.H só lhe foi possível saber o que é Deus através de um eu desapossado de si

mesmo, no qual a narradora o identifica por “mim”: “Eu não sou Tu, mas mim és

Tu. Só por isso jamais poderei Te sentir direto: porque és mim”. (Lispector.p.126).

Para G.H só ao sujeito despido de identidade, de construção humana é capaz de

sentir o que é Deus.11

Para Reis12, o esmagar da barata corresponde, para G.H., a deixar-se esmagar. E

tal identidade entre ambas torna o ritual da comunhão, presente na obra, “uma

paráfrase ao gesto ensinado pelo Deus que se fez homem”. Ou seja: assim como

Cristo bebeu o próprio sangue na Eucaristia, G.H. realiza o equivalente a beber o

próprio sangue, desta forma alcançando, simbolicamente, um outro estágio, no

qual apreende a dimensão da natureza humana e “conhece o sofrimento, num

modo que significa a conquista do Ser”.

Para G.H nossa relação com Deus é guiada excepcionalmente pela

necessidade: a Fé e a Fome. O próprio Cristianismo nasce a partir da Fé na

Ressurreição de Cristo, após sua Paixão.

Nossa carência determina o quanto de Deus teremos “minha exigência é o meu

tamanho, meu vazio é a minha medida”:

1 1 - SÁ, Olga. No território da paixão: A vida em mim. In: LISPECTOR, Clarice. A

Paixão Segundo G.H. 14ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p. 5-12.

12 - Luzia de Maria de Rodrigues Reis, “O Trágico da Paixão: Uma Leitura de PSGH” . 1981.

p.148 -151

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(...)E eu tenho. Eu sempre terei. É só precisar, que eu tenho. Precisar não acaba nunca pois precisar é a inerência de meu neutro. Aquilo que eu fizer do pedido e da carência esta será a vida que terei feito de minha vida. Não se colocar em face da esperança não é a destruição do pedido! e não é abster-se da carência. Ah, é aumentá-la, é aumentar infinitamente o pedido que nasce da carência. (...)(...)E nós sabemos Deus. E o que precisamos Dele, extraímos. (Não sei o que chamo de Deus, mas assim pode ser chamado.) Se só sabemos muito pouco de Deus, é porque precisamos pouco: só temos Dele o que fatalmente nos basta, só temos de Deus o que cabe em nós. (A nostalgia não é do Deus que nos falta, é a nostalgia de nós mesmos que não somos bastante; sentimos falta de nossa grandeza impossível - minha atualidade inalcançável é o meu paraíso perdido.)Sofremos por ter tão pouca fome, embora nossa pequena fome já dê para sentirmos uma profunda falta do prazer que teríamos se fôssemos de fome maior. (Lispector . 1998. p.145-146) (Grifos meus).

Deus nos usa, pois ele precisa ser amado e para que amemos é necessário

precisar de tudo, estar vazio. Essa é, portanto a clave da paixão.

G.H conclui, por fim que tudo está e assim, por exemplo, o que ainda não

descobrimos é porque certamente ainda não precisamos.

A revelação do amor é também uma revelação de carência. Abdicando a

esperança, G.H celebra a própria carência, assume sua falta em ultima instancia a

sua condição de vida:

(...)minha vida antiga me era necessária porque era exatamente o seu mal que me fazia usufruir da imaginação de uma esperança que, sem essa vida que eu levava, eu não conheceria.E agora estou arriscando toda uma esperança acomodada, em prol de uma realidade tão maior que cubro os olhos com o braço por não poder encarar de frente uma esperança que se cumpre tão já - e mesmo antes de eu morrer! (PSGH p.155)

G.H precisou passar pelo inferno da existência para poder reconhecer que

há um modo muito mais profundo de amar que prescinde desse plano estético:

eu me queimo nesta descoberta: a de que existe uma moral em que a beleza é de uma grande superficialidade medrosa. Agora aquilo que me apela e me chama é o neutro. Não tenho palavras para exprimir, e falo então em neutro. Tenho apenas esse êxtase, que também não é mais o que chamávamos de êxtase, pois não é culminância. Mas esse êxtase sem culminância exprime o neutro de que falo. (PSGH. p.155)

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Temos na narrativa de G.H então, dois tempos de sua experiência

existencial: anterior e posterior à epifania, A Paixão Segundo G.H. O próprio tema

“paixão” tem sua fundamentação na linguagem contraditória. Lida de um ângulo

cristão, a paixão leva indubitavelmente à ressurreição. A vida nova supõe o

abandono completo até a morte.

Desde a pré-história eu havia começado a minha marcha pelo deserto, e sem estrela para me guiar, só a perdição me guiando, só o descaminho me guiando até que morta pelo êxtase do cansaço, iluminada de paixão, eu enfim encontrara o escrínio. E no escrínio, a faiscar de glória, o segredo escondido. [...]Dentro do escrínio o segredo:Um pedaço de coisa.Um pedaço de ferro, uma antena de barata, uma caliça de parede.Minha exaustão se prostrava aos pés do pedaço de coisa, adorando infernalmente. (PSGH. p. 131)

E como o Rei crucificado, que deu a vida livremente (Jo 10,17-18), G.H.

afirma: “para ter esse segredo [...] de novo eu daria a minha vida”. [...] “A mim me

fora dado demais. Que faria eu com o que me fora dado? ‘Que não se dê aos cães

a coisa santa’.” (PSGH p. 89). Essas palavras bíblicas, recordadas pela narradora,

no contexto do Evangelho de Mateus (7,6) podem se referir à Eucaristia que não

deve ser dada aos indignos dela.

A narradora reconhece através da danação que sua vida anterior é que era

o seu mal, posto que era apenas a imaginação vivida de uma esperança de algo

melhor, era preciso encontrar a redenção, mas esta redenção deveria ser

encontrada no real, no cotidiano de sua existência.

Na ortodoxia Cristã temos a redenção pelo sangue de Jesus, a remissão

das ofensas, segundo as riquezas da sua graça,” (Ef 1:7); “O qual nos tirou da

potestade das trevas, e nos transportou para o reino do Filho do seu amor; Em

quem temos a redenção pelo seu sangue, a saber, a remissão dos pecados” (Cl

1:13-14). Mas, ao contrário desta, a redenção de G.H se constitui na “própria coisa

E a redenção na própria coisa seria eu botar na boca a massa branca da barata”.

(Lispector. 1998 p.)

A náusea, o nojo seria como negar a sua primeira vida. G.H transcende ao

próprio ato de comer a barata, acreditando que com isso teria a maior

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transmutação de si em si mesma. A esse ato G.H dá uma máxima valoração,

quando na verdade percebe que não esta preparada para admitir uma vida maior

que a sua e, acaba por tentar cuspir o corpo ingerido, constatando que está

preparada apenas para a vida humana.

A experiência de G.H é, portanto, uma experiência de sofrimento de

perda/busca de identidade da narradora que reinterpreta a história cristã da

Paixão de Cristo. Reconstruída, no entanto, às avessas de toda a ciência

convencional de princípios e moralidade, essa narrativa afirma que a Paixão, o

sofrimento, a falta é em essência a condição humana.

E é aceita a nossa condição como a única possível, já que ela é o que existe, e não outra. E já que vivê-la é a nossa paixão. A condição humana é a paixão de Cristo. (PSGH p. 171)

Nesse sentido a Paixão de Cristo representa o sofrimento de Jesus a

propósito de salvar a humanidade, Cristo é, portanto, a promessa à realização,

através de sua morte e de seu sofrimento ele nos salva, mas para isso ele

precisara aguentar a todo suplicio.

A personagem do Romance também experimenta a Paixão, mas, em

oposição a Cristo que vive a paixão porque chega ao extremo do amor (Jô 13,1:

Antes da festa da Páscoa, Jesus sabia que tinha chegado sua hora. A hora de

passar deste mundo para o Pai. Ele que tinha amado os seus que estavam no

mundo amou-os até o fim). (Grifos meus). GH defronta-se com a vida na sua

totalidade, esgotada, que já nem é vida, é morte. Então se torna possível “o

apreender a vida em si, na sua imanência, com horror e encantamento”, não o

transcender, porque “a transcendência é uma transgressão” (PSGH p. 54).

Sabia que teria que comer a massa da barata, mas eu toda comer, e também o meu próprio medo comê-la. Só assim teria o que de repente me pareceu que seria o antipecado, pecado assassino de mim mesma.

O antipecado. Mas a que preço. Ao preço de atravessar uma sensação de morte. Levantei-me e avancei de um passo, com a determinação não de uma suicida mas de uma assassina de mim mesma. (PSGH, 158)

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Gotlib13 sustenta: “a história da paixão é a história da vida crua, sangrando,

no que tem de mais pungente: toda a sua grandeza e toda a sua miséria”.

Portanto, parábola que se inscreve sobre a Paixão de Cristo.

Perdendo o próprio nome, G.H. identifica-se com todos os seres. As iniciais

G.H. encobrem-lhe o verdadeiro nome. Falta-lhe a identidade, já que é a partir do

nome que se tem a identidade.

Portar um nome é, segundo a Bíblia, estar apto a exercer a missão que o

nome carrega. Abrão, ao ser chamado a ser “pai de uma multidão”, passa a ser

denominado Abraão (Gn 32,27-28).

A própria ausência do nome insinua-se como busca de sua identidade.

É o sofrimento de buscar a própria identidade e, depois, de narrar a busca

feita que culmina desistência, ápice da Revelação:13

A paixão visa à posse do ser, à posse da identidade última, perseguida em páginas de uma escritura arfante, em que o texto respira e transpira esse itinerário do indizível. Paixão do homem, sua via-crucis, a insistência busca a desistência final, como glória e prêmio. Desistir é revelação última, a epifania das contradições entre ser e linguagem. (grifos da autora) 14

G.H. narra ao leitor o caminho árduo e conflituoso percorrido o caminho que

compreende a saída de seu bem-estar, conforto e organização, para o ingresso no

caótico desconhecido. Irá passar nessa transgressão por um longo caminho de

perda/busca de identidade, no qual irá sofrer, se despersonalizará, por fim, irá

construir todo um caminho até chegar à conclusão de que apenas a mudez é

capaz de revelar o que viveu, sendo assim será a desistência a sua última

revelação:

é inútil procurar encurtar caminho e querer começar já sabendo que a voz diz pouco, já começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com ela. A insistência é onosso esforço, a desistência é o prêmio. A este só se chega quando se experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-

1 3 - Nádia Gotilib. No território da paixão: A vida em mim. In: LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. 14ª ed. Rio de Janeiro. Francisco Alves, 1990. p.06

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se a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E só esta é a glória própria de minha condição.A desistência é uma revelação. (PSGH p.173)

14

CONCLUSÃO

Conforme se pretendeu evidenciar no presente trabalho, a obra de Clarice

Lispector pode ser lida como uma experiência mística individual, uma releitura

bíblica, ou no mínimo uma obra que dialoga com a escritura cristã.

A narrativa de Lispector, subverte ironicamente o sentido cristão de

padecimento imposto para nos testar, impondo a GH a tentação através da barata.

Percebemos que a utilização da paródia como recurso da narrativa nesta

obra, não se dá no sentido mais tradicional do termo que comumente é associado

1 4 - Olga de Sá. Paródia e Metafísica. In: LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. Ed. crítica.

Benedito Nunes, coord. Florianópolis: 1988. p. 213.

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ao cômico burlesco, ao contrario é através de uma reelaboração irônica séria a

temas, conceitos e princípios religiosos que são fundadores da moralidade e

ortodoxia cristã que se constitui a paródia na obra.

Gotilib analisa o texto como uma parábola, o próprio título já nos alerta para

a perspectiva da paixão da narração (“A Paixão Segundo G.H.”) que se dá

concomitantemente à narração da paixão. Nos evangelhos, a paixão de Jesus é

narrada segundo a perspectiva de Mateus, Marcos, Lucas e João e é o máximo do

sofrimento experimentado pelo Filho de Deus para a redenção da humanidade. O

Cristo se humaniza ao extremo da paixão.

“Porque, entre tantas paixões, esta história também pode ser a

paixão místico-religiosa do Cristo que, pela via-crucis, passa pela dor e

pelo prazer de redimir a humanidade e reintegrá-la a todas as coisas e a

Deus”. Isso justificaria apresentar o romance tal como um evangelho,

agora segundo G.H. 15

A Paixão de G.H., avessa à experiência cristã, experimenta a dupla paixão:

a de viver e a de relatar o que viveu, se dá numa via-sacra profana; em todo caso,

da morte à vida tendo suposto um defrontar-se com o mais alto grau de prazer e

martírio, desumanizando-se, igualando-se a todo e qualquer ser.15G.H. narra a

própria paixão ela própria conduz à perspectiva teológica e, no narrar,

experimenta nova paixão. Aqui, esse termo ganha amplitude semântica: a paixão

“pode ser igualmente força de escrita” como quer Benedito Nunes: “Passional e

apaixonante, esse texto de nossa autora mergulha em veios arqueológicos, em

camadas afetivas culturalmente soterradas da sensibilidade humana”.

O curso histórico da palavra ‘paixão’ atesta a perda da riqueza

cumulativa dos significados distintos e correlatos que se constelaram no

1 5 - Nádia Gotilib. No território da paixão: A vida em mim. In: LISPECTOR, Clarice. A Paixão

Segundo G.H. 14ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p.7. 16 – NUNES, Benedito. “A Paixão de Clarice Lispector”. In: CARDOSO, Sérgio. Os Sentidos da

Paixão. São Paulo, Companhia das Letras, 1987. Edição de 2002. p. 270

17 – Benedito Nunes. “A Paixão de Clarice Lispector”. In: CARDOSO, Sérgio. Os Sentidos da Paixão. São Paulo, Companhia das Letras, 1987. Edição de 2002. p. 271

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termo grego pathos, do qual se originou. Filosoficamente, a avaliação do

conceito respectivo – passividade do sujeito, experiência infligida, sofrida,

dominadora, irracional – por oposição a logos ou a phronesis, que

significam pensamento lúcido e conduta esclarecida; variou da posição

problematizante dos filósofos gregos da época clássica – Sócrates,

Platão e Aristóteles – à posição negativa dos filósofos estóicos e de seus

descendentes no início da época moderna, Descartes e Espinosa.

“O grego sempre viu”, afirma Dodds, “na experiência de uma

paixão, algo de misterioso e assustador, a experiência de uma força que

está dentro dele, que o possui em lugar de ser por ele possuída”. A

própria palavra pathos o testemunha; do mesmo modo que seu

equivalente latino passio, significa aquilo que acontece a “um homem,

aquilo de que ele é a vítima passiva” 16

O mesmo autor atesta que o relato do transe, ao qual se entremeia a

compreensão que G.H. vai adquirindo de si própria, à medida que interpreta a sua

experiência — uma experiência já vivida, no dia anterior e por isso narrável —, se

assemelha a uma “transposição da via mística se não for a sua réplica

parodística”.

“ao misticismo stricto sensu, diferente da piedade religiosa, que se desenvolveu em todas as culturas segundo padrões distintos e, às vezes, à margem da religião institucionalizada: o caminho individual de acesso” à divindade, através de uma experiência prática da qual resultará um desprender-se de si mesmo e da realidade. Acesso que é tanto conhecimento interno, contemplativo, quanto união e desprendimento. “União amorosa para os cristãos, na base da crença de um deus pessoal, liberação bramânica da verdadeira natureza divina do homem e liberação budista da existência ilusória” 17

“A escala dos sentimentos contrários que acompanham o transe — amor e ódio, desespero e esperança, alegria e dor — nos é apresentada como uma trajetória espiritual através de figuras teológicas e religiosas” sempre contraditórias: “santidade e pecado, salvação e danação, pureza e impureza, inferno e paraíso. Repulsiva e atraente, ominosa e numinosa, a barata assume as proporções de uma teofania; é um numem, uma forma primitiva, interdita do sagrado”. 18

Não sem propósito, a narrativa começa no caos, ou seja, com uma

desarticulação tanto do discurso, quanto das idéias que através das paródias e

representações nos remetem diretamente a idéia de Caos Cristão.

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Determinada a organizar esse caos em linguagem, G.H dá inicio então ao

relato de sua experiência. Apenas provando o imundo é que G.H poderá se

libertar de sua pureza fácil, artificialmente construída. Será preciso que ela se

perca, para que então possa se encontrar. É por isso que ela afirma que cometeu

o antipecado, o ato necessário para se aproximar de uma realidade na humana,

mas que é viva e que assume nosso caráter de falta, de carência.

A narradora pede auxilio; traz o leitor para dentro de sua paixão implicando-

o na dor da travessia que se faz; então, segura a mão de seu interlocutor para

auxiliá-la ao longo da narrativa, a fim de que seja capaz de suportar relatar o

ocorrido. “Estou tão assustada que só poderei aceitar que me perdi se imaginar

que alguém me está dando a mão” Lispector. 1998. p. 13).

Isso faz com que se recorde do início da paixão de Jesus, no Getsêmani,

quando, em extrema angústia, também tem um interlocutor, que o auxilia:

(“Apareceu-lhe um anjo do céu, que o confortava”. Lc 22,44).

“O amor é tão mais fatal do que eu havia pensado[...]. Falta apenas o golpe

da graça que se chama paixão” (PSGH, 167).

18

Pois o estado de graça existe permanentemente: nós estamos sempre salvos.

Todo o mundo está em estado de graça. A pessoa só é fulminada pela doçura quando percebe que está em estado de graça, sentir que se está em graça é que é o dom, e poucos se arriscam a conhecer isso em si. Mas não há perigo de

Perdição, agora eu sei: o estado de graça é inerente. (PSGH. 140-141)

A Paixão Segundo G.H. é, portanto, a construção de uma narrativa de

estrutura circular: não começa, continua; não termina, aponta para a continuidade.

Rompe com a tradição, com o enredo factual. A própria estrutura é um convite à

reflexão, posto que, enquanto obra aberta, deixa espaço para que nela se penetre

não sem partilhar também da paixão e saia livremente, porém carregando as

marcas de quem “vive” o romance. Foi assim com o Jesus Cristo crucificado;

1 8 - Benedito Nunes. “A Paixão de Clarice Lispector”. In: CARDOSO, Sérgio. Os Sentidos da Paixão. São Paulo, Companhia das Letras, 1987. Edição de 2002. p. 276-277

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também saiu carregando as marcas da Paixão. Aliás, através delas é que foi

reconhecido depois de ressuscitado.

G.H na sua superficialidade era “a imagem do que não era”; daí deduz: “eu

tinha o lado avesso: eu pelo menos tinha o ‘não’, tinha o meu oposto” (PSGH p.

28). Entra no quarto-minarete, que reverbera em luz e que é o “retrato de um

estômago vazio”.

O quarto é o avesso de sua casa, cheia de sombras e umidade: “O quarto

era o oposto do que eu criara em minha casa, o oposto da suave beleza que

resultara de meu talento de arrumar, de meu talento de viver, o oposto de minha

ironia serena, de minha doce e isenta ironia: era uma violação das minhas aspas”

(PSGH, 28). “Entra” enfim, na barata “ser feio e brilhante. A barata é pelo avesso.”

“Era uma máscara” (PSGH.p.73). (Grifos meus).

A barata é pelo avesso e, como G.H. tem que passar pela barata, sua

narrativa também atravessa o avesso, o reverso da mística e da Escritura

Bíblica. Assim é que Clarice constrói sua obra através de uma desconstrução

anterior, por sobreposição, ou, como quer G.H., ela “decalca”.

Assim, Clarice comunica a experiência de G.H., personagem e narradora, e

a sua própria ao seu leitor ideal: “pessoas de alma já formada”, capazes também

de atravessar o deserto, refazer a PAIXÃO, porque “sabem que a aproximação,

do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente atravessando

inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar”

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