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Almanaque Brasil de Cultura Popular

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Edição 125 - Especial: tecidos

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em querer rasgar seda, somos Brasil por causa dos tecidos. Mal chegaram a estas bandas, os portugue-ses só queriam saber da árvore do tronco vermelho – o

pigmento para dar cor aos panos era caríssimo na Europa. Os nativos também usavam o tingimento. Sabiam fiar e tecer com instrumentos feitos de galhos. Apesar de fazer redes de dormir e faixas, nunca pensaram em cobrir o cor-po. Logo vieram os jesuítas e, para vesti-los como exigia a catequese, foram os primeiros costureiros a trabalhar em Teares horizontais por aqui.Ficamos bons nisso. As capitanias hereditárias investiram em plantações de algodão, principalmente no interior do Nordeste, região que pôde ser habitada graças às condi-ções favoráveis para a cultura. Até para a Inglaterra, mes-tre no assunto, o Grão-Pará e o Maranhão começaram a exportar – tanto a manufatura quanto a matéria-prima.

Pouco depois, contudo, Portugal cor-tou nossas asas. Em 1785 a rainha dona Maria manda ordem expres-sa: todos os teares deveriam ser desmontados e mandados para a Metrópole. Dizem que alguns fo-ram para a fogueira. Ficava per-

mitida apenas a fabricação de panos grossos de algodão para “uso e vestuário dos negros ou para enfardar e empa-cotar fazendas”. Os senhores de engenho já faziam questão de vestir-se com tecidos europeus. A região de Minas Gerais, porém, bateu o pé contra a proibição porque a população, distante dos portos, havia desenvolvido sua produção. Com a Con-juração Mineira em ebulição, a ordem parecia uma afronta. Patriotas vestiam a camisa de tecido brasileiro como ato de rebeldia. Não estavam sozinhos. A Revolta dos Alfaiates na Bahia, mais popular, inspirava a fazer o mesmo. O líder Cipriano Barata anda-va com casaca preta de algodão da terra. Só quando a Família Real mudou-se para cá o alvará foi revogado. Hoje somos a sexta maior indústria têxtil do mundo, o segundo maior produtor de denim – matéria-prima de algodão para a fabricação do universal jeans – e o terceiro na produção de malhas, ao mesmo tempo que esbanjamos riquezas na produção artesanal. No meio dis-so, muitas histórias foram tramadas. E ainda não perdemos o fio da meada.

A história dos tecidos rendeu nosso nome, brigas e honras. Além de beleza e identidade. Por tramas artesanais ou industrializadas, cantamos, criamos estampas e vilas.

Saiba por que até café, música e futebol têm a ver com os panos dessa terra.

ESPECIAL

S

Texto: Natália Pesciotta Arte: Guilherme Resende

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o fio da meada

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Cravo, canela e chitaJorge Amado compôs o figurino de uma de suas perso-nagens mais famosas, Gabriela Cravo e Canela (1958), de chita. No romance, quando a cozinheira chega fugida da seca e toma um banho, o patrão Nacib vê sua beleza. “No dia seguinte compraria um vestido para ela, de chita, umas chinelas também. Sem descontar do ordenado.” Depois de casados, ele lhe dá roupas e colares como os das senho-

Chita pra que te queroDifícil um figurinista ou estilista discordar: o pano que mais tem a cara do Brasil é a chita. Verdade que ela deu lugar a tecidos mais modernos e talvez você nem a conheça pelo nome, mas a modalidade barata de fazenda de algodão mar-cou nosso imaginário. Primeiro, chita – que veio de “pinta”, em hindi – significava algodão estampado. Era um dos pro-dutos desejados da Índia porque os europeus ainda não dominavam as técnicas de estamparia. Hoje quase sem-pre a base da chita é mesclada com poliester ou outros fios sintéticos. O nome costuma referir-se à sua estampa mais marcante, a florida bem tropical. Ela está nas roupas de São João, nas saias de dançar coco, nas camisas de congadas,

Nos anos 1960, o “flower power” do movimento hippiee o Tropicalismo colocaram a chita no auge. Na tevê, até Chacrinha vestiu-se de chitão. As estampas miúdas ganharam o apelido “chitinha-mamãe-dolores”, por causa de uma personagem da novela Direito de Nascer. Zuzu Angel despiu a chita dos preconceitos e levou-a para as passarelas. Foi estilista pioneira em resgatar brasilidade e voltar-se para o que as mulheres usavam nas ruas.

no manto do boi-bumbá. Mas no passado também era roupa do dia a dia de escravos, gente da roça, de criança brincar. Até hoje forra mesas e colchões no interior.

Chita Chitinha ChitãoAs estampas variam de acordo com o tamanho do padrão do motivo. Embora tenhamos importado os primeiros padrões de chita e chitinha, o chitão floridoé invenção nossa. Começou a ser confeccionado nos anos 1950.

Saindo do armário

NOS ANOS 1950, CLARA NUNES era funcionária da tecelagem Cedro, em Caetanópolis, Minas Gerais. A fábrica foi a primeira do Brasil a fazer chita em escala industrial. O museu mantido pela empresa ainda guarda o cartão de ponto da sambista.

ras chiques. Sem sucesso: “Vestidos pendurados no armário, em casa ela andava de chita, em chinelas ou descalça”. Depois que Sônia Braga viveu a personagem na versão tele-visiva do livro, em 1975, o tubinho do tecido virou mania pelo Brasil.

REPR

OD

ÃO

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ÃO

IOLA

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A H

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K

AC

ERVO

TV

GLO

BO

IOLA

ND

A H

UZA

K

Dança do Laço de Fita, em Santo Antônio de Lisboa (SC).

Festa de Nossa Senhora do Rosário,

em Chapada do Norte (MG).

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o fio da meada

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A trama é o conjunto de fios colocados no sentido transver-sal de um tear. Os fios que vão

passar por eles, paralelos ao tear, são a urdidura. A com-

binação dos elementos cria a variedade de tecidos.

Tramar

urdir

tramar

urdir

tramar

urdir

A avó ensinou para a mãe, que ensinou para a menina moça. O tear

manual em muitas cidadezinhas tece também a vida do lugar.

Vai aglomerando mulheres em associações e resistindo à

industrialização. É bem comum no Vale do Jequitinhonha, interior de Minas.

Desde a colheita do algodão, tudo é feito manualmente. Descaroçam, batem, desembaraçam e cardam a fibra, numa rústica linha de produção. Dobram os fios em meadas para

enfim serem tecidos. As músicas de trabalho das fiandeiras, bem pontuadas, dão força e ritmo ao trabalho.

Pra não perder o fio da meada A roda qu’eu fio nelaÔ baiana, oi ai aiSabe lê, sabe escrever Ô baiana, oi ai aiTambém sabe me contarÔ baiana, oi ai aiQuanto custa um bem quererÔ baiana, oi ai ai.

Trecho de Ai, Baiana, das fiandeiras de Sagarana, Minas Gerais.

MORIN O mais simples possível: fios de algodão na trama e urdidura cruzam-se na proporção de um para um. Era a base da chita.

FUSTÃO Urdidura de linho, trama de algodão.

CETIM Cinco ou mais fios da urdidura para cada fio da trama.

DENIM Algodão tingido de índigo apenas na urdidura.

Tecido socialCasas, escolas, campos de futebol, armazéns, capelas, ambulatórios. As antigas tecelagens criavam verdadeiros povoados, com níveis de violência e criminalidade baixíssimos. Tudo mantido pelas fábricas, que empregavam todos os habitantes.A primeira vila operária brasileira foi a Maria Zélia, fabricante paulista de juta. O empresário Jorge Street chegou a defender o direito de greve dos trabalhadores. Bangu era outra dessas vilas que virou bairro, com a fábrica hoje

transformada em shopping center. A fluminense América Fabril, em Pau Grande, ficou conhecida por ser onde Garrincha trabalhava e morava.

Bastava haver uma tecelagem, aliás, para ter pelada. Assim nasceram Bangu, Íbis, Juventus e outros times conhecidos do futebol brasileiro.

SARJA Trama e urdidura cruzam-se em sentido diagonal.

FELTRO Tecido sem trama e urdidura. Os fios são prensados.

Picão (erva)

Jenipapo

Malv

a

Pau-br

asil

Semente de

urucumSerragem de taiúva ou jaqueira

Folha de anileira

Cores do Brasil

IOLA

ND

A H

UZA

K

Vila da tecelagem Bangu.

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No século 16 os holandeses invadiram o Nordeste brasileiro, não por coincidência onde se concentravam as plantações de algodão. Na época, as mulheres

daqui perceberam que as roupas das mulheres de lá pareciam com as redes de pesca de seus maridos. Dizem

que foi aí que começaram a rendar. A prática de entrelaçar fios para formar desenhos é muito presente, principalmente no Nordeste e Sul do País. A criatividade brasileira misturou e criou pontos originais, baseados nos tipos de renda que vieram de fora.

Me ensina a fazer renda

RENASCENÇA De origem italiana, disseminou-se no Sul brasileiro. Por aqui ganhou pontos com novos nomes: aranha,

abacaxi, traça, cocada, xerém, amor seguro, laço.

FILÉ Feita com agulha e linha na mão, é a versão feminina das redes de pesca.

BILRO Os movimentos da linha seguem um desenho fixado numa espécie de almofada. A origem é ibérica. Para pregar a guia, aqui usam-se espinhos de mandacaru.

De onde vem?

JutaCaule da planta

de mesmo nome

LinhoCaule da planta de

mesmo nome

Lã Pelo de ovelhas

Algodão Espécie de pelo na semente

do algodoeiro

Poliéster Material petroquímico

Seda Casulo do bicho-da-seda

Viscose Celulose dissolvida em soda cáustica

A tecnologia pode fazer coisas incríveis com os tecidos. Já produzimos roupas capazes de eliminar

odores da transpiração, secar a umidade corporal ou resistir a manchas. Para isso, as fibras são recobertas com nanocompostos,

minúsculas partículas com propriedades especiais.

Em 1889, 60% do nosso capital industrial ia para o setor têxtil. Grande parte dos investimentos servia para atender a demanda dos produtores de café, que precisavam de sacos de juta para transportar o produto. A juta, planta de onde vem a fibra, se dá muito bem no Norte do Brasil. Temos uma semelhante nativa da AmaZônia, a malva. Hoje, o mercado nacional demanda 20 mil toneladas delas, sobretudo para sacaria biodegradável de grãos. Com o declínio do uso de saquinhos plásticos, elas estão ganhando ainda mais espaço.

E o que tem o café com isso?SAIBA MAIS• Que Chita Bacana, de Renata Mellão e Renato Imbroisi (A Casa, 2005).

• Corantes Naturais da Flora Brasileira, de Eber Lopes Ferreira (Optagraf, 1998).

Muito antes de existir a São Paulo Fashion Week, os primeiros

palcos para a moda brasileira foram mobilizados pelo setor de tecidos, como o concurso Miss Elegante Bangu, nos anos

1950. Durante toda a década de 1960, a Feira Nacional da Indústria Têxtil (Fenit) agitou a cena cultural do País. Além de desfiles, promoveu grandes shows em São Paulo,

reunindo estilistas, músicos, intelectuais e gente de teatro.

REPR

OD

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/AB

Miss elegante Bangu

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