Revista Historia

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nmero 138 terceira srie 1 semestre de 19981

REVISTA DE HISTRIA

DEPARTAMENTO DE HISTRIA DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO Reitor: Prof. Dr. Jacques Marcovitch Vice-Reitor: Prof. Dr. Adolpho Jos Melfi FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS Diretor: Prof. Dr. Joo Baptista Borges Pereira Vice-Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik Aubert DEPARTAMENTO DE HISTRIA Chefe: Prof Dr Maria Lgia Coelho Prado Suplente: Prof Dr Ilana Blaj APOIO: Programas de Ps-Graduao em Histria Econmica e Histria Social do Departamento de Histria-FFLCH/USP CAPH concesso de equipamentos do Projeto Infra-Estrutura da FAPESP REVISTA DE HISTRIA Nmero 138 (Terceira Srie) 1 semestre de 1998 ISSN 0034-8309 Comisso Executiva Coordenador: Prof. Dr. Hilrio Franco Jnior Prof. Dr. Antonio Penalves Rocha Prof Dr Mary Lucy Murray Del Priore Prof. Dr. Norberto Luiz Guarinello Equipe de Produo Secretria: Solange M. Costa Guarinello Reviso de Ingls/Francs: Fbio Duarte Joly Reviso e Normalizao; Evnia Maria Guilhon e S Diagramao: Joceley Vieira de Souza e Leo Stucchi (e-mail: [email protected]) Comisso Editorial Braz A. Aquino Brancato (PUC-RS) Caio Boschi (PUC-MG) Ciro Flamarion (UFF) Emanuel Araujo (UnB) Euclides Marchi (UFPA) Gilberto Luis Alves (UFMTS) Holien Bezerra (UFGO) Janice Theodoro (DH-USP) Jean-Claude Schmitt (EHESS) Jean-Louis Flandrin (Sorbonne) Jos Carlos Sebe Bom Meihy (DH-USP) Laura Mello e Souza (DH-USP) Leila Mezan Algranti (UNICAMP) Luis Henrique Dias Tavares (UFBA) Modesto Florenzano (DH-USP) Renato Janine Ribeiro (USP) Roberto Ventura (USP) Serge Gruzinsky (EHESS) Sergio Miceli (USP) Tefilo Ruiz (Brooklyn College)

rgo Oficial do Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas USP Fundada em 1950 pelo Professor Eurpedes Simes de Paula, seu Diretor at seu falecimento em 1977 Endereos para correspondncia: Comisso Executiva: Av. Professor Lineu Prestes, 338 Cidade Universitria 05508-900 So Paulo SP Brasil Caixa Postal 8.105 Tel.: (011) 818-3701 818-3731 / FAX: (011) 818-3150 Compras e/ou assinaturas Humanitas Livraria FFLCH Rua do Lago, 717 Cidade Universitria 05508-900 So Paulo - SP Brasil Fone/fax: (011) 818-4589 e-mail: [email protected]

Copyright 1998 dos autores. Os direitos de publicao desta edio so da Universidade de So Paulo. Humanitas Publicaes FFLCH/USP setembro/1998

nmero 138

terceira srie

1 semestre de 19983

REVISTA DE HISTRIA

DEPARTAMENTO DE HISTRIA DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO

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SUMRIO

ARTIGOSFrancisco Murari Pires Maria Luiza Corassin Paulina Numhauser Bar-Magen Andr Figueiredo Rodrigues Jos Carlos Reis

09 17 27 45 63 83 93 107

A Retrica do Mtodo (Tucdides I.22 e II.35) Caridade Compulsria: formas de presso popular na sociedade romana tardo-antiga El comercio de la coca y las mujeres indias en Potosi del S. XVI Por correrem os tempos nublados: um estudo sobre o clero e a Conjurao Mineira Capistrano de Abreu (1907). O surgimento de um povo novo: o povo brasileiro

Jos Maria de Oliveira Silva Rodrigo Patto S Motta lvaro L. R. S. Carlini

Manoel Bomfim e a ideologia do imperialismo na Amrica Latina O mito da conspirao judaico-comunista Martin Braunwieser na viagem da misso de pesquisas folclricas (1938): dirio e cartas

ENSAIO BIBLIOGRFICO Roy Hora 119 Hobsbawm y el Siglo XX. A propsito de Age of Extremes RESENHASFbio Pestana Ramos Oscar Zimmermann

133 139

DEL PRIORE, Mary Lucy Murray (org.). Histria das Mulheres no Brasil. So Paulo: Contexto/Unesp, 1997. FALBEL, Nachman. Manasche: Sua Vida e Seu Tempo. So Paulo: Editora Perspectiva, 1996.

6

Srgio da Mata Modesto Florenzano

143 147 153 159

HOORNAERT, Eduardo. Os anjos de Canudos Uma reviso histrica. Petrpolis: Vozes, 1997. JASMIN, Marcelo. Alexis de Tocqueville: A Historiografia como cincia da poltica. Rio de Janeiro, Access Editora, 1997.

Jos Carlos Sebe Bom Meihy Zilda Mrcia Iokoi

REIS, Joo Jos & GOMES, Flvio dos Santos. Liberdade por um fio: histria dos quilombos no Brasil. So Paulo, Cia. das Letras, 1996. SABIA, Debra. Contradicion and conflict: The Popular Church in Nicargua. Tuscaloosa and London, The University of Alabama Press, 1997.

Robert M. Levine Thomas Wisiak

163 165 169

SANTOS, Andrea Paula dos. Ponto de Vida: Cidadania de Mulheres Faveladas. So Paulo, Loyola, 1996. SILVA, Rogrio Forastieri. Colnia e nativismo - a histria como "biografia da nao". So Paulo, Hucitec, 1997.

Andr Roberto Machado

SILVEIRA, Marco Antonio. O universo do Indistinto - Estado e Sociedade nas Minas Setecentistas (1735-1808). So Paulo: Hucitec, 1996.

INFORMAES SOBRE ARQUIVOS Mary Lucy Del Priore 175 Memria e Histria de Mulheres: uma biblioteca feminista Ana Negro do Esprito Santo e 181 Arquivo Palma Muniz: um novo espao para a pesquisaJos Maia Bezerra Neto

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Normas de Publicao

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ARTIGOS

REVISTA DE HISTRIA

FFLCH-USP 1998

A RETRICA DO MTODO (TUCDIDES I.22 E II.35)Francisco Murari PiresDepto. de Histria, FFLCH da USP

RESUMO: Prope-se, no presente artigo, entender o silenciamento metodolgico tucidideano constatado ao longo de sua narrativa reconstituidora dos acontecimentos da Guerra do Peloponeso face proclamao de princpios firmada em seu Promio (I.22), como recurso de argumentao retrica a projetar a fama da excelncia historiogrfica de seu autor. Para tanto faz-se uma aproximao analtica desse Promio com o similar Promio do clebre Discuros Fnebre de Pricles em honra dos guerreiros mortos no primeiro ano de guerra (II.35). ABSTRACT: Through a comparative analysis of the so called methodological chapter (I.22) of the Proem of the thucydidean History with the Proem of the famous Funeral Oration of Pericles (II.35) in honour of the athenians dead in the first year of the war, this article envisages to understand the purposes of that chapter rather as a rhetorical device that projects the excellence of the historiographical art of his author than as a positive proposition of methodological rules of facts reconstitution. PALAVRAS-CHAVE: Tucdides, Historiografia, Metodologia, Retrica, Pricles KEYWORDS: Thucydides, Historiography, Metodology, Rhetoric, Pericles

Ao encerrar, no Promio de sua obra histrica, aquelas declaraes de principios narrativos que ns modernos entendemos tradicionalmente por metodolgicas1 , Tucdides tece uma reflexo final de al-

cance um tanto intrigante. Como j o fizera logo antes, no tocante reconstituio dos discursos pronuncia-

A abordagem mais sistemtica dos princpios da narrativa onomasiolgico (a questo do sujeito), axiolgico (a questo da grandeza), metodolgico (a questo da verdade), teleolgico (a

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questo da utilidade), arqueolgico (a questo do incio) e etiolgico (a questo da causa) -, que as histrias herodotena e tucidideana ambivalentemente herdam da epopia homrica, tanto os desdobrando quanto deslocando em sua obras, encontra-se em MURARI PIRES (1995, p.6-20).

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dos durante a guerra, tambm para as aes praticadas o historiador firmou a autpsia2 como princpio de derivao, e pois fundamentao, informativa de sua histria. Ora, mas justamente o fato da presena aos acontecimentos assim imposta como condio informativa de seu relato implicou um impasse para a devida reconstituio dos mesmos pelo historiador, pois:os que estiveram presentes a cada um dos acontecimentos no diziam as mesmas coisas acerca dos mesmos fatos, mas sim conforme fosse ou a sua inclinao por um dos lados, ou a sua memria. (A Guerra dos Peloponsios e Atenienses, I.22.3)

O historiador acusa aqui, como aporia informativa bsica para a sua narrao dos acontecimentos blicos, o dilema posto pela diversidade discordante de relatos entretanto concernentes a uma unicidade factual: sobre os mesmos fatos, distintos observadores do informes divergentes3 . O impasse maior assim detetado propriamente inerente s determinaes da situao mesma de presena cognitiva ocorrncia dos acontecimentos. Pois, as pessoas que presenciaram os acontecimentos, os presenciaram porque participavam de suas aes. E eram partcipes porque engajados por algum dos lados diversamente envolvidos nas disputas do conflito beligerante. Ento, ao ensejo determinante dessa sua participao, viram os fatos (pre)dispostos por suas inclinaes pessoais e, assim, consoante tica contaminada de seu engajamento. De modo que sua percepo dos fatos, e seu condizente relato, compromete-se por essa parcialidade de seu olhar, no apenas e tanto porque se tratem de subjetividades diversas, mas, sobretudo, porque, devido a engaja-

Para a problemtica da autpsia como princpio de fundamentao informativa da historiografia grega, vejam-se o artigo de Nenci e, mais recentemente, a obra de Schepens, ambos citados na bibliografia. 3 Veja-se PARRY, 1988, p.103.

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mentos antagnicos, respeitam a enfoques inerentemente conflitantes de constatao informativa dos acontecimentos presenciados. E, todavia, assim advertidos, ns leitores, de tais aporias e impasses, constatamos um tanto perplexos, algo decepcionados, ou por vezes mesmo incrdulos seno desconfiados4 que pouco, se quantificado pelo total da obra, dessa dialtica dos informes factuais comparece expressamente inscrito na narrativa tucidideana dos eventos blicos, no mais que uma dezena de passagens. Assim, por duas vezes Tucdides adverte a existncia de relatos conflitantes dos acontecimentos ento narrados. H o registro (Ibid., II.5) da dicotomia de verses dos tebanos, de um lado, e dos platenses, de outro quanto aos termos que uns e outros alegavam ter acertado entre si para a soltura dos guerreiros aprisionados pelos ltimos entretanto por eles no fim massacrados , com aqueles acusando a transgresso do juramento comprometido pelos platenses, contra estes negando terminantemente que tivessem prometido libert-los de imediato e mesmo que o tivessem formalmente prestado. H o apontamento (Ibid., VIII.87) da dificuldade de conhecer-se o verdadeiro motivo do deslocamento de Tissafernes a Aspendo face aos comprometimentos blicos de sua aliana com os lacedemnios: supostamente l ele reuniria a frota fencia para utiliz-la compondo o esforo de guerra espartano, propsito, todavia, assim no consumado naquela ocasio! Por um lado, conheciam-se as razes declarativas atribudas ao prprio Tissafernes, mas, de outro, denunciava-se a falsidade das mesmas segundo algumas verses que especulavam diversamente seus reais intuitos.

Confiram-se: WESTLAKE, 1977, p.34; WOODMAN, 1988, p.16; HORNBLOWER, 1987, p.22; COGAN, 1981, p.xii-xiii.

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Mais algumas outras vezes Tucdides declara no poder precisar a plena reconstituio do acontecimento narrado, ou porque provido apenas por dados suspeitos ou mesmo porque deles carente. H a admisso (Ibid, V.68) do desconhecimento dos montantes numricos exatos dos contingentes que se enfrentaram na batalha de Mantinia, falha informativa aqui devida a que, por um lado, os prprios lacedemnios ocultavam os seus, justamente porque antes obnubilavam os segredos de suas realidades institucionais; j, de outro, ocorria o inverso, por dados fornecidos suspeitos, com a gabolice dos homens exagerando as coisas que lhes diziam respeito. Conseqentemente, Tucdides (Ibid V.74) aponta ainda a dificuldade de verdadeiramente precisar o nmero de espartanos mortos naquele combate, atendo-se, pois, ao montante de baixas de que ento se falava. H a censura crtica tucidideana (Ibid, III.113) que recusou informar o nmero de ambraciotas mortos na campanha de Anfilquia, assim afastando de sua obra tais suspeitas de relato inverdico, pois era totalmente inacreditvel o montante que lhe fora apresentado, se avaliado contra a populao total da cidade. H a alegao tucidideana (Ibid, VII.44) da dificuldade de discernir as vicissitudes do assalto desastroso cometido pelos atenienses contra as fortificaes siracusanas das Eppolas, nem as tropas agressoras nem as defensoras podendo relat-las com clareza justamente porque turvada sua viso pelas trevas noturnas do combate. H a confisso tucidideana (Ibid, VI.60) da ignorncia generalizada quanto aos verdadeiros culpados da mutilao dos Hermas de Atenas s vsperas da expedio siracusana, pois, pelo processo mesmo que ajuizara o caso no se pudera ter certeza de que as revelaes ento obtidas pelas denncias de um dos prprios acusados fossem verdicas ou, pelo contrrio, falsas. H a observao tucidideana (Ibid, VII.87) da dificuldade de precisar o total de atenienses que caiu

prisioneiro em Siracusa, o historiador podendo apenas afirmar que no fora inferior a sete mil. E h a constatao tucidideana (Ibid, III.87) do desconhecimento do nmero de atenienses que no hoplitas ou cavaleiros abatidos pelo recrudescimento do surto de peste na cidade no terceiro ano da guerra. Diversamente de Herdoto5 , a narrativa historiogrfica tucidideana no faz aflorar a dialtica de suas fontes informativas, e tampouco revela os procedimentos de sua metodologia crtica porque derivou a reconstituio dos fatos consagrados na redao de sua histria.6 Na narrao propriamente dita, observa Butti de Lima (1996, p. 96), o historiador, enquanto historiador, est ausente, e nela deparamos antes a apresentao direta dos fatos. O discurso narrativo tucidideano predominantemente, seno avassaladoramente, composto por impresses de apenas resultados factuais, quaisquer que sejam as identificaes dos informantes e quaisquer que sejam as operaes analticas de uma sua suposta crtica averiguadora de veracidade.7...ao passo que Herdoto associa freqentemente o leitor a suas investigaes, lhe desvenda as origens e lhe d a conhecer suas prprias reflexes e arrazoados, Tucdides limita-se manifestamente a descrever de uma vez por todas seu mtodo histrico-crtico, e a expor, para o restante, o resultado de suas pesquisas (SCHEPENS, 1980, p.96). Razo porque, mais recentemente, as projees da crtica moderna de reconhecimento de sua identidade historiogrfica nos historiadores antigos andaram saudando a melhor cientificidade metodolgica herodotena, em prejuzo da mais afamada tucidideana, veleidade esta de ajuizamento, entretanto, no imune a certos percalos, pois, nem sempre os princpios que levaram Herdoto a indicar suas fontes correspondem certamente queles que hoje se definem como cientficos (BUTTI de LIMA, 1996, p.102). 7 A frmula sucinta do diz-se que (lgetai) basta para transpor a narrao do nvel dos fatos ao da histria (BUTTI de LIMA, 1996. p.96). Mas, quando a histria se torna pesquisa da verdade, o narrador no tem outra coisa a fazer que retrirar-se ... Ele este narrador ausente, que deixa falar os fatos: objetivo (HARTOG, 1982, p.26).6 5

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Perpassa, assim, pela obra um certo silncio metodolgico operado por um ocultamento do historiador8, o qual, antes do que integrar a dialtica de sua heurstica, a oblitera, e antes do que expor quais sejam as determinadas regras e preceitos de sua crtica, d esta apenas por pressuposta e realizada. Pois, tudo o que Tucdides revela nesse sentido reduz-se mnima declarao programtica de seu dito captulo metodolgico: na reconstituo dos acontecimentos o historiador almejou sempre alcanar a preciso, acribia9 . Diante de uma tal idiossincrasia de silncio metodolgico, podemos ns, crtica moderna , envidar a (re)descoberta dessa metodologia tucidideana no bem revelada, e entretanto consumada por sua obra historiogrfica, assim melhor identificando por quais regras e preceitos, ou que demais critrios, de crtica de veracidade Tucdides analiticamente operou o ajuizamento dos relatos informativos ento coletados de modo a superar os impasses que, para tanto, haviam sido pelo historiador expressamente denunciados.10 Podemos ainda imaginar o historiador Tucdides a zelosa e persistentemente colher mesmo os relatos divergentes, de ambos os lados, para confront-los visando a alcanar sua veracidade factual unitria.11 Podemos ainda projetar que tambm para a reconstituio dos acontecimentos do tempo presente da Guerra do Peloponeso, Tucdides fez valer os mesmos preceitos de crtica factual j antes por ele mesmo reclamados para o exame das tradies antigas, dos

tempos passados.12 E podemos ainda especular operaes detalhadas de verdadeiras checagens informativas dos relatos, ponto por ponto, testando-os atravs das mais variadas ordens de realidades englobadas pelo conhecimento tucididiano.13 Nos fluxos e refluxos desses estudos, mais ou menos diversamente tendo por pano de fundo as vicissitudes das projees modernas de identificao da obra discursiva tucidideana bipolarizada pela contraposio de categorias cincia versus arte14 , delineia-se, mais recentemente, uma certa tendncia interpretativa que envida ressaltar no silncio metodolgico tucidideano respeitante reconstituio dos acontecimentos blicos a eficcia de uma retrica da objetividade.15 Todavia, Tucdides mesmo, em seu texto, revela apenas e to somente, no as solues por ele precipuamente alcanadas, mas antes as dificuldades por ele metodologicamente advertidas. Como as superou, por quais eventuais procedimentos e operaes analticas, Tucdides no diz. Aqui, mais do que tudo, imperam os silncios do estilo elptico tucidideano. No haveria, ento, ainda lugar para interrogarmos tambm justamente outras razes desse silncio, e inquirir por algum seu sentido na trama mesma do discurso metodolgico tucidideano? Pois, tal silncio e eliso no tanto algo a ser estranhado, pelo contrrio, eles condizem mesmo com a intriga tecida

ORWIN (1994, p. 5) lembra, em epgrafe sua obra, o elogio que Rousseau dirige a Tucdides no Emlio: Longe de interpor-se entre os acontecimentos e seus leitores, ele se oculta. O leitor no mais acredita que l; ele acredita que v. 9 Para a questo do entendimento da concepo tucidideana de acribia como preciso veja-se, por ltimo, CRANE, 1996, p.50-65. 10 Nesse sentido veja-se, por ltimo e sempre apuradamente equilibrado em suas apreciaes crticas, o estudo de BUTTI de LIMA LInchiesta e la Prova, 1996. 11 Confira-se PROCTOR, 1980, p. 16.

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Confiram-se: CONNOR, 1984, p.27-28; PLANT, 1988, p.202; LORAUX, 1984, p.148 e 152; EDMUNDS, 1975, p.156; BUTTI de LIMA, 1996 p.116 e p.127-170 (especialmente, p.148-151). 13 Confiram-se: CONNOR, 1984, p.27-28; COGAN, 1981, p.xii-xiii. 14 Vejam-se os apontamentos gerais dados por CONNOR, 1984, p.4-6, mais DOVER, 1983, e tambm por ORWIN, 1994, p.7-8. 15 Vejam-se, por exemplo: HARTOG, 1982, p.26; LORAUX, 1984; WOODMAN, 1988, p.23; CRANE, 1996, p.27-29; BUTTI de LIMA, 1996, p.97-98 e 126. Tendncia, entretanto, que suscita j algumas advertncias crticas: BUTTI de LIMA, 1996, p.116s e 126-128; DESIDERI, 1996, p.973-974.

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pela prpria arquitetura retrica de formulao de pensamento dessa sua reflexo metodolgica, toda ela comandada por uma ordenao de natureza quistica, plena de figuras de antteses e de reverses assertivas.16 Pois, inicialmente, quando tratava da reconstituio dos discursos, Tucdides principiou suas consideraes declarando quais eram as dificuldades, justamente postas por um reclamo de acribia, dificuldades estas de tal monta que inviabilizaram o procedimento narrativo de simples reproduo dos relatos recolhidos junto aos informantes. Ento, postas tais dificuldades, o historiador contornou esse primeiro impasse firmando que ele mesmo, nominalmente, apreenderia, por seu parecer, a realidade dos discursos, fundando-a a partir da gnme efetivada por cada um e pautando-se pela acribia possvel de aproximao do que fora realmente dito. Depois, passando agora questo da reconstituio das aes, ou seja, dessa categoria de acontecimentos contrapositiva aos discursos, Tucdides reverteu os procedimentos ad otados. Agora, ao revs do que fez para os discursos, dispensou seu ato nominal de emisso de um parecer pessoal enquanto sujeito da narrativa, preferindo, ao invs, acolher os relatos dos informantes, justamente dispensados no caso dos discursos. E, assim bem os acolhendo, lembrou novamente, como para os discursos, que tambm sobre eles imperava o reclamo da acribia. Da, terminou por declarar quais eram ento as dificuldades.17 Em sntese, para os discursos aludiu s dificuldades para apresentar as solues; j para as aes, aludiu s solues para bem realar, pelo contrrio, as dificuldades.

Ora, mas uma anloga intriga retrica tramada pela obra narrativa tucidideana encontra-se tambm no Promio do clebre Discurso Fnebre atribudo a Pricles.18 Nesse seu pronunciamento de abertura, o discurso marca, em relao prpria prtica institucional da Orao Fnebre em honra dos guerreiros que tombaram pela cidade, uma reivindicao de originalidade crtica19 . Assim, ele comea contestando e, pois, por princpio divergindo, frontalmente do que se declara ser a praxe de iniciar a Orao Fnebre tecendo louvores ao legislador que instituiu tal prtica:A maioria dos oradores que me precedeu neste lugar louva aquele que introduziu esta alocuo no cerimonial de costume, considerando como belo que, no momento de seu enterro, as vtimas da guerra sejam assim celebradas. De meu lado, estimaria suficiente que, para homens cujo valor traduziu-se em atos, fossem prestadas homenagens igualmente por atos, como vedes que se faz hoje nas medidas oficiais aqui tomadas para seu sepultamento. Os mritos de todo um grupo no dependeriam de um nico indivduo, cujo talento maior ou menor lhes coloca em causa o crdito. Pois que difcil adotar um tom justo, num assunto em que a simples apreciao da verdade encontra penosamente bases seguras: bem informado e bem disposto, o ouvinte pode muito bem julgar a exposio inferior ao que ele deseja ou sabe; mal informado, pode, por inveja, estim-lo exagerado, quando aquilo que ele ouve ultrapassa suas prprias capacidades; pois no se tolera ilimitadamente elogios pronunciados a respeito de um terceiro, cada um o fazendo na medida em que se acredita capaz de realizar, ele mesmo, os feitos que ouve relatar; alm disto, com a inveja, nasce a incredulidade.20

O discurso inaugura-se, pois, contestando por princpio a praxe que, pelo louvor que ela presta ao

Entre outros, vejam-se os estudos de HAMMOMD, 1952; ELLIS, 1991; WOODMAN, 1988; ALMEIDA PRADO, 1972; e MURARI PIRES, 1995. 17 J Woodman chamou a ateno para este ponto: Observe-se que a nfase totalmente colocada sobre a dificuldade do processo antes do que sobre os resultados alcanados (1988, p. 16).

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Entre outros, vejam-se os comentrios de GAISER, 1975, p.2427; PARRY, 1981, p.160 e, especialmente, de LORAUX, 1981, p.232-241. 19 J destacado por ORWIN, 1994, p.16. 20 II.35.1-2. A partir da traduo francesa de JACQUELINE de ROMILLY, 1962, p.26.

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instituidor da orao fnebre, aceita inquestionadamente a propriedade da mesma. Ele, pelo contrrio, assinala sua singularidade denunciando-a duplamente. Antes de mais nada, a instituio no s desnecessria quanto equivocada. Desnecessria, porque bastam os prprios atos constituintes do cerimonial de sepultamento para manifestar o reconhecimento do valor das aes e feitos dos guerreiros mortos. E equivocada porque, ao colocar esse reconhecimento do valor guerreiro consumado em atos na dependncia do talento retrico do orador que os celebra, corre-se o risco de, paradoxalmente, no se reconhecer tal valor, mas sim coloc-lo sob suspeio. E, mais ainda, a instituio totalmente inadequada por si mesma, dada a aporia insolvel prpria do empreendimento que ela, todavia, se prope, pois que a arte da fala, a techn discursiva, no comporta habilidade suficiente para super-la: qual o tom justo a ser empregue enquanto elogio, de forma que este elogio seja apreciado como a adequada manifestao discursiva de reconhecimento daquele valor consumado em feitos? Como encontrar a medida de elogio que responde com justeza pelo valor dos feitos cumpridos? Ora, descortina-se um horizonte de possibilidades alternativas para o orador que so antes impossibilidades, pois que o coloca num impasse, dado que ele fica inelutavelmente condenado a desagradar seus ouvintes: ou se acusa a insuficincia do elogio, quando este desgosta aqueles que, justamente conhecedores dos feitos guerreiros realizados, dispem-se e esperam que o discurso no inferiorize seu valor; ou, pelo contrrio, se acusa o exagero do elogio, quando este desgosta aqueles que, exatamente por desconhecerem os feitos, medem a plausibilidade destes segundo e por sua prpria (in)capacidade de realiz-los. De modo que, neste caso, por inveja, estimam exagerada a apreciao que refere feitos que os ultrapassam, astuciosamente escamoteando na verdade os seus limites pessoais. E o resultado, ento, que sempre o orador ser desacreditado por seu pblico, quer acu-

sado de errar por falta quer, pelo contrrio, por excesso laudatrio.21 E, assim, a apresentao do Discurso Fnebre pericleano principia totalmente desqualificando a prtica mesma de modalidade discursiva em que ele, entretanto, se integra. E de forma aparentemente radical, pois que denuncia qual a sua inconsistncia intrnseca: a apreciao que descortina suas possibilidades alternativas a projeta antes como impossvel! E, todavia, o Discurso Fnebre de Pricles a desacredita, e, entretanto, paradoxalmente, logo a seguir, antes a enceta e cumpre, efetivando-a enquanto tal. Da um seu preciso sentido e finalidade retrica embutido por este seu procedimento convencional de captatio benevolentiae22 : se ele realiza o, todavia, impossvel enquanto proposio discursiva, algo que no h frmula retrica que viabilize, tanto melhor se pode apreciar a excelncia e o mrito singularmente excepcional do orador que, assim mesmo e todavia, o realizou! E, para realizar essa modalidade discursiva de elogio, no h qualquer soluo determinada, imperam apenas as impossibilidades postas pelas dificuldades, pelas aporias claramente afirmadas. Ora, mas ocorre, com esta projeo tucidideana da excelncia retrica pericleana consagrada por esse seu suposto desempenho ao iniciar-se a Guerra do Peloponeso, algo similar ao que se passa, no texto da

Considere-se, paralelamente, a similar intriga retrica figurada pelo discurso de Otanes, no clebre Debate Persa herodoteano (III.80), ao denunciar a irracionalidade da inveja, e inconseqncia das calnias, da figura do tirano nas relaes com seus sditos, o qual nas cortesias moderadas que estes lhe dirigem acusa falta de adulao, mas nas adulaes exageradas, vil bajulamento. 22 Vejam-se as obras citadas logo acima de Gaiser e de Loraux; por outro lado, considerem-se as justas advertncias ponderadas por HORNBLOWER, (1987, p.101s), acerca do alcance dos ajuizamentos que apontam para as relaes entre a obra discursiva tucidideana e a sistematizao teorizante da arte retrica.

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Odissia, com os elogios firmadores da excelncia no domnio das artes do canto e narrao das gestas hericas quer aquele com que Odisseu distingue Demdoco, quer o outro em que Alcino que antes assim honra o heri mesmo23 : os ecos de ambos alcanam e ressoam sua projeo valorativa na figura do sujeito potico que os memorizou, tradicionalmente representado pelo nome de Homero. Igualmente, o modo discursivo porque o historiador reconhece, e consagra na memria histrica, a percia retrica de Pricles, proclama, pela sutil inteligncia de um mesmo belo silnciamento de si mesmo, antes a sua prpria, pessoal, arte retrica, deste sujeito historiante da guerra cujo nome chancela o texto desde sua abertura: Tucdides de Atenas! E, no poderamos ainda reconhecer homlogos procedimentos de arrazoado retrico nesse outro Promio discursivo da obra tucidideana, o qual insere no seu bojo a apreciao da suposta questo metodolgica de reconstituio dos acontecimentos blicos? Aqui tambm Tucdides aponta incontestveis dificuldades de realizao, porm no tendo por finalidade fundamentar uma argumentao de sua desistncia e renncia, pois que ele obra justamente o contrrio, consumando, a seguir, a realizao narrativa que, paradoxalmente, as supera. E as supera justamente aparentando apenas pressupor uma soluo determinada, mesmo porque soluo assim sugerida

como indeterminvel. A finalidade retrica apenas firmar as dificuldades, e no anunciar suas solues. Assim, tanto mais se aprecia a capacidade historiogrfica de quem, entretanto, transpe, no regras metodolgicas descobertas, mas sim, pela obra narrativa de fato consumada, os impasses ento declarados, pois, das dificuldades e aporias, a Guerra dos Peloponsios e Atenienses no revela mais os traos, a no ser por algumas nfimas aluses esparsas. Examinada ento esta problemtica no mbito da convencionalmente intitulada seo metodolgica da obra tucididiana, dada sua intrnseca conformao retrica ordenadora, a questo dos procedimentos analticos de objetivao dos relatos na reconstituio das aes praticadas na guerra, no tenha, nem seja para ter, soluo, quer apenas no declarada, quer nem mesmo determinada, ou, quem sabe, sequer almejada. Ento, a suposta problemtica dos vazios do silncio metodolgico tucidideano, considerado no mbito mais precpuo de sua formulao no Promio (captulo 22 do livro I), no poderia ser tambm apreciada pela soluo que Aristteles deu ao equvoco enigma da realidade histrica da Atlntida? Pois, pondera o filsofo, ocorre com a Atlntida o mesmo que com o muro de defesa edificado pelos gregos em Tria: o poeta que o construiu foi tambm quem igualmente o destruiu, fazendo-o desaparecer para sempre da histria.

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Endereo do Autor: Depto. de Histria, FFLCH/USP Av. Prof. Lineu Prestes 338 Cidade Universitria So Paulo SP Brasil CEP 05508-900 FAX (011) 818-3150

REVISTA DE HISTRIA

FFLCH-USP 1998

CARIDADE COMPULSRIA: FORMAS DE PRESSO POPULAR NA SOCIEDADE ROMANA TARDO-ANTIGAMaria Luiza CorassinDepto. de Histria

RESUMO: Este artigo analisa duas cartas de Santo Agostinho sobre um tumulto em Hipona; nosso objetivo estudar a violncia urbana em uma cidade no perodo tardio de Roma, envolvendo as relaes entre a aristocracia e a multido. ABSTRACT: This article analyses two letters of St. Augustine on a riot at Hippo; our purpose is to study the urban violence in a late Roman city, envolving the relations between the aristocracy and the mob. PALAVRAS-CHAVE: Roma, Antiguidade Tardia, Sto. Agostinho, revolta urbana. KEYWORDS: Rome, Late Antiquity, St. Augustine, urban rebellion.

As diferenas entre a cidade pag e a comunidade crist receberam anlises baseadas em parmetros variados. Paul Veyne ressaltou, no referente a evergetismo e caridade, que o evrgeta doa por diferentes razes: para marcar a sua distino social, por patriotismo, por senso cvico; o seu gesto dirige-se a este mundo real. O doador cristo pe em prtica a sua caridade para adquirir mrito diante de Deus; a sua generosidade se dirige a um outro mundo. O evrgeta dirige-se ao povo considerado como o conjunto dos cidados, o alvo do doador cristo so os pobres, entendidos como uma categoria social e moral, no

cvica. 1 Andrea Giardina, em seu artigo Carit eversiva: le donazioni di Melania la Giovane e gli equilibri della societ tardoromana, embora aceite esta distino como vlida em suas linhas fundamentais, pondera a necessidade de acrescentar a este esquema simtrico, de uma polaridade ntida, uma

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Andrea Giardina comenta VEYNE, P. Le pain et le cirque. Sociologie historique dun pluralisme politique. (Paris, Seuil, 1976, p. 44 seg.) e BROWN (1982, p. 131). Cf. GIARDINA, 1988, p. 127, inclusive nota n. 1.

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certa cautela em se tratando da poca do Imprio romano tardio (GIARDINA, 1988, p. 127). Usando como documentao a biografia de Santa Melnia, ele procurou analisar as interaes entre um certo tipo de doao crist aristocrtica e o equilbrio da sociedade tardo-antiga. Desejando demonstrar que o comportamento extremado daqueles que desejavam se liberar de bens materiais representava um fenmeno que qualifica de subversivo, tanto dentro da sociedade em geral quanto da comunidade crist, Giardina termina por colocar em relevo a surpreendente reao dos escravos pertencentes a Melnia e a seu marido. Recusando a liberdade, os escravos preferiram permanecer no interior do oikos em que estavam radicados. Freqentemente aos escravos eram entregues, tal como aos coloni, terras para serem cultivadas de forma autnoma, em explorao de carter familiar; no entanto, achavam-se menos expostos (por motivos humanitrios e econmicos) ao risco de venda e afastamento. Na Antiguidade tardia, a escravido, em lugares e em circunstncias especficas, podia se tornar uma condio privilegiada em comparao com a liberdade, para indivduos desprotegidos, a quem podia faltar a proteo de um patronus poderoso (GIRADINA, 1988, p. 142). A ateno despertada pelas figuras de Melnia e de seus familiares prximos nos conduziram a uma investigao em torno do comportamento de outro grupo social do mundo tardo-antigo: a comunidade crist de Hipona. Peter Brown, em uma conferncia intitulada significativamente Dalla plebs Romana alla plebs Dei (BROWN, 1982), analisou a profunda mudana ocorrida na comunidade romana, entendendo por comunidade urbana romana a Urbs, formada pelo senado e populus Romanus. No decorrer dos sculos IV e V, esta comunidade que outrora se congregava nas celebraes rituais e nas distribuies evergticas, presenciou a transferncia dos loci de reunio para outros pontos, nos quais se expressava uma concepo di-

versa da natureza da comunidade urbana, mediante formas muito diferentes de cerimnias e sobretudo mediante formas muito diversas de distribuio de doaes. Brown considera as prticas caritativas associadas s devoes crists no apenas como um ato de piedade realizado privadamente, nem como uma forma de assistncia econmica, mas sim como um catalizador simblico importante por ser a nova definio da comunidade urbana crist. Gradualmente desenvolveu-se uma nova relao, expressa pela distribuio de esmolas plebs Dei, em locais muito diferentes dos anteriores existentes, ou seja, nas baslicas crists. Dada a natureza explosiva da vida urbana tardoromana foram comuns as revoltas, linchamentos e incndios, no apenas em Roma, mas tambm em outras cidades do Imprio. Desde h muito tempo haviam se desenvolvido estratgias de controle, partilhadas pelas classes superiores da cidade no seu conjunto. A relao entre a aristocracia residente e a plebs assumia uma feio intensamente pessoal; segundo Brown, as relaes entre os membros pagos e cristos da aristocracia romana devem ser consideradas neste contexto. Vivendo em uma cidade em constante sobressalto, os senadores de Roma por todo o sculo IV e V eram em primeiro lugar uma classe de governo e s secundariamente pagos e cristos. As famlias nobres, pags ou crists, sentiam-se compartilhando um mesmo ethos, em grande parte determinado por uma interpretao comum de seu papel na cidade. As diferenas de f desapareciam em uma mesma linguagem de status social (BROWN, 1982, p. 127-28). Para Brown, no se pode falar de uma continuidade direta entre a munificncia tradicional e a esmola crist. Tratava-se mais de uma convergncia em grande parte inesperada, de dois sistemas paralelos no estrito sentido geomtrico (BROWN, 1982, p.131). A munificncia tradicional envolvia somas imensas, acumuladas em um longo perodo e gastas em momentos solenes por um s doador de cada vez, como sinal de que se pertencia a um grupo privilegia-

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do dos senhores da cidade; no segundo caso, as esmolas crists consistiam num sistema de doaes quase sem estrutura; somas pequenas ou mdias eram oferecidas, a qualquer momento, por fiis de todos os nveis sociais, sem distino de sexo ou de fortuna, no como ostentao de riqueza, mas ao menos teoricamente, por uma necessidade espiritual. No primeiro caso, os beneficirios formavam uma categoria especfica que podia incluir ricos ou humildes, mas que em sua maioria eram cidados vlidos e ocupados. No caso cristo, os beneficirios das esmolas eram escolhidos por se constiturem os membros mais vulnerveis e inteis da comunidade, os marginalizados, os doentes, os estrangeiros, smbolos da pobreza. O modelo cvico de sociedade, cuja unidade era a cidade antiga, definida em termos de cidados e nocidados, com uma hierarquia entre os cidados, em termos de relaes entre a populao, de uma parte, e seus magistrados, de outra, foi substitudo por um modelo econmico mais amplo, no qual toda a sociedade, urbana ou rural, era considerada por intermdio da diviso entre ricos e pobres, expressandose a relao entre eles pelo gesto religioso da esmola (BROWN, 1982, p. 131-32). O senso comum desenvolveu algumas obviedades costumeiramente repetidas: em todas as sociedades tradicionais conhecidas, a doao teve uma funo central na manuteno da posio; as doaes so smbolos de prestgio, implicando uma subordinao de quem recebe, o qual se submete a uma obrigao: por isto a doao serve como meio de controle social. Edward P. Thompson em Societ patrizia, cultura plebea (THOMPSON, 1982), vai mais alm destas constataes comumente no contestadas. Ele considera possvel individuar, sob o ngulo de quem ocupa a posio inferior, de baixo, caractersticas diversas e mais determinantes que estas. Doaes de maior importncia a caridade e o subsdio de alimentos em tempos de penria so impostos de modo direto sobre os ricos pelos pobres por meio de uma

prtica bem conhecida de revoltas ou ameaas de revolta, uma prtica que apresenta por si caractersticas estruturais (THOMPSON, 1982, p. 321-23). A liberalidade e a caridade podem ser consideradas como atos calculados de complacncia de classe em perodos de misria e como calculadas extorses (sob a ameaa de tumulto) por parte da multido. Aquilo que visto, sob a tica das classes superiores, como um ato de dar, visto de baixo como um ato de obter (THOMPSON, 1982, p. 361-62). As oportunidades eram aproveitadas quando se apresentava a ocasio, sem considerar muito as eventuais conseqncias; a multido impunha seu poder em momentos de revolta, constrangendo membros da nobreza a fazer concesses. Uma compreenso mais profunda da sociedade exige considerar o contexto em que atua a nobreza, de um lado, e a multido, de outro. A partir das proposies de Thompson, poderamos investigar as relaes entre a plebe e a classe dirigente, procurando individuar caractersticas e objetivos de revoltas envolvendo a participao de multido no mundo romano? notria a apreenso existente no mundo urbano, dentro da sociedade romana, em relao ao perigo representado pela multido incontrolada. Durante o Imprio, o comportamento da aristocracia residente em Roma continuou seguindo o padro estabelecido h longo tempo para a munificncia. Desenvolveram-se relaes complexas entre os magistrados e a plebe urbana, que acabaram por se tornar tradicionais. A aristocracia incorporou ao seu comportamento a idia de responsabilidade em proporcionar espetculos plebe ou de prestar auxlio em determinadas ocasies. Por sua vez, a plebe tambm soube desenvolver formas de extorquir o que desejava: so bem conhecidas as manifestaes pblicas, sobretudo em locais de espetculos, como forma de pressionar as autoridades. No episdio que ser examinado, ocorrido em 411, verifica-se a transferncia para o ambiente cristo destas formas tradicionais de manifestao popu-

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lar. Neste caso, em lugar de existir uma ntida separao entre os dois sistemas representados pela caridade crist e o evergetismo pago, encontramos uma plebe tumultuante exigindo que um aristocrata rico assuma o papel de patrono da comunidade crist. O local mudou: no ocorre no frum, teatro ou circo, locais tradicionais de reunio cvica, mas na igreja. A autoridade presente no mais o magistrado do Estado, mas um bispo cristo. No entanto, as relaes face a face da cidade antiga persistem: o bispo Agostinho atua como negociador cauteloso, cuidando para encontrar o limite entre a concesso e a recusa firme, para evitar uma exploso exasperada do povo. Dependendo do autor, a histria de personagens como Melnia e Piniano pode mostrar apenas o doador em termos de sua motivao explcita, da construo de uma imagem de santidade e sua justificao ideolgica. Um relato de tipo hagiogrfico seria centralizado no comportamento caritativo cristo, associado ao modelo de vida espiritual de Santa Melnia. O episdio adquire maior significao se analisado sob o ngulo das relaes plebe/aristocracia, utilizando as consideraes de Giardina, Brown e Thompson para orientar a interpretao daquilo que tem sido visto apenas como um incidente secundrio na vida de santidade do casal. Por intermdio de sua biografia2 , sabemos que Melnia, considerada a maior herdeira do mundo romano em sua poca, desejava dedicar-se inteiramente a Deus, consagrando-se virgindade. Mas, dona de um patrimnio que se pretendia transmitir intacto, seus pais a casaram com a idade de quatorze anos com um primo, Valrio Piniano, de dezessete

Utilizamos a Vie de Sainte Mlanie, com texto grego e traduo de D. Gorce (Sources Chrtiennes, 90). No texto ser citada como VITA MELANIAE. A introduo de Gorce contm os dados referentes familia de Melnia, a Jovem e de Piniano. Sobre o casamento e a deciso de abandonar as suas riquezas, ver especialmente p. 36 seg.

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anos, filho de um ex-Prefeito de Roma. O relato do bigrafo de Melnia nos informa sobre os fatos que se seguiram. Aps alguns anos de matrimnio, decididos a se devotarem uma vida de castidade, Piniano e a esposa passaram a viver como irmo e irm. Determinados a renunciar ao mundo, os jovens foram obrigados a enfrentar uma tempestade de protestos provocada pela resoluo de se liberarem da riqueza e dos bens dos seus antepassados. Os novos ascetas instalam-se inicialmente no subrbio de Roma, em sua villa da Via pia, adotando um comportamento considerado um desafio e uma ameaa sua prpria classe, pela forma radical de dilapidar seus bens. A oposio brotou de todos os lados: da famlia e at mesmo dos prprios escravos alarmados pela possibilidade de dissoluo do patrimnio. Este comportamento tem justificadamente chamado a ateno de historiadores e merecido anlise. A liquidao total levou vrios anos, dada a entidade do montante dos bens, o que tornava algumas propriedades invendveis pela dificuldade de encontrar compradores suficientemente ricos e pela disseminao das mesmas, desde a Britnia at a frica. Melnia, dedicada a uma vida de caridade sob todas as formas, buscando uma vida crist perfeita de orao e mortificao, foi se liberando de suas riquezas, comeando pelas propriedades mais expostas aos brbaros, medida que estes ameaavam mais e mais Roma. Em 410, quando a cidade foi finalmente tomada por Alarico, Melnia deixou a Europa com o marido Piniano e a me, Albina, desembarcando na frica. Os viajantes fixaram-se em Tagaste, junto ao bispo Alpio, amigo de Agostinho. Segundo a biografia (VITA MEL, 20), chegando frica o casal vendeu logo os bens que possuam na Numdia, na Mauritnia e na prpria provncia da frica, utilizando o dinheiro para auxiliar os pobres e resgatar prisioneiros: Gastando assim, sem conteno, eles se alegravam no Senhor. Decididos a vender todos seus bens, foram, no entanto, aconselhados pelos prpri-

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os bispos da frica, Agostinho, Alpio e Aurlio de Cartago a dar uma sede e um rendimento aos monastrios, em lugar de vender o patrimnio e doar dinheiro que seria dissipado em pouco tempo. Tagaste, a cidade do bispo Alpio, era pequena e muito pobre. O casal a escolheu para se instalar, principalmente pela presena do bispo, do qual Melnia tornou-se amiga. bem conhecida a importncia assumida pelas mulheres da aristocracia romana que se tornaram o principal apoio da Igreja pelas suas relaes com os bispos e suas doaes. Melnia e sua me Albina passaram a ser personagens de destaque na comunidade. Ela dotou a igreja deste santo homem com rendimentos e doaes, jias de ouro e prata, assim como tecidos preciosos, enquanto esta igreja era anteriormente muito pobre, de tal forma que o santo (Alpio) se tornou objeto de inveja para o restante dos bispos desta provncia (VITA MEL, 21). A biografia se detm aqui; talvez o bigrafo julgou desnecessrio registrar um episdio que dizia respeito basicamente ao marido. Para entender esta vaga aluso e para conhecer o estranho incidente que envolveu Piniano em Hipona precisamos recorrer a outro documento, a saber, a correspondncia de Agostinho. No momento em que Melnia e Piniano assistiam missa em Hipona, o povo ali presente exigiu aos gritos que Piniano fosse ordenado presbtero, o que o ligaria (e a sua fortuna) a esta cidade. Este no era um procedimento totalmente inusitado; havia outros precedentes. Na Igreja crist primitiva ocasionalmente a massa leiga podia exercer influncia decisiva na eleio de um bispo de sua escolha. Cipriano, bispo de Cartago no sculo III, vrias vezes usou a expresso suffragium plebis ou populi ou omnium em relao eleio de bispos. verdade que tanto na esfera secular quanto na eclesistica as decises oriundas das bases (tanto quanto existiam) tendiam a ser substitudas por decises emanadas de cima; gradualmente a massa de leigos iria sendo excluda da participao efetiva na escolha de seus lderes na Igreja. A longo

prazo o laicato perderia a voz que parece ter possudo nos tempos iniciais. Mas, em algumas reas e em certa medida, os membros leigos da Igreja eram por vezes capazes de impor sua vontade. Na segunda metade do sculo IV homens excepcionais como Ambrsio, em Milo, e o prprio Agostinho, nesta mesma igreja de Hipona, foram eleitos bispos por uma irresistvel presso popular. Teoricamente a participao da comunidade leiga era um elemento essencial na eleio episcopal. Mas no existia um mecanismo adequado para a manifestao popular, a qual s podia se expressar na forma de aclamaes tumultuosas (STE. CROIX, 1954, p.35-36). Pressionado pela multido, Piniano foi obrigado a jurar que se estabeleceria em Hipona e caso resolvesse se ordenar padre, ele s o faria nesta igreja. possvel reconstituir as linhas gerais do acontecido por intermdio de duas cartas de Agostinho, datadas de 411 d.C., dirigidas uma a Alpio (EPIST. CXXV) e outra a Albina (EPIST. CXXVI). Nestas duas cartas Agostinho procura se justificar perante o amigo Alpio e diante de Albina. Nelas o bispo assume a defesa do seu povo de Hipona: o comportamento da multido foi ditado no pela cobia pelo dinheiro de Piniano, mas pelo desejo de reter junto a si este santo homem. Na resposta enviada a Alpio (EPIST. CXXV) ele discute longamente uma questo que este lhe colocara em uma carta no conservada. Nesta epstola encontramos no a descrio do acontecido, desnecessria, pois Alpio estivera presente, mas uma espcie de discusso terica centrada na proposio: Eu ou o povo de Hipona consideramos que algum est obrigado a cumprir um juramento extorquido pela violncia?3 A resposta de Agostinho positiva obrigao de Piniano cumprir sua promessa; conclui

Em EPIST. CXXVI, 11, Agostinho reproduz a questo que Alpio lhe colocara; Scripsit mihi Sanctitas tua: Si aut ego aut Hipponenses hoc censent, ut jurejurando violenter extorto satisfiat.

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que errado ser infiel ao juramento, apesar das condies em que ele foi feito. Nessa carta CXXV afirma ainda que, apesar de no estar sendo diretamente acusado, Albina o considera culpado de tentar reter um servo de Deus entre ns por amor ao dinheiro4 ; repele as suspeitas que recaem sobre o populus Hipponensis ter agido movido pela cupiditas. Sente-se mais atingido pelo fato de Albina nutrir suspeitas semelhantes sobre ele: De te quippe imperitum vulgus hoc sensit; de nobis, lumina Ecclesiae (EPIST. CXXV, 2). Fica evidente a distino que Agostinho estabelece entre a multido ignorante que formou uma m opinio sobre Alpio e a luz da Igreja, Albina, que julga o mesmo sobre ele. Note-se que o dicionrio registra para lumen tanto o sentido de luz como o de apoio, arrimo, auxlio. Defende-se usando argumentos pouco convincentes: seria tolice acreditar que o povo cobiasse a riqueza do marido de Melnia; esta acusao apenas refletiria o dio contra o clero, especialmente contra os bispos que eram suspeitos de usar e aproveitar os bens da Igreja como se fossem os proprietrios5 . Sabemos que desde o sculo IV em diante a riqueza da Igreja crescera e logo os bispos das sedes mais importantes tornaram-se os administradores de grandes propriedades, dispondo de somas imensas. No incio do sculo V os rendimentos de um bispo como o de Ravena eram maiores que os de um governador provincial (STE. CROIX, 1954, p. 46). Para o sculo IV temos o testemunho de Amiano Marcelino, ao relatar a acirrada disputa em torno da sede episcopal de Roma: Considerando o esplendor da

Quando enim nos credimur cupiditate pecuniae, non dilectione justitiae servos Dei velle retinere...(Epist. CXXV, 1). 5 Verum omnis haec invidia non nisi in clericos aestuat, maximeque in episcopos, quorum videtur praeminere dominatus, qui uti fruique rebus Ecclesiae tanquam possessores et domini existimantur. (Epist. CXXV, 2).

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cidade, no me admiro que aqueles que procuram obt-la lutem com todas as foras para conseguir o que desejam; aquele que obtm tal cargo, est seguro de enriquecer com os oferecimentos das matronas, de andar de carruagem pelas ruas respeitavelmente vestido, superando no fasto dos banquetes a suntuosidade da mesa imperial (AMM. MARC., XXVII, III, 14). necessrio reconhecer que em seguida Amiano diz que o bispo de Roma deveria imitar a vida exemplar de alguns bispos de provncia pela sobriedade e temperana que estes demonstravam. Note-se que j na obra do pago Amiano so perceptveis os elementos que reaparecem na carta de Agostinho em 411: a importncia das oblationes matronarum e a riqueza da Igreja e de seus bispos. Na carta dirigida a Albina, Agostinho rememora a ocorrncia: em tumulto, o povo pedia a ordenao de Piniano; havendo prometido a este no orden-lo contra a sua vontade, ameaou deixar de ser bispo da cidade, caso fosse forado a romper esta promessa. Tambm no permitiria que fosse ordenado em sua Igreja por algum outro. Afirmou ainda que, caso Piniano fosse ordenado contra a prpria vontade, este partiria de Hipona imediatamente aps receber a ordenao. Como o clamor da multido persistisse, Agostinho pensou em se retirar, mas temia que ela se tornasse mais exasperada e cometesse alguma violncia contra o bispo Alpio de Tagaste tambm ali presente. Piniano props ento consentir em fixar residncia em Hipona caso ningum o obrigasse a aceitar a condio clerical. Agostinho consultou Alpio sobre isto, o qual se recusou a opinar. Dirigiu-se ento novamente multido barulhenta para negociar. Aps conversar a meia-voz entre eles, pediram que a esta promessa e ao juramento, fosse acrescentada outra clusula, a de que se ele alguma vez consentisse em aceitar ser clrigo, s o faria na igreja de Hipona. O aspecto a destacar nestas cartas a presena da multido no relato de Agostinho. Nesta poca de extrema turbulncia na vida urbana, h outros regis-

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tros de revoltas nas quais magistrados chegam a perder a vida. Amiano Marcelino relata vrios casos ocorridos em Roma no sculo IV, envolvendo prefeitos urbanos. Smaco, exponente da aristocracia, teve incendiada sua belssima casa no Trastevere; a ira dos cidados foi despertada quando um plebeu inventou que o teria ouvido dizer que preferia apagar a cal no seu prprio vinho, do que vend-lo pelo preo previsto. (AMM. MARC. XXVII, III, 4) Lampdio, que se tornou prefeito de Roma em 365, enfrentou vrios tumultos durante sua administrao. O mais grave ocorreu quando a plebs infima, reunida em grande nmero, teria ateado fogo com tochas e projteis incendirios em sua casa, perto das termas de Constantino, se os vizinhos e os domsticos que acorreram em auxlio no a tivessem dispersado jogando pedras e telhas. Aterrorizado pela primeira vez com a agitao crescente (crebrescentes seditionis), ele se retirou para esperar que o tumulto se aplacasse. Amiano informa o motivo: o prefeito quando queria construir novos edifcios ou restaurar os antigos, se necessitasse de ferro, chumbo, bronze e outros materiais, mandava os funcionrios buscarem o material, levando sem pagar; isto acabou despertando a ira dos pobres, que reclamavam dos freqentes prejuzos sofridos (AMM. MARC. XXVII, III, 8-10). A outra agitao urbana registrada por Amiano ocorreu durante a luta entre os partidrios de Dmaso e Ursino que disputavam a sede episcopal de Roma, durando at 368. Segundo este autor, o tumulto resultou at em ferimentos e morte de adeptos de ambos. O prefeito da Urbe, Vivncio, incapaz de controlar a situao, foi obrigado a se retirar para uma propriedade suburbana. Sabe-se que na baslica de Sicinino, atual S. Maria Maggiore, onde os cristos se reuniam, foram encontrados cento e trinta e sete cadveres (AMM. MARC. XXVII, III,14). A prpria biografia de Melnia informa que, pouco antes dela deixar Roma, o prefeito da cidade fora massacrado pelo povo sublevado contra ele num distrbio provocado pela falta de po (VITA MEL., 19).

Portanto, o medo da violncia e do poder do povo enfurecido era bastante fundado. O argumento de Agostinho de que no houvera perigo real quando o juramento foi feito pouco convincente. Ele, no entanto, procura em sua carta minimizar o perigo que Piniano correra: o persistente clamor do povo e apenas isto o forara ao juramento. Fala da composio da multido: alguns homens atrevidos, misturados com a multido formada por homens de bem, poderiam pelo desejo de pilhagem irromper em atos criminosos de violncia, caso encontrassem pretexto para desordens e para justa indignao. Procurando demonstrar a obrigao de Piniano honrar sua promessa ao povo de Hipona, afirma que quando o juramento foi feito no havia certeza de que o medo da violncia se transformasse em agresso mais concreta6 . J na carta endereada a Albina ele inicia: nada foi feito pelo povo de Hipona contra nosso santo irmo, seu genro Piniano, que pudesse despertar nele o medo da morte, embora ele tenha sido acometido por este temor. Em seguida expressa sua preocupao com os malvados que com freqncia se juntam numa multido em secreta conspirao, podendo irromper em atrevimento violento, se encontrassem ocasio para iniciar uma revolta7 . Segundo Agostinho nada disto ocorrera; apenas o bispo Alpio foi agredido verbalmente: o povo fez clamorosamente expobraes muito indignas contra ele. Repele a acusao de que o povo agiu motivado por razes indig-

Nunc vero cum tantummodo populi perseverantissimus clamor, ad nullum nefas hominem cogeret, sed ad id quod si fieret, licite fieret; cunque metueretur quidem ne aliqui perditi, qui multitudini etiam bonorum plerumque miscentur, occasione seditionis et quasi justae indignationis inventa, in aliquam vim sceleratam rapinarum cupiditate prorumperent, sed tamen illud quod metuebatur esset incertum (EPIST. CXXV, 3). 7 Nam et nos metuebamus ne ab aliquibus perditis, qui saepe multitudini occulta conspiratione miscentur, in violentam prorumperetur audaciam, occasione seditionis inventa... (EPIST. CXXVI, 1).

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nas, mas reconhece que na multido podiam estar misturados alguns indigentes ou mendigos que ajudaram a aumentar o clamor popular, agindo com esperana de algum auxlio para suas necessidades vindo da respeitvel riqueza de Piniano; na opinio dele, isto no pode ser considerado como vergonhosa cobia8 . Descreve a negociao que se seguiu at terminar pelo acordo de que Piniano no seria ordenado, mas fixaria residncia em Hipona. Fica evidente que a presso da massa reunida na igreja era considervel: a multido reunida defronte a escadaria persistia na mesma determinao, com terrvel clamor e gritos; todo o tempo foram feitas recriminaes indignas contra meu irmo Alpio; neste momento temamos consequncias mais srias. Agostinho acaba admitindo a ameaa que sofreu ao enfrentar a multido. Afirma que permaneceu fiel a sua promessa mesmo face a tal perigo. Verdade que mais tarde se verificou ser sem fundamento tal receio, mas o medo era compartilhado por todos ns igualmente. Temia que o povo se tornasse exasperado pelo desapontamento e menos contido pelo sentimento de reverncia. Temia sobretudo por Alpio; no podia se retirar da igreja, deixando-o sob o poder do povo enfurecido (furenti populo) (EPIST. CXXVI, 2). Agostinho funcionou como mediador na negociao, conseguindo que a multido fizesse silncio para ouvir a proposta de Piniano. Quando esta foi aceita, foi formalizado um documento assinado por Piniano e outros bispos presentes. No sculo V, ao lado das tradicionais relaes entre os magistrados e a plebe urbana, encontramos desenvolvidas novas relaes referentes a ricos e pobres dentro da conduta crist de distribuio de

esmolas e doaes s comunidades. O comportamento, tanto dos aristocratas -incluindo-se aqui Agostinho, com sua mentalidade permeada de valores da cultura romana, embora cristo-, quanto do populus, calcado numa relao quase contratual pr-existente. Culturalmente j existia uma expectativa de direito da plebe receber da nobreza o atendimento s suas reivindicaes. Agostinho usa termos tcnicos ao discutir se Piniano est obrigado ou no a cumprir a promessa que lhe foi extorquida, recorrendo mesmo a exemplos da poca da Repblica romana. Piniano no ser culpado de perjrio, nem ser assim considerado pelos habitantes de Hipona, a no ser que no corresponda expectativa deles9 . perjuro quem ilude a expectativa daqueles para quem jurou (EPIST. CXXV, 4). Persiste o comportamento contraditrio dos aristocratas romanos: um sentimento de responsabilidade para com a plebe urbana, misturado com um certo desprezo aliado a um temor latente pela violncia que podia irromper na multido incontrolada. O vocabulrio empregado reflete esta atitude, remetendo a alguns termos tradicionais das instituies romanas: a plebs de Tagaste, o populus de Hipona. A conotao pejorativa aparece claramente em outros: relicta turba, multitudo, perditi, e nos qualificativos imperitum vulgus, furenti populo, populus tumultuante; o episdio considerado relacionado com conspirationes e seditiones. Conceitos novos aparecem dentro do novo espao cristo, com referncias a populo christiano, honestos fideles, meno pobreza crist (christiana paupertas), indigentia e preocupao com os fracos/vulnerveis (infirmus). Ao longo do tempo, a convivncia dentro do mesmo espao urbano desenvolvera padres culturais de comportamento, existindo por parte da plebe uma ex-

Nam etsi fuerint illi multitudini permixti inopes vel mendici, qui simul clamabant, et de vestra venerabili redundantia indigentiae suae supplementum sperabant; nec ista, ut arbitror, cupiditas turpis est (EPIST. CXXVI, 7).

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Ac per hoc perjurus nec erit, nec ab eis putabitur, nisi eorum exspectationem deceperit.

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pectativa de receber da nobreza o atendimento s sua reivindicaes. No perodo romano tardio, estas relaes, que colocavam face a face grupos sociais to

diversos, tornam-se ainda mais complexas pela contribuio crist, com o povo de Deus utilizando o secular aprendizado anterior enquanto plebe romana.

BibliografiaAMMIANO MARCELLINO. Istorie. Testo latino, traduzione e note di A. Resta Barrile. Bologna, Zanichelli, 1981. AURELIUS AUGUSTINUS. Opera omnia, em Patrologia Latina. Paris, J.-P. Migne, 1865, t.33, Epist. CXXV-CXXVI, col. 473-483. BROWN, P. Dalla Plebs Romana alla Plebs Dei: aspetti della cristianizzazione di Roma. Governanti e intellettuali. Popolo di Roma e popolo di Dio (I-VI secolo). Torino, Giappichelli Editore, 1982, p.93-121. GIARDINA, A. Carit eversiva: le donazioni di Melania la Giovane e gli equilibri della societ tardoromana. Studi Storici, n. 1, 1988, p.127-142. GOYAU, G. Sainte Mlanie. 12 ed. Paris, Victor Lecoffre, 1925. STE. CROIX, G.E.M. De. Suffragium: from vote to patronage. British Journal of Sociology. mar. 1954. v.5, n.1, p. 33-48. THOMPSON, Edward P. Societ patrizia, cultura plebea. Torino, Giulio Einaudi, 1982. VIE de Sainte Mlanie. Texte grec, introduction, traduction et notes par Denys Gorce. Paris, Les ditions du Cerf, 1962, (Sources Chrtiennes, 90).

Endereo do Autor: Departamento de Histria FFLCH/USP Av. Professor Lineu Prestes,338 CEP 05508-900 So Paulo Brasil

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REVISTA DE HISTRIA

FFLCH-USP 1998

EL COMERCIO DE LA COCA Y LAS MUJERES INDIAS EN POTOSI DEL S. XVI1Paulina Numhauser Bar-MagenDepto. de Histria FFLCH/USP

RESUMO: O estudo dos documentos notariais de Potos no sculo XVI, comprovam a presena de mulheres indgenas independentes que monopolizaram o rendoso comrcio varejista da coca. Estes testemunhos provam como estas mulheres tiveram a capacidade de acumular bens e de invest-los. Nos perguntamos se este fenmeno que assombrou os contemporneos foi um produto das exigncias vitais do sistema minerador ou a permanncia de uma estrutura pr-hispana amparada pelos privilgios particulares do lugar? PALAVRAS-CHAVE: Mulher ndia, coca, Potos s. XVI. ABSTRACT: The study of the notarial documents of Potos at the XVI's century, reveals the presence of independent indian women who monopolized the profitable retail trade of coca. These documents demonstrate how these women had the capacity of acumulating goods as well as the possibility of investing them. We ask whether this phenomenon that astonished the contemporaries was a consequence of the vital requeriments of the mining site or was due to the pre-hispanic social structure sheltered by the particular privileges of the place? KEYWORDS: Indian women, coca, Potos s. XVI.

La estrecha relacin existente entre el proceso de produccin minera y el que se ocupa de aprovisionar el poblado que alberga a sus trabajadores, debe ser contemplada al estudiar la minera en general y el caso de Potos en particular.1

Asiento que se levant a las faldas del Cerro Rico, descubierto el ao 1545, ubicado a ms de 4.000 metros de altura, en un sitio originalmente despoblado, de difcil acceso, rido e inhspito, en el cual toda provision debio ser llevada por acarreto.Estas dos cosas son las minas y el trajn, sin minas no es de ningn provecho aquel Reyno porque no hay cosa en que se pueda sacar para contratar en otro, antes es falto de muchas cosas para

Artculo expuesto en el marco del 49 Congreso de Americanistas de Quito, (ICA), bajo el nombre Formas familiares matriarcales en Potos del s. XVI?

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la conservacion de la vida humana que se traen de otros Reynos y si no se puede sacar sin gente y esta gente no se puede sustentar sin comer y vestir y no se puede proveer esto sin trajn por estar los asientos de minas en tierra frigidsima que todo se lleva de acarreto y este trajn tampoco se puede hazer sin gente... (B.N.M. mss.3040, f.10 s.f. ).

Una intensa actividad comercial al minorista o al detalle se desenvolvi en sus mercados, la cual fue dejada mayoritariamente en las manos de las mujeres indias residentes en el lugar.Esta funcin las transform en un factor esencial en su funcionamiento, dndoles la oportunidad a las mas hbiles, de acumular fortunas de variada importancia y a la vez adquirir independencia y seguridad personal. Noticias referentes a su accin en las calles y mercados de Potos se pueden encontrar con profusin en la documentacin notarial conservada en los diferentes archivos regionales. Testamentos, asientos de trabajo, contratos de compraventa y juicios, dan testimonio de este acerto e introducen un importante elemento a examinar, en relacin al discurso construido en torno a la participacin indgena dentro del sistema productivo minero permitiendonos al mismo tiempo, observar con cierta nitidz, el proceso de imposicin del cotidiano en este discurso. El virrey don Francisco de Toledo (1569-1580), por medio de la implementacin de una serie de reformas administrativas, sociales y economicas, jug un papel importante en el proceso de sacar a la Villa de la crisis de produccin en que se haba sumergido a partir del ao 1566, en que el metal baja de calidad, y las vetas se han ahondado hasta el extremo de convertir la explotacin en sumamente riesgosa y poco lucrativa. Introduciendo el proceso de fundicin del metal por amalgamacin con azogue, y la construccin de un complejo sistema hidrulico a travs de represas artificiales de agua, las famosas lagunas de Potosi, destinadas a proveer de agua a los Ingenios de molienda construidos en las mrgenes de la Rivera ; a lo cual debemos sumar otra serie de medidas tendien-

tes a incrementar el nmero de la poblacin indgena de la villa, consigui reactivar la minera del asiento, la cual logr alcanzar niveles de produccin nunca antes registrados por la historia mundial. Por otro lado, las decisiones administrativas que adopt y que afectaron a la poblacin del lugar, son de gran inters para la comprensin de su obra poltica y nos permiten observar los tramos ms finos de la poltica real en Indias. Toledo arriv a Potos el ao 1573, como parte de su Visita General del Reyno, el fuerte asombro que le provoc el lugar, esta registrado por los relatos de mayor colorido de su correspondencia con el Monarca....en este asiento se an permitido a los yndios y a los espaoles que ellas salgan a las plazas y mercados a vender todas las cossas de los de aqu y los de las otras provincias ymbian a este asiento y el corregidor que a querido reformar esto le a opuesto que destruie a este asiento, ningun gobernador que lo viese y tocase con las manos se atreveria a poner remedio con las falsas informaciones que desta tierra se da (B.N.M., mss. 3040 f.91v.).

Sus consejeros haban preparado al virrey para el encuentro con las calles del asiento, sin embargo ello no evit la explosin de profundo asombro que le embarg a medida que se internaba por las callejuelas enrevesadas del lugar, y se pona en contacto con su heterognea poblacin indgena.Del asiento de que aqui no se puede dar enteramente razn del a vuestra magestad que aunque aya mas de tres meses que yo llegu y lo e visto todo por mi persona y puesto visitadores particulares para cada cossa como tengo dicho en la carta de govierno todavia avre menester mas tiempo para entenderlo...(Levillier Gobernantes del Peru 1924 t.V carta del virrey Toledo al Rey Potos 20 de marzo de 1573).

Este funcionario juzg que cualquier reforma a adoptar deba incluir un incremento importante del nmero de habitantes, las medidas que tom para ello abarcaron el reconocimiento de la costumbre del lugar, desenvuelta desde el comienzo de explotacin del

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Cerro, incluyendo tanto al intento por mantener a los indgenas como factor lder en el sistema productivo, (discusin sobre la venta de metal robado por los indios)2, de fundicin, (mantenimiento de las guayras)3 y de las medidas de proteccin del trabajo de las indias del lugar. El ao 1575, en viaje de regreso a Lima, dando por terminada la Visita General, el virrey legisl un conjunto de disposiciones que formaron las Ordenanzas para los Indios de Las Charcas, que incluyeron varios artculos que demuestran que para esa poca haba terminado de estudiar la realidad de la regin, convencindose de la importancia del papel de la mujer india como parte del sistema productivo del Reyno en general. De acuerdo al artculo V, se prohbe que las nias indias sean separadas de sus madres para ir a escuchar catecismo, porque su principal obligacin es ayudar a sus madres en las labores cotidianas, en el artculo XXXII, se da orden que en los pueblos donde existieren antiguos mercados los indgenas continen

Esta discusin surgi temprano, a medida que la riqueza del metal se iba agotando y los dueos de minas que en un comienzo le restaron importancia comienzan a vigilar los montos de sus ganancias. El momento ms lgido se produjo cuando el padre jesuita Francisco Baena comienza a predicar, azuzado por sus feligreses , contra el robo de metales y la venta de ellos en el mercado por los indios. El virrey Toledo reaccion enrgicamente contra estos embates desterrando a Baena y obligando al jefe de la orden Jesuita, en ese momento el padre y cronista, Joseph de Acosta, a desautorizar a su subordinado declarando que los indios tenan derecho a vender libremente el metal. Las guayras u hornillos de orgen indgena pre-hispano, fueron la solucin al problema de la fundicin del metal en el asiento, hasta la introduccin del proceso de amalgamacin por azogue. En ese momento Toledo las conserva y esta politica sustentada sobre las bases de la costumbre del lugar, fue uno de los pilares que posibilitaron que el orden de explotacin que estudiamos siguiera funcionando an despus de haber sido implantados los Ingenios de azogue.3

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comprando y vendiendo dos veces por semana, y que donde no hubieren se hagan; en el artculo XIII, se prohibe que los caciques o curacas cobren tributos a las indias casadas y en el XXVI se exige a los Corregidores de Indios que vigilen que los naturales no mueran ab intestato (Levillier Gobernantes del Per, t.VIII, 1924, p.304-382). Podemos sostener que Potos fue construido como un lugar privilegiado por la Corona, la cual bas su poltica de concesin de mercedes especiales a los asientos mineros en la experiencia acumulada a travs de largos siglos de gobierno, en que el principio de reivindicacin de la potestad sobre los yacimientos minerales del subsuelo de sus territorios, fue un factor indiscutido por las monarquas europeas. En Castilla y Len esto comienza a ser codificado a partir del siglo XIII (COLECCION LEGISLATIVA de MINAS, 1889) (BORRAR, p. 266). Esta condicin especial de la villa ya la observ el historiador J.Lockhart, (1982, p.266); segn el cual a pesar de haber sido Potos un factor altamente importante en el proceso desorganizador de la poblacin indgena, jug un papel casi nulo como elemento de aculturacin, hecho que se tradujo en que la numerosa y abigarrada masa de pobladores indgenas del lugar mantuvo sus costumbres -religin y lengua a pesar de el estrecho contacto con los europeos. Las expresiones de sorpresa que registr Toledo en su correspondencia reflejan sin dudas el fuerte choque cultural del espaol con una urbe de caractersticas predominantemente indgenas a la cual termina llamando, como lo hicieron antes y despues de l muchos otros espaoles, la Babilonia de Indias. Respondiendo a las leyes de la oferta y la demanda los mercados potosinos se repletaron de productos de consumo exigidos por los naturales, poseedores de

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Hasta la crisis de produccin de mediados de la dcada del 60', diversos testimonios documentales coinciden en presenta r la

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un enorme poder adquisitivo, adquirido como resultado del sistema de explotacin adoptado desde el comienzo de la mineracin en el Cerro Rico4. Artculos de primera necesidad arribaron incesantemente al lugar, incluyendo desde los Andes del Cuzco, la preciada yerba coca, la cual fue comerciada al minorista con grandes mrgenes de ganancia por las mujeres indias, que desde los inicios del asiento comienzan a ser sealadas en la documentacin notarial como las indias de la calle de la coca o las indias coqueras. La mujer india como elemento social integrado al medio urbano ha sido poco estudiado, sobre todo durante el perodo temprano de la colonizacin. Entre las excepciones se cuentan los estudios sobre testamentos de finales del siglo XVI en Quito, de Frank Salomon (1988, p.325-341), y para el mismo perodo en Arequipa por Elinor C.Burkett (1978, p.118 ). Sin embargo estos trabajos o por la escacz del material documental con que contaron, o por haber tratado el tema de acuerdo a la seleccin arbitraria de un solo tipo de documentos, testamentos en el caso de Salomon, no lograron abarcar de manera integral a estas mujeres. Esto no es lo que acontece con las indias de la calle de la coca de la Villa Imperial, las cuales por la importancia y complejidad de su accion econmica, que las puso en contacto con una pluralidad de factores

sociales, dejaron rastros definidos en la documentacin notarial del perodo, incluso sobre su vida privada. Por otro lado, no obstante que la documentacion notarial, da la sensacin de confiabilidad, debe ser analizada con sumo cuidado, pues tanto ayer como hoy, existieron individuos prontos a prestar testimonios falsos a un notario, y tanto entonces como ahora, muchos cayeron en sus redes. Un historiador debe de la misma manera aproximarse con espritu crtico y recelo a toda la documentacin con que trabaja. De manera que si bien los testamentos de indias, que por un lado nos presentan datos de sumo inters referentes a los bienes acumulados durante la vida productiva de estas mujeres y sobre sus relaciones de trabajo y medio que las rodeaba, pueden esconder al mismo tiempo, graves distorciones que los convierten en un testimonio mucho menos seguro en lo referente a los restantes datos que contienen.Cada testamento e incluso documento de compraventa o de otro tipo, puede esconder entre sus lneas un intrincado drama personal, frente al cual debemos estar alertas. El ao 1588, el monarca orden al Conde del Villar, (Fernando de Torres y Portugal, 1584-1588), su virrey en el Peru, que en vista que se ha enterado de las graves irregularidades que suelen acontecer estando un indio rico enfermo y...le va a confesar un religioso o clrigo a cuyo cargo esta su doctrina, y procura y da orden como haga testamento y que en el dexe a l o a la Iglesia toda o la mayor parte de su hazienda, aunque tengan herederos forzosos, y que con los Indios ladinos sacristanes, que tienen en las dichas Yglesias, que por la mayor parte son criados suyos embian a hazer prevenciones con los dichos enfermos, y aquellos se persuaden en ello, y que cuando la justicia lo viene a entender ya el difunto esta enterrado, y el cura o la Yglesia apoderados de la hazienda, y por este camino quedan muchos pobres defraudados de las herencias que les pertenecen... (ENCINAS, v. II, 1945, p.166-167).

versin de acuerdo a la cual la riqueza del metal y la facilidad de extraerlo hizo que los dueos de las minas abandonaran su explotacin en manos de sus yanaconas o indios varas, quienes ponan los materiales de expotacin, entregando la cacilla o yema, la parte ms rica del metal extrado, al dueo de la mina, restndole al indio el metal sobrante. Esta version referente a la forma de explotacin del mineral en el perodo temprano de Potos, se puede consultar en la B.N.M.el mss.3040, la cual es ratificada por el cronista Luis Capoche (1959, p.108-11). Sin embargo estas interpretacines deben de ser cotejadas con documentos alternativos y que presenten la version contraria, ver, A.G.I. Justicia 677.

En realidad, a oidos del Rey y su Consejo de Indias haca tiempo que estaban llegando quejas so-

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bre este grave abuso, el que por lo dems, fue muy difcil de erradicar. De manera que algunos aos despus, el Cabildo de los Veinticuatro de Potos, se ocup tambin del tema, y en las Instrucciones que despacha a su procurador en la Corte, Luis Dvalos de Avila, le solicita que se queje porque...los curas de las parroquias de la dicha villa quando algun indio muere le consumen todos los bienes que dexan, unos porque ellos mesmos les hazen los testamentos e se dexan en ellos por herederos y otros a titulo de que se les deve dar el entierro y de las andas e cruz alta desde la casa del muerto a la Yglesia quitando a sus hijos e padres la legtima que se les debe de derecho natural...(A.N.B. ACTAS DEL CABILDO DE POTOSI, t.8, f.10).

dicha casa le doy porque rueguen todos por my anyma...agregando adems que mientras esta montaera no se encuentre sus albaceas, un clrigo llamado Lima y un espaol de nombre Benyto Pealosa, debern ser los encargados de repartir el arriendo de acuerdo a su parecer, en rogativas por su alma y en limosnas por el rescate de los cautivos (C.M.P.,1588, e.n.13).

Entre las escrituras notariales, se encuentran varios documentos que corroboran estas preocupaciones de las autoridades. El mismo ao 1588, en que el Monarca despacha el decreto anteriormente citado, Francisca Chimpo Ocllo, palla o india noble, natural del Cuzco, cuyo estatus de india casada y velada segun la orden de la Santa Madre Iglesia, es poco comn entre las mujeres comerciantes de Potosi, dict su testamento. Su marido la abandon hace catorce aos aproximadamente, yndose a vivir a la ciudad de Tarixa, desde donde a veces a acudido a verme y hablarme, los bienes acumulados por este matrimonio y que han sido ganados por ambos a dos y por ende debern ser repartidos equitativamente al momento de disolucin del vnculo, preocupan a Francisca por que las casas,...que al presente bibo que las he ganado y edificado con mi sudor y trabajo queden de la parte de los dichos bienes myos...y a pesar de que con ella vive Mara india, al parecer una criada, y a quien le deja de herencia 30 pesos corrientes y un luto, cmo de acuerdo al documento parece que no tiene heredero alguno a quien dejar sus propiedades, decide destinarlas para...meter a monja a una espaola o montaera pobre y necesitada la qual sea la que le pareciere a mys albaceas la qual

Si bien este testamento concuerda con las denuncias referentes a dolo, nos presenta otro problema que debe de ser tomado en consideracin al estudiar este tipo de testimonios, la ausencia de herederos o la dificultad para encontrarlos pudo haber sido tambin una consecuencia del carcter de inmigrantes de la poblacin que se estableci en el asiento. Este problema preocup al virrey el cual determin que en caso que alguien no poseyera susesores directos deba de ser heredado por sus ascendientes prximos, lo que rega en todos los territorios bajo dominio de la Corona castellana, desde que se promulgaron las Leyes de Toro, (MARTNEZ ALCUBILLAS, 1885, p.719-128), el ao 1505, y que rigieron por derecho de prelaca en todo el reino en lo que se refiere a materia de derecho civil. Sin embargo, Toledo atribuyndose la prerrogativa de explicar este Cdigo de acuerdo a las necesidades de Indias, orden que...a falta de hijos no excedan las mandas que hicieren a otras personas, y por su nima, de la mitad de los bienes que dejare, porque la otra mitad la hayen libre los herederos por ser forzosos...(LEVILLIER, t.VIII, 1924, p.326).

Evidentemente los testamentos carentes de herederos son una minora, que ya Frank Salomon (1988, p.328), calcul en un 43% para Quito a finales del siglo XVI, aunque la posibilidad de llegar a establecer cualquier tipo de clculo estadstico a travs de estos testimonios, resulta muy peligroso, aun ms si aceptamos la posibilidad de engao denunciados por las autoridades de entonces y por las vivas sospechas que surgen al estudiar su contenido.

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Los distintos problemas referentes al empleo de escrituras notariales por la historiografa ha sido tratada en detalle por Adelaine Daumard y Fraoit Furet (1959, p.676-693). No podemos descartar, sin embargo, la posibilidad de desenvolver una pesquisa que permita acercarnos a las vidas privadas de estas mujeres indias, reconstruyendo en lo posible su entorno familiar y social, en base a las secciones ms confiables de esta documentacin, las que incluyen en los testamentos un recuento pormenorizado de los debes y haberes que lograron acumular durante su vida de trabajo, sus acciones ante la justicia de la villa y el numero abundante de contratos de compraventa efectuados entre indios, que nos permiten comprobar que el objeto de mayor inters en que invirtieron sus ahorros fue en la compra de bienes races del lugar. El instante de celebracin del contrato de compraventa deba de realizarse ante un notario, exigindose tambin la presencia del Justicia Mayor, del Corregidor de Indios o del Alcalde Mayor de Potosi, debiendo adems comparecer, de acuerdo a las Leyes de Toro, el marido en caso de existir tal, dando su consentimiento a la accin de su mujer. En la Casa de Moneda de Potos, se conservan variados tipos de contratos de compraventa efectuados entre indios en general y en particular entre las mismas mujeres coqueras. El 12 de enero de 1572, comparecieron ante el escribano pblico Martn de Barrientos y de don Diego de Gamarra Alcalde Ordinario, Catalina natural ynga, junto a su marido, Hernando Santn, natural chachapoyas, la cual declara que

La adquisicin de propiedades fue un acto de gran importancia para estas mujeres no solamente como una forma de inversin, de una cantidad relativamente importante de capital, sino por su significado cultural que pudo estar relacionado con la tendencia que se observa en algunos de estos testimonios de transmisin del bien por va materna. En una fecha cercana a la del contrato anteriormente citado, otra mujer llamada Catalina Palla, oriunda del Cuzco, dict su ltima voluntad, por intermedio del mestizo, Juan de la Pea, quien sirvi de lengua, junto a su lecho de enferma se encontraban adems sus dos hijas, Francisca nia de catorce aos, y Mara de Balencia hija de una unin previa con Pedro de Balencia de la ciudad de Arequipa, tambin estubo presente su amo5 , trmino con que se refiere a su conviviente y padre de su hija menor, Gregorio de la Pea. Catalina que se dedica a la venta de coca y pan, a logrado reunir un capital de trabajo que le permite mantener a sus hijas, la participacin en estas ganancias de Gregorio no queda clara, sin embargo la relacin entre los miembros de este grupo familiar, parece haber estado fuertemente determinada por el peso de la presencia de este ltimo, el cual es nombrado albacea, imponindo sus valores e intereses por sobre los de Catalina, tensin que se observa claramente en el documento.Declaro que Gregorio de la Pea mi amo me hizo donacin y a mis hijas destas casas y corrales que al presente moro para que durante los dias de mi vida y de las de mis hijas viviese en ellas, e las tubiere e gozase como de cosa mia propia, digo y declaro

de buena voluntad vende y da cuenta a Elvira May, india, presente una casa que tiene en esta villa detrs de las carniceras que lindan con las casas de esta parte y por la otra con las casas de Ysabel, india, criada de Antonio de Vargas, la qual dicha casa ay tres bohos y cercas con pertenencias entradas y salidas, pertenencias usos derechos y costumbres y servidumbres... por la cuanta de 200 pesos de plata corriente (C.M.P., 1572, e.n.4, f.22).

La relacin existente entre un amo y su criada o criado, que tiene connotaciones que lo relacionan al vnculo de yanaconaje, fue comnente empleada en este perodo, abarcando toda la gama de relacionamientos entre un europeo y un indio no mitayo, relacionado a l temporalmente sobre la base de un asiento de trabajo asalariado e incluso a relaciones entre indios, sobre lo cual se conservan numerosos documentos.

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Paulina Numhauser Bar-Magen / Revista de Histria 138 (1998), 27-43

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que las dichas casas y corrales de que ansi me tiene hechas la dicha donacin de ques de los dias de mi vida son del dicho Gregorio de la Pena y de las dichas mis hijas y de Juan de la Pea hijo del dicho Gregorio de la Pea y en esto me remito a la dicha donacin...De esta manera las casas terminan convirtiendose tambin en propiedad de este ltimo, y la hija de Pedro de Balencia que segn su madre es propietaria como su hermana del bien raz, se decide que si el dicho su padre la quisiere llevar se la de el Gregorio de la Pea.

Nombra como sus herederos universales a Juan y a su hija Francisca poniendo fuera a su hija Mara a quien le deja tan slo la suma de cincuenta pesos de plata corriente como dote, y con esto la aparte de todos mis bienes y herencia (C.M.P., 1572, e.n.6 f. 51 y ss.). El acto jurdico de donar6, fue muy empleado en Potosi, en las relaciones de yanaconaje entre las criadas de los comerciantes de coca y sus amos los cuales como una forma de agradecimiento y recompensa, les donaron bienes races. Las donatio propter nupcias, que son las que corresponden en este caso fueron equivalentes a las dotes, pues no volvan al esposo o donador en caso de sobrevivir ste a la mujer, sino que fueron reputados como bienes traspasables a los herederos directos de la mujer. Por lo cual resulta evidente que por sobre la ley y la ltima voluntad de Catalina se imponen los intereses de su amo, hecho que particulariza este caso, pues generalmente fueron las mujeres las que sobrevivieron a sus compaeros.

Donacin propter nuptias o ante nuptias, en su orgen fueron donaciones hechas a la mujer en vsperas de su casamiento por su futuro marido o por un tercero, la intencin de sto fue evidentemente el establecimiento de la igualdad entre los cnyugues, sta costumbre alcanza su mximo desenvolviminto en la poca tarda del Derecho Romano, ver, PETIT, 1972, p.568-569. En las Leyes de Toro se acuerda que en el caso de las donaciones dbese atener a la Ley del Fuero, que permita solamente en caso de tener alguien heredero legtimo hacer donacin de hasta la quinta parte de sus bienes.

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La tendencia hacia el mantenimiento de una sociedad indgena bi-lneal en que la sucesin se establece por lnea materna o paterna separadamente, de acuerdo a un posible orden pre-hispano y que pareciera notarse en algunos de estos testimonios, resulta no obstante difusa y posiblemente fue asimilada por la estructura paternalista del documento testamentario a travs del cual estudiamos el fenmeno. Los testamentos incluyeron entre las listas pormenorizadas de los bienes de estas mujeres, su vestuario y joyas, datos que nos permite reconstruir la forma como estas ricas comerciantes se engalanaban cotidianamente, siendo posible comprobar que sus prendas continuaron siendo las tradicionales, y que a medida que su riqueza se incrementaba, ellas se preocuparon por hacerlo patente en su apariencia personal. Francisca Carna, poderosa mujer coquera al mayorista, entre sus alhajas cuenta con cinco pares de topos con sus cadenas de plata. Algunos han pretendido que el cuidado de estas mujeres por su vestuario t