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TEOLOGIA PARA AMADORES ALISTER McGRA TEOLOGIA PARA AMADORES ALISTER McGRATH Autor do livro O delírio de Dawkins

Teologia para amadores Alister Mcgrath

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TEOLOGIAPARA A M A D O R E S

ALISTER McGRATHAutor do livro O delírio de Dawkins

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Semeador Jr.

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TEOLOGIAPARA A M A D O R E S

ALISTER McGRATH

T R A D U Z I D O P O R

Rachel Vieira Belo de Azevedo

MCmundocristão

São Paulo

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Copyright © 1999 por Alister McGrath.Publicado originalmente por Hoddcr and Stoughton Ltd, England, uma divisão da Hoddcr I ieadline PLC.

Editora responsável: Silvia Justino Assistente editorial: M iriam de Assis Supervisão de produção: Lilian Melo Colaboração: Pâmela Moura Revisão: Gustavo Nagcl Capa: Júlio CarvalhoImagem: Digital Vision - Imagebank Group

Os textos das referencias bíblicas foram extraídos da Nova Versão Internacional (NVI) da Sociedade Bíblica Internacional, salvo indicação específica.

"Iodos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19/02/1998. É expressamente proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por quaisquer meios (eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação e outros), sem prévia autorização, por escrito, da editora.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

McGrath, Alistcr

Teologia para amadores / Alistcr McGrath ; tradução de Rachel Vieira Belo de Azevedo. — São Paulo: Mundo Cristão, 2008.

Título original: Theology for amateurs ISBN 978-85-7325-513-3

1. Teologia doutrinal - Obras de divulgação I. Título.

08-02321 CDD -230

índice para catálogo sistemático:1. Teologia doutrinal: Cristianismo 230 Categoria: Teologia

Publicado no Brasil com todos os direitos reservados pela:Editora M undo CristãoRua Antônio Carlos Tacconi, 79, São Paulo, SP, Brasil, C E P 04810-020Telefone: (11) 2127-4147Home page: www.mundocristao.com.br

Ia edição: maio de 2008

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Sumário

1. Por que se importar com teologia? 7

2. Analisando uma imagem: Deus como pastor 9

3. Analisando um acontecimento: a cruz de Cristo 15

4. Analisando uma idéia: um Deus todo-poderoso 21

5. Acabando com os jargões: redescobrindo as palavrascristãs 25

6. O fundamento: a teologia e a Bíblia 31

7. Quem é Jesus: montando o quebra-cabeça 37

8. A Trindade: a imagem geral sobre Deus 43

9. Estabelecendo conexões: a doutrina da criação 49

10. A atratividade do evangelho: teologia e apologética 55

11. Sondando as profundezas da fé: teologia eespiritualidade 59

12. Seguindo em frente 65

Conclusão 69

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1Por que se importar com teologia?

Costumamos achar fácil falar das coisas de que realmente gos­tamos. Nosso entusiasmo pode ser contagioso, fazendo com que outros queiram compartilhar de nossos interesses. Então, o que poderia ser mais natural para os cristãos do que falar sobre sua fé? Falar sobre Deus é tão natural quanto importante.

A maioria dos termos técnicos vem da língua grega. As pa­lavras que terminam com “logia” são baseadas na palavra grega logos, que significa algo como “conversa” ou “discussão”. Assim como “biologia” significa “conversa sobre a vida” (da palavra grega bios, “vida”). “Teologia” é, portanto, “conversa sobre Deus” (da palavra grega theos, “Deus”). De certa forma, todos somos teólogos, na medida em todos queremos falar sobre Deus. Só que não é tão simples assim.

A maioria dos cristãos não acha importante a teologia. Escrevo essas palavras com tristeza. Antes de prosseguirmos, no entanto, é essencial sermos honestos em relação a isso. A teologia é vista normalmente, até mesmo entre os cristãos mais aplicados, como especulações sem sentido vindas de pessoas que deveriam estar fazendo algo mais útil de sua vida — como pastorear igrejas ou trabalhar no campo missionário.

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Como acredito que a teologia é muito interessante — algo que traz profundidade e maravilhamento para nossa fé — , não me desanimo diante dessa atitude. Antes, posso entendê-la. Tendo ensinado teologia na Universidade de Oxford por muitos anos, tenho consciência de que muitos dos escritos teológicos são di­fíceis de ler, cheios de jargões e parecem pouco relevantes para o aprofundamento da fé pessoal ou o encorajamento à missão da Igreja. Mas não tem que ser assim.

Este livro é escrito na perspectiva de que a teologia cristã consiste num dos assuntos mais fascinantes que alguém pode querer estudar. Se você já tentou e ficou frustrado ou desenco­rajado, por que não lhe dar outra chance? Teologia para amadores vai apresentá-lo à teologia partindo do princípio de que você a desconhece. Se já teve uma experiência desencorajadora, esqueça. Vamos recomeçar. E enquanto exploramos a teologia juntos, podemos entender sua importância na prática.

Então, por onde devemos começar? Talvez com um dos mais simples, porém profundos, versículos bíblicos: “O Senhor é o meu pastor” (SI 23:1).

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2Analisando uma imagem: Deus como pastor

“O Senhor é o meu pastor” (SI 23:1) é uma das passagens bíblicas mais conhecidas. Muitos cristãos a consideram imensamente confortante e tranqüilizadora, sobretudo quando enfrentam tempos difíceis. Mas o que ela significa? E como serve de ajuda para entender por que a teologia ajuda na fé?

O que lhe vem à mente quando falamos de pastor de ove­lhas? Nos tempos bíblicos, o pastor era alguém responsável por um rebanho de ovelhas. Ele as guiava pelo deserto, tentando encontrar comida e água para elas, protegendo-as dos animais selvagens. Então, o que isso diz a respeito de Deus?

Precisamos deixar claro desde o início que pensar em “Deus como pastor” não significa que Deus é um ser humano que passa o tempo guiando vários animais pelo deserto. Em um primeiro momento, a passagem bíblica que examinamos poderia sugerir que Deus é humano. Mas obviamente não é esse o caso e, é claro, não é o que a passagem significa.

A Bíblia usa analogias para falar sobre Deus. Se eu afirmo que A é uma analogia para B, não estou dizendo que A seja idêntico a B. Estou simplesmente declarando que há semelhança entre A e B, assim como diferenças. Tudo o que sabemos é que as analogias se desfazem se tentamos levá-las muito longe! De

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qualquer maneira, as analogias nos permitem pensar em coisas complicadas e difíceis, usando idéias mais simples e familiares.

Falar de “Deus como pastor” é afirmar que “Deus é parecido com um pastor”. Em outras palavras, a imagem de um pastor de ovelhas nos ajuda a pensar sobre a natureza de Deus e nos permite entendê-la melhor. Não significa que Deus seja idêntico a um pastor de ovelhas. Antes, significa que alguns dos aspec­tos de um pastor de ovelhas nos ajudam a pensar sobre Deus e apreciá-lo mais.

Vamos colocar isso em prática listando alguns aspectos dos pastores de ovelhas. Eles:

1. São humanos.2. Cuidam de um rebanho.3. Protegem o rebanho dos perigos.4. Guiam o rebanho até a comida e a água.

Agora vamos olhar para cada um desses itens e ver o que podemos aprender sobre Deus através deles:

1. Todos os pastores de ovelhas são seres humanos. É obvio que isso não significa que devemos pensar em Deus como ser humano. Trata-se de um aspecto da analogia que não devemos considerar. Deus não é um ser humano. Porém, o comportamento de um grupo particular de seres humanos pode nos ajudar a en­tender melhor a natureza de Deus. Devemos concordar, então, que esse é um aspecto da analogia que não devemos tentar levar muito a diante.

2. Os pastores de ovelhas guiam um rebanho. O que isso nos diz? É interessante notar que esse aspecto da analogia nos ajuda a entender algo importante sobre nós mesmos. De iní­cio, pode parecer estranho ou até mesmo um pouco insultante.

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Até porque as ovelhas não são os animais mais inteligentes. Elas estão sempre se perdendo e embaraçando-se em cercas. Ainda assim a Bíblia usa a ovelha como imagem da natureza decaída do ser humano. Pensar em nós mesmos como ovelhas nos lembra que estamos perdidos e precisamos de alguém que nos encontre e nos leve para casa em segurança. Pode não ser muito elogioso pensar em nós mesmos desse modo, mas ainda assim é totalmente realista!

Reconhecer nossa necessidade de um pastor significa duas coisas: que precisamos ser salvos e que não podemos fazê-lo por nós mesmos. Jesus contou uma parábola sobre uma ovelha perdida (cf. Lc 15) para enfatizar essa questão. Apesar de 99% das ovelhas estarem salvas no aprisco, protegidas contra os perigos, o pastor saiu à procura da única ovelha perdida. Sem ajuda a ovelha não encontraria o caminho para casa. Quando o pastor a encontrou, levou-a de volta em segurança. Talvez a ovelha estivesse machucada ou cansada. Talvez estivesse apenas perdida, sem a mínima noção de onde estava. De qualquer for­ma o pastor foi procurá-la porque isso era importante para ele. Deus é como esse pastor. Ele quer encontrar aqueles que estão perdidos e levá-los para casa, em segurança.

3. Os pastores protegiam seus rebanhos do perigo. Podemos ver aqui uma declaração realmente maravilhosa e comovente do amor de Deus, e a sua determinação de cuidar de nós. A imagem de um pastor guardando seu rebanho dos animais selvagens nos lembra que Deus se importa conosco e quer nos proteger de todos os perigos enquanto caminhamos na estrada da fé. O Novo Testamento se refere a Jesus como o “bom pastor”— um pastor que está preparado para entregar sua vida por suas ovelhas (Jo 10). Isso nos mostra a incrível extensão do amor de Deus por nós.

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4. O pastor leva o rebanho à comida e à água. Sozinhas, elas não encontrariam esses recursos vitais, e morreriam. O pastor as guia e as vigia enquanto comem e bebem. Essa analogia poderosa nos lembra que Deus nos provê de tudo o que precisamos em nossa jornada de fé. Tal como Deus forneceu a Israel o maná dos céus para sustentá-lo durante a longa viagem do Egito à terra prometida, ele também nos sustentará durante nossa viagem para a Nova Jerusalém.

Você consegue perceber, então, como a analogia de Deus como pastor de ovelhas acrescenta profundidade ao maior tema da fé cristã? E claro que podemos conhecer o amor de Deus por seu povo sem ter de pensar no pastor de ovelhas. Mas a imagem do pastor acrescenta profundidade e vivacidade ao tema. É fácil pensar no amor de Deus de forma abstrata. A imagem do pastor nos traz a idéia do amor de Deus como algo vívido. Faz-nos pensar em uma situação real onde amor e cuidado podem ser vistos na prática.

Mas por que a Bíblia usa analogias como essa? Bem, como poderíamos entender Deus? Como poderíamos pensar sobre ele? Alguns dos primeiros escritores cristãos costumavam comparar o entendimento de Deus ao olhar diretamente o sol. Os olhos humanos são simplesmente incapazes de testemunhar o brilho total do sol. A mente humana, de igual modo, não pode com­preender a glória total de Deus.

Conta-se a história de um imperador pagão que visitou o rabino judeu Joshua ben Hananiah. O imperador pediu que lhe fosse permitido ver o Deus de Joshua. O rabino lhe disse que era impossível, resposta que não satisfez o imperador. Então o rabino levou o imperador para fora e pediu-lhe que olhasse di­retamente para o sol do meio-dia. — Impossível! — respondeu o imperador.

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— Se você não consegue olhar para o sol, que Deus criou— respondeu o rabino — muito menos poderá ver a glória do próprio Deus!

No entanto, como sabe qualquer astrônomo amador, é possí­vel olhar para o sol usando um pedaço de vidro escuro. Isso reduz drasticamente o seu brilho, de forma que o olho humano possa tolerá-lo. Olhar para o sol de outra forma está totalmente além de nossa capacidade. E igualmente útil pensar nos modelos ou nas imagens de Deus nas Escrituras como um meio de revelá-lo em proporções toleráveis.

João Calvino (1509-1564), reconhecido mundialmente como um dos maiores teólogos cristãos, ensinava que Deus, conhe­cendo nossa limitação para lidar com conceitos, revelou-se de maneira que nos fosse acessível. Isso não reflete nenhum tipo de fraqueza ou atitude inadequada da parte de Deus. É sim­plesmente um reflexo de sua natureza generosa e doce, pela qual ele leva nossa fraqueza em conta enquanto se revela. Calvino comenta que “Deus se acomoda à nossa habilidade” — queren­do dizer com isso que Deus usa palavras, conceitos e imagens com os quais podemos tratar. A Bíblia está repleta de imagens vívidas e poderosas de Deus que nos permitem apreciar toda sua maravilha e glória.

Então, o que isso nos diz sobre teologia? Um dos maiores papéis da teologia é nos ajudar a expressar o que queremos dizer quando falamos de Deus. A maioria dos cristãos pensam muito pouco sobre sua fé, usando palavras e imagens superficiais, sem conseguir apreciar sua profundidade e riqueza. A teologia nos força a fazer perguntas como: “O que você quer dizer quando diz que Deus é nosso pastor?”. Além disso, ao nos forçar à reflexão, ela nos oferece a oportunidade de aprofundar o entendimento e o apreço por nossa fé.

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Há muitos cristãos com um entendimento superficial da fé. A teologia coloca um desafio para uma fé complacente e superficial.

• Ela declara que nossa fé é mais do que conhecemos.• Ela nos desafia a ir além.• Ela oferece a oportunidade de enriquecer a fé.

Teologia é servir a Deus com a mente, é permitir que o amor de Deus, que conhecemos interiormente, afete a maneira como pensamos a respeito dele. A teologia é um esforço para certifi­car-nos de que entendemos Deus corretamente.

Vamos levar essa compreensão adiante. Vimos o valor da teologia na análise da imagem de Deus, e agora devemos olhar como isso se aplica a um acontecimento, focando especialmente a cruz de Cristo.

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3Analisando um acontecimento: a cruz de Cristo

A fé cristã baseia-se em fatos, sobretudo nos que ocorreram no fim de semana que mudou o mundo: a crucificação e a ressur­reição de Cristo. O cristianismo oferece uma visão da história como o palco em que Deus realiza seus maravilhosos propósitos de redenção.

Acontecimentos precisam ser interpretados, e seus significa­dos, desenterrados. Uma das grandes tarefas da teologia é extrair o correto significado dos grandes acontecimentos nos quais a fé cristã se baseia. Neste capítulo, consideraremos um acontecimen­to em particular: a crucificação.

Precisamos analisar logo de início a relação entre um acon­tecimento e seu significado. Para alguns, pode parecer suficiente declarar que Jesus foi crucificado e ressuscitou. Para que mais? Comecemos concordando que é essencial à fé cristã que esses acontecimentos tenham ocorrido. Ela se esvaziaria se Jesus nunca tivesse existido, se não tivesse havido a cruz e se Jesus nunca tivesse ressuscitado. Se esses eventos não tivessem ocorrido, as credenciais do cristianismo estariam destruídas.

No entanto, o Evangelho é mais do que uma declaração de acontecimentos históricos! A esse pensamento o reformador in­glês WilliamTyndale se referia como “fé de um livro de histórias”.

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Há muito mais no evangelho do que a simples crença de que algumas coisas realmente aconteceram na Palestina do século I.

Não são os eventos que envolveram a crucificação e a ressurrei­ção em si, mas a importância deles para os crentes que permane­cem no centro da fé cristã. Comparemos essas duas declarações:

1. Jesus morreu.2. Jesus morreu para o perdão de nossos pecados.

A primeira declaração é histórica, e, portanto inquestionável e muito importante, embora apenas afirme a ocorrência de um evento. A segunda declaração é também histórica, mas acrescenta algo — a interpretação da importância desse acontecimento histórico. Essa diferença é vital. Algo realmente aconteceu— mas há um significado mais profundo, e é essencial que ele seja descoberto.

Paulo nos dá um exemplo disso quando afirma que “Cristo morreu por nossos pecados” (lC o 15:3). Não só o fato histórico da morte de Cristo é importante, mas o que esse fato significa para nós. Jesus morreu para nos trazer perdão. A morte dele nos afeta e nos traz benefícios. Quanto mais entendermos a fé, mais a apreciaremos! Assim, cavar mais profundamente a pedra fundamental da fé nos ajudará a melhorar nossa perspectiva do evangelho e a falar sobre ele com os outros.

Além disso, a cruz possui uma riqueza de significado difícil de resumir brevemente. É como uma bela obra arquitetônica, como um palácio ou uma catedral. Para apreciar por completo uma construção, é preciso vê-la de vários ângulos. Precisamos examinar todos os aspectos da obra e admirar a complexidade do design e da escultura. Nunca apreciaremos o imenso trabalho empregado na construção, ou veremos toda sua beleza se olharmos

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apenas de relance. Precisamos examinar a cruz de diferentes ângulos se queremos fazer justiça à rica tapeçaria de reflexões bíblicas que há em seu significado e relevância.

Então, o que devemos fazer a respeito da cruz? Podemos pensar nela como uma obra de arte — talvez uma paisagem do renascimento. Podemos permanecer distantes da pintura, tendo uma visão geral, ou podemos focar uma pequena parte dela, admirando a complexidade das pinceladas e o efeito das cores empregadas.

Talvez a melhor maneira de “permanecermos distantes” da cruz seja ler uma das narrativas da paixão dos evangelhos, que contam a história da traição, do julgamento, da crucificação e da morte de Jesus. Essas poderosas e evocativas considerações a respeito dos últimos dias da vida terrena de Jesus nos permi­tirão sentir um pouco da dor que ele sofreu, a qual nos trouxe a redenção gratuita. O Filho de Deus teve de sofrer e morrer para que nós pudéssemos viver. Essa idéia é mais que o suficiente para nos pôr de joelhos.

Podemos, então, seguir adiante e começar a analisar os deta­lhes da cruz. Um dos principais temas nos ensina que a penali­dade de nossos pecados foi paga por Cristo na cruz. Nossa culpa foi removida porque ele entregou sua vida e derramou seu sangue purificador. Essa questão é colocada de forma poderosa por Cecil F. Alexander em seu famoso hino Oh quanto, quanto nos amou\

Não há ninguém bom o bastante Para pagar o preço do pecado;Ele é o único que pode destravarO portão dos céus e nos deixar entrar.1

1 Hinário para o Culto Cristão (H CC), n° 125, Rio de Janeiro: Juerp, 1991.

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O preço pago por Deus para nos oferecer o perdão foi alto. Seu Filho morreu para que pudéssemos ser perdoados. Essa idéia maravilhosa nos ajuda a perceber quanto Deus nos ama. E deve até nos dar uma idéia de quanto amor devemos retribuir-lhe!

Mas como pode a morte de Cristo ter esse efeito? Para analisar esse ponto, devemos olhar a resposta fornecida por um teólogo profissional — o teólogo do século XI, Anselmo de Cantuária. Deus criou a humanidade para que pudéssemos ter vida eterna, mas o pecado infelizmente interveio para impedir que a obtivéssemos sem ajuda. Se é para termos vida eterna, Deus terá de fazer algo a respeito.

Deus não pode fazer de conta que o pecado não existe, ou considerá-lo irrelevante. E uma força que tratou de interromper tudo o que ele havia planejado para sua criação. Um remédio que desfaça os efeitos do pecado, ainda que leve seus aspectos morais a sério, deve ser encontrado. Anselmo deu ênfase ao pecado como problema moral. Ele não pode ser simplesmente ignorado, mas deve ser confrontado.

Então, como a ofensa do pecado pode ser removida? Como pode o pecado ser perdoado justamente, de maneira que abranja tanto a ofensa causada a Deus pelo pecado quanto seu gene­roso amor?

Ao responder essa questão, Anselmo formula uma analogia vinda dos tempos feudais. Na vida comum, uma ofensa contra alguém pode ser perdoada desde que algum tipo de compen­sação seja oferecido em contrapartida. Anselmo se refere a essa compensação como uma “satisfação”. Vejamos, por exemplo, um homem que rouba uma quantia de dinheiro. Para satisfazer as exigências da justiça, ele teria de devolver o dinheiro além de uma quantia adicional pela ofensa do roubo. Essa quantia adicional é a “satisfação”.

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Anselmo argumenta que o pecado é uma ofensa séria contra Deus, e ela exige uma satisfação. Como Deus é infinito, essa satisfação deve ser também infinita. Mas por sermos finitos, não podemos pagar por ela. Parece impossível, então, que tenhamos vida eterna.

Mas esse não é o fim da questão! Deus deseja que sejamos salvos — e salvos de maneira a preservar tanto a misericórdia quanto a justiça dele. Embora nós, como seres humanos pecado­res, devêssemos pagar pela propiciação de nosso pecado, a verdade é que não podemos. Simplesmente não temos os requisitos ou a habilidade para quitar esse débito.

Em contrapartida, ainda que Deus não tenha nenhuma obrigação de pagar por isso, ele ainda assim o faria, se quisesse. Então, Anselmo assevera, fica claro que um Deus-homem seria, ao mesmo tempo, capaz e obrigado a pagá-la. Assim, a morte de Jesus Cristo, como o Filho de Deus, é o meio de resolver esse dilema.

Como ser humano, Cristo tem a obrigação de pagá-la; como Deus, ele tem a habilidade de pagá-la. A dívida, então, está paga e nós podemos recuperar a vida eterna. A teoria de Anselmo mostra como a morte de Cristo permite que Deus perdoe nossos pecados sem esquecer sua justiça.

Esse pequeno exemplo de análise teológica nos mostra como a teologia nos ajuda a entender o sentido da cruz. A conexão entre a morte de Cristo e nossa redenção não é inexistente e tampouco arbitrária. Como Anselmo demonstra, há uma relação real e importante entre a cruz c o perdão. Essa relação nos permite ver o sentido da cruz e ampliar a consciência da maravilha que é nossa redenção e do Deus que graciosamente nos redime.

Tendo analisado como a teologia traz sentido para os aconte­cimentos, observemos o valor da teologia em nossas referências a Deus. O que significa afirmar que Deus é “onipotente”?

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Analisando uma idéia: um Deus todo-poderoso

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Assim começa o Credo: “Creio em Deus Pai, Todo-poderoso”. Suponha que paremos nesse ponto e perguntemos: o que que­remos dizer ao afirmar que Deus é “todo-poderoso”?

Num primeiro momento, pode parecer perda de tempo. “Todo-poderoso” é uma palavra bastante simples. Significa “capaz de fazer qualquer coisa”. E como cremos que Deus é de fato todo-poderoso, estamos simplesmente dizendo que Deus pode fazer qualquer coisa. Então por que perder tempo com uma discussão sobre um assunto tão óbvio?

Uma das tarefas da teologia é fazer refletir sobre o real sig­nificado das palavras ao nos referirmos a Deus. Como falar a respeito de Deus é questão séria, devemos ter certeza de que nossa compreensão é correta. E evidente que pensar sério sobre assuntos tão “óbvios” é importante se queremos ser fiéis a Deus. Mas esse esforço também nos ajuda a entender melhor a natureza e o caráter indescritível do Deus que conhecemos e amamos.

Vamos começar com uma declaração simples: “Afirmar que Deus é todo-poderoso significa que Deus pode fazer qualquer coisa”. De início, isso parece bem direto. Mas, pensando me­lhor, não é tão simples. Pense na seguinte questão: “Deus pode desenhar um triângulo de quatro lados?”. Não é preciso muita

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reflexão para perceber que essa pergunta deve ser respondida negativamente. Triângulos possuem três lados; uma figura com quatro lados equivale a um quadrilátero, não a um triângulo.

Agora tente pensar em uma questão mais complicada: “Deus é capaz de criar uma pedra pesada demais para ele carregar?”. Essa questão envolve um interessante problema de lógica. Se Deus não pode criar tal pedra, então existe algo que ele não pode fazer. Mas se Deus pode criá-la, ele não será capaz de carregá-la— e assim existe algo que ele não pode fazer. Qualquer que seja a resposta, a habilidade de Deus fazer qualquer coisa é colocada em questão.

No entanto, refletindo um pouco mais, não está claro se essas questões interferem no entendimento que os cristãos têm de Deus. Triângulos de quatro lados não existem e não podem existir. A impossibilidade de Deus fazer tal triângulo não consiste em problema sério. Só nos força a reformular nossa declaração simples, tornando-a mais complexa. “Dizer que Deus é oni­potente significa que Deus pode fazer qualquer coisa que não signifique contradizer a lógica”.

Ainda precisamos ir além nessa questão.Se analisarmos a natureza do poder de Deus, perceberemos

quão maravilhoso e surpreendente é seu relacionamento co­nosco. Para entender, precisamos analisar outra questão. “Deus pode levar alguém que o ama a odiá-lo?”. A princípio, a per­gunta pode parecer um pouco estranha. Por que Deus quereria transformar em ódio o amor de alguém para com ele? A questão parece irreal e sem sentido.

Uma análise mais atenta, no entanto, mostra que a pergunta faz sentido. Em alguma medida, não há problema. “Dizer que Deus é todo-poderoso significa que Deus pode fazer qualquer coisa que signifique contradizer a lógica”. Aqui não há uma clara

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contradição lógica. Deus deve ter habilidade para transformar o amor de alguém em ódio. Mas há, obviamente, uma questão mais profunda aqui, que diz respeito ao caráter do próprio Deus. Podemos imaginá-lo querendo fazer isso?

Para esclarecer ainda mais esse ponto importante, farei outra pergunta: “Deus pode quebrar suas promessas?”. Não há contradição lógica envolvida em quebrar promessas. Acontece o tempo todo. Talvez seja lamentável, mas não se trata de um problema intelectual. Se Deus é capaz de fazer qualquer coisa que não envolva contradição lógica, ele certamente pode quebrar uma promessa.

Para os cristãos, porém, essa sugestão é ultrajante. O Deus que conhecemos e amamos é aquele que permanece fiel às suas promessas. Se não podemos confiar em Deus, em quem pode­remos? A sugestão de que Deus pode quebrar uma promessa contradiz um aspecto vital de seu caráter: sua total fidelidade e veracidade.

Há uma tensão entre poder e verdade. Um traidor todo-po­deroso pode fazer promessas em que não se pode confiar. Ainda assim, uma das maiores percepções da fé cristã é conhecermos um Deus qu& pode fazer qualquer coisa — mas que escolheu nos redimir. E tendo assumido um compromisso, ele permanece fiel às suas promessas. Temos o privilégio de conhecer um Deus que escolheu ficar conosco.

O Antigo Testamento expressa essa idéia nos termos de um pacto — um acordo no qual Deus se coloca como nosso Deus, para cuidar de nós. Ninguém o forçou a isso. Ele não tinha de fazer isso. Mas ele escolheu fazer. Por quê? Porque Deus nos ama. Ele não tinha de nos redimir, mas ele escolheu fazê-lo. Quando olhamos para o maravilhoso tema da redenção, começamos a perceber quanto ele nos diz sobre as maravilhas do nosso Deus.

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Neste capítulo, vimos a importância dc certificar-nos sobre o que queremos dizer ao referir-nos a Deus com palavras. Falar de um “Deus todo-poderoso” talvez sugira que ele seja capaz de realizar qualquer coisa — como quebrar suas promessas. Já analisamos essa idéia mais atentamente e obtivemos uma com­preensão mais firme e satisfatória.

Deus é aquele que se comprometeu com a nossa redenção, porque ele nos ama muito. Podemos confiar nele para alcançar seus propósitos. Desse modo, a palavra “onipotência” — como usada pelos cristãos — não significa “a habilidade de Deus fazer qualquer coisa”, mas “a habilidade de Deus alcançar seus propó­sitos”. As ações de Deus não são logicamente contraditórias ou contrárias a seu caráter. Em vez disso, ele trabalha para atingir seus propósitos. E quais são esses propósitos? Bem, um deles é nos salvar. Devemos nos alegrar por ter um Deus que não apenas nos promete salvação, mas é capaz de fazê-lo. “Aquele que os chama é fiel, e fará isso” (lT s 5:24).

No próximo capítulo, desenvolveremos ainda mais a análise das palavras, enquanto observamos a importância de descobrir o significado pleno de termos-chave do vocabulário cristão.

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5Acabando com os jargões: redescobrindo as palavras cristãs

A teologia nos força a explicar o que queremos dizer quando nos referimos a Deus. Muitos cristãos — e às vezes sem perceber!— caem no hábito de usar jargões. Falam sobre coisas como “ser salvo”. O vocabulário de muitos sermões certamente inclui ter­mos ricos e estimulantes, como “redenção” e “salvação”, embora talvez sejam usados sem um real entendimento.

Uma grande fraqueza do cristianismo moderno é a repeti­ção de palavras e frases-chave sem a devida apreciação de sua riqueza espirit uai. Precisamos redescobrir o significado desses termos e certificar-nos de que entendemos e apreciamos sua relevância.

O conhecido teólogo amador C. S. Lewis levantou a seguinte questão:

Cheguei à conclusão de que, se você não consegue traduzir os próprios pensamentos para uma linguagem não culta, eles são confusos. A capacidade de traduzi-los é o teste para aferir se você compreende de fato o que significam.1

’ God in the Dock. Grand Rapids: Eerdmans, 1970, p. 96.

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É daí que vem a teologia. Ela se relaciona com o estudo das palavras cristãs. A teologia as disseca, e nos permite vê-las detalhadamente. Vejamos alguns exemplos.

Comecemos analisando o termo usado no Novo Testamento para esclarecer o significado da morte de Cristo — resgate.

O próprio Jesus declarou que veio para “dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10:45). Essa mesma idéia é também encontrada em lTimóteo 2:5-6. Paulo se refere a Jesus Cristo como o “mediador entre Deus e os homens [...] o qual se en­tregou a si mesmo como resgate por todos”. Resgate é o preço pago para obter a liberdade de alguém.

No Antigo Testamento, no entanto, essa ênfase recai sobre a idéia de estar livre, de ser libertado, sem nenhuma especulação sobre a natureza do preço pago ou sobre a identidade da pessoa a quem foi pago. Assim, Isaías 35:10 e 51:11 fazem referência à libertação dos israelitas como os “resgatados do Senhor.” A idéia básica é que Deus interfere para libertar seu povo do ca­tiveiro, seja do poder do Babilônia (Is 51:10-11), seja do poder da morte (Os 13:14).

Referir-se à morte de Jesus como “resgate” sugere três idéias.A primeira e que alguém e mantido acorrentado. Para muitos

leitores do Novo Testamento, isso pode evocar a imagem de alguma figura pública mantida em cativeiro contra a vontade. Sua libertação depende totalmente de alguém preparado para pagar o resgate exigido.

Isso nos leva à segunda idéia: o preço pago para libertar o cativo. Quanto mais importante a pessoa mantida em cativeiro maior o preço exigido. Algo maravilhoso no amor de Deus por nós é que ele estava pronto para pagar com a morte nossa libertação. O preço da nossa liberdade foi a morte do seu único Filho (Jo 3:16).

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A terceira lembra-nos que a morte e a ressurreição de Jesus são libertadoras. Fomos libertados! O Novo Testamento lembra que Deus nos libertou do medo da morte (Hb 2:14-15) e nos trouxe à liberdade gloriosa dos filhos de Deus.

Todas essas idéias estão presentes na palavra “resgate”. Quando nos esforçamos em conhecer o significado das palavras, aprofundamos a qualidade de nossa fé. É como quebrar a dura casca de uma noz e descobrir, dentro, a fruta doce. Pensar em palavras como “regaste” desvenda a riqueza espiritual e intelec­tual da fé cristã. Lembra-nos que o cristianismo salva a alma, aquece o coração e nutre a mente.

Outra palavra usada no Novo Testamento como referência à obra de Cristo na cruz é “adoção”. Paulo a menciona para ajudar a explicar os benefícios resultantes da morte de Cristo (Rm 8:15; 8:23; 9:4; G1 4:5; E f 1:5). Então o que isso quer dizer? O que ele espera que seus leitores entendam?

A adoção não aconteceu no judaísmo. A palavra, na verdade, vem do direito romano de família, com o qual Paulo (e muitos de seus leitores, particularmente em Roma) tinha familiaridade. Pela lei, o pai era livre para adotar qualquer indivíduo como membro de sua família e lhes dar o status legal de filhos naturais. Embora persistisse a distinção entre filhos naturais e adotados, estes tinham o mesmo status legal. Aos olhos da lei, todos eram membros da mesma família, independentemente da origem.

Paulo usa o termo “adoção” para indicar que, pela fé, os crentes têm o mesmo status de Jesus (como filhos de Deus), sem querer dizer que tenham a mesma natureza divina de Jesus. A fé traz uma mudança em nosso status perante Deus, incorporando-nos a sua família, apesar de não compartilharmos a mesma origem divina de Cristo. A fé em Cristo, portanto, muda nosso status. Somos adotados na família de Deus, com todos os benefícios que isso traz.

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Quais benefícios? Podemos destacar dois deles. Primeiro, ser membro da família de Deus é ser herdeiro de Deus. Paulo assim descreve esse fato: se somos adotados como filhos de Deus, dividimos, com o filho natural, os mesmos direitos de her­deiros. Somos “herdeiros de Deus” e “co-herdeiros com Cristo” (Rm 8:17), pois compartilhamos a mesma herança.

A exemplo de Cristo, que sofreu e foi glorificado, também nós sofreremos e seremos glorificados. Tudo o que Cristo herdou de Deus um dia será nosso. Para Paulo, essa questão é de grande importância para entender por que sofremos. Cristo sofreu antes de ser glorificado; logo, os cristãos devem experimentar o mesmo. O sofrimento por causa do evangelho é tão real quanto a esperança da glória futura, onde compartilharemos tudo o que Cristo obteve com a obediência.

Segundo, o ingresso na família de Deus, pela adoção, traz um novo sentido de pertencimento.Todo mundo precisa sentir que pertence a algum lugar. Os psicólogos sociais têm mostrado a necessidade de uma “base segura”, uma comunidade ou grupo que dê às pessoas um sentido, um propósito, um senso de valor e amor pelos outros. Em termos humanos, essa necessidade é normalmente preenchida pela unidade familiar. Para os cristãos, essa necessidade psicológica real é preenchida pela adoção na família de Deus. Os cristãos podem descansar na certeza de que são valorizados dentro dessa família, o que lhes confere um senso de autoconfiança que lhes permite progredir e testemunhar para o mundo.

Esses dois exemplos demonstram como a teologia pode for­talecer nosso evangelismo. A certeza de que entendemos nossa fé e sua imensa riqueza espiritual e intelectual torna mais efetivo nosso evangelismo. Para entender a fé, precisamos destravar-lhe a riqueza, certificando, assim, que proclamamos a fé cristã em

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toda a sua grandeza. O cristão que nunca refletiu sobre sua fé tende a ser um evangelista fraco. Por quê? Porque nunca gas­tou tempo para entender sua fé, e portanto vai enfrentar sérias dificuldades ao tentar explicá-la aos outros. Entender a fé é precondição para o bom evangelismo!

Você consegue perceber como já estabelecemos uma conexão entre a teologia e o evangelismo? Devemos continuar apren­dendo à medida que caminhamos, e ver como a teologia pode ajudar a nos tornarmos evangelistas mais eficazes. Enquanto isso, vejamos como a teologia se conecta à Bíblia.

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6O fundamento: a teologia e a Bíblia

Cristo me ama, eu bem sei, pois a Bíblia assim me diz.1

Pode parecer um pouco estranho começar o capítulo com a citação de uma canção de ninar. No entanto, as coisas mais importantes da vida não raro podem ser ditas de forma simples! Esses versos singelos nos mostram o foco e o fundamento da teologia. O foco é Jesus e o amor que ele demonstra por cada um de nós. O fundamento é a Bíblia, responsável por tudo o que sabemos sobre Jesus e Deus. A teologia se fundamenta nas Escrituras e foca Jesus. Veremos, mais adiante, todas as questões sobre Jesus igualmente centrais para nossa fé. Por ora, pensemos no papel vital e importante da Bíblia na teologia.

A teologia se baseia na Bíblia. Os cristãos a vêem como fonte de verdade e conhecimento confiável sobre Deus, Jesus e nós mesmos. Trata-se de um fundamento seguro sobre o qual podemos construir os pensamentos. Então como a teologia se relaciona com a Bíblia?

1 No original: “Jesus loves me, this I know. For the Bible tells me so”. AnnaB. W a rn er , D av id R u th er fo r d M cG u ir e e W illiam B . B radbury .(N. daT.)

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É importante notar a imensa riqueza da Bíblia. Não é fácil fazer justiça à magnificência de opções que ela nos traz. A Bíblia abre uma janela que nos permite ver partes da natureza e dos propósitos de Deus. A teologia, por sua vez, tenta explorar e descrever o que encontramos nessas páginas.

Um modo útil de pensar a relação da teologia com a Bíblia foi apresentada pelo grande pregador escocês do século XIX Thomas Guthrie. Sua abordagem se baseia nos diferentes am­bientes em que crescem as flores. Guthrie argumenta que a Bíblia é como a natureza. Flores e plantas crescem livremente em seu habitat natural, sem interferência humana. Nosso desejo por ordem acaba levando essas mesmas plantas a serem coletadas e organizadas em jardins botânicos de acordo com as espécies, a fim de que possam ser estudadas individual e detalhadamente. As mesmas plantas podem, portanto, ser encontradas em diferentes contextos: um natural e outro resultante da organização humana.

A teologia representa a tentativa humana de colocar ordem nas idéias das Escrituras, organizando-as e ordenando-as para que a relação mútua entre elas possa ser melhor entendida.

Olhando dessa maneira, a teologia não é — e não foi feita para ser — substituta das Escrituras. Em vez disso, trata-se de auxílio para aprender sobre elas. Como um par de lentes, põe foco no texto das Escrituras, permitindo que atentemos para o que talvez passasse despercebido. A doutrina está sempre subordinada às Escrituras; é sempre sua serva, nunca mestra. Exploremos alguns dos mecanismos da teologia.

Primeiro, ela procura resumir o que encontramos na Bíblia. Imagine que alguém lhe peça para falar a respeito de sua crença em Deus. Há tanto que você gostaria de lhes dizer! Uma das tarefas da teologia é ajudar a resumir a imensa riqueza dos tes­temunhos bíblicos sobre Deus, Jesus e nós mesmos. Na verdade,

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como veremos em outro capítulo, a doutrina da Trindade pode ser vista como um resumo dos testemunhos bíblicos acerca da pessoa e das ações de Deus.

Suponhamos que eles lhe peçam para explicar o que os cristãos crêem sobre Jesus Cristo. Você logo perceberia que isso tomaria um bom tempo! Você pode querer recitar diversos versículos- chave, todos com uma clara afirmação sobre a importância de Deus. Mas, mesmo assim, você não seria capaz de resumir com um simples texto todo o testemunho bíblico sobre Jesus Cristo.

Passado um tempo, você talvez comece a se questionar se existe alguma maneira mais fácil de fazê-lo. E possível resumir em uma ou duas frases o rico (mas muito longo) testemunho da identidade e da importância de Jesus Cristo? A afirmação teológica “Jesus é Deus e homem” é uma tentativa. Ela estabele­ce, numa linha, uma das caracteríslicas-chave do entendimento cristão sobre a identidade e o significado de Jesus Cristo. Ainda assim, trata-se de um resumo do ensinamento bíblico, e não de um substituto dele.

Segundo, a teologia tenta relacionar as idéias que encontra­mos na Bíblia. Ela reúne as afirmações bíblicas e estabelece um quadro geral para cada uma delas. Afirmações bíblicas isoladas são vistas como tijolos que constroem o quadro geral. Elas são como pinceladas, que juntas formarão uma magnífica pintura. Também podem ser pensadas como peças de um quebra-ca- beça gigante. A medida que as peças são encaixadas, surge um padrão. A teologia tenta juntar as peças, para que possamos ver a figura completa.

A partir desse ponto é possível ir mais fundo. Podemos usar a lógica ou a filosofia para ajudar a clarear ou desenvolver o pen­samento. Usemos um argumento lógico para ver como funciona. Suponha que temos duas idéias, que chamaremos de A e B.

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1. A Bíblia ensina A.2. Mas se A é verdade, B também é.3. Logo, a Bíblia também ensina B.

Não é difícil perceber como a teologia pode começar com declarações bíblicas bem simples e, então, desenvolvê-las em direções mais complexas. Vejamos um argumento clássico sobre a identidade de Jesus que nos mostra claramente como podemos partir dos fundamentos bíblicos e ampliá-los para conceitos mais complexos.

Os cristãos declaram que Jesus é o Salvador. O Novo Tes­tamento freqüentemente se refere a Jesus como o “Salvador”, e aos cristãos como os salvos. Ainda assim, o Antigo Testamento é claro em dizer que só Deus pode salvar. Então, quais são as implicações disso? Vejamos como essas idéias se relacionam.

1. A Bíblia ensina que Jesus salva.2. A Bíblia ensina que só Deus pode salvar.

O que podemos concluir dessas duas declarações?A resposta óbvia é:

3. Conseqüentemente, a Bíblia também ensina que Jesus é Deus.

Como veremos no próximo capítulo, trata-se de um ponto muito importante. Ainda nesse assunto, nossa preocupação é perceber como algumas idéias bíblicas básicas podem se tornar o fundamento de uma reflexão teológica séria.

A teologia é uma jornada de descobrimento rumo ao cora­ção da Bíblia. Podemos dizer que ela serve para evidenciar as

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conseqüências das afirmações bíblicas, o que envolve trabalhar duro para explorar e descobrir a rica rede existente no material bíblico. Uma verdade leva à outra, e a reafirma.

Analisaremos isso mais detalhadamente no próximo capí­tulo, vendo como os cristãos falam sobre a identidade de Jesus Cristo.

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Quem é Jesus: montando o quebra-cabeça

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O maior quebra-cabeça que o mundo já conheceu é a identidade de Jesus. “Quem vocês dizem que eu sou?” (Mc 8:27-79). Para responder, temos de montar as muitas peças do testemunho do Novo Testamento sobre a identidade e o significado de Jesus. Aqui estão alguns desses pedaços.

1 .0 Novo Testamento vê Jesus como o cumprimento do povo de Israel. Mateus afirma várias vezes que Jesus é o cumprimento de uma profecia do Antigo Testamento. É o Messias, o esperado mensageiro do povo de Deus.

2. Uma série de títulos são usados para referir-se a ele, e cada um nos diz algo especial. Ele é o “Senhor”, que é o mesmo título usado para se referir a Deus no Antigo Testamento. Ele é o “Filho de Deus” e o “Filho do Homem”. Algumas vezes, ele é chamado explicitamente de “Deus”.

Vamos nos deter numa delas. O Novo Testamento não deixa dúvida de que Jesus é o nosso salvador. E o “Salvador, que é Cristo, o Senhor” (Lc 2:11). E apenas Deus pode salvar! Esse tema ecoa por todo o Antigo Testamento. O povo de Israel é lembrado constantemente de que não se pode salvar e não pode ser salvo pelos ídolos das nações circunvizinhas. E o Senhor, e somente o Senhor, que o salva (Is 45:21-22).

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Com o pleno conhecimento de que só Deus pode salvar, os primeiros cristãos não hesitaram em afirmar que Jesus era o Salvador. Não se tratava de um mal-entendido de pessoas que ignoravam o Antigo Testamento! Era simplesmente o reconhecimento do que Jesus conquistou através da cruz e da ressurreição. Mas, se Jesus fez algo que apenas Deus pode fazer, quem foi Jesus? Podemos ver aqui uma pista sobre sua verdadeira identidade!

3. Jesus foi levantado por Deus dentre os mortos. Esse evento permeia todo o Novo Testamento. É visto como boa notícia para os que crêem, os quais compartilharão a ressurreição. Essa ocorrência também nos informa algo sobre a identidade de Jesus. Segundo Paulo, a ressurreição de Jesus nos diz que ele é o Filho de Deus (Rm 1:3-4). Pedro afirma que ela demonstra que ele é o “Senhor e o Messias” (At 2:36).

4. Os evangelhos registram palavras e ações de Jesus que lançam luz sobre sua identidade. Um ótimo exemplo está na descrição que Marcos faz da cura do paralítico (Mc 2:1-12). Jesus disse ao paralítico que seus pecados estavam perdoados, provocando raiva e assombro em parte dos mestres da lei, que assistiam de perto. “Ele está blasfemando! Quem pode perdoar pecados, a não ser somente Deus?” (Mc 2:7). Esses mestres da lei estavam certos. Apenas Deus pode perdoar o pecado. Então, o que isso nos diz sobre a identidade de Jesus?

O fato é que Jesus não teria o direito ou a autoridade de pro­ferir essas palavras se ele fosse apenas homem. Jesus, porém, declara possuir autoridade para perdoar, e curar o homem (Mc 2:10-11). Perceba que a ação de Jesus teoricamente só poderia ser praticada por Deus. Uma importante peça desse gigantesco quebra-cabeça está aqui representada. Se Jesus pode fazer o que somente Deus pode fazer, temos uma indicação vital sobre sua identidade.

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Não são poucos os que gostam de ler romances policiais. Identificar o assassino é a questão central de todo bom mistério policial. Ao leitor são oferecidos indícios, pequenas evidências que se juntam para ajudá-lo a entender o que aconteceu de fato e descobrir quem praticou o crime.

Os evangelhos também estão preocupados com um mistério— a identidade de Jesus. Os escritores dos evangelhos queriam que juntássemos todas as pistas deixadas por Jesus e descobrís­semos quem ele é realmente. Há muitas evidências que juntar para chegarmos ao veredicto final sobre a identidade de Jesus. A teologia tenta reuni-las e extrair-lhes o sentido.

Então, que resultado conseguimos? O que obtemos ao reunir todas as peças? Duas grandes conclusões surgem.

Em primeiro lugar, Jesus é um ser humano genuíno. Ele sentiu dor, chorou e experimentou o significado da fome e da sede. Mas essa idéia, sozinha, não é suficiente para fazer justiça ao retrato bíblico de Jesus. Devemos passar à segunda conclusão para entender o porquê.

O Novo Testamento insiste que Jesus é bem mais que um ser humano. Sem negar de maneira alguma a realidade humana de Jesus, o Novo Testamento declara que ele é o Filho de Deus. Atribui-lhe palavras e ações reservadas exclusivamente a Deus. Jesus não é apenas um homem que faz o que só Deus pode fazer— como nos salvar e perdoar pecados. Ele é capaz de fazê-las por causa de quem ele é. Por ser Deus, Jesus é capaz de fazer o que Deus faz.

A teologia estabelece que essas duas conclusões são, primeiro, necessárias e, segundo, justificadas. Resultam de uma longa e apaixonada análise da pessoa total de Jesus — o que ele disse c fez, o que foi feito com ele e como as pessoas reagiram a ele. Nenhuma outra forma de pensar sobre Jesus faria justiça às evidências bíblicas.

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Os teólogos se referem a essas conclusões como as “duas na­turezas de Cristo”, afirmadas no Credo de Nicéia, que se refere a Jesus como “verdadeiro Deus e verdadeiro homem”. Pode parecer uma lógica frágil, mas é a única maneira de fazer justiça ao significado total de Jesus. A razão humana é simplesmente incapaz de entender esse conceito, mas é essencial para entender de modo correto a identidade e a importância de Jesus.

Para esclarecer esse ponto, analisemos a próxima questão. O que aconteceria se deixássemos de lado uma das conclusões acima apresentadas? Por exemplo, seria muito mais simples se tratássemos Jesus como mero ser humano e parássemos de falar sobre ele como Deus. Solucionaria nosso problema lógico em um instante!

Certamente resolveria. Mas, em contrapartida, haveria conse­qüências fatais. Se Jesus era apenas humano, não poderia ter-nos resgatado. Somente Deus pode salvar! Ele não poderia revelar- nos Deus. Somente Deus pode revelar-se! Acabaríamos num entendimento lógico que distorceria a identidade de Jesus e destruiria o evangelho.

Também poderíamos pensar em abandonar qualquer conversa sobre a humanidade de Jesus. Novamente, uma lógica perfeita. Mas isso significaria deixar de lado muitos conceitos fundamen­tais do evangelho. Se Jesus não é humano (como nós!), então ele não sofreu de verdade. Ele não pode se identificar conosco, e não podemos falar da remição vicária de Deus.

Dorothy L. Sayers expôs o problema de modo memorável: “Se Cristo foi apenas homem, então ele é totalmente irrelevante para qualquer reflexão sobre Deus; se ele era somente Deus, é totalmente irrelevante para a experiência da vida humana”. A teologia nos mostra por que precisamos afirmar as “duas naturezas de Cristo”, e o que perdemos se a negamos. Mas,

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acima dc tudo, confirma a coerência do entendimento cristão da identidade de Jesus.

Uma situação similar surge na doutrina da trindade, que consideraremos agora.

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8A Trindade: a imagem geral sobre Deus

Existe uma história bem conhecida sobre Agostinho de Hi- pona, um dos maiores teólogos cristãos, a respeito de um livro que ele escrevia sobre a Trindade. Num momento de descanso, enquanto caminhava às margens do Mediterrâneo, viu por perto um menino. Ele enchia um balde com água do mar, andava uma pequena distância e o esvaziava em um buraco na areia. Então retornava ao mar e repetia todo o processo.

Agostinho assistiu àquilo por um tempo e, então, perguntou ao garoto o que ele pretendia fazer.

— Estou trazendo o mar Mediterrâneo para esse buraco na areia — respondeu. Agostinho riu.

— Você nunca fará um oceano caber nesse pequeno buraco! Você está desperdiçando seu tempo.

O menino andou em sua direção:— E você está desperdiçando o seu escrevendo um livro sobre

Deus. Vccê nunca fará Deus caber em um livro!Embora alguns estudiosos suspeitem (e com razão!) que

essa história não passe de invencionice, ela salienta um ponto importante. Não podemos fazer justiça à maravilha completa de Deus. O que de fato nos compete é fazer tudo o que pudermos para falar sobre Deus de modo fiel e íntegro.

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E esse princípio que sustenta uma das áreas mais difíceis da teologia cristã — a doutrina da Trindade. Muitos cristãos aceitam com dificuldade a idéia de que há “um Deus em três pessoas”, além de parecer complicar desnecessariamente um evangelho simples. Mas não se trata disso. A experiência cristã de Deus é imensamente rica. É de importância vital fazer justiça a isso, mesmo que os resultados pareçam difíceis de compreender.

Então qual é o elemento-chave do entendimento cristão sobre Deus? Os temas bíblicos básicos que devemos insistir em incluir são:

1. Nosso Deus é aquele que criou o mundo e tudo o que nele há.2. Nosso Deus nos redimiu em Cristo, na cruz do Calvário.3. Nosso Deus está presente conosco, agora, por meio do

Espírito.

Podemos facilitar as coisas se reduzirmos nossa visão de Deus a apenas um desses elementos. Por exemplo, podemos sugerir ser suficiente acreditar que Deus é o Criador. Mas tal aceitação negaria que ele nos redimiu ou que se importa conosco. Pode até ser algo em que seja bem mais fácil acreditar, mas constitui uma visão parcial de Deus.

É essencial fazer justiça a como Deus se revelou, em vez de reduzi-lo a nossa compreensão. A doutrina da Trindade resu­me a grandeza de Deus, lembrando-nos de tudo o que ele fez. Encoraja-nos a ampliar nossa visão de Deus. Determina, acima de tudo, que não limitemos a Deus insistindo em fazê-lo caber em nosso pequeno entendimento!

O Breve Catecismo de Westminster traz a seguinte pergunta: “Qual é o fim principal do homem?”. A resposta é celebrada como pedra preciosa na coroa da teologia cristã: “Glorificar a

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Deus e regozijar-nos nele para sempre”. Essa breve declaração nos coloca em uma jornada de exploração teológica. Desafia a adquirir nova perspectiva da glória de Deus, para que possamos retribuí-la a ele, e a renovar a vida espiritual pelo conhecimento de um Deus como ele. Vislumbrar o esplendor completo de Deus também estimula o evangelismo. Não foi diante de um relance da glória de Deus no templo que Isaías respondeu ao chamado divino para seguir na missão (Is 6:1-9)?

São Patrício, o patrono da minha Irlanda nativa, apresenta uma visão de Deus em um ótimo hino geralmente conhecido como “Armadura de São Patrício”. Nesse hino, o crente é constantemente lembrado da riqueza e da profundidade do entendimento cristão sobre Deus e de como Deus foi ligado a ele através da fé:

Eu me uno hoje Ao forte nome da Tríade,Invocando-a,Os três em Um e o Um em três

O hino segue, então, examinando o vasto panorama das obras divinas na criação. Somos lembrados de que esse Deus, <|ue fazemos nosso através da fé, é o mesmo que criou a terra no início. Enquanto contemplamos as maravilhas da natureza, somos surpreendidos pela idéia de que esse Deus, cuja presença c poder fundaram o mundo, é o mesmo cuja presença e poder estão em nossa existência individual.

Eu me uno hoje Às virtudes do céu estrelado,Ao raio doador de vida do glorioso sol,

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Ao testemunho da lua na noite,À liberdade da luz.Aos choques tempestuosos do vento sibilante À terra estável, ao profundo e salgado mar,Ao redor das velhas pedras eternas.

Nossa atenção, então, se volta para a obra de Deus na reden­ção. O mesmo Deus que criou o mundo — a terra, o mar, o sol, a lua e as estrelas — agiu em Jesus Cristo para nos redimir. Na história de Jesus Cristo, da encarnação à segunda vinda, pode­mos ver a ação de Deus para nos redimir, uma ação da qual nos apropriamos e que fazemos nossa através da fé.

Eu me uno a este dia para sempre,Pelo poder da fé, a encarnação de Cristo;Seu batismo no rio Jordão;Sua morte na cruz pela minha salvação;Seu explodir da tumba lacrada;Sua ressurreição de forma celestial;Sua vinda no dia do juízo;Eu me uno hoje.

Somos convidados a refletir na história de Jesus Cristo: en­carnação, batismo, morte, ressurreição, ascensão c vinda final, nos últimos dias. Todos esses acontecimentos, diz Patrício, são ações do mesmo Deus que nos criou, enquanto ele caminha para nos redimir através de Jesus Cristo. Tudo isso foi feito para nós, criaturas pecaminosas, pelas quais o Deus gracioso sentiu piedade.

Por fim, o Deus criador do universo, que nos redimiu através da grande seqüência de eventos que se confundem com a história

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de Jesus Cristo, é também o Deus que está conosco aqui e agora, que nos encontra e permanece conosco.

Eu me uno hojeAo poder de Deus para me segurar e me guiar,Seus olhos ao vigiar, sua calma de estar,O seu ouvido para minhas necessidades.A sabedoria do meu Deus para ensinar,A sua mão a guiar, seu escudo a proteger;A palavra de Deus a me dar uma mensagem,Suas hostes celestiais para me guardar.

Esse é o Deus manifesto nas Escrituras e que devemos en­contrar em nossa experiência — o Deus que quebrou o molde do pensamento humano, forçando-nos a expandir os limites das idéias e categorias a fim de que pudéssemos ao menos começar a acomodar ao nosso entendimento sua maravilha e esplendor.

O grande teólogo medieval Tomás de Aquino escreveu certa vez que a teologia não diz muito respeito ao entendimento das coisas uma vez que nos força a ajoelhar em adoração e louvor a Deus. A doutrina da Trindade mostra a imensidade do ser de Deus. Lembra-nos de tudo o que Deus fez por nós. No final, a única resposta apropriada é nos voltarmos a ele em louvor e adoração — e desejarmos levar o conhecimento desse Deus maravilhoso àqueles que ainda não o descobriram.

Tratamos rapidamente, neste capítulo, da doutrina da criação, no próximo detalharemos um pouco mais, permitindo-nos olhar a teologia cristã de outra perspectiva. A teologia nos ajuda a fazer conexões entre os diferentes aspectos da fé. São camadas de alicerce nas quais podemos crescer, construindo ligações entre fé e vida.

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9Estabelecendo conexões: a doutrina da criação

A fé cristã ensina que Deus é o criador do mundo. Como po­demos compreender essa questão? Que diferença isso faz em nossa vida e no modo de pensar?

A doutrina da criação, que reúne muitos conceitos apresen­tados em várias passagens bíblicas, baseia-se principalmente, como era de esperar, em Gênesis 1—2. Esse texto traz o con­ceito de que Deus criou cada aspecto do mundo, incluindo a nós. Outros ensinos bíblicos são importantes, como a idéia de que Deus colocou ordem em meio ao caos (cf., p. ex., Is 29:16; Jr 18:1-6).

A criação em Gênesis mostra que tudo no mundo é obra de Deus. No Antigo Oriente Médio muitos acreditavam que o sol e a lua eram deuses, e os temiam. Eles tinham de ser adorados da maneira certa, pois, do contrário, poderiam negar sua luz c deixar o mundo na escuridão. Os cristãos não precisam temer o sol nem a lua. Eles foram criados por Deus (Gn 1:14-18) e estão sob a autoridade dele.

Também aprendemos que homem e mulher foram criados à imagem de Deus (Gn 1:26-27), o que diferencia o ser humano de todas as demais criaturas. Ser criado à “imagem de Deus” inclui a habilidade de se relacionar com ele. Em outras palavras,

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Deus nos cria com a intenção de estabelecer um relacionamento pessoal entre ele mesmo e nós. Ter a “imagem de Deus” implica algum tipo de semelhança com Deus — mas não uma identi­dade. Não somos divinos. Em vez disso, fomos criados com o propósito de nos relacionar com Deus. O pecado frustrou esse propósito, que só foi realizado pela redenção, trazida por Cristo. Ao nos salvar da morte, Jesus nos permite estabelecer esse relacionamento transformador com Deus.

Duas analogias nos ajudam enquanto tentamos compreender essa importante doutrina. A primeira é pensar em Deus como construtor ou mestre de carpintaria. Podemos pensar em Deus como ambos, arquiteto e construtor, alguém que desenhou e construiu uma bonita edificação. A sabedoria de Deus pode ser vista na maravilhosa organização do mundo.

A catedral de St. Paul, em Londres, é uma das grandes obras do arquiteto sir Christopher Wren. Ela não possui nenhum memorial para Wren, mas apenas uma inscrição acima da porta norte que diz: “Se você está procurando um memorial, olhe ao seu redor”. A genialidade e sabedoria do arquiteto podem ser vistas no que ele construiu. A sabedoria de Deus também pode ser vista em sua criação. “Os céus declaram a glória de Deus!” (SI 19:1).

A segunda analogia é a do artista, talvez um famoso pintor ou escultor. Algo da personalidade e da genialidade do artista pode ser visto em seu trabalho. Da mesma maneira, a sabedoria e o amor de Deus podem ser vistos na beleza da criação. Não é de espantar que tantos estudiosos das ciências naturais sejam cristãos ativos. Estudar a criação tão detalhadamente significa entrar em contato com a obra do próprio Deus.

Mas que diferença faz para nossas ações e nossos pensamen­tos? Deve haver uma conexão entre a teologia e nossa vida, crença

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e comportamento. Tiago nos pede que sejamos praticantes, c não apenas ouvintes, da palavra (Tg 1:22). Então que diferença faz a doutrina da criação?

O primeiro conceito que aprendemos com ela é que o mundo pertence a Deus. Não a nós. Não fomos nós que o fizemos. Adão foi colocado no Jardim do Éden para tomar conta dele (Gn 2:15). Trata-se de uma idéia de importância vital. Somos os mordomos, e não os donos, da criação de Deus. Ele nos confiou sua boa criação e nos cobrará pela forma como a usamos.

Essa idéia acentua a preocupação dos cristãos quanto ao meio-ambiente. Somos chamados para proteger a terra, para cuidar do que Deus criou e nos confiou. Não temos o direito de explorar o mundo para o próprio benefício. Ele é de Deus, e não nosso. Como Adão foi chamado para cuidar do Éden, somos chamados para dividir esse mandato da criação. Essa compreen­são deve mudar nosso comportamento diante da criação, deve nos encorajar a respeitá-la e a cuidar dela como um tesouro que pertence a Deus.

Podemos apresentar isso em quatro proposições:1. A ordem natural, incluindo os seres humanos, resulta do

ato de criação de Deus e é feita para ser possessão de Deus.2. Os seres humanos são diferenciados do resto da criação

porque foram criados à “imagem de Deus”.3. Somos encarregados de cuidar da criação (como Adão

foi incumbido de cuidar do Éden), sabendo que essa criação é possessão amada de Deus.

4. Não há, então, uma razão teológica para assegurar que a humanidade tem o “direito” de fazer o que quiser com a ordem natural. A criação é de Deus e ele a confiou a nós. Devemos tomar conta dela e não a explorar.

A doutrina da criação também apresenta outro conceito important e.. A criação é de Deus; não é Deus. Algumas religiões,

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incluindo algumas formas de paganismo que tiveram um res­surgimento nos últimos anos, dizem que a natureza é divina. Os cristãos adotam uma abordagem significativamente diferente. A natureza é criação de Deus. Ela não é divina, mas através dela podemos conhecer algo sobre a natureza e o caráter de Deus.

Precisamos desenhar uma linha de separação entre o criador e a criação. Tudo o que está em nosso lado da linha — incluindo nós! — é criação de Deus, e não algo divino por si só. Não há lugar no cristianismo para adoração da natureza (um ponto colocado por Paulo em Rm 1—2). Apenas Deus deve ser ado­rado. Devemos, porém, respeitar a natureza e cuidar dela como o trabalho do mesmo Deus que nos ama e nos redime. Amar a Deus é amar suas obras — incluindo a criação.

Por fim, percebemos que a doutrina da criação é também importante para a apologética cristã — ou seja, a defesa da fé cristã. Em geral é difícil para um não-cristão entender o con­ceito de Deus. A idéia de “Deus” pode parecer vã, abstrata e sem sentido para tais pessoas. A doutrina da criação nos lembra que Deus pode ser conhecido, ainda que de forma limitada, através da criação do mundo. Deus providencia indicadores visíveis e tangentes para a sua realidade invisível e intangível.

A criação é como um aviso, apontando para longe de si mesma, em direção ao Criador — mas chamando-nos a aten­ção, porque é algo que podemos ver e sentir. Não atentar para o aviso, adorando-o ao invés de segui-lo, é cair na religião da natureza. Em contrapartida, seguir a direção para qual o aviso aponta é chegar ao verdadeiro conhecimento do Deus vivo, íntimo da natureza e mostrado de forma gloriosa na substância das Escrituras e em Jesus Cristo.

Uma das mais belas declarações sobre a força da criação pode ser encontrada nos escritos de Jonathan Edwards (1703-1758), provavelmente o maior teólogo surgido nos Estados Unidos:

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O Filho de Deus criou o mundo [...] para comunicar a si mesmo na imagem da própria excelência. [...] Ele comunica uma espécie de sombra [...] da própria excelência [...] para que quando nos deleitarmos com prados de flores e brisas gentis [...] consideremos que vemos apenas a emancipação da doce benevolência de Jesus Cristo.1

Assim, a sensação da beleza da criação, captada quando an­damos à beira de um rio, aponta para a beleza do próprio Deus como o criador.

Isso naturalmente nos leva a pensar em outras maneiras de a teologia nos ajudar a explicar e comunicar a fé cristã para os amigos. No próximo capítulo, veremos como a teologia nos per­mite desenvolver percepções poderosas para a apologética. Uma boa teologia é uma ferramenta essencial para o evangelismo!

1 Citado por Robert W. J e n so n , Americas Theologian: A Recommendation o f Jonathan Edwards. Nova York: Oxford University Press, 1988, p. 19.

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A atratividade do evangelho: teologia e apologética

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A apologética se resume em apresentar as razões da fé. Seu alvo é convencer as pessoas de que o cristianismo faz sentido. Tornar-se cristão não significa cometer suicídio intelectual. A apologética procura lidar com as barreiras impostas à fé, dando respostas sensatas, que permitam à audiência apreciar toda a atração e coerência da fé cristã. Em particular, ela busca estabelecer a total atratividade de Jesus Cristo, para que os alheios à fé comecem a entender por que ele merece séria consideração.

Como a teologia faz isso? Ela nos permite apreciar a fé pelo que vale. São boas notícias para nós: dela depende a qualidade de nossa fé. Mas também nos permite começar a compreender por que o cristianismo pode atrair as pessoas.

Jesus certa vez comparou o reino dos céus a uma pérola de grande valor. “O Reino dos céus também é como um negociante que procura pérolas preciosas. Encontrando uma pérola de grande valor, foi, vendeu tudo o que tinha e a comprou” (Mt 13:45-46). O negociante entendia de pérolas e pôde ver que aquela era tão bonita e preciosa que valia a pena desistir de tudo para possuí-la.

Nossa tarefa é ajudar as pessoas a perceberem que a fé cristã é tão animadora e maravilhosa que não pode ser comparada.

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Significa ajudar as pessoas a entenderem os atrativos da fé. A teologia permite identificar e apreciar os elementos individuais da fé cristã. E como abrir um baú de tesouros e pegar, uma a uma, jóias, pérolas e metais preciosos, para que sejam vistos e apreciados individualmente.

Ilustrar a relação entre apologética, teologia e evangelismo pode ajudar. Jesus muitas vezes compara o evangelho com uma ceia ou qualquer tipo de festa (cf. Lc 14:15-24). Tente imaginar três maneiras diferentes de fazer as pessoas comparecerem à festa.

A primeira abordagem enfatiza que há realmente uma festa, explica por que haverá muita diversão e fala sobre o grande mo­mento que todos terão. A apologética é isso. Consiste basicamente em afirmar a verdade e atratividade do evangelho. É uma espécie de pré-evangelismo. Ao ajudar as pessoas a entenderem o signi­ficado do cristianismo e por que ele é tão atrativo e significativo, ela prepara o caminho para que o convite seja seguido.

A segunda abordagem destaca os pratos individuais que se­rão servidos, identificando-os e apontando as atrações a serem degustadas. Os maravilhosos vinhos antigos, o pão fresco e chei­roso, as frutas suculentas, são todos nomeados e apreciados. Isso é o que a teologia faz. Ela nos convida a sentar ao redor da mesa celestial e a nos deliciar com as riquezas expostas. Isso facilita a tarefa de convidar pessoas para uma ceia, porque podemos dizer exatamente o que as espera.

A terceira abordagem, o evangelismo, é um convite individual para seguir a fé e se tornar cristão. A teologia, porém, preparou o terreno para esse convite. Como um prisma transforma um raio de luz branca nas bonitas cores do arco-íris, também a teologia permite que separemos os elementos individuais do evangelho cristão. A teologia é a ferramenta que permite que as muitas facetas do evangelho cintilem brilhantemente a sua luz.

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A ATRATIVIDADE DO EVANGELHO: TEOLOGIA E APOLOGÉTICA 57

Mas por que isso é importante? Por que alguém quer explorar as muitas facetas do evangelho? A resposta está nas audiências para as quais apresentamos o evangelho. Diferentes pessoas têm necessidades e preocupações diferentes. Um aspecto do evangelho pode conectar um grupo de necessidades, enquanto um segundo pode se identificar com outros. Para apreciar essa questão, vamos revisar rápida e novamente o tema central da fé cristã: o sentido da cruz.

E impossível resumir a imensa, rica e complexa mensagem da cruz em poucas palavras. Na verdade, um dos grandes encan­tos da teologia é que ela nos oferece a oportunidade de refletir profundamente (e com que aprendizado!) no sentido total dos maiores temas da mensagem cristã, como a cruz de Cristo. É importante, porém, notar que inúmeros aspectos podem ser identificados nessa mensagem — e cada um apresenta relevância particular para determinado grupo de pessoas.

Um dos grandes temas do evangelho é que a cruz e a ressur­reição de Jesus Cristo nos libertaram do medo da morte. Cristo foi levantado de entre os mortos, e aqueles que têm fé um dia compartilharão dessa ressurreição, permanecendo com ele para sempre. A morte já não precisa ser temida. A Páscoa é a celebra­ção suprema desse fato. Essa grande mensagem de esperança em meio ao sofrimento e à morte é crucial para nós. Ela se reveste ainda de especial relevância para aqueles que acordam no meio da noite, assustados por pensarem na morte.

Outro grande tema da cruz é o perdão. Através da morte de Cristo, o pecado pode ser de fato perdoado. Isso nos ajuda não só a entender que a redenção é, ao mesmo tempo, preciosa c cara, mas também a apreciar a relevância do evangelho para um grupo particular de pessoas — os consumidos pela culpa. Muitos mal conseguem viver, enredados que estão nesse sentimento. A

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teologia identifica uma das muitas facetas do evangelho espe­cialmente relevantes para tais pessoas. Os pecados podem ser perdoados e as culpas, lavadas.

O mesmo tipo de pensamento pode ser aplicado de várias maneiras. O importante é pôr o evangelho em contato com a vida das pessoas. A teologia ajuda a identificar o ponto de con­tato mais apropriado com esses indivíduos, para que possam descobrir a alegria da fé. Não quer dizer que estamos reduzindo o evangelho a apenas um ponto! Significa simplesmente que procuramos o aspecto do evangelho de maior relevância para nosso interlocutor. Os demais aspectos dos evangelhos seguirão seu devido curso. Temos de partir de algo, e a teologia ajuda a identificar o melhor ponto de partida em cada caso.

A teologia, então, nos ajuda a explicar e proclamar a fé cristã mais eficazmente para as pessoas ainda não-cristãs. É uma ferramenta essencial para indivíduos e igrejas que procuram proclamar o evangelho. Mas ela representa ainda outro papel relacionado a esse. Ela não apenas ajuda a entender os atrativos do evangelho, mas aprofunda o nosso entendimento e ajuda a aplicá-lo a nós mesmos.

Acabamos de observar a relevância da teologia para a apo­logética. Agora devemos considerar sua relevância para a espi­ritualidade.

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Sondando as profundezas da fé: teologia e espiritualidade

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A espiritualidade é a aplicação da verdade cristã à vida de fé. Seu alvo é nos assegurar que conheçamos sobre Deus e a Deus. Ela procura colocar Deus no coração e na mente. A espiritua­lidade ocupa-se do aprofundamento no conhecimento pessoal de Deus. Como veremos, ela se baseia em uma boa teologia, que alicerça a vida cristã.

Um dos teólogos mais importantes que escreveram a esse respeito, no século XX, é James I. Packer (nascido em 1926). O trabalho clássico de Packer, O conhecimento de Deus, é um exemplo excelente de um livro que mostra como a teologia lida com o aprofundamento da fé e o enriquecimento da experiên­cia pessoal. Ainda que valorize a cuidadosa reflexão sobre a fé, Packer é claro ao afirmar que o cristianismo é mais que idéias! O cristianismo visa a permitir que a realidade de Deus penetre em cada aspecto da vida.

Em dezembro de 1989, Packer deu sua aula inaugural no Regent College, em Vancouver (Canadá), sobre a relação entre teologia e espiritualidade. Nessa palestra, Packer defendeu a impossibilidade de separarmos teologia da espiritualidade.

Questiono a propriedade de conceituar o objeto da teologia sistemática como verdades simplesmente reveladas sobre Deus.

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Rejeito a suposição que normalmente acompanha esse modo de pensar de que o material, a exemplo das informações científicas, é mais bem estudado em isolamento frio e clínico. Isolamento de que, você pergunta? Isolamento da atividade relacional de confiar, amar, adorar, obedecer, servir e glorificar a Deus? Iso­lamento da atividade cujo resultado é perceber que alguém está realmente na presença de Deus, sendo guiado de fato por ele, toda vez que abre a Bíblia ou reflete sobre uma verdade divina. Isso [...] dá a entender que o estudo da doutrina é confuso quando introduz preocupações devocionais, colocando uma barreira entre [...] conhecer as noções verdadeiras sobre Deus e conhecer o verdadeiro Deus em si mesmo.1

O ponto sugerido por Packer é que uma experiência genuína com Deus impossibilita seu estudo isolado. Conhecer a Deus é comprometer-se com ele. Colocar uma barreira entre teologia e espiritualidade é como pedir a duas pessoas apaixonadas que se relacionem friamente.

Então, como a teologia nos ajuda espiritualmente? Como nos ajuda a sustentar e aprofundar a fé? Para responder a essa questão devemos explorar um aspecto da teologia que ainda não analisamos neste livro: o problema do sofrimento e da dor.

Como podemos suportar o sofrimento? Trata-se de um dos aspectos mais dolorosos da vida. Uma das razões que tornam essa questão tão angustiante é que ela trata de algo que sentimos estar além de Deus. Como podemos orar a Deus sobre o sofrimento se ele não o conhece? Seria muito mais fácil se Deus tivesse experimentado em primeira mão o sofrimento e a dor.

' James I. P a c k e r , An Introduction to Systematic Spirituality [Introdução à

Espiritualidade Sistemática], Crux, vol. 26, n. 1 March, 1990, p. 6.

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É sempre mais fácil nos relacionarmos com alguém que passou pelas mesmas experiências. Suponha que um amigo próximo tenha morrido e eu queira conversar sobre isso com um bom ouvinte. Eu poderia ir até alguém que não tenha passado por essa experiência, mas que estivesse pronto a tentar entender minha situação. Isso poderia ajudar e, com certeza, seria melhor que nada.

Seria bem mais útil, porém, falar com alguém que tivesse passado pela mesma experiência. Haveria um laço de empatia entre nós. Teríamos compartilhado o mesmo luto e seríamos capazes de entender um ao outro. Eu me sentiria muito mais confortável em falar com alguém que já tivesse passado por uma experiência semelhante. Por isso é totalmente natural considerar mais fácil orar a Deus sobre o sofrimento e a dor sabendo que ele passou por isso antes de nós.

Por acaso Deus sofre? Essa é uma das questões mais incômo­das para muitos cristãos, particularmente para os que passam por períodos de sofrimento. Faz toda a diferença do mundo saber se Deus experimentou algum sofrimento. Se ele não sabe o que é o sofrimento, então não terá empatia conosco nesses momentos. Em contrapartida, se Deus experimentou o sofrimento e a dor deste mundo, podemos orar cientes de estar na presença de um companheiro de sofrimento que sabe o que estamos passando e pode entender nossas experiências, nossos medos e nossas preocupações.

É aqui que a teologia entra em cena, e tem uma contribuição decisiva. Ela nos lembra que Jesus Cristo é nada menos que o Filho de Deus. Em Jesus Cristo, Deus entrou em nosso mun­do de sofrimento e dor para nos redimir. O argumento de que Deus experimentou o sofrimento em primeira mão é baseado nas “duas naturezas” de Jesus, que já analisamos anteriormente. Tal argumento pode ser colocado da seguinte maneira:

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1. Jesus é Deus.2. Jesus experimentou a dor e o sofrimento.3. Portanto, Deus experimentou a dor e o sofrimento.

Com isso em mente, podemos voltar a falar de dor e sofri­mento, que são como terras estranhas nas quais Deus escolheu viver antes de nós. Ele já experimentou o sofrimento e a dor que agora conhecemos. Deus dignificou o sofrimento ao passar por ele.

Essa idéia não elimina o sofrimento, mas permite que vejamos uma nova luz. A carta aos Hebreus fala sobre Jesus como nosso empático sumo sacerdote (4:15), alguém que sofre conosco (que é o sentido literal de ambas as palavras, a grega sympathetic e a latina compassionate). Deus sabe quão fraca é nossa fé e faz tudo o que pode para nos sustentar e apoiar. O sofrimento de Jesus Cristo significou a certeza de que temos o privilégio de nos relacionar com um Deus que conhece a dor e o sofrimento de viver em um mundo caído. As narrativas evangélicas da paixão nos contam de um Salvador que entende de fato o sofrimento e que passou por isso.

O Deus que fez o céu e a terra sabe como é o ser humano. Esse pensamento é ao mesmo tempo surpreendente e profun­damente confortador. Não estamos falando de Deus igualar-se a nós, como se ele tivesse se disfarçado para se passar por um de nós. Estamos falando sobre o Deus que criou o mundo e entrou nele, em nosso favor, para nos redimir. Deus não mandou um mensageiro ou um representante para ajudar as pobres criaturas que somos: ele se envolveu diretamente, redimindo a própria criação, em vez de usar outras pessoas para fazer isso por ele.

Acertar nossas idéias sobre Deus é essencial para nossa vida cristã. Sc pensarmos que Deus nunca se envolveu com a dor e

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a tristeza do mundo, acharemos difícil nos relacionar com ele e ainda mais difícil orar quando sofremos.

O Deus que os cristãos adoram e louvam é aquele que se humilhou, entrando em nosso mundo triste e sofredor, levando esse sofrimento para que pudéssemos ser redimidos e ter es­perança de vida eterna. Um dia, estaremos com ele na Nova Jerusalém, quando toda a dor e todo o sofrimento finalmente terão acabado.

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Seguindo em frente

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Todo livro apresenta limites, e este não é exceção. Seus objetivos são limitados, e podemos resumi-los assim:

1. Apresentar a você o estudo da teologia.2. Mostrar-lhe que ele vale a pena.3. Encorajá-lo a ir além.

Há muito mais que dizer sobre teologia! Limite significa que assuntos importantes apenas começaram a ser estudados e assuntos cruciais foram tratados de forma superficial. Você algumas vezes deve ter desejado que fosse possível analisar as coisas de forma mais profunda.

Então, por que não fazê-lo? Por que não levar as coisas adiante por conta própria? Este livro tentou encorajá-lo, mostrando que é capaz de lidar com os princípios básicos da teologia. Há ouro nessas jazidas teológicas! Por que não explorar mais?

A boa teologia pode trazer nova profundidade e qualidade a sua fé, e isso o ajudará a explicá-la mais eficazmente a seus amigos. Você começou como amador, mas não precisa perma­necer como tal. Pode ser uma fonte de pesquisa para sua igreja ou para seu grupo de estudo bíblico. Pode achar que está dando

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respostas muito melhores para aquelas questões que as pessoas do trabalho lhe fazem sobre o cristianismo.

Se você se sente pronto para seguir em frente, este capítulo final o ajudará a entender como agir.

Há duas maneiras para levai' adiante seu interesse pela teologia: optar pelo estudo mais detalhado da teologia como um todo, e começar a estudar um ou dois teólogos de maneira mais perspicaz.

Este livro não pretendeu examinar de forma exaustiva nenhu­ma área da teologia. Tive de omitir grandes áreas de discussões porque o objetivo é motivá-lo a conhecer de forma simples e envolvente a relação de sua fé e o cristianismo. Uma apresenta­ção mais detalhada da teologia cristã permitirá discussões mais profundas. Você pode encontrar, por exemplo, discussões sobre os seguintes assuntos:

1 .Asfontes da teologia. Como a teologia faz uso da Bíblia e se relaciona com ela, a razão, a tradição e a experiência?

2. Os grandes períodos da teologia. Por exemplo, o século XVI é o período mais interessante da teologia, pois nos permite aprender sobre teólogos como Martinho Lutero (1483-1546) e João Calvino (1509-1564), ou sobre grandes questões teológicas, como a justificação pela fé.

Duas introduções das mais utilizadas na teologia cristã são indicadas aqui.

Christian Theology (Teologia cristã), de Millard J. Erickson, é uma obra substancial, que oferece uma visão completa e com­petente de muitas áreas da teologia.1 Erickson tem um longo

! Grand Rapids: Baker Book House, 1998.

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envolvimento com o ensino da teologia, e seu trabalho é obvia­mente obra de um experiente professor e guia.

A segunda introdução é um irmão mais velho deste pequeno trabalho. O meu Teologia sistemática, histórica efilosófica: Uma introdução à teologia cristã oferece uma introdução básica das principais questões da teologia cristã.2 Ele foi escrito na pres­suposição de que você nada sabe sobre a teologia ou a história cristã, e se propõe a levá-lo a um aprendizado tão rápido quanto possível. Algumas leituras anotadas também estão disponível para encorajá-lo a ler os trabalhos originais dos teólogos.3

Isso nos leva à segunda maneira de desenvolver nosso cres­cente interesse por teologia: ler os trabalhos de alguns proemi­nentes teólogos. Obviamente, isso levanta uma questão crucial: que teólogos devemos ler?

Como esse livro é escrito em nível introdutório, a melhor resposta é provavelmente a mais simples: leia os teólogos que es­crevem bem. Não há motivo para ler um grande teólogo se essa experiência for muito difícil. Espere até sentir-se confiante o suficiente para lê-los! Enquanto isso, explore alguns teólogos conhecidos por sua clareza e escrita acessível.

Comece lendo uma biografia do teólogo. Isso vai ajudá-lo a perceber que ele é uma pessoa de verdade! Vai ajudá-lo a ter uma idéia das questões que enfrentou, das respostas que encontrou e de quão importante isso foi para a fé cristã.

Existem muitos teólogos que se encaixam nessa categoria. Agostinho de Hipona, Martinho Lutero e João Calvino são exemplos óbvios. No entanto, os dois que recomendo são escritores do século XX, com influência considerável no cristianismo de língua inglesa, especialmente em nível popular.

2 São Paulo: Shedd, 2005.3 Christian Theology Reader. Oxford: BlackweU Publishiag, 1995.

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C. S. Lewis (1888-1963) é lembrado por As crônicas de Nãrnia, uma série de histórias bem escritas para crianças, que colocam as idéias básicas cristãs de maneira muito criativa e atrativa.4 Os trabalhos teológicos mais sérios — como Surprised by Joy [Surpreendido pela alegria]5 e Cristianismo puro esimple£ — são textos bem articulados e fáceis de ler sobre os temas básicos da fé cristã. Lewis era conhecido por sua competência como comunicador. Percorrer seus escritos é uma forma divertida e efetiva de aprofundar o interesse pela teologia.

James I. Packer (1926) é um dos mais renomados teólogos evangélicos do século XX. Estudou teologia na Universidade de Oxford e obteve o doutorado com a tese sobre a teologia de um destacado escritor puritano. Packer rapidamente se estabeleceu como bom professor, com particular interesse em relacionar teologia cristã e espiritualidade. Isso é bem evidente em O conhecimento de Deus, seu trabalho mais conhecido.7 Packer interessa-se particularmente pela teologia dos puritanos. Seu livro Entre os gigantes de Deus, explorou a visão puritana da vida cristã e sua relevância na atualidade.8

4 São Paulo: Martins Fontes, 2005.5 São Paulo: Mundo Cristão, 1998.6 São Paulo: Martins Fontes, 2005.7 2a ed., São Paulo: Mundo Cristão, 2005.8 São José dos Campos: Fiel, 1995.

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Conclusão

Estudar teologia é como abrir uma porta. Atrás dela há uma miríade de tesouros. Podemos pegá-los, um de cada vez, e nos maravilhar com sua beleza e riqueza. Abrir a porta da casa do tesouro da teologia cristã é examinar cada um dos grandes temas da fé.

Cada assunto, como jóias preciosas, merece cuidado e aten­ção individual. Cada um tem muito que oferecer. Cada um nos fascina a mente, nos anima o coração e nos faz querer pregar as boas-novas.

A teologia nada tem a ver com isolamento frio e clínico, nem com fórmulas e frases secas e vazias. O que importa nela é como aprender mais sobre o Deus vivo e amoroso, e servir-lhe por inteiro com a mente e o coração. Para aprender mais sobre Deus é preciso estar mais perto dele e buscar com afinco o dia em que finalmente estaremos com ele.

Enquanto isso, há muito que fazer. O evangelho deve ser pregado. A fé deve ser fortalecida. Deus deve ser servido. Em todas essas tarefas, a teologia pode nos inspirar e informar. Teo­logia é uma “conversa com Deus”, que aprofunda nosso desejo de finalmente estar com ele, e nutre nosso desejo de servi-lo enquanto isso.

FIM

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Se "todos os cristãos f teologia" por que poucos a compreendem?A extensão e a profundidade da teologia podem assustar . n •

que não são do "ramo", aqueles que não se dedicam a embrciihiii

se no vasto campo teológico. Por isso, Alister McGrath, qut; ■ • < 1« •

"ramo"e considerado um dos maiores teólogos da atualid.it Ir,

decidiu aventurar-se numa tarefa ainda mais difícil: falar com

simplicidade do saber teológico.

Em Teologia para amadores, McGrath mostra por que é um ■ li >'

teólogos mais lidos do planeta. Por saber tratar as coisas di* IM m,

com naturalidade singular, o professor de Oxford cativa o iHIni

menos habituado às infindáveis questões teológicas por mm pjtlxrto

e seu deslumbram ento com o Criador, e seu exemplar did.il r......

Antes ateu, Alister apresenta a teologia partindo do princ l|»h n |r

que você a desconhece.

Se você já tentou entender e não conseguiu, recomece. Vo< t«slA

em boa companhia.

Alister McGrath é professor de teologia histórica da Universid.ulr ili> Oxford e pesquisador sênior do Harris Manchester College. Possui doutorados em biofísica molecular e em teologia pela Oxford.

ISBN 978-HI» / U I M i l

MCmundocristão M i l 11