Upload
lyminh
View
225
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NAS LUTAS POR DIREITOS NAS
COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO ESTADO DE SÃO PAULO (1980-2014)
Silvane Silva1
Resumo: Esta pesquisa visa compreender as formas de participação das mulheres nos processos de
luta pela busca de direitos, principalmente o direito à posse da terra e à educação formal, nas
comunidades quilombolas do Estado de São Paulo. Busca-se compreender as maneiras pelas quais
as mulheres moradoras destas comunidades, influenciaram e foram influenciadas pelas políticas
públicas, a partir da Constituição de 1988. Neste momento histórico, o artigo 68 das Disposições
Constitucionais Transitórias legitima as comunidades remanescentes de quilombos o direito ao
reconhecimento e à propriedade da terra. No entanto, como é sabido, o texto legal por si só não
garantiu o acesso a estes direitos. As comunidades precisaram se organizar para fazer valer o que
está posto na lei e, a maioria, ainda luta por seus direitos. Neste estudo, daremos ênfase à
importância da participação das mulheres nestes processos, compreendendo seu protagonismo na
fundação das associações de moradores das comunidades com vistas a conquistar a regulamentação
e posse do território. E, ainda, como os contatos com outros grupos organizados, como por
exemplo, setores da Igreja Católica, e mais recentemente das Igrejas Pentecostais influenciaram e
influenciam estas mulheres na organização das suas comunidades;
Palavras-chave: Mulheres Quilombolas; Quilombos; Mulheres Negras
Em março de 2012 ingressei no Núcleo de Inclusão Educacional da Secretaria da Educação
do Estado de São Paulo, com a responsabilidade de implementar as Diretrizes Nacionais para
Educação Escolar Quilombola. Para realizar esta difícil tarefa iniciei os trabalhos ouvindo as/os
quilombolas por meio rodas de conversas e depoimentos sobre a vida no quilombo, em 13
comunidades quilombolas do estado. Este primeiro contato resultou em mais de 60 horas de
gravações em audio e vídeo. Desse material coletado, emergiram muitos temas que nortearam o
trabalho na educação escolar quilombola e possibilitaram a elaboração de um projeto de doutorado,
com o qual ingressei no Programa de Pós-Graduação em História da PUC/SP, para dar continuidade
à pesquisa do qual tratarei neste texto.
Há alguns anos venho me dedicando aos estudos referentes às mulheres negras, desde a
iniciação científica. No mestrado pesquisei as representações das mulheres negras e mestiças na
literatura do século XIX e início do XX. Portanto, nas rodas de conversa ocorridas nos quilombos
me interessou, especialmente, os relatos das mulheres quilombolas que demonstraram seu
protagonismo nas lutas por direitos em suas comunidades.
1 Mestra em História e Doutoranda em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) .
Pesquisadora do Centro de Estudos Culturais Africanos e da Diáspora (CECAFRO – PUC/SP). São Paulo, Brasil.
2
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Por meio dos depoimentos orais das mulheres quilombolas é possível realizar uma
discussão referente à memória individual e coletiva como dados operativos na compreensão do
modo pelo qual se consolidou as lutas destas mulheres. Utilizarei o termo memória não como
conservação do passado, mas como reconstrução desse passado, ao sinalizar que lembrar não é
reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do
passado. Como no exemplo de releitura que o adulto faz de um livro lido a primeira vez na
juventude: não “revive”, mas “re-faz” a experiência da primeira (BOSI, 1994, p.57). Assim como o
fez Ecléa Bosi em Memória e Sociedade: lembranças de velhos (1994) e Ana Lugão Rios e Hebe
Mattos em Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós- abolição (2005), encontro
nos relatos das mulheres quilombolas paulistas, os modos de vida e as experiências partilhadas em
suas lutas por direitos.
Utilizando as metodologias da história oral, penso as fontes em sua própria historicidade,
como expressões de relações sociais e como elementos constitutivos dessas relações. Analisá-las
implica identificá-las e compreendê-las no contexto social em que se engendram. Como nos afirma
Yara Aun Khoury, as fontes orais são “instrumento útil na investigação da complexidade e da
dinâmica social, por sua natureza peculiar, marcada por um processo de diálogo entre duas pessoas,
por meio do qual se produzem versões únicas da realidade social” (KHOURY, 2001, p. 81).
O historiador do Mali, Amadou Hampâté Bâ (1982, p. 214-5), afirma que sociedades de
tradição oral, possuem enorme capacidade de preservar narrativas históricas com extrema fidelidade
na memória coletiva. Para ele, o homem moderno imerso na multiplicidade de ruídos e
informações, vê suas capacidades se atrofiarem progressivamente, comparativamente às sociedades
que não escreviam e portanto possuíam uma memória mais desenvolvida.
Nas comunidades quilombolas tratadas nesta pesquisa, a oralidade e os modos de falar
característicos dos quilombolas ainda se mantêm presentes de maneira muito marcante (em
comparação com os modos de fala dos grandes centros urbanos). São características que necessitam
de reconhecimento e preservação. Um exemplo disso é a cupópia, falada no Quilombo do Cafundó,
em Salto de Pirapora. Hoje há somente seis falantes da língua, que é de origem africana banto e que
de acordo com seu Juvenil (morador da comunidade, falante de cupópia), é uma mistura de
quimbundo com quicongo.2
2 Uma breve conversa realizada por mim, no Quilombo de Cafundó, sobre a cupópia, está publicada no artigo Educação
escolar Quilombola e Identidade Cultural em São Paulo. Em: SILVA, Cidinha (org.). Africanidades e Relações
Raciais: Insumos para Políticas Públicas na área do livro - Leitura, Literatura e Bibliotecas no Brasil. Brasília:
Fundação Cultural Palmares, 2014, pp.182-193.
3
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Deste modo, trabalhar com as comunidades quilombolas do Estado de São Paulo, por meio
de narrativas orais, nos permite
(...) interagir com memórias sem arquivo, inscritas em corpos, imagens, ritmos,
sensibilidades, e patrimônios materiais relacionados a recursos linguísticos, visuais, sonoros e
percursivos, pluralizando noções de acervo e prolongamentos do corpo, que sustentam
mundos e dinâmicas históricas até então silenciadas, com epistemologias encobertas por
cores da razão e da ciência ocidental”. (ANTONACCI, 2015)3
Utilizamos nesta pesquisa o conceito de quilombo contemporâneo. Tal conceito começou a
ser gestado durante as preparações para o centenário da Abolição, que coincidiram com as
discussões para elaboração do texto da constituição de 1988. Neste cenário, ocorreram encontros
entre membros do movimento negro urbano, mas também de grupos de movimento negro rural, e
dentre as muitas pautas que a população negra reivindicava neste momento, dois pontos foram
bastante debatidos entre os integrantes do Movimento Negro: a criminalização do racismo e as
terras de quilombos. O primeiro encontro de comunidades negras rurais ocorreu no Maranhão em
1986 e teve como tema “O negro e a Constituição” (ALBERTI e PEREIRA, 2007).
Desde a década de 1970, a ideia de quilombo passou a ter um valor muito grande para o
movimento negro enquanto símbolo de luta. Em 1974, o Grupo Palmares, do Rio Grande do Sul,
sugeriu o 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares em 1695, como a data a ser
comemorada, contrapondo-se ao 13 de maio, lembrando a heróica resistência do Quilombo de
Palmares (DOMINGUES e GOMES, 2013). E desde então, nas manifestações culturais que
envolvem as populações negras, seja como participante ou como tema, a ideia de quilombo aparece
sempre como um desejo de uma utopia. Com o passar dos anos, o termo quilombo popularizou-se
no mercado cultural, nas camisetas, bottons, poesias, crônicas, livro, sambas-enredo, músicas em
geral, filmes, pinturas peças de teatro. Quilombo passou ser símbolo resistência de luta dos
movimentos negros.
Em 1988 o Movimento Negro Unificado realizou um encontro em Brasília com muitas
entidades negras que estavam engajadas nas discussões do texto constitucional. E foi consenso entre
todos os participantes que era imprescindível constar no texto da constituição o direito à terra para
as populações negras, que ocupavam as chamadas “terras de preto”, ou “terras de quilombos”. Daí,
se construiu o artigo 68, no qual todas as chamadas “terras de preto”, terras conquistadas pela
compra, por meio de doação, ou terras de antigos quilombos, se transformaram em “comunidades
3 ANTONACCI, M. Antonieta. Descolonizando histórias de Áfricas, culturas africanas e da diáspora. Texto ainda não
publicado, utilizado em aula, junho, 2015.
4
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
de quilombo”4. Já que o artigo 68 da Disposições Constitucionais dizia apenas que: Aos
remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. (BRASIL, 1988).
Neste momento foi também criada a Fundação Cultural Palmares, orgão do governo federal,
vinculado ao Ministério da Cultura, que se tornou responsável pelo trabalho de reconhecimento,
regularização e titulação das comunidades quilombolas.
Com o passar dos anos percebeu-se que, na prática, devido a variedade de formação das
comunidades negras rurais e urbanas, era necessário um decreto que regulamentasse o artigo 68,
para este tivesse aplicabilidade, já que este dizia o que deveria ser feito, mas não apontava como
fazer. Aproveitando-se desta fragilidade do texto legal, os legisladores alegavam (e alegam)
insegurança jurídica no momento de avaliar o pedido de titulação das terras de uma comunidade
quilombola. Deste modo, o direito constitucional não estava (e não está até o presente momento)
garantido. O movimento negro rural e movimento campesino se reuniram em encontros regionais,
principalmente nos estados do Maranhão e Pará. E em 1995, ocorreu o I Encontro Nacional das
Comunidade Rurais, em Brasília. Momento em que o movimento negro urbano organizou debates
sobre os 300 anos de morte (ou imortalidade) de Zumbi, juntos realizaram a Marcha Nacional
Zumbi dos Palmares contra o Racismo. Em 1996 foi instituída a Coordenação Nacional das
Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), cuja primeira sede foi no Maranhão.
Nomeados comunidades remanescentes de quilombo, os territórios ocupados por populações
negras, que até então eram conhecidos como bairros rurais de negros, ou terras de preto, ativou um
processo de ressignificação do conceito de “quilombo” historicamente construído. A partir desse
processo, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) com uma compreensão mais ampliada,
buscou ressignificar a definição de quilombo. Procurando designar a situação atual das
comunidades negras rurais e urbanas e visando garantir-lhes o acesso ao direito à posse da terra
como posto na Constituição Federal de 1988. 5
Em 2003, integrantes do Movimento Negro e Quilombola conquistaram a publicação do
Decreto 4.887 e a criação da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, que passa a acompanhar
os processos de certificação das comunidades terras quilombolas junto à Fundação Palmares e os
4 Ver mais sobre esse processo de construção do termo “comunidades remanescentes de quilombo” na publicação:
Histórias do Movimento Negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC. Org. Verena Alberti e Almicar Araujo Pereira. Rio
de Janeiro: Pallas; CPDOC-FGV, 2007. 5 O termo remanescente de quilombo, que consta do texto da constituição, bem como a ressemantização do termo
quilombo e a conceituação da identidade étnica foram exaustivamente discutidas em muitos textos de antropólogos,
dentre estes os importantes trabalhos de José Arruti (ARRUTI, 2006) e Ilka Boaventura leite (LEITE, 2000).
5
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
processos de demarcação e delimitação junto ao Instituto nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA) .
No artigo segundo do Decreto 4.887/03 consta que:
Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste
Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória
histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de
ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.
§ 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos
quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade. (BRASIL, 2003)
O Decreto 4887/03, vem bojo das políticas identitárias que visam a garantia de direitos às
minorias étnicas e populações historicamente oprimidas. A Grande mudança deste decreto para a
política fundiária é recuperar a ideia de grupo. O remanescente quilombola não é um indivíduo
isolado, que receberá o título de posse de uma porção de terra, mas é um grupo que tem direto ao
título coletivo de um território. De modo que fica nítido que a questão das terras quilombolas não se
refere apenas a uma questão fundiária de demarcação de terras, mas trata-se de também do
reconhecimento de um território cultural, de uma comunidade que resistiu através do tempo naquele
espaço.
As comunidades quilombolas visitadas para esta pesquisa foram André Lopes, Bairro
Galvão, Bombas, Brotas, Caçandoca, Cafundó, Cangume, Ivaporunduva, Jaó, Pedro Cubas de
Cima, Nhunguara, Sapatú e São Pedro. Os relatos do moradores mais velhos são parecidos e nos
contam que até aproximadamente 1960, as comunidades produziam tudo o que consumiam:
plantavam, criavam galinhas e porcos, pescavam e caçavam. Das cidades, necessitavam apenas de
alguns “cortes de pano” para as roupas, do sal, do fósforo e do querosene para as lamparinas. Tudo
o mais era produzido na comunidade. Hoje, a realidade é bem diferente. Com a criação de leis
ambientais, que, muitas vezes, desconsideram os modos de vida das populações tradicionais, e com
a diminuição de suas terras, que foram tomadas por “terceiros”6, “grileiros”, grandes empresários do
setor de mineração ou por empresários interessados na construção de hotéis e condomínios, os
quilombolas foram forçados a reduzir suas atividades produtivas, principalmente a produção de
alimentos para consumo próprio.
Grande parte dos quilombolas vivem, atualmente, com poucos recursos e se veem obrigados
a trabalhar fora das comunidades, na lavoura de outros produtores, ou nas cidades, em serviços
6 Terceiros: pessoas que compraram (alguns de boa fé) terras que estão dentro de territórios quilombolas. Após a
certificação de titulação da comunidade, os terceiros devem ser indenizados pelo governo e sair da terra, deixando-a aos
quilombolas que têm direito sobre ela.
6
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
domésticos e/ou demais serviços urbanos. São recursos também a aposentadoria dos idosos e a
Bolsa Família, para os que são beneficiários do Programa Federal de Distribuição de Renda.
Ironicamente, os quilombolas que, juntamente aos indígenas, foram os responsáveis pela
preservação de uma enorme área de Mata Atlântica existente no Vale do Ribeira7 e no litoral norte
paulista (Ubatuba), hoje estão acuados por uma legislação ambiental que criou parques e áreas de
preservação ambiental dentro dos territórios quilombolas e proibiu atividades realizadas há séculos
por essas comunidades, como a roça e a caça para consumo próprio.
Se faz necessário e urgente repensar essa legislação ambiental que vem causando transtornos
e retirando direitos adquiridos na Convenção 169 da OIT Organização Internacional do Trabalho
sobre Povos Indígenas e Tribais.8 Tendo em vista que as populações ribeirinhas, quilombolas,
indígenas que preservaram o ambiente em que vivem secularmente, com um modo de vida
sustentável e em comunhão com a natureza, agora se vem obrigadas a sair dessas regiões com o
argumento de que podem degradar o meio ambiente. Quem é que vai usufruir do patrimônio
cuidado, preservado por essas populações? O que está por trás desta visão de preservação do meio
ambiente sem preservar as pessoas?
Muitas dessas comunidades de quilombos se localizam em regiões de difícil acesso,
distantes dos centros urbanos, já que no passado, se instalaram em áreas estratégicas que lhe
garantissem segurança. E, esta característica é muitas vezes utilizada pelo poder público como
desculpa para permanecer ausente dos territórios quilombolas, negando-lhes serviços básicos como
saúde e educação. Postos de saúde são raros e, quando existem, os médicos só aparecem por lá de
quinze em quinze dias, ou uma vez por mês. Também é grande a dificuldade para que os
quilombolas consigam chegar aos postos e hospitais na cidade. Escolas também são poucas e
apenas com atendimento nos anos iniciais do Ensino Fundamental.
Considerando os apontamentos acima, é preciso destacar que a forte presença das mulheres
nas lutas por direitos em suas comunidades, principalmente na criação e manutenção das
associações de moradores (primeiro passo para se buscar a titulação das terras) e na luta pelo direito
a educação formal de qualidade para seus filhos, é algo bastante presente nos quilombos, de modo
geral. Muitos são os relatos sobre a participação das mulheres na busca por água encanada, na
7 O vale do Ribeira abrange parte do Estado de São Paulo (sudoeste) e do Paraná (leste). E a região do Estado de São
Paulo onde se localiza a maior parte das comunidades quilombolas. Ver em: http://www.socioambiental.org/pt-br/o-
isa/publicacoes/inventario-cultural-de-quilombos-do-vale-do-ribeira acesso em 7/7/2017. 8 Para o documento na íntegra consultar a página: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2004/decreto/d5051.htm acesso em 7/7/2017.
7
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
construção de escolas, postos de saúde, além da atuação imprescindível na manutenção dos
costumes, como rezadeiras, parteiras e contadoras de histórias. Contribuindo para a permanência e
manutenção de suas famílias nos territórios quilombolas (LUIZ, 2003).
Ao longo dos anos, a imagem de mulher negra que se construiu na sociedade brasileira
esteve relacionada a dois estereótipos: a mulher sexual, boa para o sexo, e a mulher trabalhadora
braçal, forte, “aquela que aguenta tudo”, “burro de carga”(SILVA, 2008). Estas imagens racistas
foram criadas no período da escravidão, devido ao fato de as mulheres negras trabalharem na
lavoura, fazendo o mesmo trabalho que os homens, enquanto as “sinhás” brancas ficavam
protegidas na casa-grande, só saindo às ruas acompanhadas e protegidas. As mulheres negras
escravizadas também serviram para satisfazer os desejos sexuais dos senhores de escravos. Os
estupros de escravizadas foram constantes durante todo o período escravista.
No entanto, apesar de toda violência sofrida, as mulheres negras escravizadas, foram as
grandes responsáveis pela manutenção dos valores e costumes do seu grupo. Participaram de
insurreições e fugas. A ideia de liberdade para tais mulheres era alimentada e perseguida de uma
maneira diferente dos homens. De acordo com a historiadora Yuko Miki (2014), a ideia de
liberdade para as mulheres escravizadas, se diferencia da ideia de liberdade masculina porque esta
não seria confundida apenas com liberdade de locomoção, mas com a capacidade de viver junto
com a família e a comunidade no lugar de sua escolha. Escapar do controle senhorial sobre o corpo
e a família foi determinante para mulheres quilombolas. Havia uma lei, de 1869 que determinava a
inviolabilidade da família escrava. No entanto, senhores e senhoras de pequenas plantações tiveram
pouco incentivo para obedecer a lei. Enquanto que para as escravizadas família e filhos não
desincentivavam a fuga, mas eram fatores que moldavam a consciência política das mulheres
escravizadas. Para algumas a fuga tinha justamente o sentido de se juntar à uma filha ou um filho
num quilombo. Ou de fugir com o filho para se juntar a um companheiro.
A ideia de estar junto dos seus, e batalhar por uma vida melhor juntos, era o movia essas
mulheres. E no período pós abolição isso não se modifica. Quando moradoras das cidades,
sustentavam suas famílias como trabalhadoras domésticas, babás, lavadeiras cozinheiras,
vendedoras ambulantes. Quando na zona rural, trabalhavam na roça, fazendo o mesmo serviço que
os homens: plantar e colher, cortar cana e toda sorte de serviços pesados do campo. A mulher negra
foi na escravidão e nos primeiros tempos de liberdade a viga mestra da família negra, como aponta
Helena Teodoro em sua pesquisa.
8
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Amailton Azevedo, no seu artigo As Mulheres Negras no Samba Paulista também enfatiza
que:
No universo das manifestações negras, como práticas religiosas e musicalidades, as
mulheres assumiram papéis de lideranças vitais para a persistência de patrimônios culturais
da diáspora africana nas Américas. São as mães de santo no candomblé e as tias do samba.
Mesmo que a imagem da mãe e da tia possa, por um lado, sugerir a perpetuação do papel da
grande "mãe preta", por outro, se sabe que elas estão empoderadas nas comunidades negras
(AZEVEDO, 2015).
Esse empoderamento das mulheres negras no interior das suas comunidades, é uma
constante na história do Brasil, mesmo muito antes de se falar em Feminismo Negro. E como nos
ensina a professora e líder religiosa Makota Valdina, ele se dá pelo engajamento nas lutas políticas
dessas mulheres por melhoria na vida dos seus. Mulheres negras sempre fizeram política. Não
política partidária, mas no sentido ampliado da palavra. Makota Valdina afirma em seus discursos
que o poder da mulher negra sempre existiu dentro das comunidades negras, muito antes de existir
as campanhas pelo empoderamento feminino, ou o feminismo enquanto movimento político
estruturado, e com participação de mulheres negras.9
Para finalizar, destacamos que até o presente o momento foi possível perceber que os
contatos com outros grupos organizados, como por exemplo, setores da Igreja Católica, e mais
recentemente, de Igrejas Pentecostais influenciaram e influenciam estas mulheres nas formas de
luta das mulheres nas comunidades.
Entre os anos 70 e 80 era a igreja católica estava muito presente nas comunidades
quilombolas. Nesse período o catolicismo, especialmente o da Teologia da Libertação, imaginava
mudar a sociedade. Padres e Freiras participaram da organização de grupos de estudos bíblicos,
juntamente com a formação de lideranças, de grupos de trabalho como hortas coletivas e artesanato.
Estas atividades influenciaram fortemente na formação das associações de moradores das
comunidades, dando inicio que ao processo de reconhecimento de muitas comunidades como
remanescentes de quilombos.
No entanto, a partir de meados dos anos 90, as igrejas pentecostais e neopentescostais
começaram a adentrar as comunidades e ganharam espaço na vida dos moradores das comunidades.
É possível observar mudanças nas atividades coletivas e comunitárias, especialmente no que se
refere à organização e participação nas grandes festas dos santos padroeiros das comunidades, que
são católicos. Devemos lembrar que as festas são importantes momentos de manutenção dos
9 Ver essa fala de Makota Valdina em https://www.youtube.com/watch?v=LrlYkUNxpKI Acesso em 27 de
julho de 2017.
9
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
costumes e que influenciam nas demais atividades das comunidades. Pois além de serem,
primordialmente, momentos de fazeres coletivos, que agregam e fortalecem os laços entre os
moradores, muitas comunidades aproveitam tais momentos para a venda dos produtos elaborados
artesanalmente e para o fortalecimento do turismo como atividades produtoras de renda.
A moradora de um quilombo destacou as mudanças que a nova religião trouxe para sua vida.
Nos disse que quando era católica, gostava de ir para o forró dançar, quando tinha festa dos santos,
como a festa de Nossa Senhora Aparecida celebrada pela comunidade. Tais festas religiosas
católicas eram importantes para a manutenção dos costumes da comunidade como o preparo
coletivo das festas, com suas comidas, músicas e danças. Por isso, ela nos afirmou que ainda hoje,
“mesmo sendo agora convertida na religião evangélica” continua contribuindo com seu trabalho nas
festas, “embora não possa mais dançar”. Porém este não é o comportamento que predomina nas
comunidades. Dos depoimentos que ouvimos, quando se convertem nas religiões pentecostais e
neopentecostais, a tendência da maioria é de se afastar das atividades festivas que antes realizavam,
pois a nova religião não permite. Exemplo disso, ouvimos na mesma comunidade histórias sobre
uma adolescente que cantava muito bem, músicas no ritmo axé, e se apresentava nas festas da
comunidade, entretanto, após a conversão recebeu orientação da sua igreja de que deveria parar de
cantar tal ritmo, por causa dos tambores, pois o pastor haveria dito seria pecado cantar músicas com
acompanhamento de tambores.
Reginaldo Prandi, no artigo Converter indivíduos, mudar culturas (2008 p.156), no diz que a
religião intervém na visão de mundo, muda hábitos, inculca valores, é fonte de orientação da
conduta e que é comum dar como certo que a religião não apenas é parte constitutiva da cultura,
mas que também a abastece axiologicamente e normativamente. E que a cultura, por sua vez,
interfere na religião, reforçando-a ou forçando mudanças e adaptações.
Finalizo esta breve apresentação da pesquisa com a fala de uma outra senhora quilombola
que, também nos falou sobre sua conversão:
Antes, eu rezava, eu ia a festa, ia a baile, ia a tudo, mas aí depois, que... há uns doze ano
atrás, que eu me converti, que sou evangélica, então eu não faço mais essa festa... O povo
faz, né, aqui, tamém eu não digo que não faz, porque cada (qual) tem a sua vontade, porque
ninguém num obriga ocê, se ocê não quisé ir ninguém vai chegá, arrastá ocê po braço
“vamo”! Então se ocê qué ir, é porque ocê tá gostano ainda, então a gente já faz parte de
outra parte. {Qual igreja a senhora frequenta agora?} Eu me batizei na Igreja Universal,
mas agora eu sempre tô ino na Igreja Mundial, porque já fica mais longe, a Universal é lá na
cidade (…) nóis vamo, só quando ela faz lotação, aí que a gente vai por ela. E às vez os
irmão vem aí na igreja, da igreja, vem aí em casa [ ] eles vem aí traz Santa Ceia pa gente...
e aí a gente vai levano a vida, até Deus quisé...
10
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Percebemos então, que mesmo mantendo relação com seus valores ancestrais as
comunidades quilombolas contemporâneas não são estáticas, como qualquer comunidade estão
sempre mudando, se autoinstituindo. E com uma crescente proximidade dos centros urbanos e das
relações capitalistas contemporâneas, os quilombos cada vez estão se inserindo na modernidade
periférica brasileira.
Referências
ALBERTI, Verena e PEREIRA, Almicar Araújo. Histórias do Movimento Negro no Brasil, Rio de
Janeiro: Pallas, CPDOC-FGV, 2007.
ARRUTI, José Maurício. Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola.
Bauru, SP: Edusc, 2006.
AZEVEDO, Amailton Magno. Mulheres negras do samba paulista. Em: MATOS, Maria Izilda
(org). Cultura Corpo e Educação: Diálogos de Gênero. São Paulo: Editora Intermeios, 2015.
pp.189-212.
BOSI, Ecléa. Lembrança de Velhos. 3ed.São Paulo, Companhia das Letras, 1994.
DAVIS, Angela. Mulher, Raça e Classe. Tradução Heci Regina Candiani,1a.ed.,São Paulo:
Boitempo, 2016.
DOMINGUES, Petrônio e GOMES, Flávio. Histórias dos Quilombos e memórias dos Quilombolas
no Brasil: Revisitando um diálogo ausente na Lei 10.639/03. Revista ABPN, v.5, 2013.
GOMES, Flávio. Mocambos e Quilombos: uma história do campesinato negro. São Paulo: Claro
Enigma, 2015.
HAMPATE BA, Hamadou – A tradicao viva, em Historia Geral da Africa I. Metodologia e pre-
historia da Africa. Organizado por Joseph Ki-Zerbo. Sao Paulo, Ed. Atica/UNESCO, 1980, pp.181-
218.
11
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
HERCULANO, Selene. O Clamor por Justiça Ambiental e o Contra o Racismo Ambiental. Rio de
Janeiro: Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente, Vol. 3, n.1,Artigo 2,
jan/abril 2008.
LEITE, Ilka Boaventura. Os Quilombos no Brasil: questões conceituais e normativas. Textos e
Debates. Florianópolis: NUER/UFSC, n. 7, 2000, pp.333-54.
LUIZ, Viviane. O quilombo de Ivaporunduva e o enunciado das gerações. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2013.
MIKI, Yuko. Fugir para a escravidão: as geografias insurgentes dos quilombolas brasileiros, 1880-
1881. Em: GOMES, Fávio e DOMINGUES, Petrônio. Políticas da raça – experiências e legados
da abolição e da pós-emancipação no Brasil. São Paulo: Selo Negro Edições, 2014.pp. 35-68.
PRANDI, Reginaldo. Converter indivíduos, mudar culturas. Em; Tempo Social, Revista de
Sociologia da USP, v.20.n.2.pp.155-172.
REIS, João José. Quilombos e Revoltas de Escravos no Brasil. Revista USP, n.28,14-19,1996.
_____. GOMES, Flavio dos Santos. Liberdade por um fio: histórias dos quilombos do Brasil. Sao
Paulo: Companhia das Letras, 1996.
RATTS, Alex. Eu sou Atlântica, sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo:
Imprensa Oficial, 2006.
SILVA, Silvane. Racismo e Sexualidade nas Representações de Negras e Mestiças no Final do
Século XIX e Início do XX. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, 2008.
THEODORO, Helena. Mito e Espiritualidade: Mulheres Negras. Rio de Janeiro: Pallas, 1996.
The participation of women fighting for rights in the "quilombolas" communities of the state
of São Paulo (1980-2014)
12
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Abstract: This research aims to understand the forms of participation of women in the struggle
processes searching for rights, mainly the right of land tenure and access to formal education in the
quilombola communities of the state of São Paulo. It seeks to understand the ways in which the
women from these communities have influenced and been influenced by public policies since the
1988 Constitution. At this historic moment, the article 68 of the Transitional Constitutional
Provisions legitimized to the remaining communities of quilombos the right of recognition and the
ownership of the land. However as it is known, the legal text alone did not guarantee access to these
rights. The communities had to organize themselves to enforce what is laid down by the law, and
most still struggling for their rights. In this study, we will emphasize the importance of women's
participation in these processes, including their participation in the founding of community
associations in order to ensure the regulation and ownership of the territory. Last but not the least,
the relationship with other social actors, as for example, how sectors of the Catholic Church, and
more recently the Pentecostal and Neo-Pentecostal churches have influenced and influence these
women in the organization of their communities.
Keywords: Women Community; "Quilombolas" Communities; Black Women